Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
A M U L H E R I D E A L E A M U L H E R S U B V E R S I VA :
R E P R E S E N TA Ç Õ E S D E G Ê N E R O E M D O I S
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS
Bruno dos Santos Silva
Estudante de Letras com Língua Inglesa (UE FS )
brunoesp_uefs@hotma il. com
R e s u m o : O p r e s e n te e s tu d o p r e te n d e , a tr a v é s d a a n á l i s e d e
d u a s p e r s o n a g e n s d e c o n to s m a c h a d i a n o s – D . Se v e r i n a , d e
U n s B r aç o s e G e n o v e v a , d e N o i te d e A l mi r ante , r e s p e c ti v a m e n te – , l a n ç a r u m o l h a r s o b r e o s e s te r e ó ti p o s a p a r ti r d a d i c o to m i a e n tr e o s m o d e l o s f e m i n i n o s d a m u l h e r i d e a l e d a m u l h e r
subversiva no séc. XIX – século em que a obra de Machado
d e A s s i s s e s i tu a . P a r a ta l a n á l i s e , f a z - s e i m p r e s c i n d í v e l s i tu a r
a s p e r s o n a g e n s e s c o l h i d a s e m s e u c o n te x to h i s tó r i c o e i d e n ti f i c a r o s d i s c u r s o s i d e o l ó gi c o s q u e e ng e n d r a va m a s r e l a ç õ e s d e
g ê n e r o d a é p o c a . O e s tu d o pr e te n d e , a i n d a , p r o b l e m a ti z a r ta i s
d i s c u r s o s i d e o l óg i c o s e n r a iz a d o s n o p e n s a m e n to d a é p o c a , a p r e s e n ta n d o a s p r i n c i p a i s i d é i a s d a a n tr o p o l o g i a e d o f e m i n i s m o
q u e tr a b a l h a r a m , d u r a n te a n o s , n a d e s c o n s t r u ç ã o d e s s e s d i s c u r s o s e d e e s te r e ó ti p o s q u e e n v o l v e m a f i g u r a f e m i n i n a d e s d e
o s te m p o s m a i s r e m o to s .
P a l a v r a s - c h a v e : G ê n e r o , d i s c u r s o , i d e a l , s u b ve r s ã o .
A b s tr a c t : T h e fo l l o w i ng s tu d y a i m s , th r o u g h th e a n a l y s i s o f tw o
c h a r a c te r s o f M a c h a d o d e A s s i s ’ s h o r t s to r ie s – M r s . Se v e r i n a
f r o m U n s b r aç o s a n d G e n o v e v a f r o m N o i te d e A l mi r an te , r e s p e c ti v e l y – , to g l a n c e th e s te r e o ty p e s f r o m th e d i c h o to m y b e tw e e n th e f e m a l e p a t te r n s o f th e id e a l w o m a n a n d o f th e s u b v e r s i v e o n e i n th e 19 t h c e n tu r y , w h e r e M a c h a d o d e A s s i s ’ w o r k
i s l o c a te d . F o r s u c h a n a l y s i s , i t’ s i n d i s p e n s a b l e to s i tu a te th e
c h o s e n c h a r a c te r s i n th e i r h i s to r i c a l c o n te x t a n d i d e n ti f y th e
i d e o l o gi c a l s p e e c h e s th a t e n g e n d e r e d th e ge n d e r r e l a ti o n s o f
th e a g e . T h e s tu d y s ti l l a i m s to p ro b l e m a ti z e s u c h id e o l o gi c a l
s p e e c h e s r o o te d i n th e a g e ’ s th o u g h t, p r e s e n ti n g th e m a i n
J
103
ISSN 2236-3335
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
i d e a s o f A n th r o p ol o g y a n d F e m i n i s m w h i c h w o r k s , th r o u g h th e
y e a r s , i n th e d e c o n s tr u c ti o n o f th o s e s p e e c h e s a n d s te r e o ty p e s w h i c h i n v o l v e th e f e m a l e i m a g e s i n c e th e p r i m i ti v e ti m e s .
Keywords: Gender, speech, ideal, subversion.
INTRODUÇÃO
N u m e r o s o s e e x a u s ti v o s tê m s i d o o s e s tu d o s e n f o c a n d o
a o b r a d e M a c h a d o d e A s s i s . Em s e u s r o m a n c e s e c o n to s é
p o s s í v e l e n c o n tr a r r e tr a to s v i v o s d a s o c i e d a d e d e s e u te m p o ,
r e tr a to s q u a s e s e m p r e b r i l h a n te m e n te d e s e n h a d o s p o r u m a s i m é tr i c a l i n h a c r í ti c a . T a i s r e tr a to s n o s p o s s i b i l i ta m v i s l u m b r a r o s
c o s tu m e s , c r e n ç a s e c o m p o r ta m e n to s d a s o c i e d a d e c a r i o c a d o
s é c . X I X . A o b r a m a c h a d i a n a , d e tã o v a s ta , p e r m i te - n o s f a z e r
r e c o r te s s i g n i f i c a ti v o s . M e s m o c i e n te d e q u e o s p e r s o n a g e n s
d o a u to r – ta n to d o s r o m a n c e s q u a n to d o s c o n to s – tê m r i q u e z a s u f i c i e n te p a r a s e r e m a l v o d e e s tu d o s s o b to d a s a s ó ti c a s
p o s s í v e i s d a s c i ê n c i a s h u m a n a s , o r e c o r te , o e n f o q u e e a ó ti c a
p e l a s q u a i s te c e r e i e s te tr a b a l h o s e d a r ã o num a p e r s p e c ti v a d e
g ê n e r o , i d e n ti f i c a n d o e d e s c o n s tr u i n d o e l em e n to s d i s c u r s i v o s
v i g e n te s n o s é c u l o X I X e q u e f o r a m d e te r m i na n te s p a r a o d e s ti n o d a s p e r s o n a g e n s d o s c o n to s e s c o l h i do s .
Se g u n d o An n Wh i te h e a d e t a l . ( 19 7 9 ) , n u m a c o n tr i b u i ç ã o a
u m a c o n f e r ê n c i a c h a m a d a T h e C o n ti n u i n g Su b o r d i n ati o n o f Wo me n i n D e v e l op me n t P r o c e ss ( A Su b o r d in a ç ã o C o n ti n u a d a d a
M u l h e r n o P r o c e s s o d e D e s e n v o l v i m e n to ) , r e a l i z a d a e m 1 9 7 8 n a
U n i v e r s i d a d e d e Su s s e x , I n g l a te r r a , a f i r m a q u e
nenhum estudo sobre mulher e desenvolvimento pode
começar de um ponto de vista em que o problema seja
a mulher, mas, ao invés disso, os homens e as mulheres, e mais especificamente, as relações entre eles
P o r ta n to , q u a l q u e r e s tu d o q u e s e d e b ru c e s ob r e q u e s tõ e s
d e g ê n e r o d e v e e s ta r d e s p i d o d e q u a l qu e r p ri s m a i d e o l ó g i c o .
O s m i to s q u e e n v o l v i a m a f i g u r a d a m u l h e r n o c e n á r i o
c u l tu r a l d o R i o d e J a n e i r o do s é c u l o X I X , m i to s r e i te r a d o s p o r
u m d i s c u r s o c a r a c te r í s ti c o ( c o n c e b e n d o o d is c u r s o c o m o u m a
J
104
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
c o n s tr u ç ã o s o c i a l f r u to d e u m a v i s ã o d e m u n d o e s o m e n te
c o m p r e e n d i d a e m s e u c o n te x to h i s tó r i c o ) e u m p r i s m a i d e o l ó g i c o , e s ta v a m p r e s e n te s n ã o s ó n a s m e n te s d o s h o m e n s , m a s
n a s d a s p r ó p r i a s m u l h e r e s . Ed u c a d a s p o r h o m e n s e i m e r s a s
n u m a c u l tu r a e e d u c a ç ã o e m i n e n te m e n te m a c h i s ta s , c o n c e b i a m
s e u s p a p é i s n a s o c i e d a d e c o m o s e e s s e s f o s s e m i n q u e s ti o n á v e i s , p r é - e s ta b e l e c i d o s e i m u tá v e i s . A s s i m , n ã o i m a g i n a m q u e
ta i s p a p é i s s ã o c u l tu r a l e i d e o l o g i c a m e n te c o n s tr u í d o s n u m a r e l a ç ã o d i a l ó g i c a c o m a h i s tó r i a – n ã o f o r a d el a , c o m o ta i s m u l h e r e s a c r e d i ta v a m – e c o m a c o n s ti tu i ç ã o d a s i n s ti tu i ç õ e s h u m a nas, onde a família é um fenômeno social em que a divisão soc i a l d o tr a b a l h o d e s e n v o l v e u m a d i v i s ã o t a m b é m s e x u a l , d i v i d i n do as funções dos homens e das mulheres.
D . S EV ER I N A D E U N S B R A Ç O S:
A Q U EL A Q U E R EP R I ME O S D ES EJO S
A r i c a p e r s o n a g e m D . Se v e r i n a , d e U n s B r a ç o s – u m d o s
c o n to s m a c h a d i a n o s q u e f a z e m p a r te d a o b r a V ár i as H i stó r i as – é u m d o s fo c o s d e s ta a n á l i s e e r e p r e s e n ta o m o d e l o i d e a l d e
m u l h e r d a s u a é p o c a . É u m a tí p i c a m u l h e r c a r i o c a o i to c e n ti s ta ,
c o m to d o u m h i s tó r i c o d e v id a c a r a c te r í s ti c o : h a v i a s i d o e du c a d a p a r a to r n a r - s e b o a e s p o s a , e x í m i a d o n a d e c a s a , p r e n d a d a ,
a l g u é m q u e f o s s e s u b m i s s a a o m a r i d o e , ac i m a d e tu d o , qu e
d e v o ta s s e a e l e f i d e l i d a d e . D e ta l h e s r e l e v a n t e s s o b r e o c a s a m e n to o u a un i ã o po r co n v e n ç ã o d e D . Se v e r i n a e B o rg e s ( s e
m a r c a d o p e l a i n d i f e r e n ç a , p e l a f r i e z a o u p el o a m o r ) n ã o s ã o
e l u c i d a d o s n o c o n to . T o d a v i a , o p e r fi l d e B or g e s – u m ho m e m
a u to r i tá r i o , r í s p i d o , i m p l a c á v e l – e a c o n d u ta d e D . Se v e r i n a –
serena, inexpressiva, dócil – dão-nos a visão de uma oposição
e n tr e o s i n d i v íd u o s qu e e r a m a l i m a r i d o e mu l h e r e q u e e s ta r i a m u n i d o s , t a l v e z , p o r u m l a ç o m a tr i m o n i a l f e i to p o r c o n v e n ç õ e s s o c i a i s , a l g o m u i to c o m u m n a s o c i e d a d e d a q u e l a é p o c a 1 .
Se n d o o a m o r a l g o s e c u n d á r i o n o s c a s a m e n t o s n o R i o d e
J a n e i r o d o s é c . X I X , D . Se v e r i n a ti n h a u m a l a c u n a a f e ti v a i m p r e e n c h í v e l , o q u e a f e z v e r n o j o v e m e i n o c e n te I n á c i o – a m á v e l g a r o to d e 15 a n o s , d ó c i l ( i n f a n ti l , a té ) , a l g u é m o p o s to a o
s e u m a r i d o – a o p o r tu n i d a d e d e s e p r e e n c h er ta l l a c u n a . I n á c i o ,
J
105
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
p o r s u a v e z , a n te s m e s m o q u e D . Se v e r i n a t i v e s s e d e s p e r ta d o
u m d e s e j o p a r a c o m e l e , j á a ol h a v a c o m o um a f i g u r a s e n s u a l í s s i m a , s e n d o o s b r a ç o s d a s e n h o r a o m oti v o m a i s f o r te d a
s u a c o n te m p l a ç ã o , c o m o o p r ó p r i o n o m e do c o n to s u g e r e e
c o m o d e s c r i to n o tr e c h o q u e s e s e g u e : ‚ N u nc a e l e [ I n á c i o ] pô s
o s o l h o s n o s b r a ç o s d e D . Se v e r i n a q u e s e n ã o e s q u e c e s s e d e
s i e d e tu d o [ ...] T a m b é m a c u l p a e r a a n te s d e D . Se v e r i n a e m
tr a z ê - l o s a s s i m n u s , c o n s ta n te m e n te ‛ ( A S SI S , 20 0 0 , p . 10 8 ) .
T a l tr e c h o r e v e l a - n o s a l g o b a s ta n te s i g n i f i c a ti v o : I n á c i o ,
a o i m a g i n a r s e r d e D . Se v e r i n a a c u l p a p o r s u a f i x a ç ã o , r e i te r a
u m e s te r e ó ti p o a té m e s m o b í b l i c o : o d e q u e a m u l h e r é c u l p a d a
p e l a q u e d a d o h o m e m . N o f i n a l d o c o n to , D . Se v e r i n a , a o c o b r i r
s e u s b r a ç o s c o m u m x a l e , p a r e c e e s ta r e m c o n c o r d â n c i a c o m
ta l e s te r e ó ti p o . C o m e ç a a i m a g i n a r q u e e l a po d e , d e f a to , s e r a
c u l p a d a p o r d e s p e r ta r u m d e s e j o s e x u a l n o r a p a z e e n tã o u m
p u d o r l h e a c o m e te , c o b r e - s e , c o m o Ev a o f e z a o s e n ti r a v e r gonha do seu pecado.
Com isso podemos perceber que o que marcava as mul h e r e s d a é p o c a n ã o e r a s ó o b e d i ên c i a a o qu e a s c o n v e n ç õ e s
sociais estabeleciam, mas a crença de que as convenções e
v a l o r e s tr a n s m i ti d o s a e l a s e r a m a b s o l u to s , a l h e i o s à s s u a s
p r ó p r i a s c on c e p ç õ e s . I s s o m o s tr a q u e s u a s v i s õ e s d e m u n do e
d e l a s p r ó p r i a s e s ta v a m i n tr i n c a d a m e n te l i g a d a s a o s s e u s a m b i e n te s c u l tu r a i s ( SH O WA L T ER , 1 9 9 4 ) . U m a v e z q u e n ã o p e r c e b i a m , n ã o q u e s ti o n a v a m , n ã o c r i ti c a v a m o s v a l o r e s a o s q u a i s e r a m s u b m e ti d a s , a s m u l h e r e s d a é p o c a p r e n d e r a m - s e e m c a d e i a s c u l tu r a i s e id e o l ó gi c a s d i f í c e i s d e s e l i b e r ta r . U m a v e z
d e s c o n s tr u í d o o d i s c u r s o i m p r e g n a d o n o p e n s a m e n to s o c i a l ,
m a i s f á c i l f i c a a o s q u e d e l e s ã o v í ti m a s d e s p e r ta r o p e n s a m e n to r e v o l u c i o n á r i o .
A i n d a s o b r e a n a tu r e z a d o d i s c u r s o d a s u b m i s s ã o f e m i n i n a , C H A U Í ( 19 9 5 , p . 17 5 ) n o s m o s tr a a f o r m a c o m o e s s e d i s c u r s o n a s c e e c o m o o s s e u s c o n s tr u to r e s c o n s e g u e m m a n tê - l o .
Estabelecidas essas condições sociais [o homem como
chefe da família e a mulher, port ant o, como subordinada], era preciso persuadir as mulheres de que seu lugar e sua função não provinham do modo de organização social, mas da Natureza, e eram excelentes e de-
J
106
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
sejáveis. Para isso, montou -se a ideologia do ‚ser feminino‛ e da ‚ função feminina‛ como naturais e não como
históricos e sociais. Como se observa, uma vez implant ada uma ideologia, passamos a t omar os efeit os pelas
causas.
N o d e s e n r o l a r d o c o n to , D . Se v e r i n a , d e po i s d e a l g u m
te m p o , p a s s a a p e r c e b e r q u e é n o ta d a p o r I n á c i o e , e m b o r a
d e s c r e n te , d e c i d e i n v e s ti g a r - l h e o s o l h a r e s . C o m e ç o u a te r s o n h o s c o m o r a p a z e a d e s e j á - l o , a té q u e – e n q u a n to e l e d o r m i a – a senhora, aproveitando -se da ausência do marido, põe -se
a c o n te m p l á - l o e m s e u s o n o . A h e s i ta ç ã o d e D . Se v e r i n a e m i r
a d i a n te c o m a r e a l i z a ç ã o d o s s e u s d e s e j o s p e r m i te - n o s f a z e r
a l g u m a s l e i tu r a s , c o m o a d o p o s s í v e l m e d o d a s c o n s e q ü ê n c i a s
q u e o a d u l té r i o tr a r i a p a r a s i , u m a v e z q u e o c a s a m e n to p a r a a
m u l h e r d a é p o c a e r a a ú n i c a f o r m a d e o b te n ç ã o d e u m s t a tu s
s o c i a l s i g n i f i c a ti v o e p e r d ê - l o a c a r r e t a r i a e m u m i n e v i tá v e l e
d o l o r o s o d e s a m p a r o . C o m o ST EI N ( 19 8 4 , p . 3 3 ) d i z :
A presentado idealmente como um ser envolvido numa
aura de pureza, amor, abnegação, ‚por natureza‛ destinado a viver para e pelos outros, ao indivíduo do sexo
feminino restavam, concretamente, funções sociais
condizentes com esse ideal. Portanto, a aquisição, pela
mulher, de uma função na sociedade coincidia com a
abdicação da própria individualidade, ou seja: tornar -se
esposa e mãe implicava, para ela, passar a orient ar -se
pessoalmente por outro indivíduo, ‚ sem mesmo atender
à sua conveniência individual; significava aceder à exigência da sociedade de abrir mão de uma existência
para si ao colocá -la ao serviço exclusivo dessa mesma
sociedade‛.
O pudor, a idéia da fidelidade como algo sagrado, as convenções religiosas sobre sexualidade, o med o da ignomínia, enf i m , to d a s a s b a r r e i r a s q u e o s up e r e g o 2 i m p õe , l i m i ta r a m D . Se v e r i n a a d a r a In á c i o a p e n a s u m l e v e b e i jo en q u a n to e l e d o r m i a.
G E N O V EV A : A QU EL A Q U E N Ã O ESP ER A V A NA JA N EL A
J
A s e g u n d a p e r s o n a g e m d e s ta a n á l i s e f o i e x tr a í d a d o c on to N o i te d e A l mi r an te e r e p r e s e n ta o m o d e l o d a m u l h e r s u b v e r 107
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
s i v a , a q u e s e o p õ e a o n o s s o p ri m e i r o m o de l o a p r e s e n ta d o –
D . Se v e r i n a , a m u l h e r v i r tu o s a , q u e c ob r e - s e a o s e n ti r - s e a l v o
d e o l h a r e s i m p u r o s – e q u e n ã o c o r r e s p on de a o r e tr a to f i e l d a
m u l h e r q u e a s o c i e d a d e d a é po c a h a v i a p in ta d o . G e n o v e v a é o
s e u n o m e e é d e f i n i d a n o c o n to c o m o u m a ‚ c a b o c l i n h a d e v i n te
a n o s , e s p e r ta , o l h o n e g r o e a tr e v i d o ‛ ( A SSI S , M a c h a d o d e ,
19 9 4 , p . 4 4 6 ) . A p a i x o n a d a , f e z u m c o n tr a to c o m D e O l i n d o , u m
h o m e m q u e n a v e g a v a e s e a v e n tu r a v a p e l o m u n d o , j u r a n d o - lh e
que o esperaria.
D e O l i n d o f oi l o u v a d o e a c l a m a d o p e l o s a m i g o s d e b o r d o
n o i ní c i o d o co n to , p o i s i ri a v i v e r u m a no i te d e a l m i r a n te c o m a
ta l c a b o c l i n h a . A d i s ti n ç ã o d o s p a p é i s s e x ua i s n a é p o c a f i c a
c l a r a n e s t a p a s s a g e m . P a r a o s h o m e n s , te r r e l a ç õ e s s e x u a i s
a n te s o u f o r a d o c a s a m e n to e r a m o ti v o d e o r g ul h o , a f i r m a v a
s u a v i r i l i d a d e . P a r a a m u l h e r , e r a v i l , a b o m i n áv e l , e s e o f i z e s s e
to r n a r - s e - i a u m s e r r i d i c u l a r i z a d o , f a d a d o à ig n o m í n i a .
A i n d a s e g u n do ST EI N ( 19 8 4 , p . 3 3 ) ,
A mulher tinha que incondicionalmente preservar a virgindade até o casamento e, uma vez casada, manter se fiel ao marido – e, em caso de desobediência a estas regras, contar com drásticas punições. Já do hom e m n ã o s e e x i g i a n e m a b s t i n ê n c i a s e x u a l a n t es , n e m
fidelidade após o matrimônio contraído, sendo inclusive
estas ‚infrações‛ questão de prestígio.
C o m o a s c o n v e n ç õ e s s o c i a i s r e p ri m i a m q u a l q u e r c o n ta to
s e x u a l d a m u l h e r – e s ta s e n d o ta n to d e c la s s e m é d i a q u a n to
a l ta – a n te s d o m a tr i m ô n i o , r e s ta v a p a r a o h o m e m s a c i a r s e u
a p e ti te s e x u a l c o m a s m u l h e r e s d e c a m a d a s c l a s s e s s o c i a i s
i n f e r i o r e s , e s c r a v a s , e m p r e g a d a s e p r o s ti tu t a s . So b e s ta c o n d u ta , e s ta v a a m p a r a d o p e l a s m e s m a s c o n v e n ç õ e s s o c i a i s q u e ,
e m b o r a c o n d e n a s s e m o a d ul té r i o , p e r m i ti a m a o s h o m e n s r e l a ç õ e s s e x u a i s f o r a d o s e i o m a tr i m o n i a l , c o n c e b e n d o - a s c o m o
n a tu r a i s . N o c o n to , D e O l i n d o v i v e r i a u m a n o i te d e a l m i r a n te ,
s e g u n d o s e u s co l e g a s d e b o rd o . I s to s i g n i f ic a v a , c o m o p o d e m o s n o ta r , u m a n o i te d e a m o r c o m a m u l h e r q u e e l e h a v i a e s c o l h i d o : G en o v e v a . M a s a p e s a r d o i n te r e s s e s e x u a l , D e O l in d o
apaixona-se, devota amor àquela jovem moça.
J
108
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
L o g o n o in í c i o c on ta - s e q u e D e O l i n d o f a r i a u m a v i a g e m e ,
a n te s d e f a z ê - l a , e l e f i r m a s e u s v o to s d e a m o r e f i d e l i d a d e
n u m e n c o n tr o s o l e n e co m s u a a m a d a . O m a r i n h e i r o p ro m e te a
G e n o v e v a q u e v ol ta r i a e e l a q u e o e s p e r a r i a . En tã o , a o e m b a r c a r , D e O l i n d o e s ta v a c r e n te d e q u e e s ta r i a d e i x a n d o u m a m e l a n c ó l i c a G e n o v e v a , q u e a g u e n ta r i a l o n g o s o i to o u d e z l o n go s
m e s e s e s p e r a n d o p e l o a m a d o q u e a e n c o n tr a r i a n a j a n e l a c o m
u m s e m b l a n te tr i s to n h o . T a l c r e n ç a d e D e O l i n d o r e i te r a m a i s
u m e s te r e ó ti p o , o d a m u l h e r q u e e s p e r a to d o o te m p o d o m u n d o p e l o s e u a m a d o . P a r a e l e , p o d e r i a n a v e g a r p o r to d o o p l a n e ta , m a s n o f i n a l e n c o n tr a r i a s u a a m a d a e s p e r a n d o - o . M a s
havia um problema: Genoveva não o esperava.
Se g u n d o M O N T EI R O ( 19 8 4 , p , 23 ) , ‚ a m ú s i c a p o p u l a r , c o m o
o u tr o s ti p o s d e a r te , a té b e m p o u c o , ta m b é m tr a ç a v a u m a f i g u r a d e m u l h e r m a s o q u i s ta e s u b m i s s a . N o s s o c a n c i o n e ir o e s tá
c h e i o d e ‘A m é l i a ( s ) , Em í l i a ( s ) , e s p e r a n d o ‘C o m a ç ú c a r e c o m a f e to . .. se ac aso v o c ê c h e g as se ’ ‛ . [ g r i f o m e u ] . M a s n a m ú s i c a
p o p u l a r , ta m b é m , e s p e r a r n a j a n e l a te m o u tr a c o n o ta ç ã o l o n g e
d a r e p r e s e n ta ç ã o s i m b ó l i c a d a e te r n a e s p e r a d a d o n z e l a p or
s e u a m a d o . A m ú s i c a R i ta d e L e n i n e , c a n to r e c o m p o s i to r r e c i f e n s e , q u e e m u m d o s s e u s tr e c h o s d i z :
Rita tu sai da janela
Deixa esse moço passar
Quem não é rica e é bela
Não pode se descuidar
Oh! Rita
Que as
Nem se
Nem se
tu sai da janela
moças desse lugar
demora donzela
destina a casar
F a z e n d o u m i n te r te x to c o m a l e tr a d a m ú s i c a , p o d e m o s
d e d u z i r qu e G e n o v e v a n ã o d e i x o u o mo ç o passar . O m o ç o , n o
c o n to , e r a J o s é D i o g o , c o m q u e m e l a l o g o n o i v a r i a . A i n d a s o b r e
o e s p e r a r n a j a n e l a p e l o a m a d o , é n o tá v e l qu e , a o n ã o e s p e r a r
n a j a n e l a p o r s e u a m o r , G e n o v e v a j á q u e bra u m p a r a d i g m a : o
d a m u l h e r q u e e s p e r a e te r n i d a d e s a té p o r s e u a m a d o . H á ta m b é m u m a i n v e r s ã o d e p a p é i s e m to d a e s s a h i s tó r i a : D e O l i n d o ,
J
109
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
o h o m e m , e s p e r a - a , m a n té m - s e f i e l , e n q u a n to G e n o v e v a , a m u l h e r – q u e " n a tu r a l m e n te " e s p e r a e é f i e l ( i s so , c l a r o , n a c r e n ç a
p o p u l a r , n o s d i ta m e s d o s e n s o c o m u m e d a c u l tu r a ) – n ã o c o r r e s p o n d e a o j u r a m e n to d e f i d e l id a d e . D e O li nd o é a v i s a d o p e l a
velha Inácia – que morava com Genoveva – de que a moça
havia saído de casa e enamorar a -se de José Diogo, um masc a te d e f a z e n d a .
O m e s m o m e d o d e u m p o s s í v e l d e s a m p a r o q u e a c o m e te u
a p e r s o n a g e m D . Se v e r i n a d e Un s B r aç o s e a f e z h e s i ta r e m
n u tr i r u m a r e l a ç ã o a d ú l te r a c o m I n á c i o p a r e c e te r s i d o o m e s m o s e n ti m e n to p r e s e n te n a a ti tu d e d e G e n o ve v a e m n ã o e s p e r a r p o r D e O l i nd o . El a , i n s e r i d a n a c a m a d a s o c i a l d e m u l h e r e s
c u j o s h o m e n s g e r a l m e n te p r o c u r a v a m a p e n a s p a r a s a c i a r s e u s
a p e ti te s s e x u a i s , v i u - s e n u m d i l e m a : o u e s p e r a v a p e l o m a r i n h e i r o q u e p r o m e te r a - l h e a m o r e te r n o – m e s m o s e m a c e r te z a d e
q u e e l e c u m p r i ri a s u a p ro m e s s a – o u a c e i ta v a o c o r te j o d o
m a s c a te d e f a z e n d a , s e n d o o s e g u n do a f orm a m a i s s ó l i d a d e
c o n s e g u i r u m c a s a m e n to e , p o r ta n to , u m a e s ta b i l i d a d e e c o n f o r to s o c i a i s t ã o a l m e j a d o s p e l a s m u l h e r e s d e s e u c í r c u l o s o c i a l . C o m o e x p o s to a n te r i o r m e n te , p a r a a s m u l h e r e s p o b r e s e r a
i n v i á v e l q u a l q u e r m e i o d e a s c e n s ã o s o c i a l p o r m é r i to , u m a v e z
q u e a m u l h e r n ã o p od i a , p o r s e u s p ró p r io s e s f o r ç o s , p o r s u a
f o r ç a d e v o n ta d e , p o r s e u tr a b a l h o o u ta l e n to , c o n s e g u i r s ub i r
d e g r a u s ó c i o - e c o n ô m i c o a l gu m . P o r ta n to , a ú n i c a m a n e i r a d e
u m a m o ç a p o b r e c o m o G e n o v e v a a s c e n d e r s o c i a l m e n te e te r
n o to r i e d a d e n a s o c i e d a d e c a r i o c a d o s é c . X I X e r a e n g a j a n d o
u m b o m c a s a m e n to . O f a to r s ó c i o - e c o n ô m i co , p a r a a m o ç a , a c a b a f a l a n d o m a i s a l to . G e n o v e v a v ê e m J o s é D i o g o , o s e u
n o i v o , u m a p e r s p e c ti v a c o n c r e t a d e r e a l i z a r o s o n h o d e u m
c a s a m e n to , o q u e a f e z p ô r d e l a d o o s s e u s s e n ti m e n to s p e l o
o u tr o q u e a m a v a .
C O N SI D ER A Ç Õ ES F I N A I S
O s e s te r e ó ti p o s e d i s c u r s o s s ob r e a m u l he r q u e f o r a m
v i g e n te s n o s é c u l o e m q u e a o b r a d e M a c h a d o d e A s s i s s e
c o n c e n tr a , c o m o m o s tr a d o s n e s te tr a b a l h o , s ã o n a d a m a i s d o
J
110
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
q u e f r u to s d e c o n v en ç õ e s c u l tu r a l e id e o l og i c a m e n te c r i a d a s .
Em b o r a e s s e f a to j á te n h a s i d o p o r a n o s e lu c i d a d o s po r e s tu d o s d e d i v e r s a s n a tu r e z a s , m u i to s m i to s a i n d a p o v o a m o u n i v e r s o f e m i n i n o , m i to s e s te s q u e d e v e m s e r d e s c o n s tr u í d o s c o m
u m c o n tr a - d i s c u r s o p r o b l e m a ti z a d o r , q u e p e r m i ta - n o s e n te n d e r
a s o r i g e n s d e tu d o a q u i l o qu e é c o n c e b id o co m o i m u tá v e l e p r é
- e s t a b e l e c i d o , ti r a n d o a m á s c a r a d o n a tu r a l e r e v e l a n d o a f a c e
d o i d e ol ó g i c o .
R E F ER ÊN C I A S
A SSI S , M a c h a d o d e . ‚ N o i te d e a l m i r a n te ‛ . H i s t ó r i a s s e m d a t a . I n :
M a c h a d o d e A s s i s : ob r a c o m p l e ta e m tr ê s v o l u m e s . V . I I . R i o
d e J a n e i r o : N o v a A g u i l a r , 19 9 4 , p . 4 4 6 - 4 5 1.
__ __ __ . C o n to s e s c o l h i d o s . Sã o P a u l o : M a r ti n C l a r e t, 20 0 0
C H A U I , M a r i l e n a . C o n v i t e à f i l o s o f i a . Sã o P a u lo : Ed i to r a Á ti c a ,
19 9 5 .
D EN I C H , B e t te . A m u l h e r , a c u l tu r a e a s o c i e da d e . R i o d e J a n e i r o : P a z e T e r r a , 19 7 9 .
M O M S EN , J a n e t H e n s h a l l . W o m e n a n d d e v e l op m e n t i n th e th i r d
w o r l d . L o nd o n : N e w Y o r k : R o u tl e d g e , 19 9 1 .
M O N T EI R O , M a r l i P a i v a . F e m i n i l i d a d e : o p e r ig o d o p r a z e r . Ed i to r a
V o z e s . P e tr ó p o l i s : 19 8 4 .
M O R A I S, M a r i a L y g i a . M a r x i s m o e f e m i n i s m o : a f i ni d a d e s e d i f e r e n ç a s . D i s p o n í v e l e m : < h t tp : / / w w w . p a g u .u n i c a m p .b r / f i l e s / p d f /
M L y g i a 2.p d f >. A c e s s o e m : 10 m a i . 20 10 .
J
ST EI N , I n g r i d . F i g u r a s f e m i n i n a s e m M a c h a d o d e A s s i s . R i o d e
J a n e i r o : P a z e T e r r a , 19 8 4 .
111
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
NOTAS
1 I n g r i d Ste i n e m s e u l i v r o F i gu r a s F e m i n i n a s e m M a c h a d o s d e
A s s i s ( 19 8 4 ) , q u a n d o e x p õ e o s c o s tu m e s e p a r a d i g m a s d a é p o c a e m q u e s e c o n c e n tr o u a o b r a m a c h a d i a n a , a f i r m a q u e o s
p a i s e r a m q u e m , g e r a l m e n te , a c e r ta v a m o s c a s a m e n to s d o s f i l h o s , i n f l u e n c i a n do d i r e ta m e n te n a e s c o l h a d o s c ô n j u g e s .
2 Se g u n d o F r e u d , h á tr ê s i n s tâ n c i a s n a v i d a p s í q u i c a ( i d , s u p e r e g o e e go ) , s e n d o o s u p e r e g o a c e n s u r a dos i m p u l s o s d e o r d e m s e x u a l p r o m o v id a p o r f a to r e s c u l tu r a i s e s o c i a i s q u e i m p e d e m a r e a l i z a ç ã o d e ta i s i m p u l s o s .
J
112
Download

a mulher ideal e a mulher subversiva: representações de