CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA – 7ª Região
Porto Alegre, 20 de janeiro de 2015.
Ofício nº. 0068/2015
Assunto: Perspectivas para a Política de Saúde Mental do RS
Excelentíssimo Sr. Secretário Estadual da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, João
Gabbardo dos Reis,
O Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, região 07, com o
Sistema Conselhos de Psicologia, vem participando de forma ativa da construção social
do país, principalmente no que tange às políticas públicas. Especialmente na área da
saúde mental, a Psicologia tem contribuído na implementação de políticas públicas de
saúde e na qualificação do acesso e do cuidado ofertado pelo Sistema Único de Saúde
(SUS). Nesse processo, temos nos colocado como indutores e colaboradores de uma
política de saúde mental que esteja de acordo com as diretrizes nacionais e com as
últimas resoluções da Conferência Nacional de Saúde Mental.
Historicamente, a atenção em saúde mental esteve centrada no modelo
hospitalocêntrico/manicomial, resultando em práticas de atenção excludentes e
estigmatizantes, levando à cronificação e à negação dos direitos dos usuários, o que
resultou, durante décadas, na inexistência de serviços comunitários e na precariedade
das condições de atendimento aos usuários em saúde mental, apesar dos altos custos
gerados pelas internações hospitalares.
O estado do Rio Grande do Sul foi o precursor na luta pela garantia de
humanização do cuidado de pessoas com transtorno mental, entendendo que o ambiente
do manicômio é um lugar onde os internados perdem suas referências de vida, são
excluídos do convívio familiar, do trabalho, do local onde moram, da cidade; perdem,
portanto, sua cidadania. Os manicômios surgiram a partir da constituição da sociedade
moderna como todas as demais instituições de exclusão social dos cidadãos
considerados “diferentes”, que não se adéquam a padrões de normalidade estabelecidos
pela sociedade, portanto, são lugares de exclusão e não de tratamento. Existe hoje um
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consenso, em nível mundial, sobre o caráter iatrogênico dos hospitais psiquiátricos. A
Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza a progressiva substituição dos
manicômios por serviços de psiquiatria em hospitais gerais e toda a gama de serviços de
caráter comunitários e territorializados articulados em rede (LANCETTI, 1990).
A Constituição Federal de 1988 e as Leis Federais nº 8.080 (1990) e nº 8.142,
(1990) compõem a legislação brasileira sobre saúde, as quais organizam o SUS,
legitimando um conceito de saúde não mais centrado na doença, mas em um modelo de
atenção integral em saúde, incorporando ações de promoção, prevenção, proteção e
reabilitação e participação social.
Conforme relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde, “a saúde é
resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente,
trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos
serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização
social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida.”
(BRASIL, 1986: 4), o que significa dizer que o nível de saúde da população expressa a
organização social do território.
Esse conceito ampliado de saúde é fruto de intensa mobilização, ocorrida em
diversos países da América Latina, durante as décadas de 1970 e 1980, como resposta
aos regimes autoritários e à crise dos sistemas públicos de saúde. O amadurecimento
desse debate se deu em pleno processo de redemocratização do país, no âmbito do
movimento da reforma sanitária brasileira, e representou uma conquista social sem
precedentes ao transformar-se em texto constitucional em 1988. Articulado a esse
processo de luta pela saúde como direito e por um novo modelo assistencial,
trabalhadores em saúde mental, usuários e seus familiares engajados no movimento da
Luta Antimanicomial passaram a reivindicar a garantia dos direitos das pessoas com
sofrimento psíquico. Este movimento baseava-se nos princípios e nas diretrizes do SUS:
universalidade, integralidade, equidade, descentralização, regionalização e participação
social.
Esse processo legitimamente democrático de discussões e construção coletiva da
política pública de saúde mental efetiva para o país deu-se através dos vários encontros
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e Conferências de Saúde Mental, culminando na aprovação da primeira legislação
acerca da reforma psiquiátrica: Lei Estadual 9.716 de 1992, criada aqui no Rio Grande
do Sul. Somente nove anos mais tarde, após muita mobilização da sociedade, foi
aprovada a nível nacional a Lei 10.216 de 06 de abril de 2001, conhecida como a Lei da
Reforma Psiquiátrica (BRASIL, 2004a), a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental.
A lei 10.216 de 2001 e as portarias subsequentes do Ministério da Saúde, bem
como as resoluções estaduais, determinam a progressiva desinstitucionalização e
desospitalização das pessoas com sofrimento psíquico, devendo ser os antigos
manicômios substituídos por uma rede de serviços comunitários de saúde mental, tais
como leitos psiquiátricos em hospitais gerais, Centros de Atenção Psicossocial, serviços
residenciais terapêuticos, pensões protegidas, cooperativas de trabalho, oficinas de
geração de renda, centros de convivência, ações de saúde mental na atenção básica,
entre outros. Todos eles seguindo a lógica da descentralização e da territorialização do
atendimento em saúde, previstos na Lei Federal que institui o SUS.
As conquistas acima referidas têm estimulado, desde então, a constituição de
uma rede de atenção psicossocial de base comunitária, substitutivas ao modelo centrado
na internação hospitalar, como forma de garantir um cuidado em liberdade de forma
humanizada e que reinsere o usuário à sociedade, resgatando sua autonomia e sua
cidadania.
A rede de atenção à saúde mental deverá ser baseada nos pressupostos básicos
de inclusão social, territorialização, intersetorialidade, garantia do exercício pleno da
cidadania e reorientação do modelo assistencial em saúde mental, em consonância com
a legislação vigente. Deverá organizar-se por meio de uma rede de atendimento,
articulando os três níveis de atenção: rede básica, serviços especializados e rede
hospitalar, além de articulações intersetoriais, considerando os princípios e as diretrizes
do SUS, da Política Nacional de Humanização do SUS, da IV Conferência Nacional
Intersetorial de Saúde Mental (BRASIL, 2011), da III Conferência Estadual de Saúde
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Mental do RS, bem como a Lei Federal 10.216/01 e portarias ministeriais dela
decorrentes.
A rede de cuidados tem em sua centralidade o usuário, devendo ser promotora
de espaços de expressão da diferença, da promoção da autonomia e dos direitos de todos
os cidadãos brasileiros. Esta rede é gerida pela concepção de saúde, compreendida como
processo e não como ausência de doença, na perspectiva de produção de qualidade de
vida, cidadania e cuidado em liberdade.
Deste modo, gostaríamos de pontuar nossa implicação na construção da política
de saúde mental no estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo os avanços já
conquistados e os desafios que ainda se colocam para a implementação da rede de
atenção psicossocial. Neste sentido, consideramos importante pontuar nosso
posicionamento de que seja dado seguimento à transformação e à melhoria do modelo
assistencial, já iniciada no nosso estado, construindo uma rede de atenção à saúde que
promova,
sobretudo,
a
cidadania.
Contribuindo
para
os
processos
de
desinstitucionalização e o trabalho com as diferenças e a equidade exigida no cuidado
de pessoas em sofrimento psíquico. O modelo assistencial proposto pela Reforma
Psiquiátrica Antimanicomial não pretende acabar com o tratamento clínico dos
transtornos mentais, e sim eliminar a prática do internamento como forma de exclusão
social dos indivíduos, ainda tão presente em nossa sociedade, oferecendo outras
tecnologias de cuidado nos serviços substitutivos e comunitários.
Conforme aponta Lobosque (1997): a reforma psiquiátrica não se trata apenas de
uma “sociedade sem manicômios” entendida simplesmente como “sem hospitais
psiquiátricos”, pois ela poderia ainda assim permanecer fortemente manicomial. Faz-se
necessário garantir uma gestão pública na lógica da saúde coletiva, com equipe técnica
competente capaz de apostar nesse novo modelo de cuidado. Este processo de
transformação deve superar a lógica mercadológica que alimenta a indústria
farmacêutica e a indústria da doença para um modelo que valorize as potencialidades e
singularidades de cada caso, de cada região e de cada território. Neste sentido é
fundamental que o trabalho realizado na construção da Rede de Atenção Psicossocial –
RAPS, realizado no Estado de forma regionalizada, possa continuar fortalecendo a rede
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de cuidado como preconiza o Ministério da Saúde, através das Redes de Atenção à
Saúde – RAS (PORTARIA Nº 4.279/2010). A rede de atenção à saúde reafirma que o
processo de adoecimento está vinculado a inúmeros aspectos dos modos de vida, e, para
agirmos de forma eficiente, necessitamos de diversos serviços e dispositivos de cuidado
articulados em rede, por meio de pactuações entre os diferentes atores envolvidos.
Consideramos ainda importante que os trabalhadores da gestão estadual, assim
como os demais trabalhadores do SUS, sejam valorizados pelo seu trabalho e acúmulo
no processo de implementação da Rede de Atenção Psicossocial no estado, sendo atores
fundamentais para a continuidade e melhoria da atenção à saúde das pessoas em
sofrimento psíquico e na garantia da mudança do modelo de atenção. Reiteramos a
participação do controle social na construção da política estadual de saúde mental,
aprovada pelo Conselho Estadual de Saúde, sendo os mesmos atores fundamentais para
o diálogo e construção na nova gestão estadual.
Sem mais, ficamos à disposição para contribuir com a gestão estadual,
afirmando o compromisso social da nossa categoria com um SUS de qualidade e com o
cuidado em liberdade.
Atenciosamente,
Alessandra Xavier Miron
Conselheira-Presidente
Conselho Regional de Psicologia do RS
Cristiane Bens Pegoraro
Conselheira
Conselho Regional de Psicologia do RS
Maria da Graça Correa Jaques
Conselheira
Conselho Federal de Psicologia
Mariana Allgayer
Conselheira
Conselho Regional de Psicologia do RS
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Referências
______. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Legislação em saúde mental. 1990-2004. Série E.
Legislação de Saúde. 5. ed. ampliada. Brasília, 2004a.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da
Política de Humanização. Humaniza SUS: documento base para gestores e
trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília, 2008.
______. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a
organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS).
______. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Ações Programáticas Estratégicas. IV Conferência Nacional de Saúde Mental –
Intersetorial: relatório final - Brasília: Ministério da Saúde, 2011.
LANCETTI, Antônio. Loucura Metódica . In: SaúdeLoucura . São Paulo: Hucitec,
1990.
LOBOSQUE, Ana Marta, Princípios para uma clínica antimanicomial e outros escritos,
SP: Hucitec, 1997.
PELBART, Peter Pal. Manicômio mental — a outra face da clausura. In: LANCETTI,
A.(org.). SaúdeLoucura 2. São Paulo: Hucitec, p. 130-138, 1990.
BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, Secretaria Executiva. Subsecretaria de
Planejamento e Orçamento. Sistema de Planejamento do SUS: uma construção coletiva:
formulação de políticas específicas de saúde – Brasília: MS, 2009
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