Brasília fora do plano A capital federal completa 54 anos e, apesar de já estar cinquentinha, ainda sofre uma crise de identidade adolescente. O que é Brasília? Quem são os brasilienses? Para além de questões culturais, políticas e econômicas, a pergunta ainda envolve uma polêmica geográfica. Brasília é o Distrito Federal? Por Nayara Machado “Brasiliense é quem nasce no DF, seja em Brasília ou em qualquer outra região administrativa” Hiram Miller, Taguatinga “Na teoria, brasilienses são todos que nascem no DF. Mas, na prática, as regiões administrativas têm características e públicos diferentes e as pessoas podem ser chamadas de taguatinguenses etc.” Carolina Rodrigues, Asa Norte “Quem nasce no Distrito Federal é brasiliense. Sempre me apresento como brasiliense, e não samambaiense” Natália Almeida, Samambaia “Acredito que os nascidos em outras regiões administrativas se identifiquem como brasilienses. O DF é uma cidade só, somos todos brasilienses” Rodrigo Fonseca, Cruzeiro Em tramitação na Câmara dos Deputados, a PEC nº 255/2013, de autoria do deputado Policarpo (PT/DF), propõe a alteração do parágrafo 1º do artigo nº 18 da Constituição Federal para determinar a correspondência entre as áreas geográficas de Brasília e do Distrito Federal. A proposta expõe a fragilidade do sentido de identidade brasiliense. Nas ruas, as opiniões divergem. Para a moradora de Samambaia Samara Oliveira, todo mundo que nasceu no DF é brasiliense: “Todo mundo trata o Plano e as satélites como uma coisa só. Nem tem por que separar. Ninguém se apresenta como samambaiense ou ceilandense ou qualquer outra coisa”. Já o morador de Águas Claras Fábio Rodrigues entende que Brasília é o Plano Piloto: “Antigamente, eu achava que todo mundo era brasiliense, mas pelas diferenças culturais, regionais, entre outras coisas, o mais digno seria taguatinguense, ceilandense etc.”, comenta. Até mesmo entre os urbanistas, existem posicionamentos diferentes. Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do DF (CAU/DF), Alberto de Faria explica que o Distrito Federal é resultado de um estudo extenso feito para determinar a área dentro da região centro-oeste adequada à implantação de uma nova cidade que seria a capital federal. A capital recebeu o nome de Brasília e resultou do projeto de urbanização de Lúcio Costa, conhecido como Plano Piloto. “É neste relatório que é tratada a questão de que Brasília, que é a área do Plano Piloto, seria a sede da capital federal e a sede do governo do Distrito Federal. E que a organização das demais áreas que já existiam aqui, como Planaltina, por exemplo, ficariam dentro do chamado quadrilátero do DF. Então é como se o DF fosse um terreno muito maior, com várias cidades e uma delas é a capital do Brasil, chama Brasília, e as outras são cidades complementares a essa distribuição do território”, explica Faria. Mas o urbanista também pontua que a PEC 255/2013 procura fazer uma distinção que para ele não existe. “Todo mundo que mora no Distrito Federal é brasiliense. Brasília é o nome da cidade que é a capital federal. Essa proposta de fazer com que os dois limites sejam os mesmos é como se a gente pegasse o estado do Rio de Janeiro e quisesse fazer com que seu limite coincidisse com os limites da cidade do Rio de Janeiro”, critica. Para o urbanista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo só existe uma cidade no Distrito Federal e essa cidade se chama Brasília. “Essa definição de que Brasília é a capital federal e que o Distrito Federal corresponde à sua área de domínio é perfeita, ela já existe. Se nós chamamos a área do Plano Piloto de Brasília, isso é um engano histórico. É a mesma coisa que uma pessoa dizer que é o Francisco, mas é a cabeça do Francisco. Tudo que não é cabeça – que é a parte pensante, que tem o cérebro, os olhos, a boca etc. – não é Francisco. É como se o Francisco se tornasse esquizofrênico e fizesse com que o corpo dele se dividisse em cidades diferentes. Isso não é admissível no caso de Brasília. Taguatinga é Brasília. Ceilândia é Brasília. Gama é Brasília. Tudo que está dentro do Distrito Federal é Brasília”, defende. Mais de 2,5 milhões de pessoas moram no Distrito Federal. Desse total, apenas 8,1%, segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), residem na Região Administrativa I conhecida como Brasília. As RAs de Ceilândia, Taguatinga e Sobradinho, por exemplo, representam a maior população do quadrilátero, com 15,7%, 14% e 8,2% de habitantes, respectivamente. Para a socióloga Christiane Girard, a pergunta deveria ser quem quer que Brasília seja o DF e quem quer que seja só o Plano Piloto. “Ás vezes eu tenho a impressão que o Plano Piloto sufoca as outras áreas e dita o que tem que ser. Como se a cultura brasiliense ficasse restrita ao Plano Piloto”. Em sua proposta, o deputado Policarpo justifica que a Constituição de 1988 conferiu ao Distrito Federal a condição de unidade federada especial, mas deixou espaço para contradições em seu artigo 18, ao conferir a Brasília, e não ao DF, a condição de Capital Federal (art. 18, § 1º, da CF). “A contradição, embora aparente, tem levado a equívocos discriminatórios como a ideia de que Brasília seja apenas a parcela do Distrito Federal conhecida como Plano Piloto e denominada Região Administrativa de Brasília. Uma grave consequência desse equívoco interpretativo seria a perda da condição de brasiliense pelos moradores das demais vinte e cinco Regiões Administrativas”, argumenta o documento. O plano piloto Em 30 de setembro de 1956 era publicado no Diário Oficial da União o Edital para o concurso nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil. Este seria o primeiro projeto a partir do qual se construiria a primeira cidade, destinada a sediar o governo. Mas esse plano piloto não era um lugar, era uma maneira de projetar tudo que viria a seguir. “Tudo que viria a seguir deveria acompanhar o plano piloto. Ou seja, gama seria plano piloto, guará seria plano piloto, tudo aquilo segue. Só que não aconteceu isso. Nós não compreendemos a beleza desse concurso, que era criar um fundamento de urbanismo para que houvesse ocupação urbana de todo o DF”, comenta Flósculo. Em 1960 Juscelino Kubistchek inauguraria a região que compreende o avião conhecido como Brasília e tudo que estava fora do avião se tornaria cidade satélite. O urbanista Alberto de Faria explica que o projeto de Lúcio Costa não era um plano de desenvolvimento do território, mas um projeto urbanístico para aquela que seria a sede do governo. “Era um plano pra implantação da capital. Em outros locais também funciona desse jeito. No México, por exemplo, existe um distrito federal e dentro dele está a Cidade do México que é a capital do país”. O modelo de crescimento das regiões administrativas do DF segue, de acordo com os urbanistas, um processo de expansão urbana de limites do território que contribuem para a confusão. “Hoje nós estamos muito próximos de ter o que a gente chama de uma sequência de cidades que a gente não percebe a diferença entre elas. Quando se vai em direção ao Gama, nós passamos por várias cidades sem perceber muito a diferença entre uma e outra”, explica Faria. Mas para Flósculo, esse crescimento foge aos padrões do Plano Piloto. “Num primeiro momento fizeram o concurso do Plano Piloto e num segundo momento começaram a fazer bairros e chamaram erradamente de cidade satélite, bairros que não tinham nada a ver com o urbanismo do plano, era um urbanismo mais simples, de pior qualidade, não eram cidades parque, não eram cidades tão bem planejadas”, completa. O que há de errado com as cidades satélites A CF em seu artigo nº 32 veda a divisão do DF em municípios. Flósculo explica que um distrito federal é uma área especial que nem é município, nem é estado e é os dois ao mesmo tempo. De acordo com o urbanista, o termo cidade satélite vem do urbanismo inglês pós-guerra da década de 1950, onde se desenvolveu o conceito de new towns (novas cidades). Estas cresceriam em torno das grandes cidades, como Londres e seriam especialmente planejadas, com serviços públicos como hospitais e escolas e com um tamanho bem definido, em torno de 30 mil habitantes. “Esse conceito inglês foi aplicado realmente à região de Londres. Construíram-se uma dezena dessas cidades satélites de Londres, mas elas tinham autonomia, tinham seus prefeitos, elas já nasciam andando e falando e resolvendo as coisas. Nunca foi o caso dos bairros [no DF], que nunca foram cidades. Na lei brasileira uma cidade é autônoma, tem prefeito, tem múnus (ônus). Por isso ela é sede de um município. Então não temos cidades satélites, nós temos bairros”, esclarece. O Distrito Federal é formado por 31 regiões administrativas. A mais antiga delas, Planaltina foi transformada em município em 1859 e passou a ser cidade-satélite em 1960, com a inauguração de Brasília. Em 1956 os acampamentos dos operários da construção de Brasília dariam início ao povoamento do que hoje é Candangolândia e Núcleo Bandeirante. Taguatinga e Cruzeiro seriam fundadas a seguir, em 1958 e 1959, respectivamente. Municipalização A PEC 255/2013 está apensada a uma proposta ainda mais polêmica de autoria do deputado Francisco Escórcio (PMDB/MA). E a PEC 216/2012, que propõe a transformação de Brasília em município neutro e defende a intervenção federal na capital do país. O presidente do CAU/DF, explica que a aprovação dessa emenda seria uma maneira de descaracterizar uma área territorialmente importante para preservar as características da sede do governo federal e das instituições que precisam funcionar numa capital. “Essa PEC reduziria Brasília, o plano piloto de Brasília, a um apêndice do governo federal, a um bairro que atenderia ao fato de estar instalado nele o distrito federal. Eu acho que a proposta do deputado Escórcio reduz muito a importância de Brasília”, pontua Faria. Dentro da organização territorial brasileira existe o conceito de município, correspondente a uma área que não pode ser dividida. Um município é composto por zona rural, zona de parques, zona urbana, entre outras, e é este o modelo que segue o Distrito Federal. “A gente não precisaria subdividir esse distrito federal para que ele funcionasse administrativamente, como hoje com as regiões administrativas, que na realidade dão uma noção de conjunto muito maior do que se a gente subdividisse”, explica Faria. Para Flósculo, a PEC demonstra certo egoísmo. “Esse tipo de solução já teve várias encarnações. Essa proposta vai de encontro ao conceito de metropolização, que consiste em fazer com que a região urbana (a metrópole) seja mais abrangente, inclua municípios que existem fora dela. Metrópole quer dizer cidade mãe. A mãe ajuda, integra, faz prosperar. E quando a gente vem com um projeto deste, de municipalizar o entorno do DF, é evidente o egoísmo contido nisso. É aquele egoísmo de proteger o Plano Piloto, o egoísmo de proteger certa área”, ressalta. Padrão Correios Desde 2011 os Correios adotam, para a base de dados de Código de Endereçamento Postal (CEP) do Distrito Federal, o modelo de divisão territorial utilizado pelo IBGE, que estabelece Brasília como único município. Com a mudança na forma de expressar os endereços do DF, as regiões administrativas passaram a ser citadas como bairros.