Educação/formação profissional: para além dos novos
paradigmas
ERNA MARTHA RÉGNIER
Consultora do Departamento Nacional do Senac.
CONTEXTUALIZANDO O TEMA
Certa vez C. Whight Mills comparou a situação dos cientistas à de remadores no porão de uma
galera:
Todos estão suados de tanto remar e se congratulam uns com os outros pela velocidade que
conseguem imprimir ao barco. Há apenas um problema: ninguém sabe para onde vai o barco, e
muitos evitam a pergunta alegando que este problema está fora da alçada de sua competência.1
Muito antes de Mills, o físico Oppenheimer, numa explosão de desespero frente à destruição
causada pelo cogumelo atômico sobre Hiroxima e Nagasaki, manifestou seu drama de
consciência dizendo: “O pior perigo da humanidade é o cientista alienado”.
Em dois contextos diferentes, duas manifestações semelhantes expressam a mesma inquietação
e perplexidade frente à ética da ciência contemporânea.
Se olharmos para o passado não muito longínquo, vamos verificar que foi a partir da segunda
metade do milênio que a humanidade, inspirada pelo pensamento dos pioneiros do
Iluminismo, começou a depositar uma fé crescente no desenvolvimento da ciência; numa
reação saneadora do obscurantismo opressor da idade média.
Entretanto, este movimento de resgate da razão e da objetividade, que propiciou a superação
do período sombrio da Inquisição e deu início à era da razão, transformou-se ao longo do
tempo numa grande conspiração: por um lado contra toda possibilidade de conhecimento
científico na subjetividade, e por outro, contra qualquer expressão de uma ética comprometida
com a não violação das leis da natureza, com a não violência, a não segregação, a não
exclusão.
As conseqüências desta passagem de uma fase sombria, em que religião e ciência se
mesclavam numa cumplicidade opressora e castradora do pensamento, das crenças e dos ideais
do ser humano, para um período oposto de supervalorização e estimulação da mente, podem
ser observadas nos séculos que se seguiram, muito especialmente no século XX.
Foi, sem dúvida, neste século que o culto à racionalidade científica ganhou força e espaço no
processo de desenvolvimento da humanidade, e levou o homem a colocar todo seu potencial
criativo, seu intelecto e sua mente a serviço da construção de um mundo onde o progresso da
ciência e da tecnologia submeteu nossa civilização a outra espécie de tirania - a da razão pura.
Passamos assim de um extremo a outro, num movimento pendular sem ponto de equilíbrio,
inaugurando uma idade na qual, segundo Byington:
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A liberdade, o saber, a tolerância, a criatividade, a inteligência e a reflexão progressista foram
identificados com a objetividade, enquanto a subjetividade ficou identificada com a fé, a
irracionalidade, a intolerância, a prepotência, a superstição, a ignorância e a burrice. 2
Hoje se nos quedarmos como atentos observadores do planeta neste final de milênio, vamos
verificar que nossa civilização chegou doente à década que encerra o século XX.
Estimulados pela força da racionalidade, inventamos e progredimos, vencemos a barreira do
som, ultrapassamos a velocidade da luz, rompemos as fronteiras do universo, percorremos o
espaço cósmico, inauguramos a era das conquistas siderais e das descobertas de novos campos
do conhecimento.
Entretanto, o mito do progresso científico e do avanço tecnológico não encontrou paralelo no
nível moral da humanidade, contrariando a expectativa inicial. A idade da razão e do progresso
científico, embora tenha libertado o homem das teias da ignorância e da opressão religiosa, não
ajudou a humanidade a resolver os grandes problemas de nossa época que se traduzem hoje
pelo aumento da fome, da miséria, das doenças, da opressão, da violência, do horror das
guerras, das barreiras ideológicas, da segregação racial, das fronteiras físicas, da poluição do
ar, do envenenamento das águas, da exploração da terra, da ação predatória do homem sobre a
natureza e o universo.
Em decorrência, as sociedades modernas se vêem mergulhadas num ciclo de crises sucessivas.
Crise de valores, de identidade, de perspectiva, de ética, de moral, de legitimidade, de essência,
que se manifesta nas relações humanas, nas organizações sociais e políticas, nos sistemas
econômicos, no cenário internacional, enfim, na globalidade da vida individual e coletiva.
Uma crise. planetária, que se espalha em progressão geométrica por todos os continentes da
terra, atingindo de forma diferenciada pequenas e grandes nações, e que até certo ponto pode
ser atribuída ao que Weill chama de “fantasia da separatividade”, que criou a divisão ilusória
entre sujeito/objeto, mente/corpo, razão/intuição, ciência/consciência, mergulhando a
humanidade numa grande crise de fragmentação.
Em conseqüência, as gerações do nosso século nasceram e se forjaram sob o domínio de um
paradigma da terra dividida, da mente partida, dos saberes atomizados, do homem
fragmentado por influência dos valores que predominaram em nossa cultura ocidental e
materialista, fundamentada no determinismo mecanicista e comprometida com um único
critério da verdade - a racionalidade científica.
Os ganhos obtidos sobre a vigência deste paradigma para o progresso, a saúde e o bem estar da
humanidade ficaram minimizados pelo colapso dos valores estabelecidos, pelo horror dos
holocaustos, pela institucionalização da crueldade e do desrespeito à vida, pela ausência de
restrições morais ao consumismo desenfreado de nossa civilização, cada vez mais impulsionado e favorecido pelo avanço tecnológico.
A influência extremamente sutil e refinada deste modelo permeou as teorias científicas
contemporâneas e estendeu-se a todos os campos do conhecimento, afetando sobretudo os
sistemas e valores das culturas industrializadas, inaugurando a era das especializações no saber
e no fazer, expandindo-se para diversos setores da atividade humana, dos quais destacamos,
neste espaço, os sistemas produtivo, educacional e profissionalizante.
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No primeiro, o equivalente tecnológico da fragmentação dos saberes foi a linha de montagem,
cujos princípios fundamentais - definidos pelos dois maiores artífices do modelo da linha de
produção: Frederick Taylor e Henry Ford - se expressam pelo parcelamento das tarefas que
leva à especialização dos trabalhadores de tal forma que cada um domina apenas uma parcela
ínfima do processo produtivo, sem visão do todo e, portanto, sem compromisso com o
resultado final do seu trabalho.
Esta fragmentação tornou possível a padronização dos produtos e processos para se chegar à
produção em série que, por sua vez, permite o controle sobre os tempos e movimentos do
trabalhador a tal ponto que, homem e máquina se transformaram em simples peça da
engrenagem mecânica da fábrica.
No segundo, a cisão entre o corpo, mente e espírito provocou conseqüências danosas no
interior dos sistemas educativos, levando por um lado, a educação a se ocupar tão-somente do
intelecto indiferente à formação do caráter, à cultura do espírito, à construção da alma. Por
outro, estimulando a separação dos conhecimentos em disciplinas cada vez mais numerosas,
gerando infinitas especializações que acabaram levando os indivíduos a saberem quase tudo de
quase nada.
No terceiro, por similitude ao ocorrido no espaço da educação e por influência do modelo
implantado no sistema de produção, a formação profissional centrou-se no aperfeiçoamento do
“fazer”, secundarizando o “saber” na formação do trabalhador, o qual teve suas
potencialidades tão atrofiadas que se tornou, ao longo do tempo, peça descartável e de fácil
substituição no mecanismo do processo produtivo.
Em essência, toda a organização econômica, social, política e cultural das sociedades
modernas se curvaram aos valores subjacentes ao modelo da ciência clássica, herdado dos
cientistas do século XVII e sob cujo império o homem abriu no mundo uma grande fenda entre
conhecimento, ética e consciência.
Paradoxalmente, apenas agora, os efeitos globais deste modelo começam a ser questionados,
na medida em que fica cada dia mais visível a profunda contradição entre a imensa aquisição
de conhecimento, expressa entre outras coisas pela tecnologia moderna, e o trágico destino da
maior parte da humanidade, vivendo na fome, na miséria, na ignorância, consumida por
doenças, drogas, guerras e opressão, sofrendo discriminações de natureza étnica, cultural,
econômica, social e religiosa.
Em meio a uma crise global, de tão graves proporções, muito se fala ultimamente em
diferentes instâncias das sociedades modernas, em mudança de paradigma, como
reconhecimento da necessidade premente de construção de um novo modelo que, para além
dos limites da racionalidade científica, crie as condições propícias a uma aliança entre ciência
e consciência, razão e intuição, progresso e evolução, sujeito e objeto, saber e fazer, de tal
forma que seja possível o estabelecimento de uma nova ordem planetária.
No marco desta conscientização e em pleno clima de revolução científica, epistemológica,
cultural e tecnológica, aprofundam-se no interior das organizações sociais e da comunidade
científica, estudos, reflexões e discussões em torno do esgotamento do velho paradigma, ao
mesmo tempo em que se busca interpretar o período que atravessamos e propor uma nova base
de valores para as práticas humanas em geral, qualquer que seja o espaço de atuação do
homem.
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INTRODUÇÃO
Hoje em dia, fala-se muito em certas áreas da ciência em mudanças de paradigma por força da
existência de numerosos problemas no cenário do conhecimento humano que não conseguem
mais ser resolvidos com base no velho modelo dominante.
Uma das principais causas provocadoras desta mudança tem a ver com as recentes descobertas
no âmbito da física moderna que deram origem à teoria quântica ou teoria dos fenômenos
atômicos.
Esta teoria desestruturou algumas verdades científicas consideradas imutáveis no passado,
gerando uma profunda crise nos meios da ciência e da epistemologia, até então comprometidas
com a teoria mecânica newtoniana e com o método analítico de construção do conhecimento.
Esta crise criou o lastro para a construção de um novo paradigma que avança na compreensão
do universo para além dos limites do determinismo mecanicista e coloca o reconhecimento da
relatividade, da inter-relação de todas as coisas e da não-permanência como aspectos
fundamentais da realidade física.
Para a emergência deste novo paradigma, muito contribuíram, segundo Capra, alguns dos
cientistas mais consagrados de nossa era como Einstein com sua teoria da “relatividade”, Niels
Bohr e Werner K. Heisenberg com a teoria “quântica”, Geoffrey Chew com sua teoria
“bootstrap” das partículas subatômicas, que unifica a mecânica quântica e a teoria da
relatividade.3
As profundas transformações que vêm se dando na base da ciência moderna, por força de uma
nova percepção da realidade, fundamentada pelas mais recentes teorias da física
contemporânea, evidenciam os limites e as lacunas do velho modelo da separatividade que
durante séculos sustentou a organização das sociedades e as práticas humanas em geral.
Neste cenário de revolução científica, os princípios, conceitos e valores deste novo paradigma
extrapolaram as fronteiras da física moderna e se irradiaram para outros ramos da ciência atual,
como a biologia, a psicologia, a medicina, da mesma forma que podem ser encontradas
também na filosofia, na educação, economia, administração, enfim em todas as instâncias do
saber e do fazer humano.
Por outro lado, como o conceito de paradigma disseminou-se na atualidade e tem sido usado
de forma ampla, referindo-se não apenas a conjuntos conceituais e métodos de conhecimento,
mais também a práticas humanas em geral, um dos terrenos onde mais se ouve falar em
mudança de paradigma é no chamado setor produtivo, onde se processam significativas
mudanças na forma de produção por força das grandes transformações que vêm ocorrendo nas
estruturas econômicas e sociais do mundo moderno.
Estas transformações - provocadas por diferentes fatores dentre os quais se destacam: o
acelerado desenvolvimento da tecnologia, as mudanças nas relações de poder e política, a
globalização dos mercados, os novos padrões de competição internacional, a reorientação do
mercado consumidor - demandam e estimulam a reestruturação do setor produtivo para
viabilizar a produtividade e a capacidade competitiva da economia moderna.
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Por sua vez, esta reestruturação implica a adoção de novos critérios tecnológicos,
organizacionais, gerenciais e de organização/gestão do trabalho que só podem ser materializados via um novo modelo de produção comprometido não mais com a concepção
taylorista-fordista, e sim com outros conceitos como flexibilidade, integração, descentralização, alargamento de tarefas, enriquecimento de cargos, grupos semi-autônomos de
trabalho, percepção global de conjuntos.
Para Romero, este novo modelo, denominado de “paradigma de produção flexível”, se
caracteriza pelo deslocamento do antigo enfoque centrado na organização do trabalho, para um
outro ângulo fundado na organização da produção, onde a novidade reside na necessidade de
flexibilização da produção do processo de trabalho e, portanto, do próprio trabalhador.4
Como esta nova forma de organização do sistema produtivo vem se impondo de maneira
diferenciada entre os países industrializados e os de economia mais tradicional, surgem
controvérsias sobre as implicações futuras deste modelo nas estruturas sociais e econômicas do
mundo contemporâneo.
Estas divergências de opinião, entretanto, não impedem que o novo paradigma vã sendo
assimilado pelo setor produtivo das sociedades modernas já que a dinâmica do processo de
desenvolvimento tecnológico tornou-se irreversível em nossa civilização.
Não nos deteremos na descrição e análise do complexo cenário destas transformações já que
existe um grande acervo de trabalhos publicados e debates sendo travados entre os diversos
atores sociais preocupados com a questão.
Mobiliza-nos tão-somente, nos limites deste trabalho, uma breve reflexão sobre os efeitos, na
educação e formação profissional, da recente crise de paradigmas vivenciados nos meios
científicos, cujos reflexos se irradiam para as práticas humanas em geral.
O que nos parece inquestionável hoje em dia é o fato de que as novas abordagens da física
moderna têm colocado em xeque os antigos esquemas racionais e científicos de compreender e
explicar a realidade, com total rejeição de uma visão mais global e subjetiva desta mesma
realidade.
A adoção deste modelo cartesiano, linear e separatista, pelos sistemas educacionais, produziu
efeitos nocivos tanto à educação, quanto à formação profissional, muito especialmente no
decorrer do século XX.
A fragmentação do conhecimento em várias disciplinas responsáveis por especializações cada
vez mais específicas e sem nenhuma correlação entre si, o esfacelamento dos currículos
escolares desconectados de uma proposta globalizadora do processo educativo, o mito da
objetividade, o culto à razão pura, à supervalorização da memória com as conseqüentes formas
autocráticas e reducionistas de avaliação, à divisão entre o saber e o fazer, à separação entre
sujeito, objeto e conhecimento, são, entre outros, alguns dos efeitos perversos do paradigma da
racionalidade científica nos meios educacionais.
A escola neste contexto sempre priorizou, como já foi dito, o desenvolvimento do intelecto e a
aquisição do saber, delegando à família a formação do caráter, a cultura do espírito, a
construção da alma, por força da influência de um modelo que separou, no ser que aprende e/
ou se profissionaliza, o corpo da mente e das emoções.
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O produto final deste processo tem sido, ao longo dos tempos, a formação de especialistas,
cada vez mais atomizados na parcela do seu saber, sem compromisso com o todo, com uma
visão unilateral do conhecimento, puramente intelectual, onde sentimentos, valores, emoções e
ética são desprezados ou esquecidos para não comprometerem o individualismo de suas ações.
Hoje, o novo modelo da ciência que busca resgatar a visão de totalidade, em que o todo e cada
uma das partes mantêm estreita sinergia entre si e desenvolvem interações constantes e
paradoxais, revela a fragilidade e inadequação dos modelos educacionais calcados na
multidisciplinaridade resultante da separação do saber em numerosas disciplinas, o que fez do
conhecimento uma espécie de mercadoria a ser adquirida e estocada na caixa preta da
memória, para ser usada quase sempre em função de interesses isolados, pessoais ou de pequenos grupos.
Uma das tentativas de superação desta atomização do conhecimento aflorou, de certa forma,
com a proposta da interdisciplinaridade que se manifestou como uma tentativa de correlacionar
as disciplinas até então desconectadas entre si, sem muito êxito, contudo, por não conseguir
transcender a órbita disciplinar que continuará sendo uma abordagem parcelarizada do conhecimento.
Portanto, em que pese o esforço para sair da crise de fragmentação, responsável pelo
esfacelamento e esvaziamento dos conteúdos curriculares, o certo é que muito pouco se
modificou no contexto do mundo acadêmico, já que no concreto, cada disciplina permanece,
ainda hoje, soberana em seu território, com pequenas articulações com duas ou três disciplinas
mais afins, sem contudo conseguir romper as fronteiras que as isolam e separam da totalidade
do conhecimento.
Como conseqüência, o compromisso ético e filosófico da educação com o desenvolvimento
integral do ser humano permaneceu secundarizado numa escola que ainda hoje prioriza os
especialistas e se concentra no desenvolvimento do intelecto e na aquisição de um saber
imediatista indispensável ao progresso material da sociedade.
Nesta linha caminhou também a formação profissional, por força de sua vinculação histórica
ao sistema produtivo, no qual o processo de trabalho ainda conserva a marca da segmentação,
da padronização, da linearidade e da repetição, inerentes ao padrão taylorista-fordista.
A grande cisão entre o saber e o fazer, entre concepção e execução, entre trabalho manual e
intelectual gerou, nos sistemas profissionalizantes, especializações no aprender a “fazer” cada
vez mais atomizadas e desqualificadoras, atrofiando o potencial de criatividade, descoberta e
crescimento do ser humano.
Entretanto, é fato notório que paira no ar uma conspiração contra este processo de
fragmentação, separatividade e especialização, que durante anos e anos, ensinou professores,
alunos e instrutores a dividir, isolar e analisar sem estabelecer conexões.
Vimos como um novo tipo de ciência está nascendo, não mecanicista, não determinista, mas
que leva em consideração uma interdependência sistêmica e recoloca concepções de
totalidade, de continuidade, de conexões para chegar a um novo paradigma que relacione os
diversos níveis físico, sócio-cultural, biológico e metafísico.
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Os princípios e valores inerentes a este paradigma da ciência vêm estimulando, em diferentes
instâncias da sociedade, ampla reflexão sobre o tema, cuja complexidade envolve aspectos de
natureza econômica, social, política e cultural, além de uma profunda reformulação da visão de
mundo, de homem, de sociedade.
Paralelamente, iniciativas isola das, no âmbito da educação e for: mação profissional, revelam
um esforço consciente de fazer com que a concepção de totalidade, de continuidade e
interdependência deixe de ser teoria no mundo acadêmico e profissionalizante para se
transformar rapidamente em realidade.
É bem verdade que o reducionismo, a visão pragmática, fragmentada e tecnicista da educação
e da formação profissional estão longe de ser superados, da mesma forma que a nova Física
ainda não é a de todos os físicos.
Ainda assim, o desafio está posto. A reflexão está aberta!
Talvez o ponto de mutação venha a ocorrer quando todos puderem se aperceber que: “A
natureza é uma unidade maravilhosa”, como disse Albert Szent Gyorgi - “Ela não está
dividida em física, química, mecânica quântica...”5
A PEDAGOGIA NA ÓTICA DOS NOVOS PARADIGMAS
O desafio de tentar contrabandear para dentro da educação um movimento de transformação
comprometido com o paradigma da totalidade, da síntese, da interdependência e interconexão,
ainda se defronta com grandes barreiras de ordem racional, pragmática, econômica e até
mesmo ideológica por uma limitada compreensão do alcance de seus objetivos.
Por outro lado, os poucos projetos experimentais já elaborados apresentam, de certa forma,
inovações e experiências ainda não refinadas e ágeis o bastante para provocarem o ponto de
mutação na matriz educacional.
Algumas sinalizações, ainda que incompletas, têm apontado no âmbito do pedagógico, em
direção da transclisciplinaridade e da formação polivalente como possíveis vias de superação
do caos da multidisciplinaridade, do reducionismo da educação tecnicista e do imediatismo da
formação para o posto de trabalho.
Convém registrar que não estamos diante de propostas inovadoras, pois a concepção de
transdisciplinaridade já estava presente nas contribuições de Piaget quando se referia ao
estágio das relações interdisciplinares. Disse ele: podemos esperar o aparecimento de um
estágio superior que seria “transdisciplinar”, que não se contentaria em atingir as interações ou
reciprocidades entre pesquisa especializada, mas situaria essas ligações no interior de um
sistema total sem fronteiras estáveis entre as disciplinas.6
Também não é novo o conceito de polivalência defendido por alguns educadores numa visão
humanista, como uma opção pedagógica reformista e questionadora da educação tecnicista e
do imediatismo empobrecedor e alienante da formação profissional.
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O que é novo, contraditório e desafiador é o contexto onde estas concepções são retomadas.
Parece claro, para os que estão discutindo o tema, seja entre representantes do mundo
acadêmico, seja entre representantes dos setores modernos da economia, que a incorporação de
cada vez mais ciência e tecnologia à base do sistema produtivo, como condição de se fazer
frente às novas formas de concorrência internacional, têm provocado profundas mudanças não
apenas na lógica da produção, mas também na reestruturação nos setores primário, secundário
e terciário.
De comum, entre estes representantes, há o consenso de que no bojo destas mudanças alguns
aspectos se destacam como, por exemplo a parceria com serviços de terceiros, a criação de
novas técnicas de controle de qualidade, a substituição da “linha de montagem” por “ilhas de
produção”, a integração das diferentes etapas do processo produtivo, a reunificação de tarefas
antes parceladas, a nova forma coletiva de trabalho, uma crescente terciarização do secundário,
maior relativização entre os que concebem e os que executam o trabalho, uma redução dos
níveis hierárquicos e como conseqüência uma demanda por certa força de trabalho mais crítica
e criativa onde o ato de pensar impõe-se sobre o ato de fazer.
Neste cenário, fala-se muito em um novo perfil de profissional/trabalhador capaz de
desenvolver competências mais genéricas de natureza intelectual, que envolvem habilidades
mais complexas e abrangentes, que não apenas de cunho operacional.
Certamente, o desenvolvimento destas competências vão requerer novos conteúdos de
educação e novas formas de qualificação do trabalhador que implicam a superação, sobretudo
no setor secundário, da antiga proposta de qualificação centrada no desenvolvimento de
habilidades motoras e destrezas manuais.
Nesta perspectiva, concepções de polivalência, politecnia, onilateralidade emergem dos
estudos acadêmicos como propostas alternativas, apontando caminhos para se responder ao
conjunto de requerimentos exigidos dos trabalhadores, pelas novas formas de organização da
produção e do processo de trabalho.
Entretanto, da análise mais profunda destas propostas que estão sendo reconstruídas, com
vistas à superação do pragmatismo e da alienação da antiga qualificação unilateral, emerge
uma grande lacuna para a qual ainda não se encontraram, na prática, mecanismos de
superação,
Isto porque, o vazio não preenchido tem a ver com outra ordem de grandeza que transcende os
limites do econômico, do político e até mesmo do pedagógico.
Representa o comprometimento com a subjetividade na formação do trabalhador que, em
síntese, implica o desenvolvimento total, completo, pleno, multilateral de todas as faculdades
do ser humano - produtivas, criativas, intelectuais, intuitivas e espirituais.
É bem verdade que o avanço em direção a estas novas concepções de qualificação
representam, por um lado, o esforço para responder aos processos de trabalho recompostos,
enriquecidos e em mutação, e por outro, segundo Souza Machado “a busca da integração, da
flexibilidade, da substituição da linearidade, da segmentação, da padronização e da repetição
inerentes ao padrão taylorista e fordista”. 7
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Contudo, em que pese o reconhecimento da necessidade de ampliação das competências intelectuais e específicas do trabalhador, no concreto, não se avança para além dos interesses
pragmáticos e imediatistas do sistema econômico, sendo ainda muito pouco o que se consegue
resgatar, para o trabalhador, na perspectiva de superação das diferentes formas de alienação
humana.
Em que pese algumas conquistas que possam vir a ser, obtidas pelo trabalhador através das
novas concepções de educação profissional, não há como ocultar a face perversa deste modelo
que, ao prever o uso intensivo, no processo de produção, de modernas tecnologias com forte
base científica, acaba por reduzir ainda mais os postos de trabalho e se revela um modelo altamente seletivo e excludente de mão-de-obra.
Entretanto, há os que vislumbram neste novo modelo de desenvolvimento econômico e de
reorganização do sistema produtivo, o que Deluiz aponta como “um lado luminoso”,
representado pela:
Possibilidade de maior participação e interferência do trabalhador no processo de produção de
bens e serviços, pela necessidade de ampliação da base de educação geral, por uma maior e
mais abrangente qualificação, pela possibilidade, enfim, de um trabalho revalorizado, com ênfase no conhecimento e na inteligência ...8
Para estes seria, portanto, pela via de uma qualificação polivalente ou até onde fosse possível
pela concretização dos ideais da onilateralidade, que o trabalhador se libertaria de um contexto
de alienação, pelo exercício pleno da cidadania com uma participação ativa, consciente e
crítica no mundo do trabalho e no mundo social, além de sua efetiva auto-realização.
Há que considerar esta leitura do. contexto, como meia verdade, pois o que fica cada dia mais
evidente, na medida em que vai se materializando a nova reorientação econômica no mundo
contemporâneo, é o agravamento das desigualdades econômicas e sociais entre os povos, a
ampliação do desemprego nas nações industrializadas, a segmentação da força de trabalho
entre incluídos e excluídos do mercado formal, a degradação das condições do trabalho, o
crescimento do setor informal, o empobrecimento cada vez maior da população, a deterioração
da qualidade de vida, a ampliação do racismo nas suas diferentes manifestações, o aumento da
violência urbana, da fome e das doenças, a falta de perspectiva dos jovens no presente e em
relação ao futuro, a quebra do mito da felicidade utópica.
Neste cenário, marcado por tantos desequilíbrios, fica a dúvida inquietante com relação ao
novo modelo de desenvolvimento econômico, cujos sinais indicam estar longe de contribuir
para o resgate da dívida social histórica de nossa civilização para com as gerações futuras.
Há fortes indícios de que este processo, em que pese favorecer a formação dos blocos
econômicos, venha a se constituir num fator desagregador entre povos, nações e governos,
além de sedimentar a ação predatória do homem sobre o meio ambiente para saciar a ânsia de
consumo de uma civilização mergulhada numa busca incessante de realização dos seus mitos e
poder, status, carreira, prazeres e posse de bens materiais.
Visto ainda sobre a ótica da multilateralidade do ser humano, o novo modelo não é apenas
cruel no seu processo de exclusão do trabalhador, é também falso na sua proposta de resgate
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para o indivíduo de uma formação mais abrangente e globalizadora dos conhecimentos, já que
esta exigência se concentra tão-somente na aquisição de maior e mais complexo nível de
desenvolvimento de competências genéricas, imprescindíveis a um melhor desempenho na
estrutura produtiva.
O espaço concedido ao exercício da criatividade, iniciativa, autonomia, curiosidade,
organização, criticidade, argumentação, participação e transformação é garantido desde que
possam contribuir para o aumento da produtividade e da sofisticação do processo de trabalho.
Em decorrência, são restritas as possibilidades, do ponto de vista pedagógico e até mesmo
ideológico, de se agregar às novas concepções de educação e formação profissional,
preocupações com uma ordem de grandeza que tenha a ver com a dimensão subjetiva do homem, do trabalho, da técnica, da ciência, do conhecimento e da própria realidade objetiva.
Neste contexto, a formação polivalente, hoje apontada como uma saída para o trabalhador se
defrontar com a nova realidade do mundo do trabalho, corre o risco de perder sua dimensão
humanista, seu compromisso social, sua perspectiva reformista para se tornar um instrumento
eficaz dos interesses econômicos.
Isto porque, a crescente demanda por uma força de trabalho capaz de desenvolver
competências mais genéricas, de natureza intelectual que envolvam habilidades mais
complexas e abrangentes, que não apenas de cunho operacional, (necessidades que a
polivalência se propõe a atender) torna ainda maior os desníveis entre os que têm acesso ao
trabalho socialmente estruturado e o crescente contingente dos excluídos, para os quais, basta
uma formação de qualidade questionável.
Se, por um lado, é verdade que a opção pela polivalência demonstra o reconhecimento da
importância do binômio educação/formação profissional na qualificação do trabalhador, uma
vez que para a operacionalização deste modelo há que se dispor de uma ampla base de
educação geral; por outro, não é menos verdadeiro que este é, sem dúvida, o maior desafio a
ser enfrentado pelos formuladores da concepção polivalente, uma vez que a nova qualificação
terá de se dar num contexto marcado por profundas desigualdades sociais e econômicas que
selecionam e excluem trabalhadores dos processos educativo e de produção.
Estas contradições se aprofundam ainda mais quando se discute a abordagem da formação
onilateral do trabalhador, dado o nível de complexidade da questão.
Se partirmos da visão marxista de homem onilateral que pode ser traduzida, na interpretação
de Manacorda, como o “homem que rompe os limites que o fecham numa experiência limitada
e cria formas de domínio da natureza, que se recusa a ser relojoeiro, barbeiro, ourives, e se alça
a atividades mais elevadas”,9 têm-se uma pálida idéia das dificuldades de se pensar numa
formação onilateral para o trabalhador, dentro da nova configuração das estruturas produtivas
e da organização do trabalho.
Levando-se ainda em conta, na leitura de Manacorda, que esta onilateralidade seria, portanto, a
“chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo,
a uma totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se deve considerar sobretudo
o gozo daqueles bens espirituais, além de materiais, e dos quais o trabalhador tem estado
excluído em conseqüência da divisão do trabalho”,10 fica também visível que a discussão sobre
a concepção da formação onilateral não pode ficar limitada ao âmbito restrito do pedagógico.
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Neste sentido, Kuenzer alerta para a necessidade de se ter cuidado com:
Afirmações que possam levar ao entendimento de que a desqualificação, subjetiva e objetiva
do trabalhador, levada a cabo no interior do processo produtivo, possa ser resgatada no interior
da escola.11
Chama também atenção para os que vêm fazendo afirmações do tipo: Há uma onilateralidade
que vem se desenvolvendo na fábrica, uma vez que a ampliação de competências técnicas dos
trabalhadores, não tem correspondido a sua maior participação na posse dos meios de produção, tampouco dos produtos.12
Apesar de não ser propósito deste ensaio, aprofundar o estudo destas concepções, seja no
âmbito do pedagógico, seja no âmago das relações produtivas, acreditamos ser oportuno o
registro da necessidade de se promover uma discussão mais ampla sobre as distorções a que
fica sujeita, na prática, a operacionalização de modelos pedagógicos fundamentados nestas
concepções, dado o vínculo histórico da educação e formação profissional com as estruturas
econômicas e com o sistema produtivo, nos quais duelam ainda hoje ideologias antagônicas do
capital e trabalho.
Cabe lembrar que uma das grandes questões posta neste confronto de interesses, trata-se da
desumanização do homem pelo processo de desenvolvimento da indústria capitalista, que criou
a separação entre concepção e execução, ciência e trabalho, despojando o trabalhador de toda
possibilidade de acesso ao conhecimento teórico, tornando, assim, abstrato e inútil qualquer
preocupação com o seu desenvolvimento integral.
Entendemos, contudo, que, apesar dos riscos, é mais inteligente, mais ágil, e politicamente
mais coerente com a realidade de momento, avançar por estes caminhos do que permanecer
estático frente ao processo de transformação que vem se operando na base das estruturas
econômicas e sociais em decorrência do avanço tecnológico.
Há que reconhecer a necessidade de se dar respostas mais adequadas e conseqüentes à nova
mecânica do processo produtivo que hoje requer, sem sombra de dúvida, uma força de trabalho
mais polivalente, embora, em número, cada vez mais reduzida. Por outro lado, avançar nestas
perspectivas não deve ser simplesmente, como argumenta Frigotto, um ideário “arbitrário e
fortuito”, mas um processo necessário e orgânico, até porque, mesmo sob a negatividade das
relações de produção, gesta-se a virtualidade do ensino e da formação polivalente.13
PARA ALÉM DOS NOVOS PARADIGMAS
Parece que os dirigentes do nosso tempo estão procurando somente usar o homem afim de
realizarem grandes coisas; eu gostaria que eles tentassem um pouco mais fazer grandes homens; que depositassem menor valor no trabalho e mais no trabalhador; que nunca se esquecessem de que nação alguma pode ser forte quando todos os que a compõem são fracos individualmente.14
Seguramente, o espaço da educação/formação profissional não representa a área por excelência
onde se decidirá a substituição do velho paradigma mecanicista, da fragmentação do
determinismo racionalista que separou a ciência em objetiva e subjetiva - cujas conseqüências
o mundo inteiro haveria de sofrer - pelo novo paradigma da totalidade, da síntese, da
interdependência e da interconexão.
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Educação/formação profissional: para além dos novos paradigmas
Mesmo assim, a educação tanto quanto a formação profissional não estão excluídas deste
processo de transformação, por serem parte integrante da totalidade social onde este
movimento se realiza.
Daí, a importância da busca de alternativas pedagógicas que possam contribuir para a
construção de uma nova ordem planetária, sem, contudo, incorrer no erro ingênuo de se pensar
que é possível transformar o mundo pela educação. Nem tampouco comungar da idéia de se
reduzir a educação a uma perspectiva puramente econômica, uma vez que ambas concepções
incorrem num grave erro teórico de segmentação do social.
A sociedade, assim como o homem, a natureza e o mundo, precisam ser vistos na dialética de
seus elementos, sem mecanicismos ou fragmentações.
Neste sentido, as pedagogias revolucionárias, libertárias e problematizadoras revelaram um
compromisso maior com esta totalidade, que se torna ainda mais evidente na pedagogia do
trabalho, na medida em que sua própria forma revolucionária foi construída em estreita relação
com outras lutas sociais e sob a inspiração de um entendimento mais científico dos
mecanismos da exploração econômica, da dominação política e da hegemonia ideológica. Em
decorrência, advogou-se uma ação revolucionária em direção a um mundo alternativo, ainda
que nos limites do horizonte de uma proposta socialista para a organização da sociedade
humana.
Deixando o aprofundamento dessa discussão teórica para outras instâncias da comunidade
acadêmica, a questão que se coloca, neste espaço de reflexão, diz respeito aos desvios de
percurso dos projetos educativos e profissionalizantes, ao se aterem em suas formulações
teóricas a aspectos ora de simples natureza pedagógica, ora de natureza política, econômica e
social, ignorando que todos os modelos construídos a partir destes enfoques, contemplam
soluções num nível externo ao indivíduo.
Concretamente, ao voltar os olhos para a trajetória de nossa civilização, temos hoje a certeza
de que, os contextos externos mudaram, mas a condição interna do homem permanece a
mesma, porque a humanidade tem olhado sempre para os grandes problemas do mundo, como
a fome, a miséria, as guerras, as desigualdades sociais, as perseguições ideológicas e religiosa,
o desequilíbrio econômico, a desumanização do homem, -como se fossem desafios externos ao
próprio homem.
Devido a isso, buscam-se soluções na esfera das estruturas sociais e políticas, no contexto das
relações econômicas entre as nações como se apenas aí estivessem as respostas aos grandes
conflitos de nossa época.
O que não se consegue ver é que a questão central não está do lado de fora, mas situa-se no
interior do próprio homem que constrói, através de sua relação com o mundo, com a natureza e
com seu próprio semelhante, todas as formas de opressão, de desigualdade, de violência, de
crueldade, de destruição, de separatividade entre o todo e as partes, entre ciência e consciência,
entre razão e intuição, entre progresso material e evolução humana.
Este nível de conscientização precisa também estar presente entre os que pensam novos
projetos pedagógicos como resposta ao compromisso político da educação e da formação
profissional com a totalidade social.
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Educação/formação profissional: para além dos novos paradigmas
Profundas mudanças estão ocorrendo no interior das sociedades modernas por força de novos
paradigmas do conhecimento precursores da atual revolução epistemológica, científica,
cultural e educacional.
Entretanto, o que se depreende da leitura das grandes transformações que vêm se dando na
base das estruturas econômicas e sociais, impulsionadas pelo avanço tecnológico, não nos
oferece um quadro promissor em relação ao futuro.
A obsessão dos dirigentes das principais nações do mundo contemporâneo, com um
crescimento econômico sem progresso qualitativo e sem levar em consideração nossa
dependência do mundo natural, nos proíbe de ser ingênuos em relação aos novos paradigmas
que estão sendo incorporados à base dos sistemas produtivos.
O discurso teórico fala, como já foi visto, de um novo modelo de produção, de uma nova
organização do trabalho e, por conseqüência, de uma demanda por um novo perfil de
trabalhador, mais crítico, criativo; pensante, atuante, dono de um conhecimento genérico e não
apenas de um “saber fazer”.
Se, por um lado, isto é verdadeiro, em que pese se referir a um número cada vez mais restrito
de profissionais, por outro, não esconde a total falta de interesse por outras qualidades de
natureza mais subjetiva do próprio trabalhador. Qualidades estas que têm a ver com sua
dimensão física, emocional e espiritual, com suas necessidades de beleza, harmonia e
transcendência.
Dito de outra forma, com qualidades que são inerentes à sua totalidade humana e não apenas as
suas capacidades produtivas.
Os projetos pedagógicos que buscam dar respostas ao novo paradigma da produção devem
exercitar sua própria autocrítica para não serem coniventes, com um modelo que se dizendo
comprometido com a multilateralidade, reforça, ainda que de forma velada, a unilateralidade
do Ser enquanto trabalhador.
Há que se, ter presente que o esfacelamento do homem ainda é uma realidade, porque é falsa a
promessa de resgate da globalidade humana.
Se o trabalhador se fez máquina na revolução industrial, ainda permanece como peça da
engrenagem do processo de trabalho, com a única diferença de ser intelectualmente mais
complexa sua forma de atuar. Sua rotina existencial torna-se cada dia mais mecanizada. Suas
aspirações, sonhos e ideais de vida estão submetidos a um mecanismo sutil de robotização
através das mídias de comunicação. Seu espírito além de estar secundarizado, degenerou-se em
intelecto, como denunciou Jung.
Sua luta se centra, ainda hoje, na busca da sobrevivência pelos menos afortunados e na aquisição de bens materiais pela maioria doutrinada nos valores consumistas de nossa era.
Sua fome de beleza, entendida como o direito à realização de sua própria grandeza, está amortecida pelos impactos da tecnologia no cotidiano de sua existência, o que o distancia cada vez
mais da relação com a natureza fonte de toda inspiração.
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Educação/formação profissional: para além dos novos paradigmas
Sua totalidade nunca esteve tão fragmentada em corpo, mente e emoção.
Sua percepção do universo ainda tem como referencial o padrão cartesiano linear e
fragmentado que o mantém alienado da consciência de inteireza.
Portanto, o que emerge como imperativo histórico no âmbito dos sistemas educativos e
profissionalizantes, é o pensar de um projeto pedagógico que, partindo das conquistas obtidas
com base nos novos paradigmas, transcenda os limites da objetividade, da racionalidade e da
cumplicidade política, ainda fortemente presente nas modernas concepções de
educação/profissionalização.
Talvez, para além desses novos paradigmas, a educação que até hoje não pôde ser consertada,
venha a sofrer uma grande metamorfose.
É mais do que tempo de nos livrarmos das velhas formas, dos antigos estereótipos, do reducionismo da aprendizagem, para facilitarmos o verdadeiro vôo da mente e do espírito humano libertos dos grilhões da ignorância, tanto na perspectiva da razão e do conhecimento, quanto na
dimensão da intuição e da sabedoria.
Estamos nos deslocando rapidamente em direção a um futuro cheio de incertezas.
Nem mesmo os mais crédulos defensores de nosso tempo são capazes de prever se o que resultará de nosso desenvolvimento contemporâneo será a aniquilação, a escravidão ou a emancipação da espécie humana.
Por isso, necessitamos de uma forma completamente diferente de encarar e interagir com a
realidade atual.
Radha Burnier nos conta que:
Um filósofo conhecido disse que o homem cria a espécie de sociedade que está relacionada
com o conceito que ele tem de si mesmo. Se ele pensa que é uma criatura da informação, da
linguagem, e assim por diante, irá criar uma sociedade desumana. Somente quando se
reconhece a si mesmo, sua extraordinária capacidade daquilo que existe em um nível
intangível, o homem poderá atingir sua plena altitude, dignidade, estatura e criar uma ordem
social adequada para si, que traga a felicidade e a paz que todos buscam. 15
Cabe, portanto, à educação do futuro que começa a ser gerada nos porões da subjetividade,
onde se abrigam os visionários da nova era, ajudar a construir os alicerces de uma nova ordem
mundial, através de um projeto pedagógico que favoreça uma perfeita sinergia entre razão e
coração, ciência e mística, conhecimento e tradição, análise e síntese, tanto quanto privilegia
hoje o compromisso político e ideológico com a totalidade social.
Há que ressaltar, com clareza, que não se trata aqui de impugnar os projetos pedagógicos que
estejam voltados para a busca de respostas mais ágeis e refinadas ao contexto de modernidade,
instalado nas estruturas econômicas e sociais do mundo contemporâneo.
O que se propõe é a dialogicidade com outras formas de conhecimento e de percepção do real,
visando à interação das polaridades sujeito-objeto, subjetividade-objetividade, imanênciatranscendência.
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Isto porque o que a humanidade mais precisa desenvolver, nos próximos tempos, é sem dúvida
alguma, como afirma Burnier:
Sua capacidade de autoconsciência, para melhor compreender e analisar sua própria natureza
e, a partir daí, criar uma nova ordem social e uma outra forma de relacionamento baseado no
sentido da unidade e não da ilusão das diferenças.16
Sem essa perspectiva, certamente, não poderá haver verdadeiro progresso no mundo.
E nesta direção a educação, em seu sentido mais amplo, tem um importante papel a
desempenhar para além do compromisso de seus atuais projetos pedagógicos com os novos
paradigmas econômicos.
Se vivemos uma era que está chegando ao fim, temos o dever histórico para com as gerações
do futuro de clamar por uma grande transformação nos valores que, ainda hoje, sustentam os
pilares de nossa civilização tanto na esfera da ciência, das artes, da filosofia e educação, quanto
no plano da reorganização econômica do mundo moderno.
Este brado de alerta envolve a educação/formação profissional na sua área de competência e de
compromisso com o resgate, para o homem, não mais apenas do direito ao exercício pleno de
sua cidadania, mas também da conquista de sua própria grandeza, o que só se dará através do
desenvolvimento de sua dupla natureza - imanente e transcendente.
Encerramos estas reflexões com um sábio provérbio hebreu que diz: “Não limite seus filhos
aos seus próprios ensinamentos pois eles nasceram em outra época.” 17
NOTAS
1
ALVES, Rubens. Conversando com quem gosta de ensinar. [S.l.] : Cortez, 1985, p. 86.
2
CREMA, Roberto, BRANDÃO, Denis M. S. O novo paradigma holístico. In: BYINGTON, Carlos Amadeu B. T. A
ciência simbólica, epistemológica e arquetipo. São Paulo: Summus, 1991. p. 76.
3
CAPRA, Fritjof. Sabedoria incomum. São Paulo : Cultrix, 1988. p. 41.
4
CORTEZ ROMERO, Carlos. Implicações das novas tecnologias no setor terciário: articulando a formação humanista
com a formação tecnológica. [S.l.:s.n.], 1993. Ante-projeto de tese doutorado. Mimeo.
5
FERGUSON, Marilyn. A conspiração aquariana. Rio de Janeiro : Record, 1980. P. 311.
6
WEILL, Pierre, D'AMBRÓSIO, Ubiratan, CREMA, Roberto. Rumo à nova transdisciplinaridade. São Paulo : Summus,
1993.
7
MACHADO, Lucília R. de Souza. Humanismo e tecnologia numa perspectiva de qualificação profissional. Tecnologia
Educacional, Rio de janeiro, v. 21, n. 107, jul/ago. 1992.
8
DELUIZ, Neise. Anotações de palestra. [S.1. : s.n.], maio 1994.
9
MANACORDA, Marcio Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo : Cortez, 1991. p, 81.
10
Id. Ibid., p. 82.
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11
KUENZER, Acácia Zeneida. Humanismo e tecnologia numa perspectiva de qualificação profissional. Tecnologia
Educacional, Rio de Janeiro, v. 21, n. 107, jul./ago. 1992. p. 58.
12
Id. ibid.
13
FRIGOTTO, Gaudêncio. Trabalho, educação e tecnologia. In: SILVA, Tomaz T. Trabalho, educação e prática social.
Porto Alegre : Artes Médicas, 1991. p. 270.
14
Apud. FERGUSON, Marilyn. op. cit., p. 356.
15
Apud. WEILL, Pierre, D'AMBRÓSIO, Ubiratan, CREMA, Roberto. op. cit., p. 133.
16
BURNIER, Radha T. Em direção a uma nova ordem mundial. In: Brandão Denis M. S., CREMA, Roberto. O novo
paradigma holístico. São Paulo: Summus, 1991.
17
FERGUSON, Marilyn. op. cit., p. 328.
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