As razões do
PSDB
Ainda são incipientes
os estudos acadêmicos
sobre a origem,
trajetória e
atualidade do PSDB.
Alguns trabalhos recentes
são importantes contribuições ao
entendimento das racionalidades
que organizam o discurso
e a prática dos tucanos
Juarez Guimarães
É
uma salutar prática intelectual evitar sedimentar em teoria a análise de
acontecimentos sociais que
ainda guardam o frescor do
recém-vivido. Quase dez anos mais
novo que o PT, o PSDB ainda não recebeu dos departamentos especializados da universidade brasileira um
tratamento sistemático e profundo à
altura de sua importância na história
recente do país.
25
Teoria e Debate 82 H maio/junho 2009
Anderson Barbosa
ensaio
É correta a afirmação que acontecimentos contemporâneos podem
jogar novas luzes sobre o passado, tornando o próprio sentido da História
incerto e sob permanente disputa. A
ascensão da intelectualidade peessedebista, por exemplo, foi precedida
de uma forte crítica da tradição varguista ou mesmo nacional-desenvolvimentista. A derrota ou vitória do
PSDB nas eleições presidenciais de
2010 certamente contribuirá para o
ganho de uma consciência nova sobre
sua trajetória passada.
Um dos primeiros estudos monográficos sobre o PSDB foram rea­
lizados por Celso Roma, cientista político da USP. Estes levaram o autor a
apresentar já em junho de 2000, no
III Encontro Nacional da Associação
Brasileira de Ciência Política, o “Programa partidário e ação estratégica
das lideranças: PT e PSDB em perspectiva comparada”. A polêmica de
Celso Roma é conduzida para criticar
o lugar-comum de que a cultura política brasileira não se traduz em partidos
coerentes ou com perfis ideológicos
com alguma identidade. O autor já
identificava nessa época a polaridade
PSDB versus PT como organizada em
torno a matrizes ideológicas, programáticas, de organização partidária,
de alianças eleitorais e bases sociais
e eleitorais que guardavam coerência
com racionalidades distintas.
Assim, a nova tradição do PSDB
conciliava um programa liberal, que
o aproximava do espectro de alianças
de centro-direita, relacionava-se mais
com uma base empresarial do que
com movimentos sociais, tinha um
perfil mais institucionalista e uma
organização partidária com forte
centralização da decisão na cúpula,
apta a fazer movimentos pragmáticos
eleitorais.
Teoria e Debate 82 H maio/junho 2009
O valor da avaliação em perspectiva de Celso Roma foi, no fundamental,
confirmado historicamente com a continuidade das disputas presidenciais
de 2002 e 2006, centradas na polaridade entre coalizões lideradas por PT e
PSDB, que concentraram no mínimo
70% dos votos dos eleitores brasileiros.
E, ao que tudo indica, esse padrão de
polarização tende a se repetir em 2010.
Isto é, vivemos um ciclo político iniciado em 1994 em que o sistema partidário nacional tem se organizado, nas
disputas nacionais, em torno à matriz
de polarização PT versus PSDB.
FHC e a teoria da dependência
O ensaio de Carlos Águeda Nagel
Paiva, economista da Fundação de
Economia e Estatística do governo
do Rio Grande do Sul, “FHC: o antidependentista”, é interessante para o
debate sobre a trajetória intelectual
de FHC e sua relação com a renovação da tradição liberal brasileira.
Essa trajetória, de enorme irradiação
na cultura universitária e política
brasileira no pós-64, está no centro
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da origem do PSDB. O ensaio de Carlos Águeda, editado em 2007, analisa
o justamente famoso Dependência e
Desenvolvimento na América Latina, em circulação no final dos anos
1960, de Fernando Henrique Cardoso
e Enzo Faletto, não como parte da
tradição de estudos da dependência, mas como em ruptura com essa
tradição.
São três as novidades do ensaio
de Carlos Águeda. Em primeiro lugar, a relação entre as ideias contidas
no último capítulo do livro de FHC e
Enzo Faletto, “A internacionalização
do mercado: o novo caráter da dependência”, e o livro anterior de FHC sobre
o empresariado brasileiro, realizado
antes de 1964, quando ainda trabalhava integrado aos grupos de pesquisa de Florestan Fernandes. Nesse
livro, FHC já indicava certos padrões
de modernização inscritos no novo
empresariado industrial brasileiro,
tendentes a compatibilizar democracia
e capitalismo. No último capítulo de
Dependência e Desenvolvimento na
América Latina, os autores descorti-
nam a possibilidade de um desenvolvimento dependente, isto é, o horizonte
de uma solidarização entre o capital
externo e a industrialização em certos
países da América Latina, entre eles,
o Brasil.
Em segundo lugar, Carlos Águeda acentua o conflito de ideias entre
FHC e Florestan Fernandes, o qual sedimentará alguns anos depois em A
Revolução Burguesa no Brasil o campo
analítico que amarra o desenvolvimento de um capitalismo dependente
às formas autocráticas de poder. Por
fim, o autor procura mostrar como o
entendimento de Cardoso e Faletto
está em contradição com as teorias
clássicas do imperialismo, de extração
marxista, e se alimenta de leituras não
problematizadoras de teses de economistas liberais clássicos e modernos,
como Ricardo e Schumpeter.
Seria importante analisar como o
enfoque de Cardoso e Faletto, na verdade, apoia-se no vasto repertório de
conhecimentos empíricos e analíticos
acumulados pela tradição da Cepal
sobre a América Latina e, ao mesmo
Moderno príncipe
José Cruz/ABr
A trajetória
intelectual de FHC
e sua relação com
a renovação da
tradição liberal
brasileira estão
no centro da
origem do PSDB
tempo, dissolve sua problemática histórica, que pensa o desenvolvimento
como superação da situação de dependência. Mais do que polemizar com
as vertentes de esquerda da “teoria
da dependência”, FHC está procurando desconstruir nesse momento
o conceito de subdesenvolvimento
de Celso Furtado, que centralizava
conceitualmente toda a tradição nacional-desenvolvimentista. A crítica a
essa tradição, que ganhará corpo na
obra de Fernando Henrique Cardoso
ao longo dos anos 1970, percorrerá um
caminho cada vez mais nitidamente
liberal, pensando a oposição ao regime militar através da oposição entre
“sociedade civil” e “Estado”.
A dissertação de mestrado “Um moderno príncipe para a burguesia brasileira: o PSDB (1988-2002)”, de André
Pereira Guiol, defendida em 2006 no
programa de História da Universidade
Federal Fluminense, é uma tentativa de
mobilizar conceitos de Gramsci para
entender o lugar e o sentido do partido
liderado por FHC. Assumindo polemicamente uma crítica aos trabalhos
de Celso Roma, que têm enfatizado o
caráter pragmático do PSDB para explicar sua ascensão ao centro do governo
do país, André Guiol quer demonstrar
como o PSDB é orgânico à burguesia
brasileira e internacional, em particular a seus setores financeiros, mobiliza
quadros inseridos em vastas redes de
elaboração e difusão intelectual e fornece um projeto capaz de, no primeiro
momento, aglutinar amplos setores
mercantis que se apresentavam dispersos e fragmentados após a fracassada
experiência de Collor.
O estudo de André Guiol realiza
o trabalho empírico de identificar
e reconstituir a inserção social de
27
cinquenta dirigentes que ocuparam
lugares centrais nas comissões executivas do partido. Não deixa de ser
impressionante a rede de grandes
bancos nacionais, estrangeiros e de
bancos de investimento, além de dirigentes da Febraban e a presidência
da Associação Nacional de Bancos de
Investimento, que se faz representar
nas direções executivas do PSDB. Sem
considerar um conjunto de figuras
vinculadas ao setor financeiro que
gravitam com centralidade na experiência e nas formulações do partido
sem ser propriamente dirigentes do
PSDB. Entende-se por que, nesse quadro, os setores vinculados à indústria
tenham tido menor peso programático
no PSDB.
Uma contribuição interessante
é a identificação dos quatro setores
que convergem para o PSDB em seus
inícios: o grupo mais diretamente vinculado à direção de FHC, que teorizava o caminho liberal da Terceira Via;
os democratas-cristãos vinculados à
liderança de Montoro; os setores vinculados a um liberalismo conservador;
e, enfim, um setor mais à esquerda,
agrupado no MUP (Cristina Tavares,
José Paulo Bisol, entre outros). Após a
saída do MUP, consolida-se a liderança
de FHC, que vai galvanizar posteriormente o partido com sua candidatura
à Presidência.
André Guiol identifica também,
seguindo a nomenclatura do sociólogo Basílio Sallum Jr., os “liberaisdesenvolvimentistas”, em torno da
liderança de Serra, que vão se diferenciando e disputando posições ao
longo da experiência com o núcleo
duro do neoliberalismo. Evidencia
que esses setores, não contrários à
privatização nem à flexibilização dos
direitos do trabalho, admitem uma
maior autonomia desenvolvimentisTeoria e Debate 82 H maio/junho 2009
Como o voto entre PT e PSDB
se decide?
A tese de doutoramento de José
Paulo Martins, defendida em 2007
na Ciência Política da USP, tem o
nome “A disputa entre PSDB e PT nas
eleições presidenciais: 1994-2006” e é
Teoria e Debate 82 H maio/junho 2009
Janine Moraes/ABr
ta do projeto, procurando construir
linhas de fusão do capital financeiro
com o grande capital industrial. É esse
setor liberal-desenvolvimentista que
vai ganhando posições no interior do
PSDB à medida que a ortodoxia neoliberal demonstra crescentemente sua
inconsistência e seus danos à popularidade do governo FHC.
Caberiam algumas observações
ao uso das categorias de Gramsci para
analisar o PSDB. A noção de “moderno
príncipe” é uma metáfora utilizada
por Gramsci, em diálogo com a obra
clássica de Maquiavel, para nomear a
função do partido revolucionário em
torno a um projeto nacional-popular.
Ora, o PSDB não se vincula historicamente a um projeto hegemônico
capaz de refundar a Nação. Aliás, o
neoliberalismo, programaticamente
assumido pelo PSDB e matizado por
suas diferentes correntes liberais, em
um período foi capaz de centralizar
a agenda política nacional e exercer,
a partir dela, uma pressão inaudita
sobre as tradições da esquerda brasileira. Mas era socialmente excludente, politicamente incapaz de absorver
as tradições da esquerda brasileira,
subordinando-a, e intelectualmente
marcado por um forte sectarismo.
Mais do que uma hegemonia intelectual, o PSDB foi capaz de construir
uma vasta rede midiática empresarial, isto é, de forte partidarização dos
meios de comunicação de massa, que
ainda hoje sobrevive a duas derrotas
eleitorais nacionais.
certamente um dos maiores esforços
de pesquisa já realizados no sentido
de buscar padrões definidores da votação dos brasileiros. Orientada pela
professora Maria Dalva Kinzo, com
larga tradição no estudo dos partidos
brasileiros e relacionada à inteligência
do PSDB, a tese faz uso de 25 bancos de
dados eleitorais, de diferentes fontes,
e dialoga com três tradições interpretativas do voto eleitoral no interior da
ciência política. O método utilizado,
sofisticado do ponto de vista de pesquisas quantitativas, é o das regressões
logísticas, no qual um certo número de
variáveis independentes é correlacionado a dois campos de resposta.
O autor dialoga e procura testar
padrões de definição de voto em relação a três tradições de investigação:
aquela de viés mais sociologizante,
que relaciona a definição do voto do
eleitor à sua inserção social (classe,
renda, urbano ou rural) ou à sua inserção em subculturas ou subgrupos
(religião, gênero, etnia); outra que
consulta a relação do voto com as
filiações ou afinidades partidárias;
e uma última que relaciona a definição do voto mais fortemente a eventos
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conjunturais, avaliações de governo
e candidaturas.
O autor busca alinhavar conclusões, depois de testar quantitativamente um grande número de hipóteses, que vão na direção, como fator
principal de definição do voto, da simpatia pelo candidato, com algum peso
na avaliação dos governos e menor
ponderação das afinidades partidárias
e das inserções sociais.
Testando as hipóteses de correlação de voto com as dimensões sociais
ou de subculturas, José Paulo conclui
que o eleitorado mais pobre, do Nordeste e negro/pardo tem sempre maior
tendência a votar no PT, o mesmo
valendo, em sentido inverso, para o
PSDB, cuja votação cresce no eleitorado branco e de maior renda. Entre 1994
e 2006 teria havido uma mudança nos
padrões de votação no candidato do
PT, com o voto firmando-se entre os
brasileiros mais pauperizados e crescendo entre os mais idosos e a intenção de voto enfraquecendo-se entre
os mais jovens. Mas essas variáveis,
afirma o autor a partir das correlações
verificadas, explicam apenas parte
da votação do eleitorado ou, de todo
O mais pobre,
negro e nordestino
tem sempre maior
tendência a votar
no PT. Para o PSDB,
a votação cresce
entre brancos e de
maior renda
modo, não são fortes o suficiente para
explicar a definição geral do voto majoritário nas eleições presidenciais.
Cabem aqui três observações importantes. Em primeiro lugar, o autor
trabalha com uma diferença muito
larga no que diz respeito à renda dos
eleitores (mais de 5 salários mínimos
ou menos de 5 salários mínimos), o
que o leva a afirmar incorretamente
que os brasileiros estão mais pauperizados em 2006 do que em 1994. A
proporção dos que ganham menos
que 5 salários mínimos aumentou,
mas houve no período forte elevação
de seu valor real. Como já foi amplamente documentado, houve uma forte migração de dezenas de milhões
de brasileiros de situações de maior
pobreza para menor pobreza nos últimos anos. Em segundo lugar, ocorreu uma mudança significativa na
“cor” dos brasileiros, revelando um
processo histórico de afirmação e de
autoestima daqueles que respondem
aos questionários reconhecendo sua
condição de não brancos. Em 1994,
os que se diziam brancos eram 60%
e os que se diziam negros ou mulatos
eram 36%; em 2006, eram 40% e 58%,
respectivamente. Em terceiro lugar, o
autor verifica que a correlação entre
menor renda e tendência de voto no PT
aumentou de 38% no primeiro turno
de 1994 para 73% no segundo turno
de 2006. Neste ano, a porcentagem
dos brasileiros que recebem até 5 salários mínimos chega a 86%. Mantida
essa correlação, nas eleições de 2010
a variável renda pode ter um impacto
decisivo nos resultados.
Importância dos partidos
Em geral, o autor trabalha com um
campo analítico que avalia como decrescente a influência dos partidos na
definição de voto, seguindo um padrão
internacional. Como o antagonismo
ao paradigma liberal teria diminuído
nas últimas décadas, havendo uma
convergência dos partidos para o centro, como as identidades a partidos
mobilizam uma minoria de eleitores e,
enfim, como é cada vez maior o poder
da mídia nas eleições, derivam-se daí
tendências semelhantes para o caso
brasileiro.
Apesar de haver sempre uma maior
identidade organizada para o PT, cerca
de dois terços dos eleitores não teriam
uma filiação partidária fortemente
constituída; apenas 22% votam no
partido com que se identificam; 16%
não votam em candidatos de partidos
com os quais se identificam. A rejeição a partidos abarca apenas 10% do
eleitorado. A prática cambiante das
coligações partidárias no Brasil obscureceria ainda mais a identidade
dos partidos para os eleitores. O fator
partidário, testado nas correlações,
teria assim impacto sobre uma parcela
minoritária do eleitorado.
No caso do PT, a avaliação negativa
dos eleitores era de 25,8% em 2002,
passando a 32,6% em 2006. A avaliação positiva teria caído de 48,1% para
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42,3% no mesmo perío­do. O PSDB, por
sua vez, contaria com avaliações negativas de 35,5% e 38,1% e positivas de
20,3% e 30,7%, respectivamente.
Após a consideração das variáveis
sociais e regionais e das referentes a
partidos, o autor concentra-se, a partir
do modelo da escolha racional, nas
dimensões conjunturais (avaliações
positivas ou negativas de governo, reeleições ou não) e no fator candidato.
Depois de testar correlações, chega,
então, à conclusão de que essas variáveis são determinantes dos resultados
nas eleições presidenciais no contexto
da polarização PSDB-PT, em particular a imagem do candidato frente aos
eleitores. Essa avaliação é compatível
com a identificação do tipo médio ou
majoritário do eleitor brasileiro, entendido como “novo eleitor não racional”,
isto é, pouco sofisticado nas informações para a definição do voto e pouco
disposto a uma participação política
mais engajada.
Resta saber, sem validar a força de
argumentos e da empiria presentes na
tese do autor, se os fatores avaliados
como conjunturais podem ser assim
separados analiticamente das variáveis chamadas “sociológicas” ou partidárias. Isto é, se a própria imagem
pública dos candidatos não está, com
as mediações devidas em cada caso,
atada também na consciência do eleitor às dimensões sociais e de referência
partidária no espectro brasileiro. E se,
mais além disso, o esforço analítico
do autor não apaga o que pode haver
de aprendizado do eleitor, de formação de consciência e de construção de
identidades ao longo de tantos anos de
polarização entre coalizões lideradas
pelo PSDB e pelo PT. ✪
Juarez Guimarães é cientista político, professor
na Universidade Federal de Minas Gerais
Teoria e Debate 82 H maio/junho 2009
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