DEMOCRATIZAÇÃO E POLÍTICA SOCIAL
NOTAS SOBRE A CONJUNTURA BRASILEIRA ATUAL
O Brasil representa, hoje mais do que nunca, um desafio à análise que busca
integrar as dimensões político-institucionais, econômicas e sociais no quadro
internacional determinado pelas decorrências do "ajuste econômico", inspirado no
"Consenso de Washington" (Williamson, Bresser Pereira) e das pressões internas
por democratização política.
A dificuldade de análise surge pela complexidade inaudita da realidade brasileira.
A plena consolidação democrática convive com uma crise macro-econômica profunda,
que abala inclusive as bases de um padrão de desenvolvimento que possibilitou ao
país um crescimento econômico vigoroso no passado. Acostumado a uma trajetória
de crescimento de sua economia, no curso deste século, com resultados excepcionais,
o país é confrontado com insondáveis dificuldades de assimilação desta quebra do
seu padrão histórico de acumulação.
Uma leitura desta crise pode ser feita a partir das dificuldades de um país com
dimensões continentais e com a base industrial de que dispõe o Brasil para, em um
contexto internacional de reorganização econômica e novas configurações políticas,
retomar sua trajetória de crescimento ; este agora incorporando as dimensões sociais.
O objetivo central deste trabalho é analisar as relações complexas entre o
processo de democratização política, consolidado a partir dos anos 1980, e a
implementação de políticas sociais no Brasil, neste contexto de reajuste estrutural
necessário ao desenvolvimento.
O POLÍTICO E O SOCIAL
A década de 1980 trouxe a consolidação de um longo processo de transição
política, iniciado em verdade em 1974, como projeto institucional do governo Geisel.
A "distensão", sob a inspiração de corrente norteamericana expressa
fundamentalmente na obra do politólogo Samuel Huntington, tornou-se o vetor de
uma política de transformação do caráter autoritário do regime militar. Sob o comando
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operacional do General Golbery do Couto e Silva, autor de obras relevantes no
campo da geopolítica, foi posto em marcha um programa de abertura política lenta e
gradual (Couto E Silva 1955, 1957 et 1981). Este programa buscava aproximar as
elites políticas já estabelecidas nos marcos do sistema representativo existente, para
um processo de co-responsabilização com os rumos do que seria uma "democracia
brasileira". Tratava-se, entre outras metas, de voltar a enquadrar certas instituições
responsáveis pela articulação e agregação de interesses nos limites do sistema
representativo global. Era o caso específico, por exemplo, de partidos políticos e
sindicatos, que, durante os anos 1964-1974, tinham sido extintos, redefinidos e/ou
postos sob estrita vigilância das corporações de segurança nacional. A natureza
mesma da sociedade civil, baseada na livre negociação dos interesses, tinha sido
substituida por um conceito estatista calcado na definição de segurança nacional
brasileira.
Tratava-se, em verdade, de restabelecer certo equilíbrio sistêmico ; sem o qual é
impossível o funcionamento de uma sociedade de classes através dos mecanismos
concomitantes de mercado econômico e representação política diferenciada.
Sindicatos teriam de voltar a representar os interesses dos trabalhadores, enquanto
participantes do mercado econômico ; partidos políticos teriam de possuir liberdade
mínima para articular e representar a vontade política da população.
Desde o início (1974), esta abertura política esteve centrada na possibilidade de
um pacto efetivo entre as elites. Setores sociais emergentes e forças políticas radicais
(esquerda tradicional, esquerda guerrilheira, novos movimentos sociais e novo
sindicalismo) não deveriam ser elevadas à condição de atores reconhecidos. O êxito
do "modelo Golbery" pressupunha um controle estrito dos atores políticos habilitados
formalmente pelo Estado. Todavia, como é usual ocorrer na história, os meandros da
vida foram muito mais sinuosos e surpreendentes do que deixava antever a arquitetura
simplificadora dos construtores das catedrais do autoritarismo.
Ao longo do período mais agudo do regime militar (1968-1973), a economia
havia apresentado ritmo vertiginoso de crescimento. Os anos do chamado "milagre
econômico brasileiro", implicaram a emergência de novos estratos sociais, com
ampliação notável do número de trabalhadores nos setores modernos da economia
urbana e rural, bem como a expansão dos setores modernos de serviços e do
contingente estudantil, marcadamente universitário. Estavam dadas as condições
para o surgimento da massiva diferenciação política e social. Surgem novas estruturas
sociais, configuram-se novos atores que vão agregar interesses específicos que não
encontram lugar no sistema representativo desenhado pela elite militar. É a conjuntura
histórica que marca o surgimento avassalador de intensos movimentos sociais
reivindicatórios, à margem do sistema político convencional. Não reconhecidos pela
ditadura, nem pelo bipartidarismo existente desde 1965 (Ato Institucional n° 2), os
movimentos sociais englobam os mais variados interesses, do lumpesinato urbano
aos setores de classe média que lutavam por subsídios habitacionais frente ao Banco
nacional de habitação, como exemplos contundentes de pressões legítimas
socialmente, mas ilegítimas políticamente (Nascimento & Barreira,1993).
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Paralelamente, o mesmo processo ocorreu com o movimento sindical. Oprimido
pela estrutura corporativista da ordem política herdada de 1930, centrada na
verticalização (sindicato único, federações, confederações) e no financiamento de
suas atividades baseado na contribuição sindical compulsória controlada pelo
Ministério do trabalho, os sindicatos buscam romper os limites através da massiva
negociação salarial por categorias. Antes centrada na capacidade de arbitragem e
decisão do aparelho da Justiça do trabalho, estas negociações extrapolam a ordem
estatal através do surgimento do "Novo sindicalismo", como principal corrente que
redefine historicamente o contexto trabalhista brasileiro. Criam-se as centrais sindicais,
forja-se o nascimento do Partido dos trabalhadores (PT).
O corte histórico, iniciado com a "abertura de 1974" ilustra a existência de
novas realidades. Não se trata da "reinvenção do social" a partir de movimentos
como o "Novo sindicalismo", pois as preocupações com as externalidades negativas
do crescimento econômico na sociedade estão presentes desde a revolução de 1930.
O que ocorre, a partir de 1964, é a subsunção do social sob a ordem política controlada
pela ditadura militar. Na verdade, desde seu início, a nova ordem autoritária teve
óbvias preocupações com o estado social da nação. Mesmo antes da famosa frase
do Presidente Médici, que em pleno auge do milagre econômico constatou
políticamente a anomalia ("O país vai bem, o povo vai mal", 1970), a própria criação
do Banco nacional de habitação e outros programas governamentais estiveram
centrados na mesma duplicidade, na qual o lugar das políticas sociais no Brasil é
historicamente confundido com o lugar de políticas estritamente econômicas (Schmidt
1983).
A substância desta orientação ao social talvez possa ser melhor entendida pelo
estudo da tradição positivista, coração do código ideológico das elites políticas,
militares e administrativas que empolgaram o poder desde a modernização do país
iniciada em 1930. No edifício positivista comtiano o Estado moderno é o pináculo de
uma ordem baseada no domínio do pensamento científico, e que tem a "proteção
social" como imperativo categórico. Não se trata, como no modelo marxista, de um
processo que dependa diretamente da luta de classes no âmbito da sociedade civil.
Trata-se de um item programático da atividade do Estado, ontologicamente definido
como "O grande protetor". No âmbito do próprio movimento revolucionário de 1930,
especialmente na conjuntura de 1937-1945, esta versão foi exacerbada a ponto de
tomar características fascistas e corporativas (Trindade, 1988).
Ou seja, as políticas governamentais de natureza econômica, no âmbito do
regime autoritário, sempre contemplaram as dimensões sociais, implicita ou
explicitamente. As dificuldades políticas do regime iniciaram-se com a demanda de
representação política autônoma por parte dos atores sociais emergentes. Foi o nó
górdio do regime, daí a abertura iniciada controladamente em l974. Fatos e processos
posteriores de mobilização levaram à superação dos limites da ordem e do projeto
Golbery.
A agonia do regime autoritário foi acelerada por fatores externos (a segunda
crise do petróleo, o choque dos juros internacionais e o virtual desaparecimento do
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crédito externo com a crise da dívida mexicana), que levaram à implosão do modelo
econômico. Fatores econômicos combinaram-se com os fatores políticos de expansão
da participação. Movimentos sociais, partidos políticos e novos setores trabalhistas
ajudam a construir o fim da etapa autoritária.
O dilema brasileiro está centrado na dramática coincidência da ascensão política
de forças abertas à incorporação do social no modelo de desenvolvimento, com a
crise econômica que obstaculiza em grau extraordinário a execução de programas
visando a satisfação da cidadania social.
A OPACIDADE DA COMPARAÇÃO
Dadas as circunstâncias que envolvem o Brasil e seu processo de redefinição
atual, é preciso uma qualificação da problemática específica. Esta qualificação tem
por objetivo discriminar as potencialidades encerradas no caso brasileiro vis-à-vis
outros países com os quais é frequentemente comparado. A operação de
comparabilidade deve levar em conta peculiaridades intransferíveis, caso contrário
as projeções do possível histórico vão configurar distorções analíticas
comprometedoras da própria comparação.
A ciência política comparada dominante entre os anos 1960 e 1980, fortemente
marcada pela hegemonia norteamericana (Almond, Verba, Apter, Huntington)
ressaltou sobremaneira o "procedimento político-representativo e institucional" como
critério de corte distintivo entre diferentes sociedades nacionais. Estudos de caso,
geralmente inspirados em etnografias políticas de países asiáticos, africanos e
latinoamericanos inspiraram a formulação de teorias de "desenvolvimento político".
A referência culminante e normativa era sempre dada pelos cânones democráticorepresentativos dos países de padrão civilizatório ocidental plenamente
desenvolvidos.
Sejam os estudos de Duverger sobre sistemas partidários, sejam as projeções
funcionalistas de progresso material baseado no mercado econômico competitivo e
na diferenciação das estruturas institucionais de autores como Almond e Huntington,
todos sublinhavam as "pré-condições do desenvolvimento político". O Ocidente
desenvolvido apresentava inúmeras diferenças : maior ou menor participação do
Estado no sistema de regulação econômica, sistema partidário multi ou bipolarizado,
sistema eleitoral baseado no voto proporcional ou distrital, sistema de governo
parlamentarista ou presidencialista, forma republicana ou monárquica, etc.
Naturalmente, as combinações sempre variaram, e inúmeras expressões mais
complexas dessas dimensões eram apresentadas como viáveis e recomendáveis
caminhos de progresso aos subdesenvolvidos do terceiro e quarto mundos : do
sistema eleitoral misto alemão, ao sistema presidencial mitigado francês, ou mesmo a
fórmula de governo partilhado do Conselho da República na Suiça.
Autores como Schmitter, Liphjard e Whitehead nos Estados Unidos e na Europa,
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O’Donnel e Lamounier na América Latina, refinaram sobremodo os quadros de
referência iniciais dos founding fathers da moderna política comparada. Aplicaram,
sobre extensivos estudos de caso, os crivos dos acontecimentos históricos mais
marcantes entre 1970 e 1980 : envolvimento político-militar dos Estados unidos em
várias partes do mundo, avanços e recuos da socialdemocracia européia, luta pelos
direitos civis nos USA, golpes militares na Ásia e América Latina e decorrentes
manifestações dos "milagres econômicos" sob regimes políticos extremamente
repressivos, o início do fim do bloco do socialismo real, e assim por diante.
Em relação aos estudos iniciais da moderna topologia política, teoricamente
inspirados na dependência necessária entre crescentes níveis de diferenciação
estrutural (economia e sociedade) e correlatos níveis de desenvolvimento político,
muito pode ser dito, muitos reparos podem ser feitos.
Não é preciso destacar o óbvio etnocentrismo que orientou a démarche
interpretativa dos estudos de caso no campo da política comparada. Talvez mais
importante é o destaque que pode ser dado ao simplismo assumido pela separação
da dimensão político-institucional. A dimensão propriamente política — do corpo
institucional do Estado aos ingredientes do sistema representativo — foi
constantemente exacerbada. O preço foi, e tem sido, um isolamento artificial das
variáveis de natureza política, desta forma obstaculizando interpretações com maior
capacidade explicativa para fenômenos que em si mesmo são complexos e
absolutamente interdependentes.
O lugar próprio da história nacional dos chamados "paises atrasados", seu
desenvolvimento institucional típico, suas formas estatais, suas peculiaridades
econômicas e culturais, foram frequentemente desleixados, desprezados como foco
de análises. Feita tábula rasa de fenômenos intransponíveis e irredutíveis, estava
aberto o caminho para o conformismo metodológico. A homogeneização da história
contemporânea, ao redor dos padrões vigentes que orientam a formulação de políticas
econômicas e sociais internacionais — a partir dos centros comandados pelos países
centrais, notadamente Banco mundial, OCDE, Fundo monetário internacional —
submete a análise de políticas a crivos que, deshistoricizados, apagam percursos
próprios nacionais. Isto ocorre com fenômenos como a "construção do Estado
democrático", a "construção do Estado de bem-estar social", etc.
Em uma escala micro-orientada, fenômenos de mobilidade social (horizontal e
vertical) têm sido constantemente descontextualizados da própria história das
formações capitalistas particulares, sendo avaliados segundo um "padrão de países
do capitalismo avançado". Perdem-se informações vitais para o entendimento do
desenrolar da história contemporânea dos países não-centrais.
Isto ocorre tanto ao nível político-institucional quanto ao nível de fenômenos
societais básicos. Eles se traduzem nos debates sobre "a melhor Constituição
política", como por exemplo o papel diferenciado dos poderes republicanos (judiciário,
executivo, legislativo) no campo institucional. Também se traduzem na análise do
"trabalho doméstico" e na análise da "política social", de modo particular e exemplar.
Na escalada das "análises sociais" deste contexto de fragilidade da ordem
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Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT
pública, onde está em jogo a possibilidade histórica da cidadania, o mesmo ocorre
com a incorreta interpretação de fenômenos societais de longa duração, como o são
aqueles referentes à mobilidade social, por exemplo. O "trabalho doméstico" e o
"campesinato" — como formas expressivas de um modo de produção capitalista
ainda em formação — têm sido lugares privilegiados de equívocos analíticos. Isto
porque, pela ânsia de uma aproximação homogeneizadora, sustentáculo do
comparativismo econômico e político, dimensões histórico-sociológicas cruciais são
esquecidas propositadamente.
O trabalho doméstico, do ponto de vista dos próprios atores, pode ser encarado
como ascensão social no coração de uma sociedade onde em grande parte se
manifesta a carência absoluta de meios de reprodução humana. Portanto, de um
ponto de observação endógeno, ele pode ser visto como instrumental em uma escala
de participação ascendente nos meios de reprodução, no acesso a bens e serviços
ausentes nos espaços originários dos próprios atores.
A convivência da economia campesina, no complexo do agro-business em
formação, pode ser entendida com os mesmos critérios históricos-sociais tão caros à
interpretação de uma sociologia radical, uma sociologia que não aceita a esterilização
das formas, mas se fundamenta na realidade processual dos fatos históricos. A
efetiva convivência funcional entre a economia campesina e as formas contratuais
capitalistas, no mundo agrário latinoamericano, necessita ser encarada como uma
peculiaridade desta formação, não necessariamente uma excrescência, uma negação
das formas abstratas.
Desta forma, os processos reais históricos de formação social e política são
relativizados, impõem-se modelos de análise que não levam em conta particularidades
na perspectiva do tempo histórico e social. O Brasil, de modo particular, tem sido
uma vítima contumaz destas projecções.
Estaria um "novo etnocentrismo" em marcha forçada para a homegoneização
final da história ? Seria isto mais um ângulo do conformismo que se abate sobre os
"tempos pós-socialistas" ?
Três abordagens disciplinares vêm colaborando, no entanto, para a superação
dessas limitações, em nossos dias. Uma vem do campo da antropologia, que através
dos estudos etnográficos e comparativos traz de volta o respeito pela diferença
cultural de povos e nações. Outra vem da sociologia da modernidade, com seus
estudos sobre o desencaixe tempo-espaço, e a relativização dos critérios de
racionalidade. Outra vem da Escola regulacionista, com seu apego a variáveis já
presentes na teoria clássica da economia política, mas que foram eventualmente
esquecidas pelas tendências do neo-classicismo.
Antropologia, sociologia e economia — após a superação do extremo
funcionalismo departamentalizador — conseguem inspirar um quadro de referência
mais rico e potencialmente mais apto à explicação de fenômenos como o que tratamos
aqui. Exemplares, neste sentido, são as obras recentes de Touraine (1992), Rawls
(1993), bem como as revisões analíticas da formação brasileira contemporânea de
Alfredo Bosi (1992) e de Wanderley G. dos Santos (1993).
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No caso brasileiro são autores centrais para a reflexão sobre a indecisão política,
como nota crucial para o entendimento de impasses pervasivos à toda estrutura
social e institucional (Schmidt, Nascimento, Pécaut 1993).
As relações entre "democratização e política social" não podem ser tratadas
sem levar em conta os avanços acima enunciados, nem as peculiaridades históricas
imanentes ao caso estudado (Brasil, hoje). Qualquer consideração que extrapole os
limites das condições historicamente dadas, em cada uma das suas dimensões, não
seria uma análise adequada, mas simplesmente um exercício formalista a mais.
AS AMBIGUIDADES DO CASO BRASILEIRO
No caso brasileiro, especialmente a partir dos anos 1960, a modernização
econômica não tem apresentado sincronia positiva em relação à modernização política.
O crescimento econômico se dá em um contexto de fechamento político. A abertura
política se dá num quadro econômico de muitos estrangulamentos. Ao longo desta
relação problemática, outras realidades sociais se impuseram, trazendo consigo
enormes pressões não-atendidas. De outro lado, a incorporação do social surge
como imperiosa necessidade econômica (mercado ampliado, eficiência global) e
política (extensão da cidadania social).
O cimento das novas relações emergentes por sua vez também oscila
globalmente entre diferentes tônicas político-ideológicas. O lugar do conceito de
república não está bem definido na prática política brasileira ; incluindo-se nele o
caráter secular do regime representativo. A incorporação política de novos atores,
principalmente via partidos políticos, não chegou ainda ao ponto de redefinir a
substância de uma ordem social balizada pela existência de um Estado democrático
republicano. Persistem formas de clientelismo e de corporativismo extremado no
interior do aparelho estatal. Clientelismo e corporativismo são componentes históricos
do sistema e da cultura política brasileiros que têm resistido persistentemente aos
avanços formais da democratização nacional.
É também digna de registro a influência doutrinária do pensamento social
católico, por exemplo. Além das dimensões mais generalizantes e abstratas das
orientações emanadas das encíclicas papais, notadamente a Rerum novarum (1891)
e a Quadrogesimo Anno (1931), é crucial destacar nestes documentos a representação
do social que eles projetam. A economia política católica comportaria uma organização
social centrada na existência de uma familia forte integrada em corporações
distribuidas pelas distintas classes sociais, reforçada pelo Estado em termos do
"princípio de subsidiaridade".
Sendo a Igreja católica um ator político importante no cenário brasileiro, cabe
uma curta reflexão sobre as implicações deste fato. No campo das políticas sociais a
presença do pensamento católico é de fundamental importância. Ou seja, nas relações
intercaladas entre Estado e mercado, no campo social propriamente dito, a posição
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Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT
do pensamento e da prática originadas da doutrina católica assume particular
centralidade.
Historicamente, desde o periodo colonial, a Igreja católica tem exercido
importância crucial no campo ideológico e no desenho e governo das próprias
instituições nacionais brasileiras. Sua influência no espectro ideológico e político
não é nada desprezível, ainda hoje em dia. A coalescência das relações entre Igreja e
Partido dos trabalhadores, por exemplo, é um dado marcante a sublinhar as notas
constitutivas do campo político brasileiro da atualidade.
Uma outra ambiguidade está no fato de que o Brasil, ao contrário da América
Latina como um todo, vai tentando entrar em patamares modernizadores das relações
políticas e sociais pelo fortalecimento de tendências à esquerda do espectro político
geral. Tanto a derrubada do ex-Presidente Collor de Melo, como a solidificação da
candidatura de "Lula" à presidência da república, bem como os atuais episódios
deflagradores do inquérito geral sobre a corrupção parlamentar na confecção do
orçamento nacional (Comissão parlamentar mista de inquérito sobre o orçamento),
tem corroborado as posições da esquerda políticamente organizada, principalmente
ao redor do Partido dos trabalhadores. Movimentos correlatos, e de caráter extrapartidário, como o "Movimento pela ética na política", têm reforçado as tendências
democratizantes, hoje com forte atuação na política brasileira.
Todos estes movimentos e mobilizações têm encontrado na Igreja católica um
respaldo e um depositário de energias e recursos mobilizatórios intransferíveis. A
Igreja, no atual quadro histórico, é um ator político de primeira grandeza. De particular
importância são suas relações com o Partido dos trabalhadores. A iminência de uma
participação eleitoral, com amplas possibilidades de vitória, tornam as relações entre
a Igreja católica e o Partido dos trabalhadores um fulcro de importância para a
análise do futuro possível, especialmente no que diz respeito ao papel do Estado
nas políticas sociais.
Diante desta possibilidade, qual o papel a ser exercido pela Igreja católica no
contexto de avanço democrático com tentativa de reforma e secularização plena do
Estado republicano ?
Seguindo a matriz fundadora, discriminada pelos documentos originais criadores
da doutrina social católica, restam questões cruciais a serem respondidas. Na
formulação de políticas sociais, onde a educação é fundamental para países como o
Brasil, bem como em outras dimensões das políticas de compensação social, para a
Igreja as concepções estatais e republicanas (laicas) apresentam inúmeras dificuldades
conceituais e políticas. Resta saber, em campos específicos (saúde : controle da
natalidade, aborto livre ; educação : pública ou privada, laica ou religiosa ), como
seria o resultado de uma possível hegemonia controlada pelo Partido dos
trabalhadores, com profundas influências da matriz católica que lhe serve de suporte.
Uma outra ambiguidade está localizada na Constituição brasileira, promulgada
em outubro de 1988 e com processo de revisão aberto em outubro de 1993, por falta
de referências mais realistas sobre o precário sistema estatal brasileiro. Foram
promulgados direitos e deveres sem as necessárias contrapartidas baseadas em
L'ÉTAT ET LE MARCHÉ AU BRÉSIL
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recursos efetivos para a implantação real. A legislação complementar, que deveria
ser elaborada a partir de 1989, evoluiu muito pouco até o momento. Assim, institutos
jurídicos fundamentais ligados a um conceito formal e avançado de cidadania estão
pairando no vácuo da falta de legislação. Este é o caso exemplar do mandado de
injunção que, por alegada falta de meios (orçamento e pessoal) concedidos ao poder
judiciário, não tem sido implementado de acordo com a lei definitória, inscrita na
Constituição de 1988, em função da defesa efetiva do cidadão desprovido frente à
possibilidade de implementação de políticas públicas. Ou seja, por falta de
considerações conectadas à história real dos processos de representação e de
processamento de demandas — no âmbito do sistema político brasileiro — a
Constituição democrática de 1988 paira no ar como um arco de possibilidades não
preenchidas.
No caso de análises sobre "déficits sociais" (falta de educação básica,
precariedade da presença estatal no ensino superior, baixa cobertura em saúde e
assistência pública, desorganização do sistema previdenciário, falta de transporte
coletivo, etc.) o mesmo viés parcial tem afetado os resultados. Propõem-se metas
globais públicas a serem atingidas, sem a pertinente previsão dos meios institucionais
e dos recursos econômicos para tais implementações.
Outra ambiguidade está materializada no próprio funcionamento dual da
sociedade econômica brasileira. Crescimento baseado numa minoria de consumidores
e produtores formais (cerca de 30 % da população), a formação social brasileira tem
gerado uma massa enorme de desviantes. Estes não têm encontrado formas de
integração societária, e assim têm alimentado a proliferação de massas marginais
fora dos controles estatais. O comportamento característico de uma sociabilidade
marginal é hoje traço típico e majoritário, especialmente nas camadas urbanas das
maiores cidades brasileiras. Essas forças componentes das novas ondas massivas
de marginalização sócio-econômica não têm expressão política própria no sistema
representativo. Seu papel como lumpesinato político ainda é uma incógnita. O avanço
político das forças progressistas deverá se confrontar com o fenômeno, esperandose que a repressão e o controle não sejam as únicas alternativas disponíveis. De
qualquer modo, este se configura como o maior desafio político no futuro imediato.
DESAFIOS DA MODERNIDADE
Além das dificuldades estruturais, fica evidente que as possibilidades políticas
também encerram enormes obstáculos para o pleno esclarecimento dos caminhos
futuros que poderão ser tomados pelo Brasil.
A crise brasileira impõe desafios contundentes :
— consolidação do processo democrático ;
— construção da cidadania social ;
— redefinição do modelo econômico e inserção internacional ;
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Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT
— definição do estilo de modernidade.
Sem o enfrentamento destas dimensões mutuamente dependentes, será
impossível ao país romper os impasses que o tem paralisado, especialmente a partir
dos anos 1980.
O processo político, ainda em fase de consolidação, tem que enfrentar questões
elementares em uma ordem democrática. No caso brasileiro, o mais evidente são
matérias relativas à representação das populações estaduais no parlamento, com o
fenômeno da subrepresentação política das áreas mais densas do país ; a legislação
eleitoral que permite "siglas partidárias de aluguel" ; o sistema de prebendas
adjudicado à representação parlamentar e a manipulação de fundos para as campanhas
políticas. O encaminhamento destas questões específicas, todavia, depende do
enfrentamento da problemática social como um todo.
Por sua vez, a construção da cidadania social tem a ver com o gerenciamento
dos conflitos criados pelo extremo dualismo da sociedade brasileira. A marginalidade
massiva nas grandes cidades, por exemplo, requer um tratamento inadiável. O mesmo
ocorre no setor rural, onde 25 % dos trabalhadores canavieiros da zona da mata de
Pernambuco é composta por crianças de 7-17 anos, num universo de 200 000 pessoas
(Centro Josué De Castro, 1993), por exemplo. É o Germinal brasileiro... Esta situação
é disfuncional para a existência de uma sociedade de mercado democrática.
Por sua vez, os aspectos econômicos da grave crise brasileira são a síntese dos
paradoxos das ambiguidades que caracterizam o quadro atual. Elementos como a
quebra do padrão histórico de acumulação, as dificuldades estruturais de realizar um
ajustamento no padrões do Consenso de Washington, a perda de capacidade de
financiamento do Estado e sua virtual falância decorrente, a indecisão das elites
diante de alternativas, estão claros. No entanto, eles se realizam num contexto que
frequentemente confundem o analista. Daí a dificuldade de objetivar-se um
conhecimento eficaz sobre uma sociedade de dimensões como o Brasil. Nesta linha,
técnicos do Banco mundial, em seminário realizado em novembro de 1993, concluiram
que "não compreendem o fenômeno brasileiro" (Gazeta Mercantil, 1993). Os técnicos
"suspenderam trabalhos e a definição de posições e decidiram instaurar uma ampla
discussão sobre o Brasil, perplexos com a resistência da inflação e a capacidade dos
brasileiros de se adaptar a ela". Efetivamente, não é fácil entender um país que, com
uma taxa de inflação superior a
2 000 % ao ano, apresenta o segundo maior
crescimento na América Latina, superando os aderentes preferenciais ao modelo
internacional. O Brasil produzirá este ano pelos menos US$ 21 bilhões a mais do que
produziu no ano passado, ou "quase um Chile" ! Nesta economia coexistem,
comprovadamente, formas modernas e trabalho escravo, no entanto. A mesma
ambivalência se apresenta na questão da inserção do país na economia internacional
: enorme capacidade de desenvolvimento de um projeto nacional autônomo, asfixiado
pela indecisão das elites em assumir e executar este projeto.
Todos estes fatores encaminham à questão da definição do estilo de
modernidade a ser encaminhado pelas elites políticas e econômicas. Trata-se de
contornar o dualismo constitutivo da formação social, buscando a integração às
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conquistas modernas do mundo contemporâneo. Esta decisão está distante das
pautas de decisão brasileira, configurando assim um enorme paradoxo. Integração
social, desenvolvimento econômico, democratização política — no caso brasileiro
— não podem estar calcados simplesmente em modelos históricos realizados no
primeiro mundo. É o grande desafio, acima das crenças no automatismo do
funcionamento das estruturas sócio-econômicas!
Paris, janvier 1994
Maurício DIAS DAVID
Université Paris XIII, GREITD, CRBC/EHESS
Benício VIEIRO SCHMIDT
IEDES/GREITD, Paris et Universidade de Brasilia - UNB
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Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT
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