AS SOCIEDADES DE PROPÓSITO ESPECÍFICO COMO UM NOVO MODELO ORGANIZACIONAL – A POSSIBILIDADE DA CONJUGAÇÃO DE RECURSOS PÚBLICOS E PRIVADOS Iloneis Rosalino Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) [email protected] Laura Letsch Soares Centro Universitário do Distrito Federal (UniDF) [email protected] RESUMO Este trabalho é uma pesquisa bibliográfica a respeito das Parcerias Público-Privadas que vêm sendo adotadas em diversos países face à necessidade de atender as demandas da sociedade e buscar a redução do tamanho do Estado, apresentando a criação de algumas PPPs com a parceria da Eletrosul.. No Brasil, a Lei no 11.079/2004 instituiu as Parcerias Público-Privadas, de acordo com este instrumento ficou estabelecida a possibilidade da constituição de uma sociedade de propósito específico, onde são integralizados capitais públicos e privados, antes da celebração do contrato de parceria. Esta sociedade será incumbida de implantar e de gerir o termo de parceria. Como as PPPs conjugam interesses e recursos financeiros públicos e privados, é possível a ocorrência dos conflitos de agência. O trabalho se desenvolve com o objetivo de demonstrar a possibilidade de a administração pública criar mecanismos por meio da governança corporativa, para possibilitar a avaliação do desempenho das Sociedades de Propósito Específico (SPEs) e regular a aplicação dos recursos públicos nelas investidos. O método utilizado para desenvolver esta pesquisa foi o descritivo, conduzido através de revisão bibliográfica, numa abordagem qualitativa. Os resultados obtidos demonstram que as SPEs por meio da governança corporativa, constituem-se em um novo modelo organizacional. Palavras-chave: Sociedade de Propósito Específico. Parcerias Público-Privadas. SPE. PPP. 1 Introdução Historicamente, o Estado interfere na economia para fornecer bens e serviços públicos, para tanto, realiza empreendimentos com rentabilidade incerta e com um prazo de retorno muito extenso ou empreende atividades que exigem estruturas organizacionais inacessíveis à iniciativa privada. Neste caso, ocorre uma espécie de “sustentáculo público à atividade econômica privada”. Em geral, existe um entendimento de que o setor privado possui características específicas como: perfil empreendedor, flexibilidade, alta capacidade de atuar rapidamente em novas situações ou em situações desfavoráveis, maior abertura para manifestações de criatividade e de disponibilidade para o aprendizado de novas técnicas gerenciais. Enquanto o Estado possui estruturas altamente burocráticas, inflexíveis, com pessoal não adequado para o cargo ocupado, muitas vezes com pouco acesso às novas tecnologias de informação. Em função dessas características que as Parcerias Público-Privadas (PPP’s) vêm sendo apresentadas como uma forma de cooperação que objetiva solucionar problemas da máquina do Estado, como por exemplo, a dificuldade de obter eficiência em seus projetos e programas. O surgimento das parcerias entre os setores público e privado, envolvendo organizações da sociedade civil para a viabilização e gerenciamento de atividades de interesse público, ocorreu aproximadamente na década de 1980 em função da proposta de redução do campo de atuação do Estado e de ampliação da atuação da iniciativa privada na economia. O caminho para a prática das parcerias ocorre em paralelo com a implantação da Governança Corporativa no mundo dos negócios. A Lei 11.079/2004 regulamentou as PPPs no Brasil e apresentou as Sociedades de Propósito Específico como uma modalidade de parceira. O objetivo do trabalho se desenvolve numa proposta discursiva que apresenta as Sociedades de Propósito Específico (SPEs) como um modelo organizacional que possibilita a integralização e gestão de interesse e recursos público e privados. 2 REFERENCIAL TEÓRICO O referencial teórico utilizado no desenvolvimento do trabalho constituiu-se na legislação que regulamenta as PPPs no Brasil, nas recomendações para o exercício da governança corporativa emandas pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa e em teses de mestrado e doutorado relacionados com os temas de Parcerias Público-Privadas, Teoria da Agência e Governança Corporativa. 2.1 Parcerias Público-Privadas As parcerias público-privadas - PPP’s são os arranjos organizacionais firmados entre entes dos setores público e privado, envolvendo em alguns casos também organizações do terceiro setor. É possível encontrar parcerias tipo público-privada que envolvem os governos federal, estaduais e municipais, universidades, escolas e empresas privadas na realização de projetos que vão desde o apoio a programas de escolas públicas até a construção e o gerenciamento de hospitais. As dificuldades de formatação de arranjos do tipo proposto pelas PPP’s são grandes e se iniciam na própria natureza fundamentalmente diversa dos atores envolvidos. Os setores público e privado possuem respectivamente características e objetivos próprios, exclusivos e diferenciadores. O setor privado objetiva o lucro de um determinado grupo e a maior parte de seus recursos é originada dos clientes, já os objetivos do setor público são mais amplos e 2 diversos grupos de interesse são envolvidos, cada um com determinado poder de pressão e; suas receitas são originadas dos tributos pagos pelos contribuintes, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Em linhas gerais, pode-se dizer que enquanto o setor privado possui objetivos primordialmente econômicos, os objetivos finais do setor público são basicamente sociais. Na literatura existe uma grande variedade de relatos sobre parcerias entre os setores público e privado que apesar de suas diferenças são chamados simplesmente de PPP’s. Entretanto, utiliza-se a classificação adotada por Cordeiro et al. (2004), que distingue pelo menos dois tipos de PPP’s: aquelas que estão sendo chamadas na literatura específica de PFI (Private Finance Iniciative) e as Parcerias para Desenvolvimento Econômico (PDE's), sendo que estas últimas ainda podem ser sub-divididas em pelo menos mais três grupos: Parcerias para Desenvolvimento de Comunidades Rurais; Redes de Manufaturas ou Arranjos Produtivos Locais e; Parcerias para Disseminação de Tecnologias para Inclusão Social. No Quadro 1 são apresentadas as classificações dimensões e meios utilizados. das PPPsde acordo com Econômica Dimensões PFI, PDCR, APL,PDTA Fins PFI Meios Tecnológica PDCR, APL, PDTA PDCR, APL, PDTA Social PFI, PDCR, APL,PDTA PDCR, APL, PDTA suas Quadro 1 Esquema Analítico para PPPs Fonte: Cordeiro et al., 2004. Na seqüência são apresentadas as principais características de cada tipo de PPP. 2.1.1 PFI - Private Finance Iniciative As parcerias envolvendo entes dos setores público e privado são chamadas de PFI – Private Finance Iniciative. Elas são relações contratuais de longo prazo direcionadas, em geral, para a viabilização de investimentos privados em áreas chave de infra-estrutura. Esse é uma forma de terceirização de serviços públicos para organizações privadas na medida em que compreendem a relação da seguinte forma: o setor público - ator principal – concede a um determinado ente privado – que em geral participa formando consórcios. Os fatores que diferenciam as PFI's de outros tipos de terceirização de serviços são a duração do projeto (normalmente os contratos abarcam um período de aproximadamente 30 anos) e a escala do investimento. Os argumentos que sustentam a proposta de utilização desta modalidade de parceria – PFI - situam-se, em geral, em torno de dois pontos. O primeiro refere-se à possibilidade do setor privado transferir para as atividades do setor público, características estimuladoras da inovação e habilidades gerenciais que em conjunto incorporariam um nível mais elevado de eficiência nos serviços públicos. O segundo sustenta que o emprego de recursos de entes privados para a realização de determinados serviços públicos permite a disponibilização de recursos fiscais para investimentos em outras áreas de interesse público, sendo um dos elementos motivadores do Estado para a busca das PPPs. 2.1.2 Parcerias para Desenvolvimento Econômico As relações inter-organizacionais são chamadas neste trabalho de Parcerias para Desenvolvimento Econômico e podem ser divididas em três sub-grupos em função de suas características em termos de propostas e objetivos: a) Parcerias para Desenvolvimento de Comunidades Rurais (PDCR's) 3 As PDCR's são arranjos inter-organizacionais firmados entre entes públicos e pequenos produtores rurais para estímulo do desenvolvimento local. Essas parcerias visam promover o desenvolvimento rural sustentável que constitui “maior repositório de miséria e exclusão social” no Brasil (SEBRAE, 2003, p. 30). De acordo com a visão desta instituição, a mecanização da produção agrícola está diretamente relacionada com a redução de emprego no campo e, conseqüentemente, com o aumento do êxodo rural. b) Redes de Manufaturas ou Arranjos Produtivos Locais (APLs) As APL's são parcerias entre grupos de pequenas firmas que se unem para ganhar vantagens competitivas que de forma individual não poderiam obter em função das restrições estruturais que possuem. Envolve a participação e a interação entre empresas e suas variadas formas de representação e associação e organizações públicas e privadas voltadas para formação e capacitação de recursos humanos, pesquisa, desenvolvimento, política, promoção e financiamento. c) Parcerias para Disseminação de Tecnologias para Inclusão Social ou Este tipo de parceria, também denominadas Tecnologias Sociais ou Apropriadas – PDTAs, objetiva a disseminação de tecnologias para estimular o desenvolvimento sustentável das comunidades e a abertura de mercado para as empresas privadas envolvidas. Em alguns países em desenvolvimento toma-se como solução para os problemas causados pela pobreza, a priorização de investimentos nas áreas de agricultura, educação e infra-estrutura. Neste sentido, prega-se, por exemplo, a necessidade de uma nova revolução verde que equilibre preocupações sociais e ambientais com novas tecnologias, abrindo espaço para um trabalho conjunto entre entes dos setores público e privado. Na classificação apresentada por Cordeiro et al. (2004) sintetizada no Quadro 1, observa-se que os vários sub-tipos de PDE diferem das PFI principalmente em termos dos meios utilizados. As PFI's utilizam meios econômicos enquanto as PDE's utilizam meios sociais e tecnológicos. 2.2 Regulamentação das Parcerias Público-Privadas no Brasil No Brasil, conforme Silva (2005), a Parceria Público-Privada surgiu estruturalmente da experiência e do pioneirismo bem sucedido do modelo de Project Finance, que foi um mecanismo utilizado para a concepção de usinas hidrelétricas, como as de Itá, Machadinho, Serra de Mesa e Porto Primavera; concessões rodoviárias, como as da Ponte Rio-Niterói, Nova Dutra, Lagoas, Rodonorte e AutoBan e Campos Petrolíferos, como o de Marlim. Atualmente, as Parcerias Público-Privadas estão regulamentadas pela Lei no. 11.079 de 30 de dezembro de 2004 que instituiu normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. A modalidade do contrato a ser adotada depende da capacidade de geração de recursos, ou seja, a capacidade de geração de caixa de cada investimento público, determinará a modalidade preferencial de realização do projeto. A figura 1 apresenta esquematicamente a classificação dos empreendimentos, quanto à capacidade de geração de receitas, identificando o tipo de relação contratual mais adequado. 4 Parcerias Público-Privadas A capacidade de geração de receita de cada investimento público determina a modalidade preferencial de realização do projeto e ec Ca pa d ci ad e de g a er ç ão it a Concessões Projetos r de financeiram ente auto-sustentáveis Contratos de PPP Projetos que requerem aportes de recursos fiscais Contratações de Obras Públicas Projetos públicos tradicionais Figura 1 Capacidade de geração de caixa dos projetos Fonte:Apresentação PPP: oportunidades para investimentos compartilhados A Lei no 11.079/2004 determina devem ser observadas as seguintes diretrizes, para contratar parcerias público-privada: “I – eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade; II – respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução; III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias; V – transparência dos procedimentos e das decisões; VI – repartição objetiva de riscos entre as partes; VII – sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria”. Os contratos de parceria público-privada também deverão prever: a) o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação; b) as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas; c) a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e área econômica extraordinária; d) as formas de remuneração e de atualização dos valores contratuais; e) os mecanismos para a preservação da atualidade da prestação dos serviços; f) os fatos que caracterizem a inadimplência pecuniária do parceiro público, os modos e o prazo de regularização e, quando houver, a forma de acionamento da garantia; g) os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado; 5 h) a prestação, pelo parceiro privado, de garantias de execução suficientes e compatíveis com os ônus e riscos envolvidos, observados os limites legais; i) o compartilhamento com a Administração Pública dos ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado; j) a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos ao parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente detectadas. As questões quanto às penalidades a serem impostas pela Administração Pública, à repartição dos riscos, às formas de remuneração e sua atualização, à manutenção da atualidade dos serviços, à caracterização da inadimplência, aos critérios de avaliação do desempenho, à divisão de ganhos econômicos e à retenção de pagamentos são potencialmente geradores de conflitos entre as partes envolvidas. A repartição objetiva de riscos entre a Administração Pública e a entidade privada e a necessidade de atender aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços podem implicar em menores ganhos para uma das partes. 2.2.1 Sociedades do Propósito Específico A Lei no 11.079/2004 prevê no art. 9o, que antes da celebração do contrato, deverá ser constituída sociedade de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria. O instrumento de constituição da SPE é o Contrato ou Estatuto Social celebrado entre os sócios, cujas cláusulas essenciais deverão seguir a legislação que regulamenta o tipo societário com o qual a SPE revestir-se-á, ou seja, neste caso como sociedade aberta, devidamente arquivado no Registro Público de Empresas Mercantis (Juntas Comerciais). O capital social da SPE pode ser integralizado pelos sócios com dinheiro, bens móveis e imóveis e, ainda, com direitos, desde que a estes possa ser atribuído valor econômico e, uma vez integralizado o capital, as contribuições dos sócios passam a compor o patrimônio da SPE, que desses se torna legítima proprietária. Uma vez constituída, a SPE adquire personalidade jurídica própria e, portanto, estrutura destacada das sociedades que a constituíram. Portanto, uma vez provida de personalidade jurídica, a SPE, sob uma das formas societárias previstas no ordenamento jurídico, passa a responder pelos direitos e obrigações decorrentes da realização do empreendimento para o qual foi constituída, podendo, inclusive, ser acionada em juízo. Segundo o O CndPCH – Centro Nacional de Desenvolvimento de Pequenas Centrais Hidrelétricas, SPE, uma das formas legais de constituição de uma sociedade comercial é o mesmo que SPC (Special Purpose Company). É a configuração legal mais comumente utilizada em uma sociedade comercial constituída para abrigar um empreendimento de Pequenas Centrais Hidrelétricas, por se constituir em exigência por parte das instituições financiadoras do projeto. Para o investidor, uma das maiores vantagens de uma SPE está no fato de permitir um perfeito isolamento das outras atividades comerciais dos acionistas controladores e um acesso direto e menos complicado aos ativos e recebíveis do empreendimento pelos agentes financiadores, nos casos de inadimplência. A Lei no 11.079/2004 estabelece que: 6 a) A transferência do controle da sociedade de propósito específico estará condicionada à autorização expressa da Administração Pública, nos termos do edital e do contrato, e legislação; b) A sociedade de propósito específico poderá assumir a forma de companhia aberta, com valores mobiliários admitidos a negociação no mercado. c) A sociedade de propósito específico deverá obedecer a padrões de governança corporativa e adotar contabilidade e demonstrações financeiras padronizadas, conforme regulamento. d) Fica vedado à Administração Pública ser titular da maioria do capital votante das sociedades de que trata este Capítulo. e) A vedação prevista no § 4o deste artigo não se aplica à eventual aquisição da maioria do capital votante da sociedade de propósito específico por instituição financeira controlada pelo Poder Público em caso de inadimplemento de contratos de financiamento. Observa-se, também, que a Administração Pública pode assumir o controle do capital votante da SPE por instituição financeira controlada pelo Poder Público em caso de inadimplemento de contratos de financiamento. Segundo Lopes, a Lei assim possibilita a criação de empresas estatais sem a autorização constante em Lei específica, o que violaria o artigo 37, inciso XIX da Constituição da República. Neste sentido, há necessidade de evitar a situação ocorrida nas décadas de 1960 e 1970 que culminaram com a criação da SEST. O Decreto-Lei no 200/1967 fomentou o desenvolvimento da Administração Indireta concedendolhe a possibilidade de uma atuação mais flexível, porém a Administração Indireta cresceu de forma exponencial e pela atuação tímida do controle externo sobre as entidades públicas de direito privado, a atuação das estatais ficou “fora de controle”. Tal situação, que já ocorreu no passado, deve servir de alerta para que não se repita com a possibilidade de proliferação das SPEs, onde considerável parcela de recursos públicos passe a ser gerida por gestores privados. 2.3 Existência do conflito de agência entre o investidor público e os investidores privados A teoria de agência analisa os conflitos e os custos resultantes da separação entre a propriedade e o controle do capital e se constitui no arcabouço teórico para análise das relações entre participantes de sistemas em que a propriedade e o controle do capital são destinados diferentes pessoas. O detentor do capital é chamado de principal e o detentor do controle dos recursos e responsável pela sua gestão é o agente. O problema da agência e dos seus custos pode ser exemplificado na relação entre fazendeiros /comerciantes e os capatazes de suas fazendas no sul do Brasil e na Argentina, citado por Monsma, 2000: os fazendeiros ficavam a maior parte do tempo nas cidades, organizando e administrando suas propriedades à distância. Para terem sucesso na criação de gado, eles dependiam dos capatazes das fazendas, que eram incumbidos da administração do dinheiro e dos suprimentos para os peões e escravos e tinham que confiar que eles lhes transmitiriam informações verídicas sobre o estado dos rebanhos e dos campos e não venderiam gado ou couros em benefício próprio. A criação de gado exigia grandes esforços dos capatazes e bons capatazes trabalhavam com afinco supervisionado rodeios, marcações, castrações, a separação do gado misturado com os dos vizinhos, a condução de boiadas a novos pastos, evitando a fuga de escravos, recrutando peões e defendendo a propriedade de ladrões de gado e de vizinhos que marcavam bezerros errantes. 7 Os fazendeiros (principais) utilizavam uma série de incentivos para manter o desempenho e a lealdade dos capatazes (agentes), tais como salário-fixo, participação nos resultados como o recebimento de percentuais dos bezerros nascidos, concessões de empréstimos, apadrinhamento político para aquisição de terras e resolução de outros problemas. Estes incentivos eram utilizados para alinhar os interesses dos proprietários fazendeiros com os dos capatazes. A concessão dos incentivos dependia do nível de supervisão empreendido pelos fazendeiros: alguns gostavam das lidas campeiras e exerciam grande supervisão das atividades, neste caso concedendo menores incentivos, enquanto outros não entendiam das atividades, nem apreciavam a vida do campo, raramente visitando suas propriedades, concedendo assim, maiores incentivos. Os incentivos e a supervisão a ser exercidade denominam-se na teoria da agência de custos de transação. Segundo Silveira (2002), o raciocínio do problema de agência se baseia nas relações entre "agentes" e "principais", nas quais os agentes representam, em tese, os interesses dos principais. Nas empresas são os acionistas (os principais, neste caso) e dos administradores (agentes) de uma organização. O problema de agência ocorre quando o agente, que deveria agir sempre no melhor interesse do principal (razão pela qual é contratado), age tendo em vista o seu melhor interesse, isto é, tendo em vista maximizar sua utilidade pessoal, ou seja, quando os executivos tomam decisões com o intuito de maximizar sua utilidade pessoal e não a riqueza dos acionistas, motivo pelo qual são contratados. Diversas são as formas com que o agente pode expropriar-se da riqueza dos investidores, acionistas, ou do principal. Citam, entre outras: pela determinação de remuneração abusiva para si próprios; pelo roubo dos lucros; pela venda da produção, ativos, ou títulos da empresa abaixo do preço de mercado para outra empresa das quais são controladores; pela designação de membros da família desqualificados para posições gerenciais (nepotismo); pelo empreendimento de projetos devido ao seu gosto pessoal e não devido à estudos técnicos de viabilidade. O conflito de interesses decorrente do problema de agência dos gestores pode ter sérias conseqüências, conforme observado recentemente no caso da empresa norte-americana Enron, no qual os executivos agiram de má fé e em benefício próprio, deixando de reportar prejuízos em subsidiárias que acabaram levando uma empresa de grande porte com recursos investidos de milhares de pessoas à falência. No caso das Parceiras Público-Privadas, onde são envolvidos recursos públicos, acredita-se que o conflito de interesses seja mais acentuado, pois prevalece no país a prática de privatizar o lucro e socializar o prejuízo. O investimento privado busca, segundo Silva (2005), a segurança e a garantia do retorno do capital investido, ao lado do lucro, ao passo que a poder público busca a agilidade no atendimento e a preservação do dos direitos dos usuários. Portanto há necessidade de implementar mecanismos que possibilitem o aumento da vigilância sobre a aplicação dos recursos públicos. Salienta-se que a Lei no 11.079/2004 determina que sejam criadas sociedades que na forma de companhias abertas e veda a possibilidade da Administração Pública ser titular da maioria do capital votante, ou seja, veda que a Administração Pública seja responsável pela gestão. 8 2.3.1 Governança Corporativa Silveira (2002) representou graficamente, na Figura 3, o conjunto de mecanismos necessários para alinhar os interesses de gestores e acionistas, denominado de governança corporativa, utilizados na tentativa de resolução do problema de agência. Remuneração Principais (Acionistas) Agentes (Gestores) Decisão: 1 Tomada de decisão que maximiza a riqueza dos acionistas Serviços Mecanismos Internos •Conselho de Administração Mecanismos Externos •Mercado de aquisição hostil •Sistema de remuneração •Mercado de trabalho competitivo •Estrutura de propriedade (posse de ações pelos gestores e conselheiros) •Relatórios contábeis periódicos fiscalizados externamente (auditoria e agentes do mercado financeiro) 2 Tomada de decisão que maximiza a utilidade pessoal dos gestores Problemas de agência Governança Corporativa - conjunto de mecanismos de incentivo e controle que visa harmonizar a relação entre acionistas e gestores pela redução dos problemas de agência, numa situação de separação entre propriedade e gestão •Crescimento excessivo •Diversificação excessiva •Fixação de gastos pessoais excessivos (salários, benefícios corporativos) •Tunneling - transferência de recursos (venda ativos, preços de transferência) e resultados entre empresas •Empreendimento de projetos devido ao gosto pessoal do gestor •Designação de membros da família desqualificados para posições gerenciais •Resistência à substituição •Roubo dos lucros •Resistência à liquidação ou fusão vantajosa para os acionistas Figura 3 Aspectos relacionados com a gestão de uma sociedade Fonte: Silveira (2002). A governança corporativa visa, entre outros aspectos, a proteção do minoritário. Porém, não busca a polarização de investidores ou beneficiar injustamente aqueles que possuam pouca representação. As boas práticas determinam que a companhia busque maior equilíbrio entre majoritários e minoritários. A governança busca proteger os interesses dos acionistas minoritários sem prejudicar àqueles que possuam maiores investimentos. O equilíbrio entre as partes configurado nas decisões é o que realmente interessa. Desta forma, disputas e conflitos de interesses entre acionistas não terão lugar nestas companhias. As práticas de governança corporativa determinam a transparência e a prestação de contas como alicerces de gestão. Os acionistas e investidores devem ter livre acesso a qualquer instante sobre informações da companhia. O direito de fiscalização e acompanhamento dos atos de gestão da companhia, sem prejuízo do dever de sua ampla divulgação no mercado, são inerentes à boa governança. Quanto maior a transparência e a qualidade das informações sobre a companhia, mais chances ela terá de atrair novos investimentos com baixo custo de capital. Pois, assim, os interessados poderão ter maior segurança no empreendimento e saber de antemão que terão um retorno válido (boa rentabilidade, segurança e liquidez). Portanto, este conjunto de regras não se trata de modismo, mas sim ferramenta essencial para melhorar as condições de financiamento e valor empresarial. Qualquer 9 companhia que deseja sobreviver e crescer neste novo cenário econômico mundial deverá levar em conta as diretrizes da boa governança corporativa. No caso das Parcerias Público-Privadas, que utilizam recursos públicos, a perspectiva de uma melhor administração dos negócios e a existência de uma garantia maior de que as decisões serão sempre tomadas no interesse de todos os acionistas vêm de encontro aos interesses da sociedade. 3. Metodologia O estudo caracteriza-se quanto aos objetivos como pesquisa descritiva/exploratória. Segundo Gil (1999, p.26), a pesquisa descritiva tem como principal objetivo descrever características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre as variáveis. O estudo aborda o conceito, as principais características das PPPs. Também é exploratória, porque visa ampliar o conhecimento sobre o desenvolvimento da governança corporativa das PPPs. Gil (1999, p.28) descreve que a pesquisa exploratória é desenvolvida no sentido de proporcionar uma visão acerca de determinado fato. Quanto a sua natureza, esta se trata de uma pesquisa qualitativa, que de acordo com Raupp e Beuren (2004, p.92), é utilizada para aprofundar as relações ao tema estudado, compreendendo a complexidade de determinado problema e contribuir no processo de mudança. Quanto aos procedimentos, a pesquisa é considerada bibliográfica. Gil (1999, p.29) descreve que a pesquisa bibliográfica é desenvolvida mediante material já elaborado, principalmente livros e artigos científicos. Assim, o trabalho é essencialmente teórico e para descrever sobre as PPPs foram utilizadas diversas fontes de pesquisa como, livros e artigos científicos. 4. Sociedades de Propósito Específico Vinculadas a Eletrosul e a Adoção de Mecanismos de Governança Corporativa A Eletrosul em seu planejamento estratégico, ao considerar a necessidade de investimentos crescentes no sistema elétrico-energético brasileiro para atender à demanda de energia elétrica, contemplou a participação, em regime de parceria, na expansão deste mercado, de modo a ampliar sua carteira de negócios com novos empreendimentos. Assim, disputou, em consórcio com outras empresas, leilões que lhe possibilitou participar, até o momento em seis Sociedades de Propósito Específico (SPE) voltadas para o negócio de transmissão de energia elétrica. Inicialmente, em 2004, foram investidos 34.384 mil, mas a previsão de investimentos nestas empresas alcança R$ 825,5 milhões. Conforme determinado na Lei no 11.079/2004 o Eletrosul não detém a maioria do capital em nenhuma das empresas, conforme pode ser evidenciado na Tabela 1. Tabela 1. Sociedades de Propósito Específico Participação Acionária SPE Data da Capital Percentual Outros acionistas Criação da Investido Acionário SPE 2005 (milhões) Ártemis Transmissora de 19/ago/2003 64.976 46,5% Cymi – Control y Montages Industriales 10 Energia S.A. Empresa de Transmissão do Alto Uruguai – ETAU Empresa de Transmissão de Energia de Santa Catarina – SC Energia Gralha Azul Transmissora de energia S.A. Uirapuru Transmissora de Energia S.A. As - 51,00 % 19/jun/2004 9.567 08/out/2004 319 11/nov/2004 4 17/dez/2004 490 Empresa de Transmissão de 20/dez/2005 Energia do Rio Grande do Sul S.A. Total Fonte: Relatório de Gestão Eletrosul (2005). 16 Santa Rita Comércio e Engenharia Ltda 2,5 % 27,4 % Alcoa alumínio S.A. 42,00 % Camargo Correia Cimentos S.A. -10,6 % DME Energética Ltda 10,0% CEEE - 10,0% 49,0% Schahin Engenharia Ltda - 41,0 % Engevix Engenharia S.A. - 10,0 %. 20,0 % Copel Participações - 80,0 % 49,0 % Cymi – Control y Montages Industriales SA - 41,00 % Santa Rita Comércio e Engenharia Ltda 10,0 % 49,00 % Schahin Engenharia Ltda - 41,0 % Engevix Engenharia S.A. - 10,0 % 77.377 Estas SPEs classificam-se no grupo das PFIs – Private Finance Iniciative onde são constituídas relações contratuais de longo prazo que são direcionadas, em geral, para a viabilização de investimentos privados em áreas chave de infra-estrutura. A Eletrosul já adota alguns procedimentos recomendados pela Governança Corporativa como a indicação de membros para os Conselhos. A Diretoria Executiva da Eletrosul indica para representá-la em cada Sociedade um Diretor e membros dos Conselhos de Administração e Fiscal. Além desta representação, são realizadas reuniões por meio de participação em comitês técnicos e financeiros, que se reúnem periodicamente, para avaliar a necessidade de ações que propiciem o cumprimento dos compromissos assumidos com relação ao empreendimento em questão. A defesa dos interesses da Eletrosul, enquanto acionista de SPE, demanda uma série de orientações que devem ser consideradas não só pela sua representação nos respectivos Conselhos de Administração e Diretorias Executivas, como também pelas áreas de controle e suporte operacional da própria estrutura organizacional da Empresa. 6. Conclusões No Brasil a governança corporativa já é uma realidade no universo privado e um novo cenário está se delineando junto às empresas controladas pelo Estado. Na gestão das prefeituras, governos, e da própria União, está em processo inicial. Nas Sociedades de Propósito Específico a Administração Pública não é gestora dos recursos, não toma as decisões a respeito de sua aplicação, ou seja, ela não atua diretamente na gestão da entidade. Para que a Administração Pública enfrente os conflitos de agência e não incorra nos erros do passado quando assistiu ao crescimento desordenado das empresas estatais é necessário que o Estado se comporte como os stakeholders das empresas que participam diretamente dos conselhos de administração e determinem as decisões das corporações, passando atuar ativamente junto às SPEs onde tenha aplicado recursos públicos. 11 Kapaz (2006) questionou: “Por que o Estado não segue mesma trilha da iniciativa privada quanto à adoção da governança corporativa para regular o interesse de todos?” Embora a resposta não seja simples, há múltiplos sinais de que cedo ou tarde a governança se firmará no aparelho de Estado e as Sociedades de Propósito Específico se consolidarão como um novo modelo organizacional que viabilizam a gestão de recursos públicos e privados. 12 Referências CndPCH – Centro Nacional de Desenvolvimento de Pequenas Centrais Hidrelétricas. Criação de SPE. www.cndpch.com.br CORDEIRO, Mariana Starling et al. Parcerias Público-Privadas: uma Proposta Analítica Preliminar. ENAPG 2004. FÉRES, Marcelo Andrade. As sociedades de propósito específico, SPEs, no âmbito das parcerias pú blico-privadas. Informativo Jurídico Consulex, Brasília, v.19, n.11, p.3-5, 21 mar. 2005 FIOCCA Demian. PPP: oportunidades para investimentos compartilhados. Apresentação power-point do Ministério do Planejamento orçamento e Gestão, site www.firjan.org.br/notas/media/DemianPPP.ppt, 2004. GIL, Antônio Carlos. Como Elaborar Projetos de pesquisa. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1996. Governança Corporativa. Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - www.ibgc.org.br KAPAZ, Emerson. A hora de governança na área pública. Gazeta Mercantil, p. B-4, 04/jul/2006. LEI DAS LICITAÇÕES E CONTRATOS. Lei Nº 8.666. Diário Oficial da União de 21 de junho de 1993. LEI DAS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS. Lei Nº 11.079 Diário Oficial da União de 30 de dezembro de 2004. LOPES, Pedro C. Raposo. Público e privado: PPP é nova modalidade de concessão de serviços públicos Consultor Jurídico site: www.conjur.com.br Modelagem de PPP em Setores Prioritários de Investimento. Apresentação em Seminário de Parcerias Público-Privadas Promovido pela Secretaria de Estado de Planejamento do Estado de Santa Catarina, agosto de 2004, publicada no site: ppp.spg.sc.gov.br/1308/13h30.ppt MONSMA, Karl. Repensando a Escolha Racional e a Teoria da Agência: fazendeiros de gado e capatazes no século XIX. Revista Brasileira de Ciências sociais. Volume 15 Número 43, São Paulo, 2000. OLIVEIRA, Sheila Felix de, APELBAUM Ronaldo. Direito Empresarial: Sociedade de Propósito Específico (SPE) - Aspectos societários, contábeis e fiscais site www.fiscosoft.com.br RAUPP, Fabiano, BEUREN Ilse M. Como Elaborar Trabalhos Monográficos em Contabilidade. 2ª. Ed.São Paulo: Atlas, 2004. SEGATTO-MENDES, Andréa Paula. Teoria da Agência Aplicada á Análise de Relações entre os Participantes dos Processos de Cooperação Tecnológica Universidade-Empresa. 13 Dissertação de Doutorado Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, 2001. SILVA, Daniel Cavalcante. Parceria público-privada: o toque de Midas na administração pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 749, 23 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7038>. Acesso em: 25 out. 2006. SILVEIRA, Alexandre Di Micelli da. Governança Corporativa, Desempenho e Valor da Empresa no Brasil. Dissertação de Mestrado Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, 2002. 14