ncia da famíl â t r o p m i i a a l a Qu 40 parte 1 corrigido ok.indd Sec1:40 Na medida, porém, em que me fui tornando íntimo do meu mundo, em que melhor o percebia e o entendia na “leitura” que dele ia fazendo, os meus temores iam diminuindo. Mas, é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato, sem que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de encantadoramente misterioso, que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra. A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro negro; gravetos, o meu giz. (Paulo Freire) 10/9/06 2:06:55 PM n a na formação de um leitor? P arece um passe de mágica o momento em que, de repente, as crianças começam a ler. As letras passeiam em suas vidas até finalmente serem apropriadas por elas e tomarem significado. Todo esse fascinante processo inicia-se pelo domínio da criança da escrita do próprio nome, daí parte-se para a decodificação de frases e, rapidamente, elas estão lendo tudo. O processo de aquisição da leitura parece algo bem simples descrito assim. E seria se parasse por aí. O segundo passo para a formação de um leitor de fato proficiente centra-se na fundamental questão: “ler o quê?”. A preocupação com a leitura vai além da alfabetização. Não é suficiente entender o sistema de escrita, é necessário também que a criança se aproprie dos diferentes usos e formas lingüísticas do idioma materno. Tornar a criança uma leitora proficiente é um processo que se faz gradativamente e acontece numa parceria entre família e escola. Desde muito pequena, mesmo quando a criança ainda não 41 formula hipóteses sobre a escrita, já podemos considerá-la uma leitora em formação. E isso se dá na convivência e na rotina do dia-a-dia, quando ela compartilha com pessoas queridas diferentes experiências, emoções e pensamentos despertados após o ato de leitura de um romance, um manual de instruções, um anúncio publicitário etc. Tudo pode ser contexto de leitura. A criança acorda e vê o pai lendo o jornal, chega à escola e a professora conta uma história de um livro, depois os alunos discutem uma notícia interessante que saiu numa revista. Então, eles registram uma coisa e outra, consultam um livro de culinária e vão estabelecendo contato com inúmeros portadores de texto. No fim do dia, a criança vê a mãe apanhar o último livro de Fernando Bonassi e deitar-se para fazer sua derradeira leitura antes de chegar o sono. Dessa forma, certamente, essa criança vai entender (se já não entendeu) que a leitura é um ato humano essencial e que pode ter vários objetivos: informar, divertir, emocionar, relembrar... O contato com o universo letrado começa quando a criança nasce e está associado a tudo o que ela vive desde então, afinal o ato de decodificar o significado das palavras é o ato de ler o mundo. parte 1 corrigido ok.indd Sec1:41 10/9/06 2:06:56 PM “Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequeno os livros me deram casa e comida. Foi assim: eu brincava de construtor, livro era tijolo; em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia telhado. E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro para brincar de morar em livro. De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar para paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras. Achava-me empoleirado no balcão, abrindo caixas e pacotes, examinando as miudezas da prateleira. Meu pai, 42 de bom humor, apontava-me objetos singulares e explicava o préstimo deles. Demorei a atenção nuns cadernos de capa enfeitada por três faixas verticais, borrões, nódoas cobertas de riscos semelhantes aos dos jornais e dos livros. Tive a idéia infeliz de abrir um desses folhetos, percorri as páginas amarelas, de papel ordinário. Meu pai tentou avivar-me a curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Afirmou que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ouvi os louvores, incrédulo. Aí meu pai me perguntou se eu não desejava parte 1 corrigido ok.indd Sec1:42 10/9/06 2:06:56 PM inteirar-me daquelas maravilhas, tornar-me um sujeito sabido como padre João Inácio e o advogado Bento Américo. Respondi que não. Padre João Inácio me fazia medo e o advogado Bento Américo, notável na opinião do júri, residia longe da vila e não me interessava. Meu pai insistiu em considerar esses dois homens como padrões e relacionou-os com as cartilhas da prateleira. Largou pela segunda vez a interrogação pérfida. Não me sentia propenso a adivinhar os sinais pretos do papel amarelo? 43 Foi assim que se exprimiu o Tentador, humanizado, naquela manhã funesta. A consulta me surpreendeu. Em geral não perguntava se qualquer coisa era do meu agrado: havia obrigações, e tinha de submeter-me. A liberdade que me ofereciam de repente, o direito de optar, insinuou-me a vaga desconfiança. Que estaria para acontecer? Mas a pergunta risonha levou-me a adotar procedimento oposto à minha tendência. Receei mostrar-me descortês e obtuso, recair na sujeição habitual. Deixeime persuadir, sem nenhum entusiasmo, esperando que os garranchos do papel me dessem as qualidades necessárias para livrar-me de pequenos deveres e pequenos castigos. Decidi-me. (Graciliano Ramos) parte 1 corrigido ok.indd Sec1:43 Analu G. Del Picchia Suringar Bruna P. de Assunção Cardoso, Ilze Capucci e Paula G. Von Glehn Strano são professoras do Infantil 5. 10/9/06 2:06:56 PM