Impactos da TV Digital Sobre a Indústria da TV Aberta: Lições da Experiência Internacional Autoria: Esther Menezes, Ruy de Quadros Carvalho Resumo O objetivo deste artigo é analisar os impactos da introdução da TV digital terrestre sobre a indústria da TV aberta. Tendo como pano de fundo a evolução das tecnologias de informação e comunicação (TIC), buscam-se, na experiência internacional, evidências de que a substituição da tecnologia de TV analógica ocasiona transformações positivas sobre a estrutura do mercado televisivo, sobre a pluralidade e diversidade do conteúdo exibido e sobre a criação de novos serviços pelas emissoras de TV aberta. A análise foi desenvolvida a partir da trajetória tecnológica da TV terrestre em países selecionados, com base em estudos já realizados e em dados atualizados do setor. A conclusão é a de que a TV digital terrestre pode propiciar grandes oportunidades de desenvolvimento dessa indústria, mas que magnitude dos benefícios é fortemente vinculada aos fatores socioeconômicos e à forma como o serviço é regulado. Com isso, pretende-se fornecer elementos para o debate sobre a introdução da TV digital terrestre no Brasil, verificando as possibilidades de inovação e de desenvolvimento da indústria brasileira de TV. 1. Introdução Mudanças tecnológicas fundamentais ocorreram com a televisão nas últimas décadas. No princípio, a programação televisiva era transmitida exclusivamente via radiodifusão. Mas essa indústria já sofreu transformações tecnológicas importantes com a introdução de formas alternativas de transmissão de TV, como o cabo e o satélite ocorrida há algumas décadas. A mais recente transformação, ainda em curso, é a digitalização do conteúdo e da transmissão televisiva. No Brasil, a digitalização da TV aberta (gratuita), transmitida via terrestre ou radiodifusão, poderá trazer importantes transformações a uma indústria na qual a maior emissora (Rede Globo) detinha, em 2002, uma média de 53,4% de audiência (Giansante et al., 2004), e cujas receitas com anúncios chegaram perto de US$ 2 bilhões nesse mesmo ano. Ao mesmo tempo, a presença do aparelho televisor em mais de 90% dos domicílios, sendo mais de 90% desses domicílios sem serviços de TV por assinatura1, atesta a importância da TV aberta no país. Nesse contexto, a TV digital terrestre é considerada como uma janela de oportunidade para promover mudanças nas atuais estruturas do mercado de televisão: ao permitir a oferta de um número maior de programas televisivos, maior qualidade de imagem e serviços interativos, a introdução da TV digital poderá permitir a ampliação da participação de novos atores e uma maior democratização das comunicações e pluralidade de pontos de vista (Galperin, 2003). O objetivo deste artigo é apresentar a experiência da introdução da nova tecnologia em outros países, fornecendo, dessa forma, elementos para o debate brasileiro e para o desenvolvimento de estudos prospectivos nesse setor. Tendo como pano de fundo a evolução das novas tecnologias de comunicação e informação (TIC), da qual deriva a TV digital, verifica-se a contribuição da TV digital terrestre para o desenvolvimento e crescimento da indústria de televisão nos países que a adotaram e em que medida a adoção dessa nova tecnologia beneficia ou prejudica os atores tradicionais do mercado televisivo, isto é, as emissoras de televisão aberta já estabelecidas antes da transição tecnológica. -1- Os possíveis efeitos de tal inovação tecnológica sobre a indústria da TV aberta e terrestre são avaliados em termos de: (i) estrutura do mercado, referente à participação das emissoras de TV nas receitas e na audiência; (ii) diversificação de fontes de informação para os espectadores; (iii) criação de novos serviços de comunicações que podem ser acessados por meio da TV digital terrestre. O desenvolvimento deste trabalho recorreu sobretudo à investigação de experiências práticas para tentar vislumbrar as possíveis novas configurações do setor de TV em outros países decorrentes inovações tecnológicas no setor. Dada a importância da TV aberta como serviço de interesse público (Comissão Européia, 2003), a opção neste estudo foi pelo foco nas emissoras de TV terrestre. Este artigo foi organizado da seguinte forma. Na seção a seguir, são apresentadas as possibilidades de mudanças no serviço de TV que as novas tecnologias podem ocasionar no setor. Em seguida, apresentam-se os condicionantes não-tecnológicos dessas mudanças. Tais condicionantes são de ordem econômica, social e político-regulatória, e muitos deles encontram-se mapeados por algumas abordagens teóricas empregadas em estudos de impacto de inovações tecnológicas. Por fim, são apresentadas as experiências dos países selecionados para identificar as principais transformações ocorridas no setor de TV aberta. 2. As transformações tecnológicas e suas possíveis conseqüências para o setor televisivo A convergência das comunicações consiste na possibilidade de redes de telefonia, dados, cabo ou rádio, por exemplo, oferecerem um mesmo serviço de comunicação para transmitir informação ou entretenimento; ou ainda, acessar o mesmo serviço de comunicação (voz, dados ou conteúdo audiovisual) por meio de diferentes dispositivos, como o televisor, o telefone celular ou o computador. Tal convergência foi possibilitada por diferentes frentes de avanços tecnológicos, como as técnicas de transmissão de dados por pacotes que otimizam o uso das redes (na qual se baseia a internet); o aumento da inteligência das redes dotadas de maior capacidade computacional; e a digitalização do conteúdo (texto, imagem, som, vídeo), facilitando a sua transmissão e armazenamento em formatos comprimidos. Aplicada à TV, a digitalização amplia a quantidade de informação que pode ser transmitida, o que é benéfico, em princípio, aos atores hoje presentes no setor televisivo. Tal vantagem também potencializa a competição ao permitir maior número de canais de TV, cuja possível conseqüência é a fragmentação da audiência, processo que se iniciou em décadas passadas com a oferta de canais de TV via cabo e satélite (que são plataformas de TV associadas em geral aos serviços de TV paga). Esse fato pode acentuar a desvalorização da propaganda e da de transmissão do conteúdo, prejudicando esse tradicional mecanismo de obtenção de receitas das empresas de televisão, em especial em países cuja população apresenta elevado poder aquisitivo, mais propensas a pagar pela assinatura de um serviço. Nesse sentido, as novas tecnologias poderiam contribuir para minar justamente a fonte essencial de sustentação do atual modelo de negócio da televisão terrestre: as receitas com propaganda (OECD, 2004b). Além disso, com a convergência entre a TV e as demais redes de comunicação, setores como a telefonia e a Internet tornam-se tecnicamente capazes de transmitir conteúdo televisivo, passando a poder concorrer com as emissoras de TV terrestre. Um exemplo de serviço concorrente com a TV é o de transmissão de conteúdo audiovisual por meio da Internet de alta velocidade, ou IPTV (OECD, 2004a). Tal serviço apresenta a vantagem de conferir maior flexibilidade para o usuário escolher o conteúdo desejado, o horário, o local e o dispositivo (televisor, computador ou um terminal portátil) de sua preferência para usufruir o conteúdo. Por fim, a internet tem o potencial de disponibilizar uma grande quantidade de conteúdo facilmente acessível por meio de sites de busca. -2- No momento, a ameaça que essas tecnologias podem representar ainda é amenizada ou impedida por barreiras de diversas ordens. A principal delas é a regulatória: por ser considerada como um serviço público, que deve ser universalizado (e portanto, preservado de algum modo), a TV é um setor altamente regulado, e sua regulação é diferenciada do restante do setor de comunicações. Além disso, a falta de padronização das tecnologias, o valor ainda elevado das assinaturas dos serviços de banda larga e os problemas relativos a direitos autorais são fatos que retardam o avanço das tecnologias que concorrem com a TV. Por fim, embora a internet de alta velocidade esteja se difundindo rapidamente, ela depende primordialmente de receitas com assinatura (Advanced-Television, 2008), o que pode restringir o seu avanço nos países mais pobres. Vale destacar esse último aspecto como de importância fundamental para o Brasil, onde a maioria da população conta apenas com TV aberta. Tais fatos impõem um forte condicionante sobre os impactos da TV digital e de outras TICs na indústria televisiva. Afinal, as novas tecnologias “habilitam algumas escolhas e impedem outras” (Galperin, 2004b:12), daí a serem referidas por Mansell (2004) como tecnologias habilitadoras (enabling technologies), isto é, que permitem uma série de facilidades cujo potencial de exploração depende também de escolhas de ordem não-técnica, que por sua vez são influenciadas pelos atores afetados pela nova tecnologia. Com efeito, tais potencialidades revelam-se como fonte de preocupação dos atores tradicionais desse mercado no Brasil, onde os representantes do setor televisivo terrestre manifestam temor a uma mudança mais drástica na regulação que possa representar uma ameaça à sua participação no mercado. Tal posicionamento é refletido, por exemplo, pelo presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) em Pizani (2005), ao defender uma evolução tecnológica suave, análoga à TV em cores que substituiu a TV em preto-e-branco no passado, de modo a preservar a TV brasileira no futuro. De acordo com Pizani (2005), introduzir mudanças regulatórias que abrem a possibilidade de transformar as estruturas desse mercado seria “jogar no lixo uma indústria que, até aqui, cumpriu como poucas a sua missão: entreter e informar os brasileiros, unir o país, promover a cultura nacional e fortificar nossos valores comuns”. De fato, a importância da indústria brasileira de televisão não seria apenas econômica, mas também cultural. O conteúdo nacional é essencial para a preservação da cultura do país, pois desempenha um papel na formação da identidade cultural em sua transmissão intergeracional (Katz, 2006). Conforme visto nesta seção, apesar das possibilidades tecnológicas, há condicionantes de natureza socioeconômica e político-regulatória a influenciar os impactos das novas tecnologias sobre a indústria de TV aberta. Tais condicionantes são discutidos na próxima seção. 3. Condicionantes dos efeitos da digitalização da TV: fatores socioeconômicos e políticoregulatórios Nesta seção, são apresentados alguns conceitos oriundos de abordagens teóricas em que comumente se baseiam estudos sobre inovação tecnológica, com o intuito de enriquecer a análise dos impactos da TV digital nos estudos de casos dos países selecionados. Em primeiro lugar, cabe observar as razões que justificam a regulação do setor das emissoras abertas de TV: pelo seu caráter de serviço universal; pela necessidade de organizar o uso do espectro de freqüência por várias empresas, para evitar interferências e usos indevidos; e pela tendência à geração de externalidades negativas, como a veiculação de conteúdo socialmente indesejado. A tendência à concentração do mercado de TV advém, além da escassez de -3- espectro, dos elevados investimentos iniciais para implantar uma emissora e para produzir conteúdo, o que é reforçado pelas economias de escala advindas do custo marginal nulo da transmissão terrestre, que independe do número de televisores sintonizados dentro da área de alcance do sinal de televisão. Além de atuar para inibir abusos do poder de mercado, já que se trata de um setor com características intrínsecas que o induzem fortemente à oligopolização, a regulação pode também incentivar a produção de uma quantidade maior de conteúdo para favorecer a veiculação de programas educativos e de interesse local (OECD, 2004a). A digitalização da TV altera as condições que conformam a estrutura desse mercado. Na indústria da informação como um todo, a digitalização facilita a transmissão e reprodução de conteúdo, acentuando a queda dos custos de investimento e de operação. Por um lado, esse processo reduz as barreiras econômicas à entrada no mercado; por outro, contribui para aprofundar as economias de escala, que constitui um dos fatores que favorece a concentração. Segundo Noam (2006), isso explicaria a tendência à concentração observada na indústria de informação americana nas últimas décadas. Os mercados de TV a cabo e satélite apresentam um padrão similar em decorrência da digitalização do conteúdo e da transmissão dos programas televisivos por assinatura. Vale observar que, por exigir técnicas especiais de produção e maior capacidade de armazenamento e de transmissão, o conteúdo audiovisual em alta definição implica em custos mais altos, que compensam parte do efeito redutor da digitalização da TV sobre as barreiras à entrada, acentuando a tendência à concentração. Por isso, a TV digital pode promover mudanças na estrutura do mercado ao reduzir os custos de investimento inicial e de operação, favorecendo a entrada de novos atores. Contudo, Mansell (2004) observa que, embora as novas tecnologias abram essa possibilidade de “romper a estrutura dos velhos mercados de mídia e comunicações”, as estruturas de poder que emergem das estratégias individuais contemplam a concentração da indústria. No caso particular do mercado televisivo, ao ampliar o número de canais de programação, abrindo espaço para a participação de um número maior de atores (por exemplo, emissoras de TV) teria como possível conseqüência o aumento do poder de barganha dos produtores de programas e de conteúdo, que teriam mais compradores para seus produtos. Essa nova condição poderia estimular a verticalização do setor caso as emissoras reajam a esse processo adquirindo produtoras para contrabalançar esse poder de barganha e assegurar um certo controle de qualidade sobre o conteúdo produzido. A oferta de conteúdo em alta definição poderia ser outra estratégia monopolizadora a ser adotada pelas grandes empresas já estabelecidas: além de conferir um diferencial ao seu conteúdo, a alta definição encarece os custos de produção e amplia, com isso, as barreiras à entrada de novas empresas no mercado. Com respeito à atuação dos atores face às novas tecnologias, abordagens sociológicas baseadas no construtivismo social também podem ajudar a vislumbrar os impactos da TV digital. A idéia de que a tecnologia é socialmente construída e interpretada, apresentada em Pinch e Bijker (1990), bem como o conceito de rede de atores como elemento modelador da tecnologia, segundo Callon (1990), formaram a base teórica de muitas análises de impactos das TICs, como Preston (2002), que discute as reais dimensões dos impactos dessas tecnologias, e Lievrouw (2002), que apresenta estudos de caso de tecnologias como o videotexto e o e-mail. A exemplo desses autores, é possível aplicar esses conceitos no caso da TV digital. Segundo uma interpretação baseada nessas abordagens, as distintas trajetórias dessa tecnologia em alguns países refletem a influência dos interesses dos atores envolvidos sobre as características da tecnologia e da regulação que define o seu uso efetivo. Adotando uma abordagem semelhante às dos estudos sociais da tecnologia, Galperin (2004b) também menciona que as interações entre os atores e os resultados das ações governamentais são moldados pelos arranjos políticos e institucionais, que representam o sistema político e -4- econômico, o regime político, as organizações de grupos de interesse, o sistema eleitoral e o arcabouço regulatório, e até mesmo os procedimentos e rotinas operacionais padrões dos organismos governamentais. Além disso, há os efeitos da herança histórica (path-dependence) geradora de custos afundados, resultantes de decisões políticas e de estratégias empresariais passadas que condicionam as trajetórias futuras das políticas. Isso torna custosa a mudança para os atores já presentes no mercado, o que explica a sua resistência “a políticas que alteram significativamente as regras estabelecidas do jogo, o que facilita as escolhas políticas consistentes com o regime institucional existente” (Galperin, 2004b:18). Por tudo isso, é importante ter em mente a forma como a regulação foi implementada em cada país, pois dela também derivam as conseqüências da adoção da TV digital, até mesmo mais do que o avanço tecnológico propriamente dito (Galperin, 2004b). A maior prova disso são as diferenças no processo de substituição da TV analógica entre países. São ilustrativas desse fato as diferenças entre os casos dos Estados Unidos e do Reino Unido, descritas na próxima seção. Com efeito, a tecnologia interage modificando as suas características, mas a determinação não anda em apenas um sentido. Disso decorre que as controvérsias geradas pelas possibilidades da TV digital (já ilustrada pela opinião dos representantes do setor de TV aberta no Brasil, mencionada na seção anterior) revelam a dificuldade de se implantar um cenário de pleno uso das suas funcionalidades. Os atores presentes na indústria buscam a melhor forma de se apropriarem dos ganhos que uma nova tecnologia pode trazer, mesmo que isso signifique não permitir a sua exploração em todo o seu potencial habilitador. Por isso, apesar dos potenciais a que a nova tecnologia habilita, é possível um cenário em que as implicações da TV digital terrestre podem não se diferenciar substancialmente da TV analógica. Cabe uma nota a respeito da pluralidade diversidade de conteúdo, apontada como um dos principais benefícios das novas tecnologias de TV. A desconcentração do mercado pode criar um ambiente propício a uma programação televisiva que reflita a diversidade de opiniões e de pontos de vista, mas não é condição suficiente. A abundância de fontes aumenta a probabilidade de divulgação de uma grande variedade de pontos de vista, mas é possível situações contra-intuitivas como alguns casos descritos em Comissão Européia (2007), nos quais as elevadas margens de um mercado concentrado teriam dotado as empresas de mais recursos para investir em programas de alta qualidade e custos mais elevados. Tais casos revelam que diversidade de conteúdo e eficiência econômica podem ser conflitantes porque a eficiência econômica pode ser alcançada por um determinado nível de concentração de mercado, em detrimento da pluralidade de visões. Além disso, as mídias necessitam satisfazer também aos anunciantes, que têm interesses muitas vezes conflitantes com os telespectadores: enquanto estes apresentam preferências e interesses heterogêneos, requerendo conteúdo diversificado, os anunciantes dão preferência para a veiculação de sua propaganda entremeada com programas destinados ao público de massa. Tal fato reforça a tendência ao “paradoxo dos múltiplos canais”, que se refere à homogeneização do conteúdo oferecido mesmo em um ambiente com várias opções de programação televisiva (OECD, 2004b). Cabe ressaltar que os estudos que tentam medir a pluralidade e diversidade de conteúdo na TV divergem bastante entre si, em decorrência de diferenças metodológicas importantes (a esse respeito, ver discussão sobre estudos sobre pluralidade e diversidade da TV nos Estados Unidos na próxima seção), e que ainda não há indicadores concretos para medir pluralidade e diversidade, embora haja quantidade significativa de estudos sobre o assunto (Comissão Européia, 2007). Embora bastante distintas entre si, todas as abordagens convergem para a conclusão de que a inovação tecnológica induz mudanças sócio-econômicas e político-regulatórias ao habilitar -5- novos patamares de eficiência produtiva e novas concepções de serviços, mas que os resultados dependem de como os fatores tecnológicos interagem com os demais, e como os atores e instituições se enfrentam de modo a chegar a um consenso sobre como uma nova tecnologia deve ser aplicada e explorada. Na próxima seção, os estudos de caso dos países selecionados ilustram as idéias aqui apresentadas. 4. A experiência internacional: Estados Unidos e Reino Unido A justificativa da escolha dos Estados Unidos e do Reino Unido para os estudos de caso devese ao pioneirismo desses países na adoção da TV digital terrestre, e à maior quantidade de dados que dispõem. Além disso, são exemplos que ilustram o quão distintas podem ser as experiências de adoção de uma mesma tecnologia em função das diferenças entre os condicionantes não-tecnológicos. 4.1. Reino Unido O setor de televisão do Reino Unido é formado por empresas emissoras e programadoras, tanto de propriedade pública como privada, que recebem repasses públicos advindos de uma taxa anual paga pelos proprietários de aparelhos de televisão e rádio. Os repasses públicos que recebem são proporcionais ao conjunto de obrigações que lhe é exigido cumprir, como a veiculação de um percentual mínimo de determinados tipos de programas e de conteúdo independente, dentre outras que o órgão regulador estabelece (Ofcom, 2006). A TV digital terrestre foi introduzida no Reino Unido em 1998, quando cerca de 27% dos domicílios já usufruía de algum serviços de TV por assinatura. Ao introduzir a TV digital, o Reino Unido autorizou a oferta de um número maior de canais digitais de programação televisiva, com uma definição padrão de imagem, permitindo-se também que as emissoras já existentes ofertassem mais de um canal digital. Tal opção tinha em vista ampliar a escolha do consumidor, prover benefícios para a indústria, oferecer mais variedade de serviços interativos, proporcionar um uso mais eficiente do espectro de freqüência e estimular a competição (Goodwin, 2005). O Reino Unido é o país que atualmente apresenta o maior índice de penetração da TV digital nos domicílios, de 20,3% em 2005, conforme dados da Tabela 1. Ao final do mesmo ano, o sinal de TV digital terrestre já apresentava uma cobertura geográfica equivalente a 75% da população (Ofcom, 2005). Quanto às demais plataformas digitalizadas, o satélite é o que apresenta maior presença nas residências. Após a digitalização da TV terrestre, a transmissão e a programação continuaram a ser atribuições de diferentes atores: a primeira, do operador de rede, e a segunda, das programadoras de televisão, o que já vinha ocorrendo desde 1997, quando a BBC terceirizou a sua rede de transmissão. A partir de 2003, a receita com assinaturas de TV paga (via satélite e cabo) ultrapassou a receita com propaganda, que responde atualmente por apenas um terço das receitas. As taxas cobradas da população constituem a terceira maior fonte de receitas (Ofcom, 2005). -6- Tabela 1 - Dados selecionados do mercado de TV no Reino Unido Domicílios com TV (em percentual sobre domicílios) TV digital (cabo, sat. e terrestre) TV digital terrestre TV por assinatura 15,5 2,8 34 61,9 20,3 41 80,5 nd 44 Receitas do setor Ano Total Assinaturas Anunciantes Taxas públicas Outros 2000 100 26,5 44,9 23,5 5,1 2006 100 37,4 32,2 23,0 7,4 Participação nas receitas com anúncios (%) Ano Multicanais Canais analógicos 2000 17 83 2006 30 70 Participação na audiência das 4 principais emissoras-programadoras de TV terrestre Somente domicílios com multicanais Ano Total dos domicílios (digital terrestre, cabo e satélite analógicos e digitais) 2001 81,9 61,7 2004 77,5 64,1 2005 Nd 66,5 2006 Nd 68,9 Fontes: Ofcom (2005, 2006 e 2007) e OECD (2007). Ano 2000 2003 2005 A participação dos canais tradicionais nas receitas com anunciantes oscilou entre 2000 e 2005, mas as suas receitas com anúncios cresceram menos do que as de canais pagos. A audiência dos canais tradicionais na TV aberta manteve-se relativamente estável, apresentando ligeira queda, mas cresceu na TV paga graças aos novos canais digitais terrestres que essas mesmas empresas passaram a oferecer em maior número. Na avaliação do Ofcom (2005), isso pode indicar a força das grandes empresas tradicionais estabelecidas que, com recursos para manter a qualidade de seus programas e reforçar o marketing de suas marcas, podem vir a se tornar preponderante também entre os múltiplos canais digitais abertos e pagos, relegando aos canais alternativos os nichos de audiência. Ofcom (2005) aponta que o principal benefício do aumento do número de canais é a maior concorrência, que induz à redução dos custos de veiculação da propaganda, propiciando a ampliação do conjunto de empresas com condições de pagar por um anúncio na TV. Isso diz respeito em especial aos canais via satélite e a cabo, que são mais numerosos. Por outro lado, essa tendência pode reduzir a importância da propaganda, cujo apelo aos anunciantes está em boa medida nas dimensões do público à qual é dirigida. Segundo Raven et al. (2004), a tendência global aponta para o crescimento do mercado de anúncios para os novos canais pagos. Observa-se uma queda acentuada dos preços pagos pelos anunciantes para veicular propaganda de 2001 para 2003, fato atribuído ao boom da internet. Essa tendência deve persistir no longo prazo, dada a perspectiva de surgimento de novos canais, que deve conduzir à fragmentação da audiência e à redução da audiência média por canal, forçando, por sua vez, a uma queda do valor do tempo de veiculação do anúncio e, em conseqüência, do volume das receitas tanto dos novos canais como dos canais abertos tradicionais. Quanto à produção de conteúdo no Reino Unido, esse setor é dominado por empresas de TV com capacidade de produção própria (como BBC e ITV), mas o setor independente tem crescido. As sete principais produtoras independentes de conteúdo tiveram, individualmente, uma participação variando entre 3% e 10% das receitas totais, perfazendo juntas 46% das receitas do setor (Ofcom, 2005). Só BBC foi responsável por 45% do total investido em conteúdo inédito no ano de 2006, incluindo produção independente e própria (Ofcom, 2007). -7- Do total de horas de programação, 31% correspondiam a conteúdo independente na média de canais da BBC em 2005, contra 33% na ITV, 82% no Channel 4 e 88% no Five. Aparentemente, as maiores empresas tendem a aproveitar as economias de escala e escopo para verticalizar a produção de conteúdo, ao passo que as empresas menores contam mais com conteúdo de terceiros para preencher a sua grade de programação. Com base nas informações expostas, tem-se que a característica mais marcante do serviço de TV digital terrestre no Reino Unido foi a ampliação das opções de programação disponíveis ao público na TV aberta, provendo aos usuários um conjunto maior de opções de conteúdo. Embora os canais tradicionais tenham perdido espaço para os múltiplos canais transmitidos pelos serviços de TV por assinatura, a oferta de vários programas digitais em lugar de uma única programação analógica, aliada à boa aceitação dos canais analógicos tradicionais junto ao público tem contribuído para o fortalecimento das empresas que compõem o setor tradicional de TV aberta face à concorrência acirrada dos canais pagos, evitando perdas maiores de participação de mercado. A se confirmar a tendência sugerida por Raven et al. (2004) de que os multicanais tendem a ter uma participação cada vez maior na audiência (e por conseqüência, na receita total do setor), a transformação do setor de TV terrestre para oferecer multicanais terá sido um passo importante para a sobrevivência dos canais originalmente presentes no setor de TV terrestre no Reino Unido. Nesse sentido, a digitalização da TV terrestre, aliada a uma regulação que permite oferecer maior variedade de canais, contribuiu para fortalecer primordialmente as empresas de TV aberta já existentes no Reino Unido. Quanto à concorrência, muitas programações alternativas foram oferecidas pelas próprias empresas já estabelecidas de TV. Por sua vez, o aspecto da pluralidade e diversidade é difícil de avaliar, mas podem-se vislumbrar dois fatos: o primeiro é a ampliação da demanda por programas de empresas já estabelecidas e com grande participação de mercado (como a BskyB, uma das fornecedoras de programas transmitidos via TV digital terrestre). O outro efeito é o estímulo à produção independente, que advém mais da exigência de veicular um mínimo de horas de programação de terceiros do que dos avanços tecnológicos por si só, embora a eles deva a criação dessa possibilidade, a julgar pelo percentual significativo de conteúdo independente veiculado pelas grandes emissoras. A ampliação do número de canais contribuiu para dinamizar esse mercado, inclusive ampliando o número de atores nas atividades de produção de conteúdo e de programação, mas não necessariamente para ampliar de modo maciço a competitividade e diversidade no elo da programação e da transmissão, atividades que continuam sendo dominadas pelos atores tradicionais, isto é, as emissoras e programadoras de TV analógica. 4.2. Estados Unidos O mercado americano de transmissão de TV terrestre é formado por um conjunto reduzido de grandes redes de televisão (incluindo a rede pública), por redes afiliadas às grandes redes comerciais (a maioria) e por estações independentes. Todas possuem infra-estrutura própria de rede, podendo, por isso, ser designadas por emissoras-programadoras. Desde a introdução da TV a cabo, as redes de TV terrestre têm perdido audiência, que era de 86,5% em 1985 e 50,3% em 2001, contra 13,5% e 49,7%, respectivamente, para a TV a cabo nos mesmos anos, conforme os dados apresentados na Tabela 2. -8- Tabela 2 - Dados selecionados do mercado de TV nos Estados Unidos Participação na audiência % Participação nas receitas com anúncios % TV terrestre Tv a cabo TV terrestre Tv a cabo 86,5 13,5 95,4 4,6 67,0 33,0 84,1 15,9 50,3 49,7 71,5 28,5 Assinantes (percentual sobre domicílios) Ano Satélite Cabo Total 1985 0 4,7 4,7 1995 4,8 64,8 69,6 2001 17,7 65 82,7 Domicílios com TV digital total em 2003 40,4% Domicílios com TV digital terrestre em 2003 1,2% Fontes: Levy et al. (2002); OECD (2007). Ano 1985 1995 2001 Segundo Levy et al. (2002), as receitas com propaganda da TV a cabo americana têm crescido a uma velocidade maior do que as da TV terrestre. Apesar disso, os autores acreditam que os canais abertos ainda apresentam grande atratividade junto aos anunciantes e continuarão a ter força no mercado. Evidências disso são o volume relevante de receitas atuais e o aumento do número de estações nos últimos dez anos. Além disso, o valor do tempo de anúncio na TV terrestre é maior, indicando que os anunciantes ainda valorizam mais a propaganda na TV aberta do que nos canais pagos. Além disso, o volume total de receitas das redes terrestres ainda são bem maiores do que as da TV a cabo, assim como a audiência de cada rede de radiodifusão é maior do que a audiência individual dos principais canais exibidos via TV a cabo. Adicionalmente, Kwerel e Levy (2006) afirmam que essa indústria ainda apresenta vigor e é atualmente a responsável pela oferta da programação mais popular, com a mais abrangente audiência, o que representa um diferencial importante em relação aos serviços por assinatura. Motta e Polo (2004) lembram que, mesmo com a ligeira diminuição da concentração da TV nos Estados Unidos nos anos 1990, em decorrência da entrada de pequenas operadoras no mercado, as grandes redes continuaram tendo parte relevante da audiência, cabendo às pequenas redes oferecer programação de nicho. Com relação à produção de conteúdo, segundo Forrester (2000), a partir de 1991, as regras que limitavam a exibição de conteúdo próprio pelas emissoras (evitando a verticalização do mercado) foram progressivamente suavizadas até a sua total abolição em 1995, possivelmente para favorecer a TV terrestre como resposta ao avanço da concorrência representada pelas plataformas de TV a cabo e satélite. A TV digital terrestre nos Estados Unidos configura-se hoje como um serviço semelhante ao que ainda é ofertado via TV analógica, sem oferta de canais adicionais, mas com imagem em alta definição. A adoção dessa característica decorre de um dos principais motivadores da transição tecnológica: a revitalização da indústria americana de eletrônicos, cujo mercado já se encontrava em fase de saturação. Acreditava-se também que a elevada qualidade de imagem tivesse apelo suficiente para deter a queda de audiência da TV terrestre observada nas últimas décadas (Galperin, 2004a). Contudo, até recentemente, constata-se uma baixa penetração da TV digital terrestre no país (conforme Tabela 2). As causas usualmente apontadas são preço elevado do televisor em alta definição e dificuldades financeiras de algumas emissoras para a compra de equipamentos novos, segundo Levy et al. (2002). Além disso, a oferta de conteúdo em alta definição ainda é limitada, principalmente quando se observa a abundância de programação oferecida pelas -9- redes de cabo. Atualmente, 10% dos domicílios americanos usufruem conteúdo em alta definição em alguma das plataformas de TV (isto é, contando, além da TV digital terrestre, a TV a cabo e a via satélite, segundo Idate, 2007). É visível no caso americano a importância da rede de atores (para empregar o conceito de Callon, 1990, mencionado na seção anterior) interessados no processo, evidenciada pelo grau de difusão da TV digital e a compatibilização dos interesses das emissoras, dos fabricantes e das possibilidades financeiras dos usuários. Segundo Galperin (2003), o resultado da desarticulação dos interesses no processo de decisão sobre a TV digital nos Estados Unidos foi a valorização excessiva da imagem de alta definição como característica determinante de seu sucesso, atendendo aos interesses dos fabricantes, em contraste com a dificuldade das emissoras oferecerem conteúdo em alta definição sem a contrapartida do aumento de receitas. O resultado tem sido, até o momento, uma tecnologia que ainda é cara ao consumidor final. Até o momento, os manires beneficiados foram as emissoras terrestres, que tiveram o uso do canal adicional de freqüência flexibilizado para tentar alavancar a TV digital terrestre. Devido à baixa velocidade de adesão da população a essa nova tecnologia, os Estados Unidos aplicaram algumas medidas de estímulo, como sugerir prazos às emissoras para exibir determinados percentuais de programação em alta definição, estabelecer um cronograma para os fabricantes de televisores oferecerem progressivamente televisores com conversores embutidos, isto é, integrados (Levy et al., 2002) e, mais recentemente, subsídios a set-top boxes para acelerar a transição analógica-digital (Kwerel e Levy, 2006). Recentemente, algumas estações locais e emissoras públicas vem testando a audiência com a transmissão de múltiplos canais de programação com imagem em definição padrão no lugar de um único canal com conteúdo em alta definição (FCC, 2006). Embora a TV digital terrestre ainda não tenha se difundido no mercado americano, é possível imaginar seus efeitos a partir da experiência com a introdução de outras tecnologias de transmissão televisiva, como a TV a cabo, e das tendências da indústria da informação como um todo, apresentadas por Noam (2006). Durante as últimas décadas, os Estados Unidos têm diminuído as obrigação de programas e as restrições à propriedade de mídia e à atribuição de licenças de operação de TV terrestre (Galperin, 2004a). Aliadas às mudanças tecnológicas, tais medidas têm gerado efeitos sobre a estrutura de mercado, tema amplamente estudado por Noam (2006). Segundo este autor, no mercado das estações e redes de TV e de redes e operadores de cabo e satélite, a concentração de mercado caiu em 1992 e voltou a crescer de modo acentuado nos anos 2001 e 2005. Essa dinâmica foi moldada, por um lado, pela entrada dos múltiplos canais por assinatura no mercado, constituindo uma força desconcentradora; e de outro, pelas mudanças regulatórias que afrouxaram as restrições à concentração aplicadas desde os anos 1980 até mudanças na legislação em 1996 para incentivar a entrada de novas empresas de telecomunicações e TV, estimulando as fusões e aquisições entre empresas. O autor observa ainda que, no setor de comunicação de massa como um todo (inclundo outros meios de comunicação, como os impressos), verifica-se que o crescimento da concentração foi maior nos segmentos que passaram pela digitalização (isto é, os de TV a cabo e satélite). Desses fatos, infere-se que a concentração das comunicações de massa tende a continuar a crescer após incorporar os avanços tecnológicos da indústria da informação (como a digitalização), o que sugere que a tecnologia por si só não conduz a uma dinâmica favorável à competitividade e à ampliação da diversidade de atores participantes desse mercado, sendo necessárias políticas para dar um estímulo adicional ao desenvolvimento de um ambiente mais plural (Noam, 2006). - 10 - Cabe lembrar que essa tendência do grau de participação de mercado é diferente daquela verificada para o grau de concentração da propriedade dessas empresas: a participação dos cinco maiores acionistas declinou entre as cinqüenta maiores empresas de mídias de massa. Atualmente, os 14 maiores investidores institucionais dos EUA detêm 21,2% das 25 maiores firmas do mercado de mídia de massa e 26% das empresas de TI e telecomunicações. Com relação à pluralidade e diversidade de fontes e de conteúdo, os estudos feitos até o momento apresentam metodologias distintas e resultados divergentes. Por exemplo, Einstein (2004) toma como diversidade a variedade de tipos de conteúdo ou gêneros exibidos na TV (por exemplo, seriados, filmes e notícias). Com base nessa definição, a autora constata que, a partir dos anos 1980, a diversidade reduziu-se, concluindo que uma estrutura de mercado menos concentrada e com mais ofertas de programação, decorrente de um número maior de canais, não conduz necessariamente à diversidade do conteúdo. Contudo, Alexander e Cunningham (2005) concluem que há uma uma relação inversa entre concentração de mercado de estações de TV e diversidade nos Estados Unidos em um estudo em que se adota como medida de diversidade o tempo que as emissoras de TV terrestre dedicam a notícias exclusivas. Por outro lado, segundo Motta e Polo (2004), gastos com programação são proporcionais à audiência: à medida que as emissoras auferem mais receitas de anunciantes, aumenta a sua capacidade de produzir programas de alta qualidade, o que pode se juntar aos fatores que determinam elevadas barreiras à entrada nesse mercado. Nos Estados Unidos, em 1993, as grandes redes dedicavam 74% de seu orçamento à programação, ao passo que as redes de cabo apresentavam um custo com programação de 33%, e as estações locais, 23%. Essa configuração dual de mercado seria reflexo, segundo os autores, de um trade-off entre qualidade e diversidade de programação. Poucas emissoras teriam condições de oferecer uma programação de alta qualidade, que tem custos elevados, o que leva necessariamente à concentração da audiência. Em síntese, os estudos mencionados ilustram a dificuldade de estabelecer critérios de avaliação para a diversidade de conteúdo. Sugerem, também, que a equação entre diversidade e grau de concentração do mercado de TV é bastante complexa, e que até mesmo a hipótese intuitiva de que a desconcentração contribui para a pluralidade e diversidade deve ser vista com ressalvas em alguns casos. No caso da TV a cabo, viu-se que, mesmo com um número maior de canais, o mercado se manteve concentrado, tendo as redes de emissoras-programadoras mais audiência cada uma do que os canais mais vistos da TV a cabo que são exibidos exclusivamente por esse meio. Esse fato induz à conclusão de que é plausível a hipótese de que o mesmo poderá ocorrer no caso da TV digital terrestre. 4.3. Balanço: Estados Unidos versus Reino Unido A estratégia de implantação da TV digital terrestre no Reino Unido levou em conta a necessidade de estimular a competitividade no setor, estabelecendo, para isso, a ampliação do número de canais. Dados e estudos do setor sugerem que essa opção fortaleceu as empresas tradicionais detentoras de canais terrestres já estabelecidos, face à concorrência dos canais pagos, e estimulou a demanda por produção de conteúdo em decorrência do maior número de canais de programação. Aliada à obrigatoriedade de veicular um percentual mínimo de conteúdo independente pelas emissoras de TV, tal abundância de canais favoreceu esse segmento da indústria. Especialmente no caso do Reino Unido, abriu-se o mercado de TV para a participação de mais empresas, mas as grandes emissoras terrestres também saíram ganhando com a possibilidade - 11 - de incorporar as inovações tecnológicas em suas estratégias e oferecer mais canais de programação, permanecendo, assim, preponderantes, apesar de persistir a ameaça da perda de participação na audiência e nas receitas. Por sua vez, a TV digital terrestre nos Estados Unidos foi implementada de modo a preservar as características essenciais do serviço de TV analógica, o que evidencia o peso dos fatores não-tecnológicos nas decisões a respeito do emprego dessa inovação, conforme apontado por Galperin (2004a). Nesse país, a difusão da nova tecnologia tem sido mais lenta em função de preços elevados dos receptores e pouco apelo do serviço junto ao público face à forte concorrência dos serviços de TV por assinatura. A difusão da TV digital terrestre nesse país não tem ocorrido conforme o esperado, reforçando a idéia de que as inovações tecnológicas são condição necessária mas não suficiente para ocasionar grandes transformações na indústria. A partir da trajetória de outras tecnologias de TV nos Estados Unidos, é possível notar que, apesar da TV por assinatura se encontrar em mais da metade dos domicílios americanos, parte relevante da audiência ainda pertence às grandes redes de TV terrestre, sugerindo que essas emissoras têm margem de manobra para manter uma participação relevante nesse mercado, mesmo com a introdução de novos canais digitais propiciados pelas novas tecnologias. Além disso, o fato de algumas emissoras terem optado recentemente por testar, junto à audiência, a oferta de múltiplos canais digitais, revela a possibilidade das empresas tradicionais de se beneficiar das novas tecnologias incorporando-as em suas estratégias. Com respeito à diversidade de fontes de informação e de opiniões veiculadas aos espectadores, os estudos de caso mostram que a disponibilização de um volume maior de conteúdo possibilitada pelo maior número de canais digitais não se traduz automaticamente em maior heterogeneidade em termos opiniões e pontos de vista veiculados. Vale uma nota sobre os novos serviços interativos e móveis de TV digital. Esses serviços representam possibilidade de novas fontes de receitas, em um cenário em que a TV aberta perde audiência, concorrendo não somente com os canais pagos como também com outras mídias, como a internet. Contudo, nos países estudados (como em outros), ainda são incipientes e muitos se encontram em fase experimental, o que leva a crer que, no curto e médio prazos, deve predominar a programação televisiva como serviço majoritário de TV. A exemplo do que ocorreu com outras mídias no passado, a programação televisiva tradicional terá serviços que a substituam parcialmente e que a complementem, tendendo, portanto, a conviver e a ser complementada pelos novos serviços interativos e móveis, mas não completamente substituída. 5. Conclusões Conforme apresentado na Introdução, as decisões sobre a TV digital terrestre no Brasil podem ter implicações socioeconômicas e culturais de alta relevância em um país onde há um grande número de famílias de baixa renda para quem o serviço de TV aberta representa a única possibilidade de acesso à programação televisiva. Tanto quanto decisões de ordem técnica, as opções regulatórias condicionarão os impactos sobre a indústria da TV no país. Nesse contexto, o objetivo deste artigo foi verificar o que tem ocorrido com essa indústria nos países onde a digitalização da transmissão de TV terrestre encontra-se em curso. Com base na análise de dados empíricos da indústria em países selecionados, conjugada a conceitos oriundos de abordagens teóricas empregadas em estudos tecnológicos, vislumbramse as algumas direções para as respostas às questões que nortearam este trabalho. É fato que as inovações tecnológicas favorecem o crescimento e desenvolvimento dos segmentos da indústria da TV aberta, incluindo transmissão e produção de conteúdo. Apesar de haver possibilidade de entrada de novos atores, aqueles já estabelecidos podem rever as - 12 - suas estratégias para incorporar as novas tecnologias, fazendo com que trabalhem a seu favor para preservar a sua participação de mercado, dentro dos limites dados pela regulação. Exemplo disso é o Reino Unido, onde a introdução da TV digital terrestre, combinada com uma regulação que permite oferecer maior variedade de canais, contribuiu para fortalecer as empresas de TV aberta já existentes face à concorrência do grande número de canais via cabo e satélite. Esse caso mostra que a indústria tradicional pode ser fortalecida pelas novas tecnologias, seja por meio de sua influência sobre a conformação de uma regulação que lhes seja favorável, seja pela incorporação das inovações tecnológicas em suas estratégias de mercado, mesmo quando essas estratégias implicam em mudanças mais drásticas em sua atuação de mercado, como a exibilão de mais canais de programação Os produtores independentes no Reino Unido também foram favorecidos pela regulação referente à veiculação de um percentual mínimo obrigatório de conteúdo independente pelas emissoras de TV. Mas é difícil estimar em que medida o fortalecimento desse mercado independente se deveu mais a uma regulação favorável à exploração dos novos recursos tecnológicos (maior número de canais propiciado pela nova tecnologia) do que a uma regulação que beneficiou o conteúdo independente. Nos Estados Unidos, por sua vez, a verticalização da produção de conteúdo intensificou-se entre grandes redes de TV aberta após a eliminação da obrigatoriedade de veicular conteúdo de produção independente. Mas é certo que o maior número de canais de programação amplia o tempo de TV a ser preenchido e, por conseguinte, a demanda por conteúdo televisivo, seja independente ou próprio. A questão da pluralidade e diversidade de conteúdo permanece inconclusa, contando atualmente com uma variedade pequena de estudos e metodologias heterogêneas e que apresentam limitações metodológicas, como a dificuldade de definir pluralidade e diversidade de conteúdo e de mensurá-la. As divergências nos resultados podem sugerir que a relação entre competitividade e pluralidade e diversidade não é linear, sendo possível um ambiente de grande competitividade, porém com diversidade de conteúdo baixa; ou um ambiente com um grau de concentração razoavelmente elevado mas que consegue produzir conteúdo de qualidade. Assim, embora a oferta de um maior número de canais possibilitada pela TV digital terrestre leve à disponibilização de uma maior quantidade de conteúdo, isso não se traduz automaticamente em maior heterogeneidade em termos de diversidade de opiniões e pontos de vista. Por isso, a pluralidade do conteúdo deve ser perseguida com uma regulação adequada que incentive não apenas a participação de mais atores no mercado, como também incentive produção de conteúdo adicional, por exemplo, por meio do estímulo a produtores independentes e empresas públicas de televisão. Como conclusões gerais, tem-se que a TV digital terrestre estimula positivamente a indústria, podendo também favorecer a concentração de mercado, dadas as suas economias de escala (e a julgar pelo caso de outros segmentos da indústria da informação, como relatado no caso americano). A tendência à concentração seria reforçada pela oferta de conteúdo em alta definição, cujos custos mais altos elevam as barreiras à entrada. Os estudos de caso mostram que a inovação tecnológica, por si só, habilita novos patamares de eficiência produtiva e novas concepções de serviços das quais decorreriam muitas transformações socioeconômicas e político-regulatórias, mas cujos resultados dependem de como os fatores tecnológicos interagem com os condicionantes pré-existentes (como os legados político e tecnológico), e como os atores e instituições se enfrentam de modo a estabelecer os limites à exploração de uma nova tecnologia. Por fim, os estudos são inconclusivos quanto ao aspecto da diversidade de conteúdo. No tocante ao debate brasileiro, algumas constatações que emergiram ao longo da análise podem subsidiar as discussões no país. Uma deles é a possibilidade, exemplificada pelo caso - 13 - do Reino Unido, das principais emissoras terrestres saírem fortalecidas após a introdução da nova tecnologia, com maior concentração e maior quantidade de conteúdo veiculado em função da maneira como o serviço de TV digital terrestre foi regulado. Foi também verificado que o estímulo ao mercado ocasionado pelas novas tecnologias favorece a criação de novos mercados para produção de conteúdo. A partir dessas constatações, é possível afirmar que as novas tecnologias podem trazer grandes oportunidades para o mercado brasileiro de TV, inclusive para os atores já estabelecidos. Exemplos de oportunidades são a geração de emprego qualificado e o estímulo ao setor de produção de conteúdo, setor esse que se mostra bastante promissor e propício a investimentos, assim como oferecer mais fontes de entretenimento e informação. A exemplo dos países analisados, a magnitude desses impactos no Brasil dependerá de como esse serviço será regulamentado para assegurar o emprego de suas funcionalidades, o que bem ilustram os casos dos dois países apresentados neste trabalho. Referências Bibliográficas ADVANCED-TELEVISION. IPTV is being commoditised. Advanced-Television, 2008. Disponível em: <http://www.advanced-television.com>. Acesso em: 13 jun. 2008. ALEXANDER, P. J.; CUNNINGHAM, B. M. Diversity in Broadcast Television: An Empirical Study of Local News. The International Journal on Media Management, v. 6, n. 3&4, p. 176-183, fev. 2004. CALLON, M. Society in the making: the study of technology as a tool for sociological analysis. In BIJKER, W.E.; HUGHES, T.P.; PINCH, T.F. 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