www.rhmjournal.org.uk A 2010 Reproductive Health Matters. All rights reserved. Reproductive Health Matters 2010;18(35):111–114 0968-8080/10 $ – see front matter PII: S0 968 - 808 0(10)35494-2 QUESTÕES DE ´ SAUDE reprodutiva A vagina perfeita Apresentado por Lisa Rogers, Channel 4 TV, Reino Unido, 17 de agosto de 2008 Tracey M Plowman* * Mestranda em Psicologia Social, Universidade de Surrey, Guildford, Reino Unido. E-mail: tracey. [email protected] A Vagina Perfeita é um documentário filmado no Reino Unido, que foi transmitido em 17 de agosto de 2008 por um dos principais canais comerciais da Inglaterra, o Channel 4. O documentário é sobre a cirurgia estética dos genitais femininos (CEGF), descrita por Virginia Braun como uma cirurgia genital que, como o próprio nome diz, é feita com fins estéticos e não como um procedimento reconstrutivo, para mudança de sexo ou para atender a necessidades clínicas.¹ Este documentário foi parte de uma série de programas sobre questões das mulheres, que incluiu os temas das mães que compartilham o leite materno e da legalização dos bordéis na Inglaterra. O Channel 4 convidou a apresentadora Lisa Rogers, que decidiu aceitar a proposta após uma conversa com seu médico, que lhe convenceu de que a insatisfação com a vulva é comum.² A apresentadora conduz o espectador por uma série de entrevistas, com o objetivo de desencorajar as espectadoras mulheres a acreditar que a CEGF é necessária. Ela acompanha a experiência de uma mulher que decidiu reduzir os grandes lábios e entrevista cirurgiões, mulheres que pensam em fazer a cirurgia, uma depiladora, um ginecologista, a sua própria mãe, seu marido e alguns amigos homens, e trabalhadores que estavam decorando sua casa - em suma, uma grande variedade de pessoas com uma 58 gama variada de visões sobre os genitais femininos e a CEGF. Os cirurgiões plásticos apresentaram a CEGF como uma questão de escolha, oferecendo liberdade às mulheres para mudar seus corpos do modo como desejarem e, assim, aumentar a sua autoconfiança, tornando-as mais felizes: “Ninguém pode forçar ninguém a fazer cirurgia. A maneira com que tratamos as pacientes, se as afeta psicologicamente e nós os ajudamos, por que não? Se há um excesso de pele e você quer reduzi-lo, você reduz.” (Dr Magdy Hend) A CEGF não foi tratada por esses cirurgiões como um caso especial, pelo contrário, foi equiparada a qualquer outra forma de cirurgia cosmética. As mulheres que pensam em fazer ou que se submeteram à CEGF têm um ponto de vista muito similar. Elas minimizam a gravidade e os riscos de se submeter a uma cirurgia, colocando o foco sobre os seus sentimentos negativos a respeito da aparência de sua vulva. A perspectiva das mulheres se diferencia ligeiramente da dos cirurgiões pela ênfase que elas colocam nos aspectos físicos do “problema”. Os cirurgiões falam mais sobre escolha e imagem corporal, enquanto as mulheres se referem à aparência física da vulva e aos sentimentos daí resultantes: “Veja, eu acho que não é atraente. Eu não gosto, basicamente, destes fragmentos. Eu olho para eles TM Plowman / Questões de Saúde Reprodutiva 2011;5:1;58-61 e penso, eca, parecem uma couve-flor, e eu não quero ter uma couve-flor, eu quero ter algo mais bonito.” (Reagan) Algumas mulheres comentam sobre a popularidade crescente da depilação dos pelos pubianos e conectam isto à CEGF. Um dos pontos de vista apresentados é o de que a depilação dos pelos pubianos deixa a vulva mais aparente e, por isso, as mulheres consideram a possibilidade de realizar a cirurgia para melhorar a aparência das vulva agora mais visível. De acordo com a depiladora, a tendência de remover todo ou a maior parte dos pelos pubianos através da depilação foi popularizada nos anos 1990 por algumas séries de televisão que tinham as mulheres como público-alvo. A uroginecologista entrevistado traçou o seguinte paralelo entre a CEGF e outros rituais de embelezamento: “A tendência em direção à depilação dos pelos pubianos vem crescendo enormemente, as pessoas vem fazendo coisas com os seus pelos pubianos assim como estão fazendo com os cabelos e, assim, se você pode fazer uma cirurgia cosmética no rosto, também pode fazer nos genitais.” (Professora Linda Cardozo), Lisa Rogers, sua mãe e os amigos de sua mãe argumentam que a moda de remover os pelos pubianos aumentam a visibilidade dos genitais e, com isto, fazem da vulva um problema. A visibilidade da vulva produz mais insegurança nas mulheres ao expor o corpo para os parceiros, mas essa insegurança também se constitui pela falta de acesso a imagens que mostram o quão diversa pode ser a aparência natural da vulva. Segundo a professora Cardozo, as mulheres sabem o que é popular mas desconhecem o que é normal. Lisa Rogers choca-se com a homogeneidade da aparência das vulvas nas revistas pornográficas, ou seja, quase invisíveis. E uma das mulheres que falou sobre o seu desejo de fazer a cirurgia, assiste filmes pornográficos com o marido e, por isso, acha que sua vulva não é atraente. “Só o que eu penso no momento é ‘por que estamos assistindo isto?’. É por que ele quer essa imagem de perfeição e seria melhor, eu seria mais sexy se eu tirasse um pouco disso aqui e colocasse mais um pouco disso ali?” (Kelly) É comum que a jovialidade e a beleza sejam associadas à cirurgia estética e, de acordo com este documentário, isto não é diferente com a CEGF. A professora Cardozo sugere que a vulva “ideal” procurada pelas mulheres tem aparência similar à vulva de uma jovem garota. Várias mulheres que relataram sua insatisfação, incluindo a própria Lisa Rogers, falaram sobre os efeitos negativos da idade sobre a vulva, mas nenhum dos especialistas discutiu a cirurgia voltada especificamente para corrigir os efeitos da idade. O marido de Lisa Roger e seus amigos homens disseram que não sabiam que a aparência da genitália feminina poderia ser motivo de insegurança para as mulheres. Eles não levam em consideração a aparência dos genitais, apenas um deles considera importantes a quantidade de pelos pubianos e o cheiro dos genitais. Para os pintores e decoradores que trabalhavam na casa de Lisa Roger, a atratividade dos genitais femininos é importante. Ao escutar isto, ela responde com raiva e desânimo, por que, para ela, as mulheres se sentem inseguras justamente por que os homens fazem comentários como este. Mas, o documentário não esclarece se essa questão é apenas heterossexual, uma vez que não se trouxe à discussão outras opções sexuais e seu impacto sobre a confiança corporal das mulheres. O documentário foca em duas causas possíveis para as mulheres recorrerem à CEGF: falta de exposição à diversidade normal da aparência dos genitais femininos e ansiedade com relação às opiniões de potenciais parceiros sobre a vulva. As lésbicas e mulheres bissexuais vivenciam esse problema da mesma forma ou não? E para as mulheres que vivem em países onde a nudez coletiva é mais comum do que 59 TM Plowman / Questões de Saúde Reprodutiva 2011;5:1;58-61 na Inglaterra, a falta de conhecimento sobre “o que é normal” seria diferente? Para uma lésbica, preocupações sobre o quão atrativa é sua vulva para sua parceira podem claramente surgir, mas a opinião da parceira não está envolvida nos desequilíbrios de poder entre os gêneros e, além disso, sua parceira também tem uma vulva que pode ser “julgada”. O que é a aparência “normal” dos genitais femininos? Nesse documentário, a aparência “normal” dos genitais femininos reúne uma grande diversidade de tamanhos, formas e cores de partes da vulva, mas os limites dessa diversidade não são apresentados. A pergunta sobre o quão diferente uma vulva deve ser para não mais ser considerada normal não é feita ou respondida. Para mim, “genitais femininos” é um termo tão abrangente que basta ser do sexo feminino para que seus genitais sejam considerados normais. Essa “normalidade” inclui a mesma diversidade que se encontra na ampla variação de outras partes do corpo, em termos de tamanho, presença, forma e cor. Alternativamente, pode-se pensar em critérios particulares para que uma determinada parte do corpo seja considerada um exemplo “normal” daquela parte do corpo. Por exemplo, de um pé se espera que tenha cinco dedos e um pé que tenha seis dedos ainda é um pé, mas não é considerado normal. Se esta é uma definição aceita, então o documentário sugere que as vulvas “normais” consistem de pequenos e grandes lábios, vagina, clitóris e capuz clitoriano, embora as percepções de normalidade a respeito de seus tamanhos e formas estejam sujeitas a limitações, assim como a altura e o peso estão. Por que hoje as jovens se sentem inseguras quanto à normalidade da aparência de seus genitais? Este documentário foi inspirado pelo aumento acelerado no número de mulheres que se 60 submetem a CEGF na Inglaterra.³ Sua questão é indagar as razões pelas quais as jovens de hoje se sentem inseguras quanto à normalidade da aparência de seus genitais, particularmente dos pequenos e grandes lábios. A cirurgia estética mais popular nesse campo é a redução dos pequenos lábios (labiaplastia), para que fiquem escondidos pelos grandes lábios.³ O fato de as mulheres estarem removendo os pelos pubianos sugere que as genitálias se tornaram menos privadas e mais públicas, atribuindo a elas o status de parte do corpo que pode seguir padrões de beleza. Wolf argumenta, n’O Mito da Beleza4, que as cirurgias cosméticas mais frequentes são feitas em áreas do corpo das mulheres que são mais associadas à “feminilidade”: coxas, estômago, nádegas e seios. Atualmente, se foi mais além, ao incluir a vulva, a parte mais feminina de todas as partes do corpo. A questão permanece: por que grandes lábios são vistos como uma coisa negativa, por que remover pelos pubianos para expor partes dos genitais que agora precisam ser escondidos e por que grande não é bonito? Wolf aponta, como um exemplo de como os padrões de beleza dependem da cultura, que a sociedade Maori considera grandes lábios grossos como mais bonitos do que os finos4. Nos EUA e na Inglaterra atuais, o pequeno é considerado bonito, segundo a justificativa de que assim seria mais fiel à juventude. A redução dos grandes lábios (e a remoção dos pelos pubianos) limita a sexualidade da mulher metaforicamente, ao deixar seus genitais menores e infantis, e limita também fisicamente por remover tecido sensível, o que pode deixar cicatrizes que não respondem ao toque5. Uma pesquisa que investigou os resultados das cirurgias nas mulheres, encontrou que é normal sentir dor durante a relação sexual por aproximadamente um mês, embora duas em cada 98 pacientes necessitassem de outras cirurgias para corrigir isto6. Um estudo qualitativo sugeriu que as expectativas das mulheres TM Plowman / Questões de Saúde Reprodutiva 2011;5:1;58-61 quanto à cirurgia superestima os efeitos positivos que a cirurgia terá em suas vidas7. Braun argumenta que muito do sucesso da CEGF se deve ao fato de que seus promotores criaram um problema – afirmando que a privacidade dessa parte do corpo pode fomentar ansiedade, jogando com antigos tabus culturais ligados à sexualidade feminina - e a cirurgia foi vendida para as mulheres como a solução.¹ O problema dos grandes lábios pouco atraentes (grandes, desiguais, prolongados) é facilmente resolvido através da cirurgia, por que a redução do tecido é um procedimento relativamente simples, desde que a mulher não seja excessivamente preocupada com alguma perda de sensação que venha a resultar da cirurgia5. Wolf argumenta que tanto a rigidez quanto o âmbito de aplicação dos padrões de beleza vem crescendo junto com a disseminação do feminismo, como uma tentativa de manter a opressão das mulheres4, enquanto Braun sustenta que a criação de um mercado para a CEGF é mais uma forma de lucro para os provedores de saúde do que uma solução para um problema pré-existente e não resolvido.¹ Juntos, esses argumentos sugerem que a CEGF é comercializada com êxito por que nossa sociedade sistematicamente prescreve padrões para os corpos das mulheres que inibem sua Referências 1. Braun V. In search of (better) sexual pleasure: female genital “cosmetic” surgery. Sexualities 2005;8(4):407 –24. 2. Rogers L. The quest for the perfect vagina [online]. The Guardian. 15 August 2008. Em: < www.guardian.co.uk/culture/ tvandradioblog/2008/aug/15/ thequestfortheperfectvagina >. Acesso em 18/10/2009. 3. Liao LM, Creighton S. Requests satisfação na vida cotidiana. De acordo com Wolf, a não realização do desejo das mulheres dirige a sua atenção para problemas menores e debilita sua energia para se envolver em questões profissionais e políticas4. Isto equipara a CEGF à mutilação genital feminina, como um equivalente ocidental dessa prática, uma solução ditada socialmente para o problema da liberdade (sexual) das mulheres. Isto implica que o aumento da demanda por essa cirurgia pode se relacionar menos a uma escolha individual e mais a um sistema político que tenta manter o controle sobre as mulheres e sua sexualidade. Por um lado, a CEGF não é um caso especial, podendo ser vista como conectada a um amplo conjunto de idéias relativas às mulheres e aos seus corpos. Por outro lado, a CEGF vai mais além do que outros tipos de cirurgia estética em função de seu impacto sobre a “feminilidade” da mulher em questão, uma vez que pretende determinar a atratividade sexual da mulher com base em seus órgãos genitais externos. Agradecimentos Muito obrigada ao meu supervisor Dr Mick Finlay, da Universidade de Surrey, que orientou minha dissertação de mestrado, na qual essa análise é baseada. for cosmetic genitoplasty: how should healthcare providers respond? BMJ 2007;334:1090 – 92. 4. Wolf N. O mito da beleza: como as imagens da beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco; 1992. 5. Department of Health, UK. Female Genital Reshaping (or labia reduction/labiaplasty). At: < www.dh.gov.uk/en/Publichealth/CosmeticSurgery/ DH_4121545 >. Accessed 19 January 2009. 6. Rouzier R, Louis-Sylvestre C, Paniel BJ, et al. Hypertrophy of labia minora: experience with 163 reductions. American Journal of Obstetrics and Gynecology 2000;182:35 –40. 7. Bramwell R, Morland C, Garden AS. Expectations and experience of labial reduction: a qualitative study. BJOG: An International Journal of Obstetrics and Gynaecology 2007;114: 1493 –99 61