JAYCEE DUGARD VIDA ROUBADA A MEMÓRIA DE UM RAPTO TRADUZIDO DO INGLÊS POR ISABEL VERÍSSIMO O RAPTO É uma manhã de segunda-feira de aulas como tantas outras. Nesta manhã de 10 de junho de 1991 acordei cedo. Estou à espera que a minha mãe venha ao meu quarto antes de sair para trabalhar para me dar um beijo de despedida. Ontem à noite fiz questão de lhe lembrar o beijo. Enquanto estou deitada na cama à espera, ouço a porta principal a fechar. Ela saiu. Esqueceu-se. Posso sempre dar-lhe um beijo e um abraço logo à noite, quando ela voltar do trabalho. No entanto, vou dizer-lhe que esta manhã se esqueceu. Fico deitada durante algum tempo até o meu despertador me dizer que são horas de me levantar. Espero mais cinco minutos e arrasto-me para fora da cama. Reparo que desapareceu o anel que comprei no dia anterior na feira de artesanato. Que chatice! Eu queria muito levá-lo para a escola hoje. Procuro na cama, em vão. Se desperdiçar mais tempo, vou perder o autocarro e depois Carl, o meu padrasto, ficará zangado comigo e eu terei de lhe pedir boleia para a escola. Ele já acha que eu estrago tudo; não quero dar-lhe mais um pretexto para não gostar de mim. Por vezes, sinto que ele está apenas à espera de mais um motivo para me mandar de novo embora. Abandono a busca e decido usar o anel que a minha mãe me deu há quatro anos, no meu sétimo aniversário, antes de conhecer 13 VIDA ROUBADA Carl. O meu dedo de onze anos está a ficar demasiado grande para ele, por isso não o uso muitas vezes. É de prata, muito pequeno e delicado, com o formato de uma borboleta para condizer com o sinal de nascença que tenho no antebraço direito, quase ao nível do cotovelo, na parte de dentro do braço. O anel também tem um diamante minúsculo no centro da borboleta. Tento enfiá-lo, mas fica apertado no dedo onde costumava usá-lo, por isso experimento no mindinho e fica melhor. Acabo de me vestir. Decido usar as calças elásticas cor-de-rosa e a minha T-shirt preferida da Hello Kitty. Parece estar frio lá fora, por isso visto o meu corta-vento cor-de-rosa. Em seguida, atravesso o corredor para espreitar para o quarto da minha irmã bebé. Ontem à noite, a minha mãe estava a dobrar roupa no quarto da bebé e eu estive mais ou menos a ajudar, deitada na cama. Usei esse tempo para tentar convencer a minha mãe de que preciso muito de um cão; acho que fui um bocado irritante, porque ela não parou de repetir a palavra «Não» vezes sem conta. Mas eu quero muito, muito ter um cão só meu. Há cachorrinhos ao fundo da rua e sempre que posso vou até lá e faço-lhes festas através da vedação. Não sei porque é que não posso ter um. Há dias tive de escrever uma composição na escola sobre «Se eu pudesse realizar um desejo». Desejei ter um cão só para mim. Chamar-lhe-ia Buddy e ele seguir-me-ia para todo o lado, faria habilidades e gostaria de mim acima de tudo. Espero que um dia a minha mãe me deixe ter um cão. Ontem à noite também ensinei uma habilidade nova à minha irmã de dezoito meses. Ensinei-a a saltar muito alto no seu berço. Ela riu-se imenso. Adoro fazê-la rir. Acho que ela está quase pronta para começar a sair do berço. Espreito e vejo que ainda está a dormir, por isso afasto-me sem fazer barulho. Sinto-me um pouco maldisposta esta manhã e passa-me fugazmente pela cabeça dizer a Carl, o meu padrasto, que me sinto doente e que não posso ir à escola, mas mudo de ideias para evitar uma discussão. A verdade é que de qualquer maneira não quero passar o dia inteiro em casa com ele. A maior parte dos dias quero muito ir para 14 O RAPTO a escola porque estou longe de todas as suas críticas. Talvez o pequeno-almoço faça bem à minha barriga. Vou para a cozinha preparar o meu almoço e pequeno-almoço. Decido comer papas de aveia instantâneas, com sabor a pêssegos e natas. O relógio do micro-ondas marca 6h30. Sei que terei de começar a subir a colina daqui a pouco para apanhar o autocarro. Como as minhas papas de aveia rapidamente. Fico contente por Carl não estar ali a ver-me emborcar as papas de aveia. Ele já acha que os meus modos à mesa são atrozes e aproveita todas as oportunidades para me comunicar o que pensa. Uma vez não gostou da forma como eu estava a comer o meu jantar, por isso obrigou-me a sentar na casa de banho em frente ao espelho para poder ver-me a mim própria a comer. Eu acho que nunca obrigaria um filho meu a fazer isso. Não percebo porque é que ele não gosta de mim. Preparo uma sanduíche de manteiga de amendoim e geleia para o almoço, junto uma maçã e um pacote de sumo e verifico uma vez mais se Shayna já acordou, mas ela ainda dorme, por isso tenho de sair sem lhe dizer adeus. Não vi Carl desde que me levantei. Acho que ele deve estar lá fora, porque não está dentro de casa como é costume, a ver televisão. Vejo Monkey, o meu gato, lá fora no alpendre. A minha avó Ninny ofereceu-mo antes de nos mudarmos para Tahoe. Monkey é um Manx preto, o que significa que não tem cauda. Quando fiquei com ele quis chamar-lhe Sapphire1 por ter olhos muito azuis, mas Carl achou que era um nome estúpido e começou a chamar-lhe Monkey. No começo irritou-me imenso, e eu chamava-lhe Sapphire sempre que podia, mas Monkey cresceu e o nome Sapphire não lhe fica bem, por isso agora também lhe chamo Monkey. É engraçado como podemos acostumar-nos às coisas. Monkey está quase sempre na rua, mas eu deixo-o entrar à noite e ele dorme comigo. Não gosto de o deixar lá fora à noite porque Bridget, a gata da minha mãe, foi comida por um animal selvagem pouco depois de nos mudarmos para Tahoe. Foi 1 «Safira». (N. do E.) 15 VIDA ROUBADA horrível; andámos à procura dela durante dias e por fim eu encontrei o que restava dela, nada mais do que um monte de pelo. Foi muito triste. Monkey deve ter sido separado da mãe quando era muito pequeno porque adora mamar no meu cobertor de lã. Acho que ele pensa que eu sou a sua mãe. Eu, Monkey e Bugsy Saio para o alpendre, faço-lhe uma festa, ele mia a pedir comida e eu dou-lhe um pouco de ração para gatos. Também trouxe uma cenoura para Bugsy, o coelho anão preto e branco que não é assim tão pequeno. Carl já tinha Bugsy quando o conheci há alguns anos. Acho que a coisa mais amorosa em Bugsy é a sua adoração por gelados com sabor a uva. Sou eu que tenho de limpar a gaiola, e não é uma das minhas tarefas preferidas. Ele faz muito cocó. Uma vez, li num livro que os coelhos comem um cocó todas as noites. É engraçado como por vezes os animais fazem coisas que não têm qualquer sentido para as pessoas, mas penso que devem ter um bom motivo para fazerem o que fazem; só não consigo imaginar qual será. 16 O RAPTO A casa de Tahoe no inverno Saio pela porta principal e percorro o longo passadiço até às escadas. A nossa casa em Tahoe faz-me lembrar uma casa de montanha. Situa-se no sopé de uma colina. Vivemos aqui desde setembro do ano passado. Antes, vivíamos em Orange County. O apartamento onde vivíamos foi assaltado e a minha mãe e Carl acharam que seria mais seguro mudarmo-nos para Tahoe. Agora, vivemos numa cidade muito mais pequena. Eu cresci em Anaheim, na Califórnia. Sempre achei que, quando fomos viver com Carl, ele convenceu a minha mãe de que era tempo de eu começar a ir a pé para a escola sozinha, algo que eu nunca tinha feito em toda a minha vida. Penso que a minha mãe não gostou muito da ideia, mas não podia estar em casa para me levar de manhã porque tinha de sair cedo para trabalhar, o que deixava apenas Carl para me levar. Por vezes ele estava e outras vezes não estava, por isso eu tinha de ir a pé. Deram-me uma chave do apartamento onde vivíamos na altura e esse foi o primeiro ano em que voltei para casa sozinha depois da escola. 17 VIDA ROUBADA Uma vez, quando voltava para casa depois das aulas na Escola Primária Lampson, que frequentei no quarto ano, passou um carro com um grupo de rapazes e eles começaram a gritar e a chamar-me com gestos. Eu corri e escondi-me num arbusto até o carro passar e depois fugi para casa o mais depressa que consegui e fechei a porta à chave. Depois disso, comecei a ter medo de voltar para casa e percorria o caminho o mais depressa possível. Por vezes, a minha mãe ou Carl iam buscar-me à escola. Eu gostava desses dias. Tahoe não é nada parecida com Anaheim. Posso andar de bicicleta por todo o lado e aqui não tenho medo. No bairro há um cão chamado Ninja que, algumas manhãs, se aproxima de mim e me acompanha até ao cimo da colina. Eu quero muito ter um cão, um cão que me acompanhe até ao cimo da colina todas as manhãs e que vá ao meu encontro quando regresso da escola. No entanto, Ninja prefere Carl a mim, e normalmente só espera por ele e vai passear com ele aos fins de semana. Esta manhã eu queria muito que Ninja viesse e me acompanhasse, mas quando saio não o vejo em parte alguma. Saio de casa e grito para Carl, a avisá-lo de que vou subir a colina. Não o vejo nem o ouço responder-me, mas reparo que ele tirou a carrinha da garagem, por isso deve estar a trabalhar nela. Começo a subir do lado direito da colina e depois, quando a estrada começa a curvar, atravesso para o outro lado. Ainda falta mais uma semana de aulas e depois começam as férias de verão. Fiz planos com Shawnee, a minha amiga da escola, para trabalharmos num rancho de turismo rural. Ela adora cavalos e por vezes chama-os para junto de mim. Eu adoro a forma como ela chama os cavalos. Já me levou para dar um passeio e eu adorei. Ela monta muito bem. Shawnee vivia num rancho com a mãe, mas agora vive a um quilómetro e meio da minha casa, num apartamento, com a avó Millie. Estou muito entusiasmada com os nossos planos. Um dia, quero montar tão bem como ela. Ainda tenho de ganhar coragem para pedir autorização a Carl e à minha mãe. Mas espero que me deixem experimentar. Carl está sempre a dizer que eu preciso de ter mais tarefas e que tenho de 18 O RAPTO aprender a ser mais responsável, e que melhor forma de aprender do que ter um emprego durante as férias? Bem, pelo menos é assim que eu vou apresentar a minha ideia e ver como ele reage. A irmã de Carl, a minha nova tia M, tem dois cavalos. Uma égua e a sua cria. Eu adoro ir visitá-la. Comparada com Carl e com a mãe dele, W, M é muito simpática comigo. Parece gostar verdadeiramente de mim. Deixa-me sentar com ela na sua égua e damos a volta ao picadeiro. É muito divertido. Ela também tem um cocker spaniel amoroso, que adora lutar. Eu gosto de ir visitá-la; ela parece gostar mesmo de mim. Quando vivia em Orange County frequentei aulas de dança jazz, mas não gostava muito. O que eu queria verdadeiramente era aprender ballet, mas quando a minha mãe foi inscrever-me a turma estava cheia, por isso optámos pela dança jazz. Eu sou muito tímida e atuar diante de pessoas não é uma das minhas coisas preferidas. Mudámo-nos para Tahoe pouco antes do recital final. Graças a Deus. Se tivesse de dançar diante de público acho que teria estragado tudo. E também não gostava muito de usar fatos justos. Quando nos mudámos para Tahoe, depois do início das aulas inscrevi-me num grupo de escuteiras. Mais uma vez, a ideia não foi minha. É difícil fazer amigas, mas algumas das miúdas também são da minha turma e isso facilita as coisas. Por vezes gostaria de não ser tão tímida. Normalmente estou com Shawnee, embora ela não faça parte do meu grupo de escuteiras. Mas as raparigas são simpáticas e eu gosto quando fazemos coisas e vendemos biscoitos juntas. Não tenho muito jeito para bater à porta de desconhecidos e perguntar se querem comprar biscoitos das escuteiras, mas tenho muito jeito para comê-los. Os meus preferidos são os Samoas e os Thin Mints. Quando é a minha vez de vender porta a porta, eu bato e deixo a minha companheira falar. Será que alguma vez vou ultrapassar a minha timidez? Na última semana de aulas vamos passar um dia num parque aquático. Eu quero ir e divertir-me, mas o meu corpo está a mudar e sinto-me muito insegura. Há algumas noites tentei falar com a minha mãe sobre depilar as axilas e as pernas. Fico 19 VIDA ROUBADA embaraçada por ser vista com tantos pelos. No entanto, não consegui começar a conversa. Preciso de pensar em alguma coisa rapidamente; faltam apenas alguns dias para o passeio. Enquanto subo a colina neste dia frio de junho penso como por vezes parece que a minha vida é ditada por outra coisa ou outra pessoa. Por exemplo, quando brinco com as minhas Barbies posso planear as suas vidas e pô-las a fazer todas as coisas que quero que elas façam. Por vezes, sinto que isto está a ser feito em relação a mim. Sinto que a minha vida é planeada para mim, não sei de que modo, mas neste dia sinto-me como uma marioneta com fios e não faço ideia de quem está na outra ponta. Estou a chegar à parte da colina onde fui ensinada a atravessar para o outro lado. Carl e a minha mãe ensinaram-me isto quando nos mudámos para cá e ficou decidido que eu iria a pé até à paragem para apanhar o autocarro para a escola. Carl disse-me que eu deveria atravessar aqui para os automobilistas poderem ver-me e para eu também poder ver o que se aproximava. Quando atravesso a estrada na curva, esqueço aquilo em que estava a pensar e começo a sonhar com o verão. Caminho na parte pedregosa da curva da estrada. Esta manhã não passou nenhum carro. À minha esquerda há arbustos. Enquanto caminho, ouço um carro atrás de mim. Olho para trás à espera que o carro passe do outro lado da estrada, a subir, mas para minha surpresa o carro para ao meu lado. Eu estava tão perdida nos meus pensamentos que não registei o comportamento invulgar do condutor. Paro quando o condutor desce o vidro da janela. Ele inclina-se ligeiramente para fora do carro e começa a pedir-me indicações. A sua mão sai tão depressa da janela que eu quase não consigo perceber que ele segura uma coisa preta. Ouço um estalido e fico paralisada. Recuo, a cambalear; o medo apaga tudo a não ser a necessidade de fugir. Quando a porta do carro se abre, eu caio no chão e começo a recuar apoiada nas mãos e no rabo para a segurança dos arbustos. O meu único objetivo é fugir o mais depressa possível – conseguir chegar aos arbustos e afastar-me do homem que vem apanhar-me. A minha mão toca numa coisa dura e pegajosa. O que é? 20 O RAPTO Não importa – tenho de me agarrar a ela. Agora alguém me arrasta e estou a ser levantada. As minhas pernas parecem pesar uma tonelada. Tento resistir e chegar mais perto dos arbustos. A sensação de paralisia regressa, acompanhada por um estranho som de corrente elétrica. Por algum motivo, sou incapaz de resistir. Não compreendo porque é que o meu corpo não funciona. Percebo que fiz chichi nas cuecas. Estranhamente, não me sinto embaraçada. «Não, não, não», choro. A minha voz soa áspera. O homem desconhecido puxa-me para cima e atira-me para o banco de trás e para o fundo do carro. Sinto o cérebro confuso. Não compreendo o que está a acontecer. Quero ir para casa. Quero voltar para a minha cama. Quero brincar com a minha irmã. Quero a minha mãezinha. Quero que o tempo volte atrás e que as coisas sejam diferentes. Um cobertor é atirado para cima de mim e sinto muito peso nas costas. Não consigo respirar. Ouço vozes, mas estão abafadas. O carro está a andar. Quero sair. Contorço-me, mas alguma coisa me mantém em baixo. Começo a sentir-me embaraçada por perder o controlo da bexiga e quero levantar-me e ir para casa. Sinto que não consigo pensar com clareza. Sei que o que me está a acontecer não é certo, mas não sei o que fazer. Sinto-me assustada e indefesa. O carro está a mover-se e sinto-me enjoada. Preciso de vomitar, mas tenho medo de morrer sufocada se o fizer, por isso resisto à vontade. Algo me diz que se isso acontecesse eles não me ajudariam. Tenho muito calor. É como se a minha pele estivesse a arder. Por favor, por favor, tirem este cobertor quente – não consigo respirar! Apetece-me gritar, mas a minha voz está seca e não sai nada. Perco os sentidos. Quando acordo, ouço vozes. O carro parou. Onde estamos? Ouço duas vozes. Uma é masculina e a outra é abafada e baixa, mas não parece uma voz de homem. O cobertor continua a tapar-me, mas o peso foi retirado. Ouço a porta de um carro a ser aberta e fechada muito depressa. Por fim, o cobertor é afastado da minha cara e posso ver que a pessoa que estava no banco de trás está agora à frente, mas não consigo ver um rosto; não é uma pessoa grande, o que significa que pode ser uma mulher. O homem que me enfiou no carro 21 VIDA ROUBADA oferece-me uma bebida. Eu tenho muito calor e a boca muito seca. Ele diz que tem uma palhinha para mim, por isso não preciso de me preocupar com os seus micróbios. Eu fico muito agradecida por aquela bebida – sinto a minha boca muito seca, como se eu estivesse a gritar há muito tempo, mas não consigo lembrar-me de ter gritado. De repente, ouço-o rir. Ele está a dizer alguma coisa sobre como não pode acreditar que se safou com aquilo. Apetece-me dizer-lhe que quero ir para casa. Mas estou tão assustada que tenho medo de irritar o homem. Que devo fazer? Não sei o que fazer. Quem me dera saber. Estou muito assustada. Quero dormir e fingir que isto não está a acontecer. Porque é que isto está a acontecer? Quem são estas pessoas e o que pretendem de mim? 22 O RAPTO REFLEXÃO Desde o meu regresso ao mundo, não paro de colecionar pinhas. Peço às pessoas que agora conheço que me tragam uma pinha quando vão viajar. Tenho pinhas do lago Placid, do Maine e do Oregon. Por fim, eu e a minha psicóloga desvendámos a minha obsessão. A última coisa que agarrei quando era livre e antes de dezoito anos de cativeiro foi uma pinha dura e pegajosa. 23