As Histórias que as Crianças Contam: um estudo preliminar sobre o repertório narrativo e modos de expressão de crianças de quatro a seis anos. Descritores: narrativa; linguagem; cuidado da criança. Resumo completo Introdução: A literatura voltada para o público infantil surge a partir da coletânea de contos elaborada por Charles Perrault na França, em 1697. Durante o século XVIII, as coletâneas de contos baseadas em relatos orais da tradição popular alcançaram grande sucesso em toda a Europa; a novidade destas publicações estava em sua forma escrita, que passou a ser elaborada em prosa - e não mais em versos; seus autores passaram a desfrutar de maior liberdade, oferecendo ao público textos simples e fluentes. Progressivamente este estilo de escrita foi associada ao público infantil, muito embora os conteúdos dos contos fossem os mesmos da tradição oral medieval e renascentista, os quais se destinavam igualmente a adultos e crianças (1) já que as narrativas situavam-se na vida cotidiana como a dimensão do conhecimento construído que se traduz por experiência (2). A partir de valores iluministas, durante o século XIX, buscou-se adequar as narrativas destinadas às crianças a propósitos edificantes de educação moral (3-4-5). Com o advento da modernidade, da urbanização e da industrialização, a tradição narrativa oral vai perdendo força(2) e progressivamente surgem novos meios de comunicação, como o cinema, a televisão, as gravações em discos, fitas, cds, dvds e a internet; o mercado editorial passa a publicar variados formatos de livros, também nos quais os conteúdos se diversificaram, e as narrativas mais tradicionais, como contos populares, maravilhosos e contos de fadas, compõem atualmente apenas parte do acervo cultural, pois as narrativas contemporâneas reinventam e criam novos assuntos, a partir de variados fatos reais ou fictícios (6) . Objetivos: Levantar o repertório narrativo das crianças, bem como as modalidades de acesso às histórias, através de entrevistas fechadas com crianças de quatro a seis anos de idade, pois nesta fase as narrativas são parte significativa do universo imaginário infantil, constituindo-se como objetos culturais para a elaboração simbólica nas interlocuções que a criança estabelece(7-8-9-10); pesquisar os modos expressivos de que as crianças se utilizam para contar uma história, a saber: o discurso narrativo, a voz (entonação, modos de ênfase) e os gestos e expressões corporais. Metodologia: Esta pesquisa foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética da PUC-SP, sob o parecer nº 06/637; os responsáveis concordaram com sua realização e divulgação dos resultados mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O material compõe-se de 16 entrevistas com oito meninos e oito meninas, divididas proporcionalmente entre escolas particulares e pública. O grupo foi constituído por: 5 crianças com 5 anos; 9 crianças com seis anos e 1 criança com quatro anos e nove meses. Os pais foram solicitados a responder a um questionário fechado objetivando traçar um breve perfil da situação sócio-econômica e cultural das famílias, envolvendo: composição familiar; meios de comunicação acessados; leitura ou narração de histórias para o filho(a) ; formas de entretenimento da criança; renda familiar. O roteiro para as entrevistas com as crianças foi: Você conhece histórias? Quais histórias você conhece? Quem conta histórias para você? Você pode me contar alguma história? As entrevistas com as crianças foram filmadas e transcritas. A análise de dados foi quantitativa relativamente ao repertório narrativo e às modalidades de acesso e qualitativa relativamente à atividade narrativa. O enquadre teórico baseou-se no conceito de dialogismo conforme proposto por Bakhtin literária (12-13) (11) , na idéia de foco narrativo advinda da teoria e nos estudos de expressividade oral e gestual(14-15). Este é um estudo de caso preliminar, de caráter descritivo, para pesquisar a atividade narrativa das crianças na atualidade, a partir da escuta de suas próprias vozes; os resultados a seguir apresentados não permitem generalizações, apenas análise e ponderações. Resultados: Apesar da diferença encontrada quanto aos recursos econômicos nos dois grupos pesquisados, as formas de ocupação do tempo livre com lazer e outras atividades são as mesmas: a televisão e os parques de diversões foram citados de forma unânime em todas as entrevistas; seguiram-se, respectivamente, cinema (4 dos alunos de EMEI e 7 de escolas particulares), shows (2 dos alunos de EMEI e 1 de escolas particulares), teatro, clube e igreja (1 de cada categoria em cada grupo). Portanto, a diferença econômica entre os grupos não modificou o acesso aos equipamentos de lazer com relação às suas modalidades. Quanto ao acesso às narrativas, onze mães e um casal afirmaram contar histórias para seus filhos; quatro mães referiram que no meio familiar ninguém conta histórias. Dentre as crianças, dez citaram a mãe em primeiro lugar como a pessoa que lhes conta histórias e três citaram a professora; uma citou o pai, uma, a avó e uma, o cd. Posteriores formas de acesso às narrativas citadas incluíram familiares como prima, irmã e tio, bem como tv, rádio, livro e dvd. Houve predominância dos contos tradicionais quanto ao gênero de histórias que os pais afirmaram narrar para seus filhos: foram citadas histórias como Chapeuzinho Vermelho, Os Três Porquinhos, Branca de Neve entre muitas outras. Apenas três citações foram feitas para histórias contemporâneas: Turma da Mônica, gibis e histórias inventadas pela mãe. Já o repertório narrativo referido por todas as crianças é composto proporcionalmente por histórias tradicionais (53%), e contemporâneas de ação, aventura e suspense, (47%). Estas últimas contêm enredos provenientes dos programas televisivos como: desenhos (Sccooby-Do, Power Rangers, As Meninas Super-Poderosas, Padrinhos Mágicos) seriado (Sítio do Pica-Pau Amarelo) novelas (Rebeldes, Floribela). Há fontes também em livros (A Mulher e o Guarda-Chuva, O Aviãozinho Vermelho, Bruxa Salomé, Alice no País das Maravilhas) e histórias inventadas. Os contos tradicionais citados pelas crianças são compatíveis com os citados pelos pais, mas elas acrescentaram histórias folclóricas, como a do Lobisomem e do Boitatá, bem como as relativas às datas religiosas, como do Coelho da Páscoa e do Natal. Na atividade narrativa os meninos narraram prioritariamente histórias contemporâneas de aventura e as meninas escolheram prioritariamente histórias de fadas, conforme se observa na tabela seguinte: Tabela 1: Histórias que foram narradas pelas crianças. Meninos Tradicionais Meninas Contemporâneas Tradicionais Chapeuzinho Vermelho Scooby-Doo Cinderela Peter Pan Aviãozinho Vermelho A Bela e a Fera Contemporâneas História do Gato Desenho do Cachorro, Gato e Rato. A Bela e a Fera Menina das Caras Chapeuzinho Vermelho Os Três Porquinhos Os Padrinhos Mágicos Parlendas Power Rangers Os Três porquinhos História da Borracha Branca de Neve e os Sete Anões Cachinhos Dourados O foco narrativo foi, na maioria dos casos, assumido por um narrador onisciente, nos moldes das narrativas tradicionais. As crianças da escola pública (seis, em oito) apresentaram maior desenvoltura na atividade narrativa e contaram tanto histórias tradicionais como contemporâneas. Nas escolas particulares encontramos maior número de crianças (quatro, em oito) cuja experiência narrativa está ainda se formando; é deste último universo a afirmação das mães que não contam histórias para seus filhos; estas crianças contaram principalmente histórias tradicionais e apenas duas contemporâneas, sempre sustentadas pelo diálogo com a pesquisadora. Quanto aos modos expressivos, foi unânime entre todas as crianças o apoio gestual das mãos, ora entrelaçando os dedos, ora mexendo em peças de seu vestuário; foi reduzido o uso de gestos representativos para enfatizar trechos do discurso (três crianças). Oito crianças mostraram expressão facial séria e concentrada ao narrar, cinco mostraram-se sorridentes e à vontade com a situação, enquanto outras três mostraram-se retraídas. Em relação à entonação vocal, quatro crianças expressaram variações melódicas durante a narrativa; quatro delas utilizaram o discurso direto que dá voz às personagens, sendo que duas delas imitaramnas, mudando a freqüência vocal; nestes casos observamos o aparecimento de cenas, que se alternaram com o modo de narrar sumariando as ações; quanto às outras crianças (oito), não notamos expressividade maior em relação à entonação da voz. Conclusão: Narrar é atividade encarada com empenho e interesse pelas crianças que já têm esta experiência, como denotam os modos expressivos acima descritos, principalmente as expressões faciais e os gestos de mãos a sustentar o fio condutor das histórias; por outro lado, é um confronto perigoso para crianças que não encontram quem sustente essa experiência em suas vidas. Embora o acesso às narrativas continue sendo realizado pela tradição oral na maioria das famílias entrevistadas, o repertório de histórias contemporâneas aponta para o crescente acesso por meio dos programas televisivos. Tal fato sugere a necessidade de sustentação da experiência narrativa das crianças através do diálogo com familiares, professores, colegas de escola e terapeutas; desta forma as crianças terão garantida a possibilidade de elaboração e transformação simbólica de seus conflitos, desejos e inquietações enquanto contam e escutam histórias no ininterrupto processo de subjetivação. Referências Bibliográficas: 1. Calvino I. Introdução. In: Fábulas italianas, São Paulo: Companhia das Letras; 1992. p. 9-37. 2. Benjamin W. O Narrador. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense;1986. p.197-221. 3. Bettelheim B. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra; 1990. 4. Corso X, Corso Y. Fadas no divã. São Paulo, Companhia das Letras; 2006. 5. Benjamin W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34; 2002. 6. Coelho N N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna; 2000. 7. Lacerda CBF.O desenvolvimento do narrar em crianças surdas: focalizando as primeiras produções em sinais. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2004;9(2):65-72. 8. Panhoca I. O grupo terapêutico-fonoaudiológico e a literatura infantil: constituindo um saber. Distúrb Comum. 1999;11(1):29-57. 9. Soares AD, Chiari BM. Caracterização da narrativa oral de deficientes auditivos. Rev Soc Bras Fonoaud. 2006;11(4):272-8. 10. Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem. Era uma vez... in Pulsional Rev de Psicanál. 1999;12 (121):70-71. 11. Souza S J. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas, SP: Papirus; 1994. 12. Chiappini L. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática; 2006. 13. Arrigucci Jr. D. Teorias da narrativa: posições do narrador. Jornal Psicanál. 1998;31(57): 9-43. 14. Rector M, Cotes, C. Uso das Expressividades Corporal e Articulatória. In: Expressividade – da teoria à prática. Rio de Janeiro: Revinter; 2005. 15. Guiraud P. A linguagem do corpo. São Paulo: Ática; 2001.