Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Medicina e Odontologia
BIOÉTICA
CASO 7
Prof. Délio Kipper
Muitos descansos eternos foram perturbados para que Regina* encontrasse os
dentes de que precisava. Empolgada com o curso de odontologia, ela tratou logo de
garimpar, nas sombras do cemitério, uma arcada dentária completa onde treinaria
procedimentos. O que ela não imaginava é que seria necessário assaltar tantas covas
rasas. Naquele dia de busca, o coveiro abriu nada menos que 47 sepulturas, e não
encontrou nenhuma arcada completa. "Essa é a última que abro", ele avisou. Na 48º
cova, apareceu o tesouro que os dois tanto procuravam: uma caveira com todos os
dentes na boca.
E era necessário esforço ou sorte para encontrar uma arcada completa justamente
naquela ala do cemitério, que ficava bem distante dos túmulos em que se inscrevem
"Descanse em paz". Os corpos exumados em série eram de empregadas domésticas,
mendigos, prostitutas, bêbados e pessoas sem um documento de identidade que
marcasse sua passagem pelo mundo dos vivos. Todos daquela ala viveram de faltas;
mesmo em seus últimos pedaços de terra, faltava profundidade. Era uma gente que,
depois de morta, não tinha nem mesmo dentes para serem roubados.
Hoje, Regina* é formada. Já faz anos que a cena ocorreu. A venda de ossos dentro
dos cemitérios foi bastante coibida, por conta de sucessivas denúncias e reclamações de
familiares. Mas a revenda de ossadas e crânios persiste entre os estudantes de classes
média e alta, que cursam medicina e odontologia, duas das graduações mais concorridas
em qualquer universidade. É o incrível poder de reciclagem dos homens, que age mesmo
quando os vermes já terminaram seu trabalho. Tudo em nome da ciência, claro.
Funcionamento simples
O funcionamento do comércio de ossos é muito simples, e tem sua raiz no antigo
comércio feito pelos coveiros. Embora a prática tenha sido muito combatida, era comum,
há poucos semestres, que os alunos de medicina e odontologia procurassem coveiros
dos cemitérios pobres e comprassem dentes, crânios, fêmures ou esqueletos completos,
para a disciplina de anatomia.
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Hoje, esse comércio é muito mais difícil. Sem se identificar, a reportagem tentou
apurar o preço dos esqueletos no Campo Santo e Quinta dos Lázaros. "Agora, tem que
preencher um monte de papel e falar com a direção do hospital", disse um coveiro do
Cemitério de Quintas. E o preço? "Não paga nada não, você pode dar um agrado se
quiser que a gente limpe". Para conseguir um esqueleto, o estudante tem que preencher
uma documentação; depois, o cemitério entra em contato com a família do morto, e pede
autorização para o empréstimo. Ossadas sem nenhuma identificação também podem ser
emprestadas para os estudantes. O aluno se compromete a devolvê-las quando não
precisar mais.
O problema é que, como muitos ossos que circulam pela faculdade de medicina
foram comprados, e não emprestados, os estudantes ainda revendem as ossadas, como
uma forma de recuperar o dinheiro gasto em semestres anteriores. Além disso, alguns
alunos não pretendem devolver os ossos que pegaram emprestado. "Eu paguei para que
envernizassem. No próximo semestre, vou revender, para recuperar esse prejuízo", diz
Joana*, estudante de medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba). É assim que o
círculo vicioso gira dentro das faculdades. Os estudantes que devem proteger a vida a
qualquer custo perdem o respeito pela morte. Depois das aulas de anatomia, o conjunto
de ossos perde a utilidade. Vira um entulho que precisa ser repassado.
Um esqueleto custa, em média, de R$40 a R$70. O preço pode variar, se os ossos
estiverem devidamente envernizados e conservados. "Comprar uma ossada é como se
comprar um livro barato", compara Flávio*, também estudante de medicina da Ufba. Os
ossos "de segunda mão" são vendidos para os novos alunos da faculdade. A abordagem
ocorre regada à cerveja, geralmente no dia da Calourada. "É quando há integração com
os veteranos", diz Flávio*. Para ele, a prática não decorre da falta de ossos na
universidade. "Todo mundo quer ter seu esqueleto em casa. É cultural". Ele estima que,
no seu semestre, cerca de 30% da turma comprou um esqueleto.
O diretor da Faculdade de Medicina da Ufba, José Tavares Neto, reconhece a
existência do comércio de ossos entre os estudantes, mas acredita que a prática tem
diminuído. "É algo que não dá para controlar, dá para conscientizar. O respeito aos
mortos está presente em todas as culturas". Ele diz que a faculdade tenta cumprir seu
papel, ministrando aulas de ética médica logo no primeiro semestre.
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Para Carmem Pedra, professora de Anatomia II da Ufba, a venda de ossos não
tem uma solução tão fácil. "De um lado, você tem um corpo e toda a história que ele
carrega. De outro, há os estudantes de medicina que precisam consultar aquele material,
porque o esqueleto sintético é muito caro". Um esqueleto sintético custa cerca de R$ 200.
"Com tantas tecnologias e inovações no ensino e no estudo anatômico, levar ossadas
para casa é precário e cruel", diz Theresa Barral, diretora do Instituto de Ciências da
Saúde (ICS). Além dos problemas éticos, há ainda implicações sanitárias. Estudos
comprovam que materiais biológicos são transmissores de doenças.
Penas futuras
O Código Penal prevê uma série de sanções relacionadas à violação dos direitos
pós-morte, nos artigos 210 a 212. Violação de sepultura (art.210) resulta uma pena de
reclusão de um a três anos. Destruição, furto ou ocultação de cadáver (art.211) também é
crime, e pode causar penas que vão de um a três anos. O mesmo vale caso haja
desrespeito ao cadáver (art.212).
Pela lei, os alunos de medicina não são donos das ossadas que comercializam. Ou
seja, na ação de comprar nos cemitérios e depois repassar os ossos, eles cometeram, no
mínimo, crime de receptação (art. 180), que consiste em "adquirir, receber, transportar,
conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime".
Em alguns casos, podem responder por violação de sepultura e urna funerária na
condição de mandantes.
Mas a lei 8501/92 prevê a utilização de cadáver não reclamado, para fins de
estudos ou pesquisas científicas. Geralmente, o destino dos cadáveres é uma
continuação sombria, a continuação de uma saga de pobreza mesmo quando a vida
termina. A lei 8501/92 prevê que, se o corpo tiver sem nenhum tipo de identificação, pode
ser destinado à pesquisa. Ou seja, sem documentos, o morto não existe. Já era assim
quando em vida.
A chamada anatomização do indigente é um fenômeno antigo. No livro A morte é
uma festa, o antropólogo João Reis relata um episódio macabro ocorrido na Inglaterra, em
1832. Um bebê morreu num hospital durante um surto de cólera. O cadáver foi devolvido
à mãe sem a cabeça, que havia sido substituída por um tijolo. Uma multidão se rebelou, e
forçou a polícia a vasculhar o local. A cabeça do bebê foi encontrada no quarto de um
farmacêutico do hospital.
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São também da Inglaterra os Anatomy Acts (leis de anatomia). A lei permitia que
os médicos comprassem, por uma pequena taxa, corpos de quem havia morrido em
oficinas de trabalho, caso os familiares não reclamassem pelo cadáver. Outra prática
estranha e injusta ocorrida na Inglaterra, no século XVIII: Os cadáveres de criminosos
executados eram confiscados pelo Estado, ou então, roubados por particulares. Ao pé da
forca, os amigos e parentes do condenado disputavam, a tapa, seu cadáver. "A
anatomização do cadáver do condenado foi imaginada pelo legislador como um castigo
adicional à pena capital", escreve João Reis.
Hoje, os tempos são outros - mas nem tanto. Mesmo quando a utilização de ossos
é feita de forma legal, não deixa de ser macabra. Na Faculdade de Odontologia da Ufba,
há uma estante, visível a qualquer um que passa pelos corredores da escola. É uma
estante cheia de crânios. Cada um deles teve sua história, impossível de desenterrar.
Hoje, são todos iguais, mas se distinguem por um número pintado no meio da testa, meio
patético, meio macabro. O número inscrito na testa é a cédula de identidade que eles não
tiveram em vida.
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