○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Educação e transformação Demandas pedagógicas no contexto das igrejas evangélicas no Brasil em tempos de cultura gospel Pedagogical demands in the context of evangelical churches in Brazil in times of gospel culture Magali do Nascimento Cunha Leiga metodista, jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, mestre em Memória Social e Documento, professora da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Autora do livro Explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo (Mauad). R e s u m o A explosão da cultura gospel da passagem do século XX para o XXI delineou um novo jeito de ser evangélico no Brasil com base na tríade música, consumo e entretenimento. Este artigo procura estudar este fenômeno recente destacando como se dá a configuração da cultura gospel no cenário religioso evangélico tendo em vista o processo educativo que envolve a prática de comunidades eclesiais e as demandas pedagógicas resultantes deste contexto contemporâneo. Unitermos: Religião – Mídia – Cultura gospel. S y n o p s i s The boom of gospel culture in the turning of the 20th to the 21st century has drawn a new way of being evangelical in Brazil based on the music, consumption, and entertainment triad. This article seeks to study this recent phenomenon by emphasizing how the configuration of the gospel culture happens in the evangelical religious scenario considering the educational process that involves the ecclesial communities’ practice and the pedagogical demands resulting from this contemporary context. Terms: Religion – Media – Gospel culture. R e s u m e n La explosión de la cultura góspel de la virada del siglo XX al XXI ha delineado un nuevo modo de ser evangélico en Brasil con base en la tríade música, consumo y entretenimiento. Este artículo busca estudiar este fenómeno reciente destacando cómo ocurre la configuración de la cultura góspel en el escenario religioso evangélico tiendo en vista el proceso educativo que incluye la práctica de comunidades eclesiásticas y las demandas pedagógicas resultantes de este contexto contemporáneo. Términos: Religión – Periodismo – Cultura góspel. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 83 ○ ○ ○ Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ U ○ ○ Revista de Educação do Cogeime Há também um tipo de pentecostalismo mais recente ainda que privilegia a busca de adeptos da classe média e de faixa etária jovem e a música como recurso de comunicação ○ ○ ○ 84 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ comportamento social. É uma cultura da imagem que explora a visão e a audição e com isso trabalha com idéias, sentimentos e emoções. Além disso, a cultura da mídia é parte do mercado, isto é, trabalha como uma indústria que precisa produzir em massa para servir ao mercado em expansão. Nesse contexto sociopolítico e econômico, o campo religioso brasileiro experimenta o fenômeno do crescimento dos movimentos pentecostais. Surge um semnúmero de igrejas autônomas, organizadas em torno de líderes, baseadas nas propostas de cura, de exorcismo e de prosperidade sem enfatizar a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para se alcançar a bênção divina. Baseiam-se também no reprocessamento de traços da religiosidade popular, da valorização da utilização de símbolos e de representações icônicas. Há também um tipo de pentecostalismo mais recente ainda que privilegia a busca de adeptos da classe média e de faixa etária jovem e a música como recurso de comunicação. É formado pelas “comunidades”, pelos “ministérios” e outras igrejas independentes. Essa presença dos novos movimentos é percebida no continente principalmente de duas formas: um alto investimento em espaços na mídia e participação política partidária com busca de cargos no poder público. O crescimento pentecostal passou a exercer uma influência ○ m olhar sobre o cenário religioso no Brasil indica que manifestações culturais plurais têm inserido novas significações no modo de vida cristão, configuradas por elementos que são assimilados pelos diferentes segmentos e por eles reprocessados. A cultura do consumo e a cultura da mídia são duas dessas manifestações da contemporaneidade. Entenda-se por cultura do mercado o modo de vida determinado pelo consumo, conforme o pensamento desenvolvido por Renato Ortiz [s. d.]: “O consumo se desvenda, assim, como uma instituição formadora de valores e orientadora de conduta. [...] O espaço do mercado e do consumo tornam-se, assim, lugares nos quais são engendrados e partilhados padrões de cultura”. Participar do sistema e obter satisfação são alvos de um modo de vida cuja ação central é o consumo. Entenda-se por cultura midiática o novo quadro das interações sociais, uma nova forma de estruturação das práticas sociais, marcada pela existência dos meios. É produto da midiatização da sociedade, ou seja, o grupo social se compreende, se comunica, se reproduz e se transforma a partir das novas tecnologias e dos meios de produção e transmissão de informação. Essa cultura se expressa por meio de imagens, de sons, de espetáculos, de informações, ocupando o tempo de lazer das pessoas, fornecendo opiniões políticas, oferecendo formas de ○ ○ Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ decisiva sobre o modo de ser das demais igrejas cristãs. Para os evangélicos, ele provocou incômodo em relação a um aspecto que marcou as igrejas históricas – a estagnação e o não-crescimento numérico significativo – e promoveu uma espécie de motivação para a concorrência e busca do aumento do número de adeptos. Para os católico-romanos, representou uma ameaça, já que os seus fiéis são alvo do proselitismo pentecostal, o que se manifestou na forma de um declínio numérico. A influência se concretizou de maneira especial no reforço aos grupos chamados “avivalistas” ou “de renovação carismática”, que possuem similaridade de propostas e posturas com os pentecostalismos e passaram a conquistar espaços importantes na prática religiosa das igrejas chamadas históricas para que elas recuperassem ou alcançassem algum crescimento numérico. Paralelamente, ganham espaço no continente duas correntes religiosas denominadas “teologia da prosperidade” e “guerra espiritual”, estreitamente relacionadas à nova ordem mundial. Na lógica de exclusão que caracteriza o capitalismo globalizado, essas correntes pregam a inclusão social com promessas de prosperidade material (“vida na bênção”), condicionada à fidelidade material e espiritual a Deus. Na mesma direção, prega-se que é necessário “destruir o mal” que impede que a sociedade alcance as bênçãos da Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Para os católicoromanos, representou uma ameaça, já que os seus fiéis são alvo do proselitismo pentecostal ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ prosperidade. Por isso, os “filhos do Rei” devem invocar todo o poder que lhes é de direito para estabelecer uma guerra contra as “potestades do mal”. A pregação sobre o direito a reinar com Deus e desfrutar das suas riquezas e do seu poder parece responder à necessidade de aumento da auto-estima dos membros das igrejas históricas, inferiorizados pelo crescimento pentecostal e vitimados pelas políticas excludentes do capitalismo globalizado implantadas no continente. Por outro lado, a “confissão positiva” carrega elementos da religiosidade popular: concebem-se pobreza, doença, as agruras da vida, qualquer sofrimento do cristão como resultado de um fracasso – concretização da falta de fé ou de vida em pecado. Individualismo e competição também se tornam palavras de ordem, no que diz respeito a pessoas ou a grupos. É nesse contexto que se desenvolve um forte mercado religioso cristão. Esse mercado, ao longo dos anos de presença cristã no Brasil, já era forte no campo editorial, mas sua expansão deu-se, principalmente a partir do final dos anos 1980, por meio do mercado fonográfico, estimulado pelo “movimento gospel”. O movimento gospel e o incremento do mercado cristão Gospel é, no continente latino-americano, o termo de classi- ○ ○ ○ 85 ○ ○ ○ Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ficação de um gênero musical que combina formas musicais seculares (em especial as populares) com conteúdo religioso cristão. A palavra movimento justifica-se, de acordo com vários analistas e entusiastas do processo, pelas novas práticas desencadeadas a partir da profissionalização de músicos, cantores e grupos musicais cristãos ocorrida no período, aliada ao desenvolvimento da mídia religiosa, ambos fundamentados numa teologia que enfatiza o valor superior do louvor e da adoração no culto1. No mundo evangélico, um número expressivo de cantores há algumas décadas comercializavam seus discos, a maioria com produção independente. No entanto, com o incentivo do mercado, teve início uma proliferação de cantores, agora com uma nova característica: passam a ser profissionais da música com a realização de espetáculos para promover seu trabalho (inclusive em casas de espetáculos populares) e cobrança direta ou indireta de cachês para apresen1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ de Educação do Cogeime O mercado gospel da música também tem atraído artistas da esfera secular que se encontram em declínio no mercado fonográfico dominante ○ ○ ○ 86 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ tação em igrejas e eventos de massa. Foi esse mercado fonográfico que impulsionou nos anos 1980 o sucesso das rádios com 100% de programação religiosa, com significativo alcance nas áreas metropolitanas. A partir daí foram surgindo as estrelas gospel; dentre elas destacam-se o mexicano Marcos Witt e a brasileira Aline Barros, ambos ganhadores do Premio Grammy, na categoria Música Cristã. O mercado gospel da música também tem atraído artistas da esfera secular que se encontram em declínio no mercado fonográfico dominante. Nessa conjuntura, soma-se o considerável aumento do número de produtos gospel e a transformação dos cristãos em um segmento de mercado. Por isso tornou-se possível encontrar produtos os mais variados, como roupas, cosméticos, doces, com marcas formadas por slogans de apelo religioso, versículos bíblicos ou, simplesmente, o nome de Jesus. Os grandes magazines e as empresas também descobriram os consumidores cristãos. Se, no passado, para um adepto ou simpatizante buscar artigos cristãos, como camisetas, discos ou livros, o caminho era procurar as lojas especializadas, hoje ele pode ir a qualquer grande magazine ou rede de supermercados para encontrá-los. Produtos são criados para “atrair ” os consumidores cristãos. Importa também destacar que o mercado gospel passa a representar uma fonte alternativa Este trabalho enfatiza este fenômeno no campo das igrejas evangélicas, mas vale registrar que a Igreja Católica Romana experimenta similar processo, muito em virtude do crescimento do movimento carismático em seus arraiais. A escalada dos padres midiáticos e sua produção fonográfica, assim como a presença maior da Igreja Católica Romana na televisão, têm sido alvo de vários estudos no campo da comunicação e da sociologia da religião. Revista ○ ○ Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ de renda e de trabalho para o crescente número de desempregados vinculados às igrejas. Todo este processo experimentado de forma variada e diversa nas diferentes comunidades e tradições confessionais, mas que tem como núcleo comum as características acima descritas, indica algumas tendências na prática cristã: 1. a valorização de ritmos populares como nunca antes realizado nas comunidades e a sua inserção no culto; 2. a valorização da expressão corporal como nunca antes realizada nas comunidades e a sua inserção no culto; 3. a ênfase no “modernismo” e no “midiático”, que conectam as comunidades com o tempo presente, mas ao mesmo tempo geram desprezo da produção da tradição musical cristã e dos movimentos musicais não-gospel. Com isso canta-se apenas ou predominantemente o que a mídia coloca em evidência; 4. a padronização de práticas, estabelecida pelos modelos disseminados pela mídia religiosa e a conseqüente perda da espontaneidade na expressão cúltica; 5. a criação de dependência da eletrônica – das aparelhagens sonoras e de projeção; 6. a música e músicos/cantores passam a ser doutrinadores das comunidades com base na teologia gospel predominante; 7. a construção de uma nova concepção do culto: o momento Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Um novo modo de vida emerge entre grupos cristãos no Brasil, como conseqüência da força adquirida pelo trinômio novos movimentos religiosos-mercado-mídia ○ ○ ○ 87 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ de louvor é interpretado como “momento especial”, destacado e independente dos outros momentos, por vezes torna-se “culto dentro do culto”, contendo todos os elementos praticados nos demais espaços do culto (orações, leituras bíblicas e até pregação da Palavra próprias); 8. o revigoramento do dualismo protestante igreja versus mundo e, conseqüentemente, das fronteiras sagrado versus profano com a revitalização da divisão “música da igreja versus música do mundo”; 9. surgimento dos “louvorzões” – programações em que pessoas vão a igrejas para cantar e ouvir a apresentação de cantores e grupos de louvor. Este espaço é mais informal e o modelo é o de espetáculo musical e animação de auditório. Os louvorzões são utilizados como lazer para a juventude e também como atividade de evangelismo. Portanto, pode-se identificar um novo modo de vida que emerge entre grupos cristãos no Brasil, como conseqüência da força adquirida pelo trinômio novos movimentos religiososmercado-mídia. Este modo de vida manifesta-se principalmente na ênfase à música como cultivo e enlevo espiritual com valorização da diversidade de gêneros musicais; na relativização da tradição de santidade puritana de recusa da sociedade e das manifestações culturais por meio da abertura para a expressão corpo- Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ral; na inserção do consumo de bens religiosos como processo de aproximação/apropriação do sagrado. Este modo de vida é aqui denominado “cultura gospel”, que hoje alcança, se não todas, pelo menos a grande maioria das confissões cristãs. A cultura gospel é causa e conseqüência de um novo relacionamento dos cristãos com a mídia. “Causa e conseqüência” exatamente pelo papel mediador da mídia no contexto de uma nova forma religiosa cristã desenvolvida por esta nova manifestação cultural. Neste quadro, a partir de estudos sobre a forma de relacionamento entre artistas e ministérios de louvor e adoração com os consumidores de música cristã, dos encontros e cursos de formação de ministros de louvor, de pregações e estudos veiculados pela mídia evangélica, pesquisas de campo em comunidades cristãs de diferentes confissões, com base na metodologia de análise do discurso, é possível identificar um núcleo teológico que determina uma nova forma de educação cristã, com forte incidência da mídia. Alguns pontos a seguir sumarizam a ênfase teológica observada. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A cultura gospel é causa e conseqüência de um novo relacionamento dos cristãos com a mídia As ênfases dos discursos presentes nos momentos do culto religioso evangélico passam a ser as da teologia da prosperidade e da guerra espiritual Quem é Deus e o que ele espera dos cristãos? No passado havia a predominância da perspectiva individualista (temas do “eu” com Deus expressos nas canções congregacionais na primeira pessoa do singular), do con- Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 88 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ vite à conversão (a imagem do que se era antes de “aceitar a Cristo” e o depois) e no futuro fora da terra (imagem do céu e suas promessas), de dificuldades e sofrimentos do presente compensadas no futuro. Hoje está mantida a predominância do individualismo, porém reforçado com ênfase no aqui-e-agora: expressa-se mais fortemente o que eu posso com Deus, com força nos temas do poder e da vitória frente às dificuldades e à rejeição ao sofrimento (descabido para quem crê). Isto diz respeito às ênfases dos discursos presentes nos momentos do culto religioso evangélico que passam a ser as da teologia da prosperidade e da guerra espiritual. Essas teologias são alimentadas por uma linguagem que reprocessa formas teológicas que relacionam Deus a imagens da monarquia. Quem são Deus e Jesus na maioria das canções? A maior parte das expressões trazem imagens da teofania monárquica do Antigo Testamento: Deus e Jesus são intensamente relacionados a imagens de reinado, de majestade, de glória, de domínio, de poder, de trono. Nesta linha de valorização de uma teofania da Antiga Aliança, ganha novo sentido a figura dos levitas (passam a ser destacados e traduzidos na contemporaneidade como “os ministros de louvor”, terminologia assumida nas comunidades), a noção de pureza e de acesso a Deus (retomam- Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ se imagens como as do “santo dos santos”, da “unção” e das condições de acesso a Deus). A teologia da tradição monárquica de Jerusalém parece ser a referência bíblica mais apropriada para justificar as teologias da prosperidade e da guerra espiritual. Resultam desta ênfase teológica: a) um enfraquecimento do conteúdo do Novo Testamento, em especial dos evangelhos e da perspectiva do serviço e da misericórdia; e b) o estabelecimento de uma hierarquia de ministérios – há maior destaque aos levitas –, observado no lugar que ocupam no espaço cúltico – nasce a lógica de que quem canta e toca é ministro/a e ministra canções; quem realiza outras atividades de serviço raramente é assim apresentado e destacado. No momento em que a lógica do capitalismo globalizado – caracterizada pelo permanente consumo de bens materiais (posse), pelos ideais da eficiência e do sucesso e pela conseqüente competição – prevalece como ordenadora da sociedade contemporânea, a cultura gospel revela-se como sua extensão, ou seja, uma expressão cultural desse capitalismo em versão religiosa. Isto não ocorre somente por meio do culto e dos discursos veiculados pela mídia. Outros elementos, que caracterizam a cultura gospel, a descrevem em termos de um universo econômico-religioso, como o consumo e o entretenimento. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O sentido do culto A ampla aceitação pelo público cristão da música religiosa de consumo se explica pelo fato de que a cultura gospel redesenhou as linhas divisórias entre o sagrado e o profano, entre a Igreja e o mundo, estabelecidas pela tradição protestante dualista, e reafirmou a demonização da música secular e de seus similares, como os espetáculos musicais, a programação musical nas rádios e na televisão. No discurso que predomina na cultura religiosa evangélica contemporânea, o verdadeiro adorador, aquele que deseja intimidade com Deus, não ouve, canta ou toca música profana. Ao comprar o cd, ao ouvir a parada de sucessos de uma rádio cristã, ao participar do espetáculo de determinado artista gospel, o público cristão está inserido, sim, na lógica e na cultura do consumo. Entretanto, a esse consumo é atribuído sentido emocional, religioso. Ouvir os artistas que são “instrumentos de Deus”, veículos de sua mensagem, ouvir os “ministros de louvor e adoração” que são “levitas separados por Deus” para adorá-lo e guerrear contra as forças do mal (inseridas na própria música profana) e apoiar o que eles fazem é o mesmo que ouvir e apoiar a Deus. Além de proporcionar “acesso direto a Deus”, a indústria da música gospel coloca os evangélicos mais próximos do que há de mais moderno no campo da A indústria da música gospel coloca os evangélicos mais próximos do que há de mais moderno no campo da mídia ○ ○ ○ 89 ○ ○ ○ Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ mídia. Cd’s e dvd’s de qualidade, programações de rádio e tevê que seguem o modelo secular, espetáculos com produção de alta tecnologia são alguns dos aspectos que provam às igrejas e à sociedade em geral que é possível ser religioso e ser moderno, sintonizado com os recursos disponíveis no mundo contemporâneo. A conseqüência direta desse processo é a transformação na forma de os cristãos praticarem o culto religioso, o qual ganha novo cenário, novos protagonistas e novas ênfases. O altar toma a forma de palco, com suporte tecnológico e com a presença dos instrumentos musicais ao lado da mesa da eucaristia e do púlpito, os condutores são os cantores e músicos, e a música é o elemento privilegiado e catalisador, fazendo emergir até mesmo a prática da dança, outrora identificada como pecado. O formato das apresentações musicais, de expressão corporal e da condução do programa nas igrejas é o estabelecido pelos artistas gospel e pelos líderes dos ministérios de louvor e adoração. As músicas cantadas são aquelas comercializadas em cd e dvd e veiculadas pelas rádios evangélicas; a postura do corpo e o gestual são modelados com base no avivalismo e na emoção religiosa: baladas românticas, olhos fechados, expressão facial chorosa, cabeça jogada para trás, braços levantados com punhos cerrados ou mãos abertas; ou ritmos mais animados, palmas, balanço de cor- Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O formato das apresentações musicais, de expressão corporal e da condução do programa nas igrejas é o estabelecido pelos artistas gospel e pelos líderes dos ministérios de louvor e adoração ○ ○ ○ 90 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ po, pulos e brados de palavras de ordem. Os líderes religiosos que não são músicos ou animadores musicais deixam de ser os protagonistas do culto. Os líderes dos “ministérios de louvor e adoração” é que se tornam as personagens centrais, que, além de apresentarem e animarem os cânticos coletivos, fazem orações, lêem a Bíblia, pregam pequenos sermões. Essas ênfases no culto reproduzem os discursos predominantes na mídia evangélica, por meio de canções, sermões e textos veiculados, bem como nos treinamentos oferecidos por líderes “de louvor e adoração”. Por que e como os cristãos consomem e se divertem Outros elementos que caracterizam a cultura gospel a descrevem em termos de um universo econômico-religioso, como o consumo e o entretenimento. Desse modelo, os cristãos em geral passam a ser interpretados e trabalhados como segmento de mercado. Já os empresários evangélicos vêemse e agem como sócios do empreendimento de Deus, que é a salvação do mundo. Seus produtos são vistos como sagrados, abençoados por Deus para fazer com que mais pessoas se acheguem a ele. A base destas interpretações e destas ações encontra-se na premissa de que Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “consumir não é pecado”, mas evidência de que os evangélicos não devem ser um grupo isolado e, sim, inserido socialmente, para sinalizarem a atenção de Deus para com eles. O alvo da inserção social introduz na cultura religiosa não apenas o consumo mas também outros valores da modernidade, como a modelagem do corpo, a adesão à moda e o prazer do corpo via entretenimento (consumo cultural religioso). O segmento evangélico passa a ter acesso a espaços de lazer e diversão que incluem a dança e a expressão corporal, encontra até mesmo no carnaval um veículo de expressão religiosa e ganha produtos especiais como jogos e outras distrações. Mercado de bens religiosos e midiatização – o somatório destes elementos, estratégias e princípios – têm produzido no campo evangélico o que é denominado por alguns estudiosos “a espetacularização da fé”. Isso significa tratar a fé e a religiosidade como algo a ser exposto, apresentado, demonstrado da forma mais atraente possível, com a finalidade de se alcançar público. Toda religião tem um componente de espetáculo, de teatralidade, de performance. Os ritos e os rituais, relacionados ao encanto e ao mistério, dão à religião esse tom e esse dom. O que se observa nas últimas décadas no campo religioso cristão no Brasil, em especial na passagem Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Toda religião tem um componente de espetáculo, de teatralidade, de performance Os evangélicos passam por um processo de dessectarização, de liberalização de costumes e pela modernidade, ao se integrarem a distintas esferas da vida social e à cultura urbana ○ ○ ○ 91 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ dos anos 1990 para os 2000, é a religião, ela própria transformada em espetáculo, performance. A cultura gospel atenua, portanto, no caso dos evangélicos, a ética puritana restritiva de costumes e, ao mesmo tempo, refaz a imagem pública deles, ao incentivar a sua inserção nas culturas do mercado e da mídia. O sectarismo (o isolamento para preservação da santidade) deixa de ser um valor primordial entre os evangélicos. Vê-se como o consumo e o entretenimento são facilitados por uma postura de maior inserção social dos evangélicos, anteriormente marcados pela crise na relação igreja-sociedade. Tal postura resultou em um crescimento significativo no número de adeptos das igrejas que processaram o novo modo de vida religioso. Com isso, a busca da santidade ganha contornos diferenciados e passa a gerar benefícios no “aqui-e-agora” (e não mais a expectativa de uma vida no além, como na tradição escapista), na busca individualizada, privatizada, de satisfação pessoal tanto do ponto de vista da religião como do socioeconômico (reconhecimento social, lucro financeiro, acúmulo de bens, etc.). Os evangélicos passam, portanto, por um processo de dessectarização, de liberalização de costumes e pela modernidade, ao se integrarem a distintas esferas da vida social e à cultura urbana, caracterizadas pelo predomínio das novas tecnologias de comuni- Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A relativização da doutrina confessional Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ mo por aspersão feita pelo líder de sua igreja no programa. Esses sinais de relativização doutrinária são evidenciados em outras esferas além da mídia. No modo de vida gospel, a diversidade de práticas religiosas e a doutrina das confissões são interpretadas como inibição da ação de Deus e obstáculos à intimidade com Deus, necessária e almejada. São a música e o mercado que criam um novo espaço que supera as fronteiras denominacionais e oferecem um modelo baseado em uma concepção intimista de adoração, único capaz de sintonizar o divino, já que as práticas tradicionais se revelaram incapazes disso. Os cursos e treinamentos para a adoração e os meios de comunicação de tão amplo alcance dos evangélicos disseminam esse padrão teológico e comportamental e criam uma comunidade desterritorializada de adoração. cação e do audiovisual, pelo surgimento das tribos, pela privatização da vida coletiva, pelo individualismo, pelo confinamento em ambientes e redes sociais restritas, pelo consumo permanente de bens e pelo investimento em entretenimento. Nesse contexto, a doutrina das diferentes confissões passou a ser algo relativizado. Com o valor dado à música e ao consumo, com ênfase na mídia e no entretenimento, as teologias e as práticas que a caracterizam vão estabelecer os princípios determinantes para os evangélicos. Com isso, a tradição teológica e doutrinária das diferentes confissões fica relativizada e é até mesmo contestada em nome do novo modo de vida. Com a explosão gospel são descartadas ainda as teologias mais elaboradas. A orientação teológica e doutrinária das confissões torna-se um empecilho para se alcançar o divino. A partir dessa construção cultural é comum, nos programas de debates das rádios evangélicas de maior audiência, ouvir metodistas ao telefone contestando a autoridade de sua igreja que lá defende o ecumenismo ou o batismo infantil. Ou ouvir a leitura de mensagens eletrônicas enviadas por presbiterianos que advogam o batismo por imersão como o verdadeiro batismo, a despeito da explanação sobre o batis- ○ É notadamente fundamental que as lideranças clérigas e leigas assumam seu papel docente, educando para o sentido do ser cristão Demandas pedagógicas Com base nestes pressupostos, é preciso uma intensa revisão na forma de as igrejas desenvolverem sua prática educacional cristã para responderem a esses desafios listados acima. É notadamente fundamental que as lideranças clérigas e leigas assumam seu papel docente, educando para o sentido do ser cristão. Afinal, um pastor, uma pastora, uma liderança leiga nas comunidades religiosas tem uma tarefa pedagógica: educar as pessoas com quem se relaciona e ○ ○ ○ 92 ○ ○ ○ Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ trabalha nos princípios cristãos e nos princípios doutrinários de sua confissão de fé. No contexto em que a cultura gospel é hegemônica e determina um modo ser cristão, é preciso, como desafio pedagógico, reconhecer o que deve ser estimulado desta experiência e o que deve ser questionado com base nos valores doutrinários da tradição confessional. Para isso, torna-se necessário olhar a realidade e reconhecer a contribuição que o movimento gospel trouxe para as igrejas com a valorização da variedade de ritmos populares; a valorização da expressão corporal na liturgia; a facilidade de acesso a uma variedade de composições e gêneros. Identificar ainda que a música cristã de consumo é uma realidade e tem forte aceitação, pois busca satisfazer as demandas religiosas (oferta para a procura). Não se pode, contudo, perder o senso crítico e profético que caracteriza a prática cristã. Portanto, configuram-se entre as demandas pedagógicas das lideranças clérigas e leigas no atual momento: 1. Questionar com os consumidores culturais gospel presentes nas comunidades locais como se localiza neste novo momento a resposta cristã a demandas sociopolíticos-econômico-culturais do Brasil; a ênfase a atitudes mais comunitárias e não-individualistas e não-sectárias, de respeito à diversidade cultural e religiosa e de valorização da Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A prática educativa da comunidade certamente será instrumento eficaz para garantir coerência, qualidade e compromisso diante do atual contexto cultural religioso, sem desprezar ou desqualificar as novidades, mas, sim, como diz o apóstolo Paulo, “retendo o que é bom” ○ ○ ○ 93 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ reflexão teológica contextualizada que se concretize tanto nas práticas cúlticas quanto em ações de promoção humana; 2. Orientação para o sentido do culto e o lugar da música no culto. O que significa cultuar a Deus? O que significa a igreja reunida no templo para celebrar? Se o culto é para Deus e é um serviço, quais são os papéis a serem desempenhados pelo pastor, pelos músicos, pelos demais participantes do culto? Esta orientação deve ser oferecida para toda a igreja; 3. Orientação para o lugar da música nos diferentes momentos do culto com coerência temática: louvor e ação de graças, confissão, lamentação e dedicação – como a tradição cristã ensina o que é cantar ao Senhor; e para a seleção das músicas, a fim de se garantir coerência teológico-doutrinária; 4. Educar para o uso da eletrônica. É instrumento de serviço e não protagonista/condutora de processos. 5. Orientação teológico-doutrinária: quem é o Deus que deve ser cultuado e testemunhado com base na herança teológico-doutrinária da respectiva confissão de fé? A prática educativa da comunidade certamente será instrumento eficaz para garantir coerência, qualidade e compromisso diante do atual contexto cultural religioso, sem desprezar ou desqualificar as novidades, mas, sim, como diz o apóstolo Paulo, “retendo o que é bom”. Ano 16 – n . 31 – dezembro / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Referências bibliográficas BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social. Petrópolis / Rio de Janeiro: Vozes / Koinonia, 2003. CALIMAN, Cleto (org.). A sedução do sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis: Vozes, 1998. CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Petrópolis / São Paulo / São Bernardo do Campo: Vozes / Simpósio / Umesp, 1997. CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. ______. 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