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Educação e
transformação
Demandas pedagógicas no contexto
das igrejas evangélicas no Brasil
em tempos de cultura gospel
Pedagogical demands in the context of evangelical
churches in Brazil in times of gospel culture
Magali do Nascimento Cunha
Leiga metodista, jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, mestre
em Memória Social e Documento, professora da Faculdade de Teologia da
Universidade Metodista de São Paulo. Autora do livro Explosão gospel: um
olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo
(Mauad).
R e s u m o
A explosão da cultura gospel da passagem do século XX para o XXI delineou um novo jeito de ser
evangélico no Brasil com base na tríade música, consumo e entretenimento. Este artigo procura
estudar este fenômeno recente destacando como se dá a configuração da cultura gospel no
cenário religioso evangélico tendo em vista o processo educativo que envolve a prática de
comunidades eclesiais e as demandas pedagógicas resultantes deste contexto contemporâneo.
Unitermos: Religião – Mídia – Cultura gospel.
S y n o p s i s
The boom of gospel culture in the turning of the 20th to the 21st century has drawn a new way of being
evangelical in Brazil based on the music, consumption, and entertainment triad. This article seeks to
study this recent phenomenon by emphasizing how the configuration of the gospel culture happens in
the evangelical religious scenario considering the educational process that involves the ecclesial
communities’ practice and the pedagogical demands resulting from this contemporary context.
Terms: Religion – Media – Gospel culture.
R e s u m e n
La explosión de la cultura góspel de la virada del siglo XX al XXI ha delineado un nuevo modo de
ser evangélico en Brasil con base en la tríade música, consumo y entretenimiento. Este artículo busca
estudiar este fenómeno reciente destacando cómo ocurre la configuración de la cultura góspel en
el escenario religioso evangélico tiendo en vista el proceso educativo que incluye la práctica de
comunidades eclesiásticas y las demandas pedagógicas resultantes de este contexto contemporáneo.
Términos: Religión – Periodismo – Cultura góspel.
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Há também um
tipo de pentecostalismo mais recente ainda que
privilegia a busca de adeptos
da classe média
e de faixa etária
jovem e a música como recurso
de comunicação
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comportamento social. É uma cultura da imagem que explora a visão e a audição e com isso trabalha com idéias, sentimentos e
emoções. Além disso, a cultura da
mídia é parte do mercado, isto é,
trabalha como uma indústria que
precisa produzir em massa para
servir ao mercado em expansão.
Nesse contexto sociopolítico
e econômico, o campo religioso
brasileiro experimenta o fenômeno do crescimento dos movimentos pentecostais. Surge um semnúmero de igrejas autônomas,
organizadas em torno de líderes,
baseadas nas propostas de cura,
de exorcismo e de prosperidade
sem enfatizar a necessidade de
restrições de cunho moral e cultural para se alcançar a bênção
divina. Baseiam-se também no
reprocessamento de traços da
religiosidade popular, da valorização da utilização de símbolos e
de representações icônicas. Há
também um tipo de pentecostalismo mais recente ainda que privilegia a busca de adeptos da
classe média e de faixa etária jovem e a música como recurso de
comunicação. É formado pelas
“comunidades”, pelos “ministérios” e outras igrejas independentes. Essa presença dos novos
movimentos é percebida no continente principalmente de duas
formas: um alto investimento em
espaços na mídia e participação
política partidária com busca de
cargos no poder público.
O crescimento pentecostal
passou a exercer uma influência
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m olhar sobre o cenário religioso no Brasil indica que
manifestações culturais plurais
têm inserido novas significações
no modo de vida cristão, configuradas por elementos que são assimilados pelos diferentes segmentos e por eles reprocessados. A
cultura do consumo e a cultura
da mídia são duas dessas manifestações da contemporaneidade.
Entenda-se por cultura do mercado o modo de vida determinado
pelo consumo, conforme o pensamento desenvolvido por Renato
Ortiz [s. d.]: “O consumo se desvenda, assim, como uma instituição formadora de valores e
orientadora de conduta. [...] O
espaço do mercado e do consumo
tornam-se, assim, lugares nos
quais são engendrados e partilhados padrões de cultura”. Participar do sistema e obter satisfação
são alvos de um modo de vida
cuja ação central é o consumo.
Entenda-se por cultura midiática o novo quadro das interações sociais, uma nova forma
de estruturação das práticas sociais, marcada pela existência dos
meios. É produto da midiatização
da sociedade, ou seja, o grupo
social se compreende, se comunica, se reproduz e se transforma a
partir das novas tecnologias e dos
meios de produção e transmissão
de informação. Essa cultura se
expressa por meio de imagens, de
sons, de espetáculos, de informações, ocupando o tempo de lazer
das pessoas, fornecendo opiniões
políticas, oferecendo formas de
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decisiva sobre o modo de ser das
demais igrejas cristãs. Para os
evangélicos, ele provocou incômodo em relação a um aspecto
que marcou as igrejas históricas –
a estagnação e o não-crescimento
numérico significativo – e promoveu uma espécie de motivação
para a concorrência e busca do
aumento do número de adeptos.
Para os católico-romanos, representou uma ameaça, já que os
seus fiéis são alvo do proselitismo pentecostal, o que se manifestou na forma de um declínio
numérico. A influência se concretizou de maneira especial no reforço aos grupos chamados
“avivalistas” ou “de renovação
carismática”, que possuem similaridade de propostas e posturas
com os pentecostalismos e passaram a conquistar espaços importantes na prática religiosa das igrejas chamadas históricas para que
elas recuperassem ou alcançassem
algum crescimento numérico.
Paralelamente, ganham espaço
no continente duas correntes religiosas denominadas “teologia da
prosperidade” e “guerra espiritual”, estreitamente relacionadas à
nova ordem mundial. Na lógica
de exclusão que caracteriza o capitalismo globalizado, essas correntes pregam a inclusão social com
promessas de prosperidade material (“vida na bênção”), condicionada à fidelidade material e espiritual a Deus. Na mesma direção,
prega-se que é necessário “destruir o mal” que impede que a sociedade alcance as bênçãos da
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Para os católicoromanos, representou uma ameaça,
já que os seus fiéis
são alvo do proselitismo pentecostal
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prosperidade. Por isso, os “filhos
do Rei” devem invocar todo o
poder que lhes é de direito para
estabelecer uma guerra contra as
“potestades do mal”.
A pregação sobre o direito a
reinar com Deus e desfrutar das
suas riquezas e do seu poder
parece responder à necessidade
de aumento da auto-estima dos
membros das igrejas históricas,
inferiorizados pelo crescimento
pentecostal e vitimados pelas
políticas excludentes do capitalismo globalizado implantadas
no continente. Por outro lado, a
“confissão positiva” carrega elementos da religiosidade popular:
concebem-se pobreza, doença, as
agruras da vida, qualquer sofrimento do cristão como resultado
de um fracasso – concretização
da falta de fé ou de vida em pecado. Individualismo e competição também se tornam palavras
de ordem, no que diz respeito a
pessoas ou a grupos.
É nesse contexto que se desenvolve um forte mercado religioso cristão. Esse mercado, ao
longo dos anos de presença cristã no Brasil, já era forte no campo editorial, mas sua expansão
deu-se, principalmente a partir
do final dos anos 1980, por meio
do mercado fonográfico, estimulado pelo “movimento gospel”.
O movimento gospel e o incremento do mercado cristão
Gospel é, no continente latino-americano, o termo de classi-
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ficação de um gênero musical
que combina formas musicais
seculares (em especial as populares) com conteúdo religioso
cristão. A palavra movimento
justifica-se, de acordo com vários analistas e entusiastas do
processo, pelas novas práticas
desencadeadas a partir da profissionalização de músicos, cantores e grupos musicais cristãos
ocorrida no período, aliada ao
desenvolvimento da mídia religiosa, ambos fundamentados
numa teologia que enfatiza o
valor superior do louvor e da
adoração no culto1.
No mundo evangélico, um
número expressivo de cantores
há algumas décadas comercializavam seus discos, a maioria com produção independente.
No entanto, com o incentivo do
mercado, teve início uma proliferação de cantores, agora com
uma nova característica: passam
a ser profissionais da música
com a realização de espetáculos
para promover seu trabalho (inclusive em casas de espetáculos
populares) e cobrança direta ou
indireta de cachês para apresen1
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O mercado gospel
da música também
tem atraído artistas
da esfera secular
que se encontram
em declínio no
mercado
fonográfico
dominante
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tação em igrejas e eventos de
massa. Foi esse mercado fonográfico que impulsionou nos anos
1980 o sucesso das rádios com
100% de programação religiosa,
com significativo alcance nas
áreas metropolitanas.
A partir daí foram surgindo as
estrelas gospel; dentre elas destacam-se o mexicano Marcos Witt e a
brasileira Aline Barros, ambos ganhadores do Premio Grammy, na
categoria Música Cristã. O mercado gospel da música também tem
atraído artistas da esfera secular
que se encontram em declínio no
mercado fonográfico dominante.
Nessa conjuntura, soma-se o
considerável aumento do número
de produtos gospel e a transformação dos cristãos em um segmento
de mercado. Por isso tornou-se
possível encontrar produtos os
mais variados, como roupas, cosméticos, doces, com marcas formadas por slogans de apelo
religioso, versículos bíblicos ou,
simplesmente, o nome de Jesus.
Os grandes magazines e as
empresas também descobriram os
consumidores cristãos. Se, no
passado, para um adepto ou simpatizante buscar artigos cristãos,
como camisetas, discos ou livros,
o caminho era procurar as lojas
especializadas, hoje ele pode ir a
qualquer grande magazine ou
rede de supermercados para encontrá-los. Produtos são criados
para “atrair ” os consumidores
cristãos. Importa também destacar que o mercado gospel passa a
representar uma fonte alternativa
Este trabalho enfatiza este fenômeno
no campo das igrejas evangélicas,
mas vale registrar que a Igreja Católica Romana experimenta similar
processo, muito em virtude do crescimento do movimento carismático em
seus arraiais. A escalada dos padres
midiáticos e sua produção fonográfica, assim como a presença maior
da Igreja Católica Romana na televisão, têm sido alvo de vários estudos
no campo da comunicação e da sociologia da religião.
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de renda e de trabalho para o
crescente número de desempregados vinculados às igrejas.
Todo este processo experimentado de forma variada e diversa nas diferentes comunidades e tradições confessionais,
mas que tem como núcleo comum as características acima
descritas, indica algumas tendências na prática cristã:
1. a valorização de ritmos
populares como nunca antes realizado nas comunidades e a sua
inserção no culto;
2. a valorização da expressão
corporal como nunca antes realizada nas comunidades e a sua
inserção no culto;
3. a ênfase no “modernismo”
e no “midiático”, que conectam
as comunidades com o tempo
presente, mas ao mesmo tempo
geram desprezo da produção da
tradição musical cristã e dos movimentos musicais não-gospel.
Com isso canta-se apenas ou
predominantemente o que a
mídia coloca em evidência;
4. a padronização de práticas,
estabelecida pelos modelos disseminados pela mídia religiosa e a
conseqüente perda da espontaneidade na expressão cúltica;
5. a criação de dependência
da eletrônica – das aparelhagens
sonoras e de projeção;
6. a música e músicos/cantores passam a ser doutrinadores
das comunidades com base na
teologia gospel predominante;
7. a construção de uma nova
concepção do culto: o momento
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Um novo modo
de vida emerge
entre grupos
cristãos no Brasil,
como conseqüência da força
adquirida pelo
trinômio novos
movimentos
religiosos-mercado-mídia
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de louvor é interpretado como
“momento especial”, destacado e
independente dos outros momentos, por vezes torna-se “culto dentro do culto”, contendo
todos os elementos praticados
nos demais espaços do culto
(orações, leituras bíblicas e até
pregação da Palavra próprias);
8. o revigoramento do dualismo protestante igreja versus
mundo e, conseqüentemente, das
fronteiras sagrado versus profano
com a revitalização da divisão
“música da igreja versus música
do mundo”;
9. surgimento dos “louvorzões” – programações em que
pessoas vão a igrejas para cantar
e ouvir a apresentação de cantores e grupos de louvor. Este espaço é mais informal e o modelo é
o de espetáculo musical e animação de auditório. Os louvorzões
são utilizados como lazer para a
juventude e também como atividade de evangelismo.
Portanto, pode-se identificar
um novo modo de vida que
emerge entre grupos cristãos no
Brasil, como conseqüência da
força adquirida pelo trinômio
novos movimentos religiososmercado-mídia. Este modo de
vida manifesta-se principalmente
na ênfase à música como cultivo
e enlevo espiritual com valorização da diversidade de gêneros
musicais; na relativização da tradição de santidade puritana de
recusa da sociedade e das manifestações culturais por meio da
abertura para a expressão corpo-
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ral; na inserção do consumo de
bens religiosos como processo de
aproximação/apropriação do sagrado. Este modo de vida é aqui
denominado “cultura gospel”, que
hoje alcança, se não todas, pelo
menos a grande maioria das confissões cristãs.
A cultura gospel é causa e conseqüência de um novo relacionamento dos cristãos com a mídia.
“Causa e conseqüência” exatamente pelo papel mediador da mídia
no contexto de uma nova forma
religiosa cristã desenvolvida por
esta nova manifestação cultural.
Neste quadro, a partir de estudos sobre a forma de relacionamento entre artistas e ministérios
de louvor e adoração com os consumidores de música cristã, dos
encontros e cursos de formação de
ministros de louvor, de pregações
e estudos veiculados pela mídia
evangélica, pesquisas de campo em
comunidades cristãs de diferentes
confissões, com base na metodologia de análise do discurso, é
possível identificar um núcleo teológico que determina uma nova
forma de educação cristã, com forte incidência da mídia. Alguns
pontos a seguir sumarizam a ênfase teológica observada.
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A cultura gospel
é causa e conseqüência de um
novo relacionamento dos cristãos com a mídia
As ênfases dos discursos presentes
nos momentos do
culto religioso
evangélico passam
a ser as da teologia da prosperidade e da guerra
espiritual
Quem é Deus e o que ele
espera dos cristãos?
No passado havia a predominância da perspectiva individualista
(temas do “eu” com Deus expressos
nas canções congregacionais na primeira pessoa do singular), do con-
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vite à conversão (a imagem do
que se era antes de “aceitar a Cristo” e o depois) e no futuro fora da
terra (imagem do céu e suas promessas), de dificuldades e sofrimentos do presente compensadas
no futuro. Hoje está mantida a
predominância do individualismo, porém reforçado com ênfase
no aqui-e-agora: expressa-se mais
fortemente o que eu posso com
Deus, com força nos temas do
poder e da vitória frente às dificuldades e à rejeição ao sofrimento (descabido para quem crê).
Isto diz respeito às ênfases
dos discursos presentes nos momentos do culto religioso evangélico que passam a ser as da
teologia da prosperidade e da
guerra espiritual. Essas teologias
são alimentadas por uma linguagem que reprocessa formas teológicas que relacionam Deus a
imagens da monarquia.
Quem são Deus e Jesus na
maioria das canções? A maior
parte das expressões trazem
imagens da teofania monárquica
do Antigo Testamento: Deus e
Jesus são intensamente relacionados a imagens de reinado, de
majestade, de glória, de domínio, de poder, de trono. Nesta
linha de valorização de uma
teofania da Antiga Aliança, ganha novo sentido a figura dos
levitas (passam a ser destacados
e traduzidos na contemporaneidade como “os ministros de louvor”, terminologia assumida nas
comunidades), a noção de pureza e de acesso a Deus (retomam-
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se imagens como as do “santo
dos santos”, da “unção” e das
condições de acesso a Deus).
A teologia da tradição monárquica de Jerusalém parece ser a referência bíblica mais apropriada
para justificar as teologias da prosperidade e da guerra espiritual.
Resultam desta ênfase teológica: a) um enfraquecimento do
conteúdo do Novo Testamento,
em especial dos evangelhos e da
perspectiva do serviço e da misericórdia; e b) o estabelecimento
de uma hierarquia de ministérios
– há maior destaque aos levitas –,
observado no lugar que ocupam
no espaço cúltico – nasce a lógica
de que quem canta e toca é ministro/a e ministra canções; quem
realiza outras atividades de serviço raramente é assim apresentado e destacado.
No momento em que a lógica
do capitalismo globalizado – caracterizada pelo permanente
consumo de bens materiais (posse), pelos ideais da eficiência e
do sucesso e pela conseqüente
competição – prevalece como
ordenadora da sociedade contemporânea, a cultura gospel revela-se como sua extensão, ou
seja, uma expressão cultural desse capitalismo em versão religiosa. Isto não ocorre somente por
meio do culto e dos discursos
veiculados pela mídia. Outros
elementos, que caracterizam a
cultura gospel, a descrevem em
termos de um universo econômico-religioso, como o consumo e
o entretenimento.
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O sentido do culto
A ampla aceitação pelo público cristão da música religiosa de
consumo se explica pelo fato de
que a cultura gospel redesenhou
as linhas divisórias entre o sagrado e o profano, entre a Igreja e o
mundo, estabelecidas pela tradição protestante dualista, e reafirmou a demonização da música
secular e de seus similares, como
os espetáculos musicais, a programação musical nas rádios e na
televisão. No discurso que predomina na cultura religiosa evangélica contemporânea, o verdadeiro
adorador, aquele que deseja intimidade com Deus, não ouve, canta ou toca música profana.
Ao comprar o cd, ao ouvir a
parada de sucessos de uma rádio
cristã, ao participar do espetáculo
de determinado artista gospel, o
público cristão está inserido, sim,
na lógica e na cultura do consumo. Entretanto, a esse consumo é
atribuído sentido emocional, religioso. Ouvir os artistas que são
“instrumentos de Deus”, veículos
de sua mensagem, ouvir os “ministros de louvor e adoração” que
são “levitas separados por Deus”
para adorá-lo e guerrear contra as
forças do mal (inseridas na própria música profana) e apoiar o
que eles fazem é o mesmo que
ouvir e apoiar a Deus.
Além de proporcionar “acesso direto a Deus”, a indústria da
música gospel coloca os evangélicos mais próximos do que há de
mais moderno no campo da
A indústria da
música gospel
coloca os evangélicos mais próximos do que há
de mais moderno
no campo da
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mídia. Cd’s e dvd’s de qualidade,
programações de rádio e tevê que
seguem o modelo secular, espetáculos com produção de alta
tecnologia são alguns dos aspectos que provam às igrejas e à
sociedade em geral que é possível
ser religioso e ser moderno, sintonizado com os recursos disponíveis no mundo contemporâneo.
A conseqüência direta desse
processo é a transformação na forma de os cristãos praticarem o
culto religioso, o qual ganha novo
cenário, novos protagonistas e
novas ênfases. O altar toma a forma de palco, com suporte
tecnológico e com a presença dos
instrumentos musicais ao lado da
mesa da eucaristia e do púlpito,
os condutores são os cantores e
músicos, e a música é o elemento
privilegiado e catalisador, fazendo
emergir até mesmo a prática da
dança, outrora identificada como
pecado. O formato das apresentações musicais, de expressão corporal e da condução do programa
nas igrejas é o estabelecido pelos
artistas gospel e pelos líderes dos
ministérios de louvor e adoração.
As músicas cantadas são aquelas
comercializadas em cd e dvd e
veiculadas pelas rádios evangélicas; a postura do corpo e o
gestual são modelados com base
no avivalismo e na emoção religiosa: baladas românticas, olhos
fechados, expressão facial chorosa, cabeça jogada para trás, braços
levantados com punhos cerrados
ou mãos abertas; ou ritmos mais
animados, palmas, balanço de cor-
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O formato das apresentações musicais,
de expressão corporal e da condução
do programa nas
igrejas é o estabelecido pelos artistas
gospel e pelos
líderes dos
ministérios de louvor
e adoração
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po, pulos e brados de palavras
de ordem.
Os líderes religiosos que não
são músicos ou animadores musicais deixam de ser os protagonistas do culto. Os líderes dos
“ministérios de louvor e adoração” é que se tornam as personagens centrais, que, além de
apresentarem e animarem os
cânticos coletivos, fazem orações, lêem a Bíblia, pregam pequenos sermões.
Essas ênfases no culto reproduzem os discursos predominantes na mídia evangélica, por
meio de canções, sermões e textos veiculados, bem como nos
treinamentos oferecidos por líderes “de louvor e adoração”.
Por que e como os cristãos
consomem e se divertem
Outros elementos que caracterizam a cultura gospel a descrevem em termos de um universo
econômico-religioso,
como o consumo e o entretenimento. Desse modelo, os cristãos em geral passam a ser interpretados e trabalhados como
segmento de mercado. Já os
empresários evangélicos vêemse e agem como sócios do empreendimento de Deus, que é a
salvação do mundo. Seus produtos são vistos como sagrados,
abençoados por Deus para fazer
com que mais pessoas se acheguem a ele. A base destas interpretações e destas ações encontra-se na premissa de que
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“consumir não é pecado”, mas
evidência de que os evangélicos
não devem ser um grupo isolado
e, sim, inserido socialmente,
para sinalizarem a atenção de
Deus para com eles.
O alvo da inserção social introduz na cultura religiosa não
apenas o consumo mas também
outros valores da modernidade,
como a modelagem do corpo, a
adesão à moda e o prazer do
corpo via entretenimento (consumo cultural religioso). O segmento evangélico passa a ter
acesso a espaços de lazer e diversão que incluem a dança e a
expressão corporal, encontra até
mesmo no carnaval um veículo
de expressão religiosa e ganha
produtos especiais como jogos e
outras distrações.
Mercado de bens religiosos e
midiatização – o somatório destes elementos, estratégias e
princípios – têm produzido no
campo evangélico o que é denominado por alguns estudiosos “a
espetacularização da fé”. Isso
significa tratar a fé e a religiosidade como algo a ser exposto,
apresentado, demonstrado da
forma mais atraente possível,
com a finalidade de se alcançar
público. Toda religião tem um
componente de espetáculo, de
teatralidade, de performance. Os
ritos e os rituais, relacionados ao
encanto e ao mistério, dão à religião esse tom e esse dom. O que
se observa nas últimas décadas
no campo religioso cristão no
Brasil, em especial na passagem
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Toda religião tem
um componente de
espetáculo, de
teatralidade, de
performance
Os evangélicos
passam por um
processo de
dessectarização, de
liberalização de
costumes e pela
modernidade,
ao se integrarem a
distintas esferas da
vida social e à
cultura urbana
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dos anos 1990 para os 2000, é a
religião, ela própria transformada em espetáculo, performance.
A cultura gospel atenua, portanto, no caso dos evangélicos, a
ética puritana restritiva de costumes e, ao mesmo tempo, refaz a
imagem pública deles, ao incentivar a sua inserção nas culturas do
mercado e da mídia. O sectarismo
(o isolamento para preservação da
santidade) deixa de ser um valor
primordial entre os evangélicos.
Vê-se como o consumo e o entretenimento são facilitados por uma
postura de maior inserção social
dos evangélicos, anteriormente
marcados pela crise na relação
igreja-sociedade. Tal postura resultou em um crescimento significativo no número de adeptos das
igrejas que processaram o novo
modo de vida religioso.
Com isso, a busca da santidade ganha contornos diferenciados
e passa a gerar benefícios no
“aqui-e-agora” (e não mais a expectativa de uma vida no além,
como na tradição escapista), na
busca individualizada, privatizada, de satisfação pessoal tanto do
ponto de vista da religião como
do socioeconômico (reconhecimento social, lucro financeiro,
acúmulo de bens, etc.).
Os evangélicos passam, portanto, por um processo de dessectarização, de liberalização de
costumes e pela modernidade, ao
se integrarem a distintas esferas
da vida social e à cultura urbana,
caracterizadas pelo predomínio
das novas tecnologias de comuni-
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A relativização da doutrina
confessional
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mo por aspersão feita pelo líder
de sua igreja no programa. Esses
sinais de relativização doutrinária
são evidenciados em outras esferas além da mídia.
No modo de vida gospel, a diversidade de práticas religiosas e
a doutrina das confissões são interpretadas como inibição da ação
de Deus e obstáculos à intimidade
com Deus, necessária e almejada.
São a música e o mercado que
criam um novo espaço que supera
as fronteiras denominacionais e
oferecem um modelo baseado em
uma concepção intimista de adoração, único capaz de sintonizar o
divino, já que as práticas tradicionais se revelaram incapazes disso.
Os cursos e treinamentos para a
adoração e os meios de comunicação de tão amplo alcance dos
evangélicos disseminam esse padrão teológico e comportamental
e criam uma comunidade
desterritorializada de adoração.
cação e do audiovisual, pelo
surgimento das tribos, pela
privatização da vida coletiva,
pelo individualismo, pelo confinamento em ambientes e redes
sociais restritas, pelo consumo
permanente de bens e pelo investimento em entretenimento.
Nesse contexto, a doutrina das
diferentes confissões passou a ser
algo relativizado. Com o valor
dado à música e ao consumo, com
ênfase na mídia e no entretenimento, as teologias e as práticas que a
caracterizam vão estabelecer os
princípios determinantes para os
evangélicos. Com isso, a tradição
teológica e doutrinária das diferentes confissões fica relativizada e é
até mesmo contestada em nome do
novo modo de vida.
Com a explosão gospel são
descartadas ainda as teologias
mais elaboradas. A orientação teológica e doutrinária das confissões
torna-se um empecilho para se alcançar o divino. A partir dessa
construção cultural é comum, nos
programas de debates das rádios
evangélicas de maior audiência,
ouvir metodistas ao telefone contestando a autoridade de sua igreja que lá defende o ecumenismo
ou o batismo infantil. Ou ouvir a
leitura de mensagens eletrônicas
enviadas por presbiterianos que
advogam o batismo por imersão
como o verdadeiro batismo, a despeito da explanação sobre o batis-
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É notadamente
fundamental que
as lideranças
clérigas e leigas
assumam seu
papel docente,
educando para o
sentido do
ser cristão
Demandas pedagógicas
Com base nestes pressupostos,
é preciso uma intensa revisão na
forma de as igrejas desenvolverem
sua prática educacional cristã para
responderem a esses desafios listados acima. É notadamente fundamental que as lideranças clérigas e leigas assumam seu papel
docente, educando para o sentido
do ser cristão. Afinal, um pastor,
uma pastora, uma liderança leiga
nas comunidades religiosas tem
uma tarefa pedagógica: educar as
pessoas com quem se relaciona e
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trabalha nos princípios cristãos e
nos princípios doutrinários de sua
confissão de fé.
No contexto em que a cultura gospel é hegemônica e determina um modo ser cristão, é preciso, como desafio pedagógico,
reconhecer o que deve ser estimulado desta experiência e o
que deve ser questionado com
base nos valores doutrinários da
tradição confessional.
Para isso, torna-se necessário
olhar a realidade e reconhecer a
contribuição que o movimento
gospel trouxe para as igrejas com
a valorização da variedade de ritmos populares; a valorização da
expressão corporal na liturgia; a
facilidade de acesso a uma variedade de composições e gêneros.
Identificar ainda que a música
cristã de consumo é uma realidade e tem forte aceitação, pois
busca satisfazer as demandas religiosas (oferta para a procura).
Não se pode, contudo, perder
o senso crítico e profético que caracteriza a prática cristã. Portanto,
configuram-se entre as demandas
pedagógicas das lideranças clérigas
e leigas no atual momento:
1. Questionar com os consumidores culturais gospel presentes
nas comunidades locais como se
localiza neste novo momento a
resposta cristã a demandas
sociopolíticos-econômico-culturais do Brasil; a ênfase a atitudes
mais comunitárias e não-individualistas e não-sectárias, de respeito à diversidade cultural e religiosa e de valorização da
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A prática educativa
da comunidade
certamente será
instrumento eficaz
para garantir
coerência, qualidade e compromisso
diante do atual
contexto cultural
religioso, sem
desprezar ou
desqualificar as
novidades, mas,
sim, como diz o
apóstolo Paulo,
“retendo o
que é bom”
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reflexão teológica contextualizada
que se concretize tanto nas práticas cúlticas quanto em ações de
promoção humana;
2. Orientação para o sentido
do culto e o lugar da música no
culto. O que significa cultuar a
Deus? O que significa a igreja
reunida no templo para celebrar?
Se o culto é para Deus e é um
serviço, quais são os papéis a serem desempenhados pelo pastor,
pelos músicos, pelos demais participantes do culto? Esta orientação deve ser oferecida para toda
a igreja;
3. Orientação para o lugar da
música nos diferentes momentos
do culto com coerência temática:
louvor e ação de graças, confissão,
lamentação e dedicação – como a
tradição cristã ensina o que é cantar ao Senhor; e para a seleção das
músicas, a fim de se garantir coerência teológico-doutrinária;
4. Educar para o uso da eletrônica. É instrumento de serviço
e não protagonista/condutora de
processos.
5. Orientação teológico-doutrinária: quem é o Deus que deve ser
cultuado e testemunhado com base
na herança teológico-doutrinária
da respectiva confissão de fé?
A prática educativa da comunidade certamente será instrumento eficaz para garantir coerência, qualidade e compromisso
diante do atual contexto cultural
religioso, sem desprezar ou desqualificar as novidades, mas, sim,
como diz o apóstolo Paulo, “retendo o que é bom”.
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Demandas pedagógicas no contexto das igrejas