Auto-erotismo: uma discussão das adições
Victor Cruz de Freitas
Resumo: Neste artigo, proporemos uma discussão das adições a partir do auto-erotismo e
das fragilidades narcísicas. A escolha das adições e das toxicomanias como tema de
pesquisa, se situa na lógica que visa a prática clínica neste campo, assim como a
transmissão em psicanálise.
Palavras-chave: traumatismo precoce, auto-erotismo, realização alucinatória insatisfatória,
fantasia, representação do corpo, adições, toxicomanias.
Adições e Toxicomanias
O termo adição aparece na Europa como uma transposição da utilização anglo-saxã
que engloba a toxicomania, o alcoolismo e as demais formas de dependência, a saber:
jogos,
sexo,
transtornos
alimentares,
compra
compulsiva,
enfim,
toda
atitude,
comportamento e ação que transcende um querer consciente do sujeito que, não raro,
reconhece sua incapacidade de controle: a adição caracteriza uma situação da qual o
sujeito é escravo, uma dependência.
Propomos pensar as adições como uma toxicomania sem drogas. Consideramos a
adição como o recurso a um objeto externo que para o adicto, representaria a única forma
de obter prazer e de escapar do sofrimento físico/mental, cuja origem remonta, muitas
vezes, a um traumatismo precoce. Trata-se de uma dinâmica pulsional – um modo de
funcionamento psíquico – que, na tentativa de elaborar o traumatismo, reatualiza uma
repetição que se situa para além do principio do prazer.
P. Noaille corrobora nosso pensamento precisando: “Não é o tóxico que faz a
toxicomania, mas sim o indivíduo que encontra nele, mais ou menos, uma resposta às
questões secretamente colocadas, advindas pela íntima e singular relação com a alteridade,
com o desejo e com o prazer” (NOAILLE, Pierre, 2001, p. 101).
Vinheta Clínica
Wagner, 27 anos, engenheiro, é afetado precocemente pelo traumatismo oriundo das
agressões físicas (espancamentos) e verbais proferidas pelo seu pai contra sua mãe, suas
irmãs e contra ele próprio.
1
A atualização do traumatismo precoce emerge na ocasião de uma decepção
amorosa, quando o mesmo vivencia uma ruptura abrupta de relacionamento que existia
unicamente em sua fantasia, o que resulta numa tentativa de auto-extermínio.
Em uma de suas sessões, Wagner diz: “comecei a criar um mundo surreal, falava
com todo mundo que saíamos juntos’’, e acrescenta: “eu dava cartas, escrevia bilhetes,
dava bombons, e ela aceitava, mas não quis ficar comigo’’.
Tal fato remete Wagner à sua infância e à relação vivenciada com seu pai. Na
infância, o pai de Wagner, para além das agressões, o privara do “brincar e do afeto”, “ele
me privou do mundo... me dava todos os brinquedos, os mais caros, mas nunca brincou
comigo e não me deixava brincar com outras crianças’’ e mais, “ele nunca me ensinou o que
é certo e o que é errado’’ (sic)
Wagner diz “tive que aprender na porrada, no mundo... Não sei qual é o limite do
mundo’’ (sic). Em função disso, o paciente desenvolve um funcionamento psíquico do tipo
limite. Bebendo demasiadamente, atacando verbalmente e moralmente suas namoradas,
correndo de carro, na tentativa de encontrar algum limite.
Aparentemente, em Wagner ocorreu uma clivagem do Ego, o que sugere um conflito
entre o próprio Eu do paciente e a normalidade social. Wagner diz: “parece que existem dois
‘’eus’’ dentro de mim: um arrogante e impulsivo e o outro sensato’’. A cada atuação, Wagner
é duramente castigado por ele mesmo.
A noção do certo e do errado, que falta ao paciente nos seus primeiros anos de vida,
aparece na adolescência e na idade adulta, inscritas no corpo como tatuagens, metade
‘’profanas’’ (monstruosas) e as demais divinas.
Concernente ao afeto, o paciente diz “antes eu era como uma divisória (opaca), não
sabia se havia algo dentro de mim, hoje me sinto transparente (como uma divisória
translúcida), já vejo alguma coisa’’.
No caso de Wagner, tanto o pai quanto a mãe, foram, a meu ver, “agentes
traumatizantes’’. O pai, como o agressor e a mãe como a passiva, submissa que não
impedia as violências aferidas pelo pai.
No que diz respeito aos processos identificatórios, Wagner, embora ferido
narcisicamente por seus pais, se identifica de maneira ambivalente ao seu pai. O paciente
relata “tentar ser o oposto’’, pois o pai é a “referência negativa’’, contudo Wagner,
assustado, revela ‘‘estou ficando igual a ele“. O paciente é extremamente “cruel’’ e
‘’violento’’ com as namoradas, a cada vez que ele se percebe envolvido afetivamente. “Não
sei sentir, não sei o que sinto’’(sic).
Entendemos que nem mesmo todos os brinquedos oferecidos por seu pai foram
suficientes para que Wagner pudesse viver uma infância de maneira ‘’satisfatória’’. Wagner
demonstra uma aversão, quase total, aos relacionamentos afetivos.
2
Percebemos também que Wagner, mesmo contando com objetos susceptíveis de
proporcionar prazer, não obtinha êxito no prazer, pois afetivamente ele era assolado
precocemente por um traumatismo majeur.
McDougall chama nossa atenção para ‘’a importância das primeiras interações mãebebê, e o fato de que cada bebe envia constantemente sinais à sua mãe que indicam suas
preferências e aversões’’(MCDOUGALL, 2003, p. 56). O problema é quando a mãe não
consegue captar estes sinais ou quando não consegue captar e/ou responder a esta
demanda, como no caso de Wagner que culpa, veementemente, sua mãe por não conseguir
protegê-lo.
A situação é ainda mais delicada quando um dos cuidadores é o agente
traumatizante. Neste caso, o traumatismo precoce é agravado, pois existe uma tendência
universal à fusão ‘’mãe-bebê’’, um tipo de ‘’empuxo’’ da criança ao seu ‘’agente
traumatizante’’.
Wagner encontra na adição ao sexo, a saída para não se haver com suas
‘’questões’’ afetivas. Ele diz, ‘’sou viciado em sexo... Toda vez que me sinto mal, até quando
estou doente, o sexo é o meu remédio’’ (sic). O paciente relata ter cinco namoradas, mas
afirma não sentir nada por nenhuma delas.
Durante uma sessão, quando o atendimento ocorria improvisadamente num
consultório de pediatria, o paciente olha para uma prateleira repleta de bichinhos de plástico
e fala: ‘’Tá vendo, para mim, minhas namoradas são como estes bichinhos, como os
brinquedos que meu pai me dava...’’ . Ele acrescenta: ‘’ eu não sinto nada por elas, mas elas
têm que estar sempre ali, à minha disposição’’ (sic).
Quanto ao relacionamento sexual, acredito que Wagner, ‘’via apropriação imaginária
do sexo (da (s) parceira (s)), tenta uma recuperação fantasiada de sua própria integridade
sexual que controla a angústia (traumática e/ou) de castração e que o assegura contra o
medo mais primitivo da perda dos limites corporais ou do sentido da integridade pessoal”
(MCDOUGALL, 2003, p. 70). Tal “fenômeno” é descrito por J. McDougall como ‘’um corpo
para dois’’(MCDOUGALL, 2003, p. 69).
O Auto-erotismo
A. Green, assim como J. Laplanche e J.B. Pontalis compartilham o pensamento de
que, no início, o “impulso torna-se auto-erótico assim que ele perde o seu objeto”. No
entanto, ainda segundo eles, “não é necessário que o objeto esteja ausente” para que haja
auto-erotismo. A. Green, citando Freud, acrescenta que “o ideal do auto-erotismo, são os
lábios que se beijam” (GREEN, 2010, p. 41).
Ele observa ainda que na situação auto-erótica, a pulsão tem um estatuto particular.
A pulsão auto-erótica é considerada como capaz de “satisfazer-se tanto na ausência quanto
3
na presença do objeto, mas independente dele”. Com efeito, podemos distinguir dois tipos
de pulsões: “as que podem funcionar sem o objeto e aquelas que são capazes de encontrar,
através do objeto, a satisfação (o prazer) no próprio corpo”. No seio da satisfação autoerótica, surge a atividade alucinatória.
O prazer Premium experimentado pelo bebê faz com que esta experiência seja o
objetivo de toda atividade psíquica. Cyssau, retomando a idéia de P. Aulagnier nos diz que
este “prazer, desde sua primeira aparição, vai paradoxalmente se antecipar sobre esta
experiência de uma totalidade inebriante que, à posteriori, será chamado de gozo”
(CYSSAU, 2004, p. 20).
O Traumatismo no centro da atividade alucinatória
Conforme a nossa perspectiva, a criança frente ao traumatismo precoce, agravado
pelo fato de ser dependente do seu “agente traumatizante”, “denegará” esta realidade e se
aprisionará num mundo auto-erótico. Temos como hipótese o “surgimento” do auto-erotismo
como uma tentativa de separação daquele que causou seu traumatismo.
Visto que tratamos aqui do auto-erótico, é imprescindível ressaltar que este consiste
numa defesa arcaica. Somente depois deste momento, o psiquismo estaria pronto para
exercer outra função fundamental mais bem elaborada, a saber, a fantasia.
Tanto a realização alucinatória quanto a fantasia surgirão num momento de intervalo,
quando se instaura uma fenda.
A primeira, quando ocorre uma mudança da representação pulsional, a passagem de
pulsão de auto-conservação para pulsão auto-erótica (FREUD, 1905, Três ensaios sobre a
sexualidade infantil), em sincronia com a presença e a ausência do objeto, e a segunda, nos
processos de separação e diferenciação.
A nosso ver, esta é uma marca extremamente importante no que diz respeito à
construção da subjetividade, e que determinará, doravante, boa parte do seu funcionamento
psíquico.
Entretanto, se um evento traumatizante assola precocemente o psiquismo em
formação, consideramos pertinente ressaltar que, neste caso, em razão de uma exigência
maciça de trabalho psíquico para superar, driblar o traumatismo, a realização alucinatória
ocorrerá de maneira insatisfatoria. Além disso, não hesitaríamos em dizer que, em certos
casos, não haveria alucinação.
Hipotetizamos que para o indivíduo tentar alucinar, ou melhor, tentar obter prazer, ele
poderá construir uma fantasia inconsciente sob uma lógica econômica aditiva. Através da
incorporação de um corpo estranho, o sujeito tentará aplacar a angústia gerada pelo
traumatismo precoce. Em alguns casos, nota-se uma perda dos limites do corpo, o que leva
certos sujeitos a tentarem, por incorporação, reparar a representação do corpo próprio.
4
Este movimento pulsional, este funcionamento psíquico corresponde ao conceito de
“identificações aditivas inconscientes” desenvolvido por Le Poulichet na sua obra
”Psychanalyse de l’informe”.
Conforme a autora
... “L’informe” em psicanalise designa ao mesmo tempo os processos inconscientes
subjacentes aos vacilamentos identificatórios e às formações sintomáticas que resultam,
desde a perda temporária da percepção do rosto ou do contorno do corpo, até as sensações
de auto-absorção ou de “cadavérisation” corporal parcial e diferentes formações aditivas...
Tais identificações aditivas inconscientes são compreendidas como processos limites, que
se constituem, muitas vezes, graças a um processo de incorporação de uma parte do outro,
dando ao corpo a aparente capacidade de se subtrair da dependência do outro.
(LE POULICHET, 2009, p. 9).
Do mesmo modo, “a incorporação de uma parte do outro” poderia ser uma
substância. A incorporação suscitará então um tipo de ilusão perceptiva visando a
composição do próprio corpo.
Considerações Finais
Desde o início, havíamos constatado que, na criança, a qualidade auto-erótica era
afetada por um traumatismo majeur.
Este traumatismo precoce é susceptível de perturbar a realização alucinatória do
desejo, engendrando um bloqueio da satisfação auto-erótica. Nós observamos assim, a
supremacia do traumatismo – do qual a atualização do efeito a posteriori testemunha – em
detrimento da experiência de prazer.
Estimamos, então, que uma realização alucinatória insatisfatoria resulta do
cruzamento da experiência traumatizante e daquela de prazer. Este cruzamento levará às
confusões perceptivas e representativas, daí a construção de uma fantasia inconsciente
conforme uma “lógica” econômica aditiva.
Através da incorporação de um corpo estranho, o sujeito tentará reparar a
representação do próprio corpo, o corpo imaginário.
Nossas observações pratico-teóricas nos leva à seguinte formulação: O psiquismo
em formação, diante do impacto do traumatismo precoce, “denegará” esta realidade e se
aprisionará em um mundo auto-erótico. De fato, o que ocorre é uma clivagem, uma tentativa
de separação.
Parece-nos que o recurso inconsciente à atividade auto-erótica é regido por dois
objetivos: um que compete à separação do sujeito de seu agente traumático e outro que
visa simplesmente à obtenção do prazer. Porém, a eficácia deste recurso, mesmo que
‘’única’’, parece-nos questionável.
5
Para Wagner, as representações mentais do seu pai e de sua mãe são muito
ambivalentes. Ora um é bom e o outro é ruim, ora outro é bom e um é ruim. O mesmo vale
para os processos identificatórios. Conscientemente Wagner diz que seu pai é a ‘’referência
negativa’’, contudo, o paciente se identifica inconsciente com este pai malvado, repetindo os
atos violentos, fonte do seu traumatismo. Por mais que ele tente se separar do seu pai, seu
inconsciente aponta, como ele mesmo disse, seus dois “eus”.
Auto-eroticism: an approach of the addictions
Abstract: The author proposes an approach of the addictions from the auto-eroticism and
narcissistic weakness. The choice of additions and drugs addictions as plot of the research
lies in the logic that seeks for clinical practice in this field, as well as the transmission in
psychoanalysis.
Keywords: Early trauma, auto-eroticism, unsatisfactory achievement hallucinatory, fantasy,
body representation, addictions, drugs addictions.
Bibliografia
CYSSAU, Catherine. Les dépressions de la vie. Paris, 2004.
FREUD, S. A edição eletrônica brasileira das Obras completas de Sigmund. Imago, Rio de
Janeiro, 2000.
GREEN, A. Narcissisme de vie. Narcissisme de mort. Les Editions de Minuit (reprise). Paris,
2010.
LE POULICHET, S. Psychanalyse de l’informe. Paris: Champs essais, 2009.
MCDOUGALL, J. Théatre du corps. Paris: Folio essais, 2003.
NOAILLE, Pierre. “La toxicomanie comme état limite”. In Anorexie, addictions et fragilities
narcissiques. Paris : PUF, 2001.
6
SOBRE O AUTOR
Victor Cruz de Freitas
Psicólogo. Psicanalista em formação pelo CPMG. Mestre em Psicopatologia e Psicanálise
pela Universidade Paris VII – Diderot. Sócio-Diretor do CESAME: Centro de Atenção à
Saúde Mental de Belo Horizonte. Idealizador do Núcleo de Intervenções e Tratamento das
Adições e Toxicomanias do CESAME-BH.
Endereço para correspondência:
Victor Cruz de Freitas
Rua Maranhão, 1479, apt. 1601.
30150-331 – Belo Horizonte
Tel.: (31) 9912-6220
Email: [email protected]
Site: www.cesamebh.com.br
7
Download

Auto-erotismo: uma discussão das adições - cbp