Independencia_03-final.indd 1 23/11/2010 20:15:54 Biblioteca Basílio Catalá Castro Diretor Geral Josué da Silva Mello Diretor de Administração e Finanças Sergio Augusto Miranda de Souza Coordenação Pedagógica e Acompanhamento Acadêmico Tecla Dias de Oliveira Mello Coordenador do Curso de Administração Adeimival Barroso de Pinho Júnior Coordenador do Curso de Comunicação Social Derval Cardoso Gramacho Coordenadora do Curso de Direito Valnêda Cássia Santos Carneiro Coordenador do Curso de Engenharia Elétrica Roberto da Costa e Silva EXPEDIENTE FACULDADE 2 DE JULHO FICHA CATALOGRÁFICA Secretária Acadêmica Marane Iara Xavier Rodrigues Coordenadora da Biblioteca Rosane Rubim REVISTA INDEPENDÊNCIA Editor Derval Cardoso Gramacho Os trabalhos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Permitida a reprodução, total ou parcial, desde que citada à fonte. Conselho Editorial Cristina Mascarenhas Santos Derval Cardoso Gramacho Rommel Robatto Suzane Lima Costa Normalização Derval Cardoso Gramacho Diagramação Joel Calixto Projeto Gráfico Vinícius Silva Carvalho Assessor de Comunicação e Supervisor de Publicações Avenida Leovigildo Filgueiras, 81 - Bairro do Garcia CEP 40.100-000 - Salvador - Bahia - Brasil Tel.: (71) 3114-3400 - www.f2j.edu.br Independencia_03-final.indd 2-3 Silvio César Tudela 23/11/2010 20:15:56 2 3 4 5 6 7 8 9 Independencia_03-final.indd 4-5 LA ESPECIALIZACIÓN Y LA NECESIDAD DEL PERIODISMO CIENTÍFICO Lisandro Diego Giraldez Alvarez 09 CULTURA E IDENTIDADES NO RÁDIO Daniela Souza 23 MODELOS COMPARATIVOS DE JORNAL-LABORATÓRIO ON-LINE André Fabrício da Cunha Holanda 39 PRODUÇÃO, CONSUMO E IDENTIDADE NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Augusto de Sá Oliveira 59 DESAFIOS DA ÉTICA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: A IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE E SEUS REFLEXOS NOS DIREITOS HUMANOS Rommel Robatto 77 GESTÃO DA INFORMAÇÃO EM SERViÇOS DE SAÚDE: O FLUXO INFORMACIONAL NO SEGMENTO DOS LABORATÓRIOS DE ANÁLISES CLÍNICAS EM SALVADOR Ricardo C. Mello 103 EXPERIÊNCIA COLABORATIVA COM AMBIENTE DE APOIO A INTERAÇÃO Jaqueline Souza de Oliveira Valladares 125 O USO DO MOODLE COMO REFORÇO NO ENSINO DE ENGENHARIA ELÉTRICA EM CURSOS PRESENCIAS Roberto da Costa e Silva 139 O TABULEIRO DA BAIANA DA SENZALA À MESA DO BRANCO Sebastião Heber Vieira Costa 147 10 DEMOCRACIA, CIDADANIA E SOCIEDADE Jorge Lisboa de Paula 163 11 40 ANOS DO MAIO DE 68: ECOS DE UMA DÉCADA DE RUPTURAS Gustavo Roque de Almeida 181 12 TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO: POSSÍVEIS ANALOGIAS ENTRE O CAPITÃO DO MATO E O POLICIAL Eliezer Santos - Jordânia Freitas - Shagaly Araujo 193 SUMÁRIO 1 23/11/2010 20:15:56 No período de 2002 a 2008 o número de revistas científicas brasileiras indexadas na base de dados internacional cresceu 205%. Contudo, tal variação percentual não representa um grande feito. Haja vista que isto só propiciou o aumento da produção científica nacional, em igual período, em 56%, variação considerada pequena, pois só permitiu ao País passar da 15ª para a 13ª colocação no ranking mundial de artigos publicados em revistas especializadas. Com o total de 30.021 artigos científicos publicados em 2008, o Brasil se mantém, por exemplo, atrás de países como a Índia (38.366 artigos) e a China (112.318 artigos), conforme os dados constantes da pesquisa realizada pela Thomson Reuters, que analisou as 10.500 principais revistas científicas do mundo. A produção brasileira significou 2,6% do volume de 1.136.676 artigos publicados, enquanto a dos Estados Unidos da América alcançou 29%, com 332.916 artigos publicados pelos seus pesquisadores. A Thomson Reuters ao analisar a produção científica brasileira destaca que os investimentos em pesquisa e desenvolvimento no País eram, em 2007, menores que 1% do PIB, proporção inferior aos cerca de 2% aplicados nos Estados Unidos e na média dos países desenvolvidos. Ainda que acima de outros países latinoamericanos. O Brasil tem 0,92 pesquisador para cada mil trabalhadores – índice bem abaixo da média de seis a oito pesquisadores por mil trabalhadores dos países do G7. Um dos entraves para o crescimento e enriquecimento da pesquisa nacional reside na falta de estímulo por parte das Instituições de Educação Superior (IES) em atividades no País. E isto não se limita apenas à rede privada. Nas públicas, embora haja incentivo, sobeja a falta de equipamentos e de infraestruturas adequadas para atender aos projetos. Alie-se ainda a burocracia e o excesso de formalidades exigidas da parte dos órgãos financiadores de pesquisas no Brasil, além da exiguidade dos recursos disponibilizados para este fim pelos governos federal e estaduais. A comprovação disto, como diz o gerente da Thomson Scientific para a América do Sul, José Claudio Santos, é que o aumento da produção e das revistas científicas brasileiras na verdade não é um fato próprio do Brasil. O que aumentou, de acordo com Santos, foi a presença latinoamericana na base de dados e o Brasil liderou esse processo de crescimento, independente do nível de investimentos do governo em ciência, porque os investimentos continuam insuficientes para alterar esta realidade. A despeito das adversidades do momento, a Faculdade 2 de Julho não tem evitado esforços no sentido de estimular a pesquisa e a produção de seus docentes e discentes. Para tanto, a Faculdade mantém a Revista Independência (além da Jurídica, especifica do curso de Direito), também aberta a profissionais de outras IES, que visa levar para além dos muros da academia a produção científica, contribuindo para a melhoria da qualidade da educação e da formação dos professores e estudantes, bem como dos índices da pesquisa nacional. EDITORIAL NA PRODUÇÃO, A DENÚNCIA DO INVESTIMENTO INSUFICIENTE EM PESQUISA Derval Gramacho Independencia_03-final.indd 6-7 23/11/2010 20:15:56 1 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 LA ESPECIALIZACIÓN Y LA NECESIDAD DEL PERIODISMO CIENTÍFICO LISANDRO DIEGO GIRALDEZ ALVAREZ Pós-doutor en Neurociências, doutor en Fisiologia e Diretor da Agenciencia Comunicación Científica. Email: [email protected] Resumen Este artigo presenta algunos elementos fundamentales para debatir la necesidad de la especialización en distintas áreas del conocimiento, en este caso el Periodismo Científico y la Divulgación de la Ciencia. Actualmente, en el mundo se produce una cantidad impresionante de conocimiento que determina, casi obligatoriamente, que tengamos que concentrarnos en algunas líneas concretas de investigación o de la contrario difícilmente podremos divulgar seriamente información científica. Ante la falta de dicha especialización, encontramos en los medios de comunicación con material de divulgación científica de una calidad que deja mucho que desear, basta recordar, por ejemplo, el tema de la gripe porcina, que ha ganado una importancia mediática desproporcional frente a los brotes permanentes de enfermedades típicas de los países en vías de desarrollo. Aunque las estadísticas señalan el interés de la sociedad por las noticias de ciencia y técnica, las empresas de comunicación no dejan de imitar el modelo de desinterés de los países desarrollados hacia la especialidad del Periodismo Científico, fomentando la difusión de noticias científicas desde una perspectiva policial, siendo sin la menor duda, el “Periodismo Científico” que no debe ser incentivado Palabras-clave Ciencia. Divulgación. Periodismo Científico. Especialización. Resumo Este artigo apresenta alguns elementos fundamentais para debater a necessidade da especialização em diferenes áreas do conhecimento, neste caso particular em Jornalismo Científico e Divulgação da Ciência. Atualmente, Independencia_03-final.indd 8-9 23/11/2010 20:15:56 é produzida no mundo uma quantidade expressiva de conhecimento que determina, quase que obrigatoriamente, que tenhamos que nos concentrar em algumas linhas concretas de investigação ou, pelo contrário, dificilmente poderemos divulgar seriamente a informação científica. Diante da falta de especializações, encontramos nos meios de comunicação material de divulgação científica de qualidade duvidosa, bastando lembrar, por exemplo, a gripe suína, que ganhou destaque midiático desproporcional frente à proliferação de epidemias típicas dos países em desenvolvimento. Ainda que as estatísticas assinalem o interesse da sociedade pelas notícias de ciência e tecnologia, as empresas de comunicação não deixam de imitar o modelo de desinteresse dos países desenvolvidos no que diz respeito à especialização em Jornalismo Científico, mais do que isso, incentivando a difusão de notíicias científicas a partir de uma perspectiva policial, sendo, sem dúvida, o “Jornalismo Científico” que não deve ser fomentado. Palavras-chave Ciência. Divulgação. Jornalismo Científico. Especialização. El fenómeno de la especialización está presente en prácticamente todas las profesiones; pensemos en la medicina, la ingeniería, la biología, la química, las ciencias sociales, etc. Esa situación justifica que cada día sea más necesario estar especializado en áreas del conocimiento específicas. Si analizamos, por ejemplo, solo la biomedicina, el número de trabajos que se publican todos los años supera la capacidad humana para dar un seguimiento estricto de los mismos. Sin ir más lejos, la principal base de datos bibliográficos PubMed nos muestra que en el año 2008 fueron publicados 737.753 trabajos, considerando solamente los biomédicos, un volumen que es absolutamente imposible de seguir detalladamente. Esa cantidad impresionante de conocimiento generado todos los años implica, de alguna manera, que tengamos que concentrarnos en algunas líneas concretas de investigación o de la contrario difícilmente podremos divulgar seriamente información científica. Si de especializaciones hablamos, podemos decir que el Periodismo Científico es una especialización del periodismo, y sin duda también es una especialización de la ciencia. Esta gran división no termina ahí. Dentro del Periodismo Científico podemos establecer por lo menos las siguientes subdivisiones: el Periodismo Ambiental, el Periodismo Médico y el Periodismo Tecnológico. Cada una es arbitraria y realmente podríamos considerarlas dentro del Periodismo Científico, estableciendo esta división justamente en el sentido de marcar una tendencia en la especialización de los temas que serán tratados en nuestra profesión. La especialización, o canibalización del conocimiento, fue acentuada después de la Segunda Guerra Mundial, que es cuando comienzan a surgir las carreras con nombre y apellido: las especializaciones como la Química Biológica, la Física Nuclear, la Biofísica, el Periodismo Económico, el Periodismo Ambiental o la Medicina Nuclear. Históricamente, el profesional era periodista, químico, físico, médico, jardinero o militar. Normalmente las personas que se dedicaban a estas profesiones poseían una amplitud de conocimiento bastante, claro que Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 10-11 11 23/11/2010 20:15:57 en esos casos el conocimiento disponible en el mundo era bastante más limitado que el caudal que poseemos en nuestros días. En el siglo XIX el médico era clínico, el médico de la familia. A medida que surgían más datos y se generaban más conocimientos, el médico comenzó a especializarse en el corazón, en los pulmones, en las infecciones, en la anestesia, etc. En el caso de la ciencia, la situación no era muy diferente ya que el científico era obligado a superar individualmente muchas de las barreras que se le presentaban en su trabajo sin poder esperar las respuestas Para esta especialización, contribuyeron considerablemente los avances de las comunicaciones, los viajes y el contacto personal entre los grupos de trabajo que lentamente ampliaron los horizontes temáticos y la forma de desarrollar la profesión. El periodismo no podía permanecer ajeno. Con el desarrollo de la tecnología y de la velocidad en la transmisión de los conocimientos, el investigador consiguió concentrarse principalmente en su área de interés y resolver las preguntas que se le presentaban con la ayuda de colegas que ya estaban trabajando en el tema de forma más avanzada. En este punto, podemos ver que la evolución de las comunicaciones estuvo íntimamente ligada a la evolución tecnológica y científica y de ahí a la especialización, sólo resto un paso. Rensberger se remonta hasta el primer “escritor científico” moderno, H. G. Wells, que ya a fines de siglo XIX reclamaba la especialidad como un medio indispensable para transmitir la ciencia al público, tendiendo puentes entre la cultura científica y literaria: “Los principios fundamentales que subyacen a historias como ‘Los asesinatos de la calle Morgue’, de Poe o la serie ‘Sherlock Holmes’ de Conan Doyle son precisamente aquellos que deberían guiar al escritor científico” (NATURE, 2009, p. 1055). El periodista era el profesional que conocía de todo y “no sabia de nada”; en realidad esa era una de las habilidades más reconocidas de los buenos periodistas, incluso una habilidad que es considerada hasta nuestros días. El profesional era el que podía escribir una noticia sobre política, economía, meteorología, medicina, tecnología ferroviaria, o notas sociales como el casamiento o el bautismo de un miembro de la sociedad. Esta situación no sólo era posible por el profesionalismo de los periodistas, sino también gracias al volumen relativamente pequeño de noticias generadas y a los tiempos que demoraban para circular desde el lugar donde se producían los acontecimientos hasta llegar al medio de difusión. Ese cuadro se mantuvo prácticamente hasta la invención del telégrafo. En este sentido, piensen lo que implica el uso de Internet en la velocidad para comunicarnos prácticamente en forma instantánea, así podemos interactuar con nuestro colega que está del otro lado del mundo, y fuera del planeta si es necesario. 12 de un colega que por más próximo que viviera, el tiempo para obtener una respuesta dependía directamente de la velocidad de los medios de comunicación. Justamente, la velocidad en las comunicaciones permitió una mayor concentración en un trabajo específico, llegando hoy por hoy a la “ultra especialización globalizada”. Especialización porque el investigador estudia un sujeto particular de análisis, y globalizada porque al mismo tiempo sabe en que trabaja el colega que está a 10 mil kilómetros de distancia, y no solo sabe los detalles concretos, sino que en muchos casos se establecen colaboraciones altamente productivas. Se puede estar trabajando “on line”, compartiendo datos, analizándolos o enviando resultados en forma instantánea. En ese sentido es bueno recordar que los sistemas de Mensajeros (MSN, Twitter Skype, etc.) no sólo sirven para pasar el tiempo, sino como herramientas de trabajo esenciales. El hecho que nos concentremos en un punto muy determinado de estudio no implica que nos desconectemos completamente del contexto global de la investigación. Por el contrario. Nos concentramos en un tema determinado, sí, pero con visión global o como algún colega expresa: una visión holistica de la ciencia. Las ciencias de orientación serán aquellas que, debido a las evoluciones históricas, abren nuevos horizontes del conocimiento. Por ejemplo, alrededor del año de 1500, tiempo del cual partimos, Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 12-13 13 23/11/2010 20:15:57 la geografía en conjunto con la geografía cultural era una clase de ciencia de orientación. Hoy, son esencialmente las zonas limiares de la biología, de la química, de la medicina, de la física, de la ingeniería y de la ética. Así, mismo con los pensamientos estimulantes de Marquard, la mentalidad de separación no nos ayuda. No se puede imaginar ningún sistema de tareas claramente separadas (WUTTKE, s/d.). El periodismo científico Consideremos esa visión holistica y pasemos para la definición de Periodismo Científico. Normalmente, establecer definiciones depende de varios factores: de nuestra formación, de nuestras ideas y prejuicios respecto a un determinado tema. En el caso del Periodismo Científico la situación no es muy diferente y va a depender de cada autor y de su propia opinión no sólo en lo referente al periodismo sino también en lo referente a la ciencia; todo depende de los orígenes y formación de la persona. De todas maneras y para concentrarnos, vamos a presentar una de las mejores definiciones que es la establecida por Manuel Calvo Hernando, un prestigioso impulsor del periodismo científico en Iberoamérica y que nos dice: “El periodismo científico es la difusión, de forma comprensiva, de noticias científicas y tecnológicas en medios de comunicación masiva” (2004, p. 75). Podemos coincidir con esa visión, pero veamos un ejemplo. Imaginemos un accidente aéreo donde un avión choca en el aire con otro sobre el Amazonas. ¿Sería una noticia General?, ¿Policial? de ¿Ciencia? Otra vez depende del momento, del enfoque. Perfectamente podríamos desarrollar la materia como una noticia de tecnología y abordar el accidente desde una explicación de cómo funcionan todos los sistemas de vuelo, como funciona un radar, una torre de control, etc. Obviamente que en el momento en que se produce el accidente, difícilmente las personas quieran saber porque los aviones vuelan; la mayoría va a desear saber datos sobre los familiares, el número de víctimas, la forma de ayudar, etc. En etapas sucesivas ya se podrá pensar en usar el tema del accidente para preparar un trabajo de tecnología, por ejemplo. 14 Analizando estos temas también podemos preguntarnos si un periodista científico tiene que ser formado en periodismo o en ciencias. Entonces vamos a pensar la siguiente cuestión: Un periodista científico es ¿Científico o Periodista? La respuesta a esta pregunta, es que ambas formaciones profesionales son posibles y cada una de ellas nos dará un punto de vista diferente para la construcción de esta disciplina. Realmente deben existir muy pocas dudas respecto a la función y el trabajo que debe desarrollar un periodista; la gran mayoría de las personas piensan que su función es la de difundir informaciones de los acontecimientos que suceden en el mundo a través de los medios masivos de comunicación en forma procesada o pre-digerida. Profesionalmente, el periodista recibe una formación orientada a analizar, procesar y transmitir las noticias de un modo general. Dentro de ésta transmisión de información existe, sin dudas, un importante componente interpretativo y educativo dirigido al receptor de la información. Un periodista busca lo nuevo, lo inmediato, lo que “sucedió mañana”, el ganar al colega de la competencia; el científico también se encuentra en una carrera para ganar al laboratorio vecino con sus publicaciones, pero normalmente tiene otros ritmos de producción - más lentos, más repetitivos - y un trabajo que está sometido a varios sistemas de control previos antes de que el trabajo vea la luz o en algunos casos la oscuridad, como cuando un trabajo es rechazado por el editor de la revista científica en la que se desea publicar. Románticamente hablando, el científico tiene una formación orientada a la búsqueda de respuestas frente a determinados problemas que se le presentan a la sociedad, aunque en realidad y en la mayoría de los casos, simplemente su función es responder a preguntas de distinto grado de complejidad, algunas de las cuales pueden ser de gran impacto Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 14-15 15 23/11/2010 20:15:57 social y otras contribuyen para el mantenimiento de la pirámide del sistema científico. La relación entre ciencia y periodismo no es muy simple; mejor dicho, la relación entre periodistas y científicos no siempre se ha caracterizado por transcurrir pacíficamente “en las aguas del Mediterráneo”, en muchos casos transcurren dentro de un “Tsunami”. Las discrepancias son normales. El científico considera que las informaciones transmitidas por los periodistas están fuera de contexto o son mal interpretadas; el periodista, por su parte, considera que el científico no sabe transmitir en forma simple toda la información que puede ser útil para el público, algo que es bastante concreto. Para la mayor parte de la gente, la realidad de la ciencia es aquella presentada por los medios. El público, en general, conoce la ciencia menos por medio de la experiencia directa o de la educación previa que a través del filtro del lenguaje […] Muchos científicos desconfían de los periodistas y critican sus reportajes por infidelidad, simplificación exagerada o eventual sensacionalismo. Los propios periodistas critican, muchas veces, la manera como la ciencia es representada por los medios. Sin embargo, tienden a responsabilizar sus fuentes – científicos, universidades e instituciones técnicas por disponibilizar información muy intricada o inadecuada. El propio público frecuentemente reclama porque la información científica disponible en los medios es incompleta o incomprensible (EPSTEIN, 2002, p. 82). Todos tienen su parte de razón, pero no todo es “blanco” o “negro”; hay que considerar una gama de “gris” y por eso debería quedar claro que para hacer Periodismo Científico es tan importante ser periodista como científico. Cada uno podrá aportar un punto de vista interesante a un trabajo que si es realizado en conjunto, mejor será el producto final. Doble función del Periodismo Científico: formar e informar. El Periodismo Científico es una especialización del Periodismo, del mismo modo que existe el Periodismo Político, el Periodismo Económico, el Periodismo Cultural, el Periodismo Deportivo, el Periodismo de Moda. Vamos a coincidir que la profesión “madre” es la del periodista, sin 16 duda, sólo que existen temas que profesionalmente pueden resultar mas atractivos o mas interesantes para el desarrolla profesional, en este caso específico el tema de la ciencia y la tecnología. Entonces, ¿Que es ser un periodista científico? En líneas generales, consiste en informar noticias de ciencia y tecnología que normalmente son generadas en Centros de Investigación o Universidades. Transmitir ese conocimiento transformador a la sociedad es parte del papel que el periodista debe tener. Hay que considerar que no siempre tiene que ser así, y los límites de la profesión pueden ser establecidos con cierta flexibilidad. Lo que vamos a encontrar entre los distintos autores, es la idea o el concepto de que el periodista científico no sólo informa al público sino que también cumple la función de formador y de mediador. Así, también el Periodismo Económico forma, el Cultural, y hasta el Deportivo que puede ayudar, por ejemplo, a crear una mayor conciencia sobre el cuidado del cuerpo y la salud. Por eso, este tipo de discusión o enfoque no tiene mucho sentido ya que realmente todo periodista puede cumplir la función de informar y al mismo tiempo de formar y educar. Que se cumpla una función u otra se debe principalmente a la línea editorial que se quiera ofrecer en el medio de comunicación aunque cualquier periódico, TV o radio está formando permanentemente, por acción o por omisión. El escritor de ciencia se torna parte de un sistema de educación y comunicación tan complejo como la ciencia moderna y la sociedad más amplia… Como intermediarios, los redactores de ciencia deben esclarecer para si mismo, sus editores y su público, algunas ideas y conceptos que no son tan claros mismo para muchos científicos (BURKETT, 1990, p. 6). A partir de los criterios de actualidad, universalidad, periodicidad y difusión - fundamentales al periodismo – el periodista (en este caso el científico) se debe constituir en mediador del dialogo entre el lector y el científico, presentando una visión variada, basada en el criterio de la información con veracidad. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 16-17 17 23/11/2010 20:15:57 El teórico de la comunicación Donald Shaw afirma que los medios ofrecen mucho más que la noticia. De acuerdo con el, los medios de comunicación ofrecen también las categorías en las que los destinatarios pueden fácilmente ubicarlas de forma significativa. [...] las personas tienden a incluir o excluir de los propios conocimientos lo que los medios incluyen e excluyen del propio contenido. Además de ello, el público tiende a conferir a lo que los medios incluyen una importancia que reflecte de cerca el énfasis atribuido por los medios a los sucesos, a los problemas, a las personas […] (SHAW apud WOLF, 2003, p.143). Para Wolf, las audiencias (receptores) dependen cada vez más de los medios para formar sus imágenes de la realidad, en especial de aquella realidad que no pueden ver directamente. Como las representaciones mediáticas no son automáticamente transportadas para el conocimiento de los destinatarios, siempre se debe considerar como variable la competencia en el tratamiento de las informaciones. Wolf afirma aún que los medios destacan un acontecimiento, una acción, un grupo una personalidad etc., de manera que pasa para primer plano. Felipe Pena coincide y avanza: “A mídia é a principal ligação entre os acontecimentos do mundo e as imagens desses acontecimentos em nossa mente (2006, p. 142)”. Los medios, para este autor, funcionan como agentes modeladores del conocimiento. Sin embargo, la sociedad contemporánea, aparentemente bien informada - justamente por ese permanente “bombardeo de informaciones”-, parece todavía padecer de la desinformación en muchos aspectos. Desde el punto de vista científico y tecnológico, o de los conocimientos producidos en los ámbitos de la ciencia y la tecnología, todo indica que la información todavía es un privilegio de una minoría. Aunque la ciencia sea un hecho social, eso es del conocimiento de pocos, ya que no se divulgan los conocimientos producidos en el ámbito de la ciencia, lo que hace con que la mayoría de los individuos se encuentren completamente ajenos a la connotación pública que debería dar al campo científico. 18 Pero, sobre este aspecto Bueno señala que es imperativo reconocer también que no es tarea fácil traer temas complejos de ciencia y tecnología para el cotidiano de las personas, especialmente cuando ellas no están familiarizadas con los conceptos básicos del área, pero eso es posible con esfuerzo, talento y capacidad. Es sobre todo factible cuando periodistas/divulgadores y científicos/ investigadores trabajan en comunidad y están empeñados en cumplir adecuadamente este papel […] Sin una divulgación y un Periodismo Científico cualificados, la ciencia y la tecnología [...] que, muchas veces, compiten, con las realizadas en los países llamados hegemónicos, seguirán distantes de los ciudadanos, de las autoridades, de los parlamentarios de la sociedad de manera general (BUENO, s/d). Además, es necesario comprender que, “en cuanto instancia orientadora en particular para problemas complejos, la ciencia no es confrontada exclusivamente con las llamadas cuestiones de hecho, pero también con cuestiones de metas y de normas sociales y con los problemas de su validación” (HESSE, JANICH et al, 1996, p. 35). Obviamente que la selección de una noticia u otra depende de miles de factores, incluyendo la formación del editor responsable y, en muchos casos, las noticias o programas que los medios diseminan también pueden ser determinadas por el público receptor. Podemos entonces preguntarnos: ¿Qué tipo de Periodismo Científico hacer? Seria redundante destacar la importancia que tiene la ciencia y la tecnología para la sociedad. Los científicos han cambiado nuestra forma de vida más drásticamente que las estrellas de televisión, los hombres de Estado y los generales, pero el público conoce poco sobre ellos mas allá de la caricatura del ermitaño sin pasiones luchando con intrincados problemas que no puede explicar sino en una jerga incomprensible […] (PERUTZ, 1990, p. 17). Sin embargo, debemos recordar que la actividad científica y la divulgación de sus descubrimientos son parte de un importante mercado económico del cual el periodismo científico es una parte fundamental, Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 18-19 19 23/11/2010 20:15:57 a pesar de que algunos medios, nacionales e internacionales no consideren esa situación. En contraste con América Latina, África y Medio Oriente - en donde cada vez hay mas interés por las noticias de ciencia y tecnología -, en los Estados Unidos y en la Unión Europea, el número de periodistas científicos que trabajan para los periódicos está disminuyendo drásticamente al punto, que algunos medios de comunicación están suprimiendo sus departamentos de ciencia. La cadena nacional de televisión estadounidense CNN recientemente cerró su unidad de medio ambiente, ciencia y tecnología, al mismo tiempo que la sección científica del Boston Globe’s está siendo gradualmente eliminada (AISLING, 2009). No deja de ser contradictorio, que a pesar de esta tendencia mundial, la mayoría de las noticias de divulgación científica difundidas en el Brasil y en América Latina tengan su origen en agencias de noticias, localizadas precisamente en los países calificados como del Primer Mundo. Siendo así, no es sorprendente encontrarnos con material de divulgación científica de una calidad que deja mucho que desear. Entre ese material podemos recordar, por ejemplo, el tema de la gripe porcina, que ha ganado una importancia mediática desproporcional frente a los brotes permanentes de enfermedades típicas de los países en vías de desarrollo como el Dengue, la enfermedad de Chagas o la Malaria que afecta, por ejemplo, a cerca de un millón de brasileros por año. Aunque las estadísticas señalan el interés de la sociedad por las noticias de ciencia y técnica, las empresas de comunicación no dejan de imitar el modelo de desinterés hacia la especialidad del Periodismo Científico adoptado actualmente por los así llamados países desarrollados, como los Estados Unidos y la Unión Europea. Antes que un Periodismo Científico “que divulga de forma comprensiva, noticias científicas y tecnológicas en medios de comunicación masiva”, lo que predomina es la difusión de noticias científicas desde una perspectiva policial, y ese estilo sin la menor duda, es el Periodismo Científico que no puede ser fomentado. 20 Referências BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo Científico e Democratização do conhecimento. Portal do Jornalismo Científico. Disponíble en: http://www.jornalismocientifico.com.br/jornalismocientifico/artigos/ jornalismo_cientifico/artigo27.php BURKETT, Warren. Jornalismo Científico: como escrever sobre ciencia, medicina e alta tecnologia para os meios de comunicação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. CALVO HERNANDO, Manuel. Diccionario de términos usuales en el periodismo científico. México: IPN, 2004. EPSTEIN, Isaac. Divulgação Científica – 96 verbetes. São Paulo: Pontes, 2002. HESSE, Reinhard, JANICH, Peter, et al. Por uma Filosofia Crítica da Ciência. Goiânia: Editora da UFG, 1987. IRWIN, Aisling. Auge del periodismo científico en países en desarrollo. Red de Ciencia y Desarrollo Noticias, opiniones e información sobre ciencia, tecnología y el mundo en desarrollo. 18 febrero de 2009. Disponible en: http://www.scidev.net/es/news/-auge-del-periodismocient-fico-en-pa-ses-en-desar.html NATURE. Reino Unido: Macmillan Publishers Limited. 25 June 2009. PENA, Felipe. Teorias do Jornalismo. São Paulo: Contexto, 2006. PERUTZ, Max F. ¿Es necesaria la ciencia?. Madrid: Espasa, 1990. WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. Tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2003. WUTTKE, Dieter. Para uma visão holística das ciências e das artes (Palestra). Disponible en: http://clientes.netvisao.pt/phanenbe/ passagem/Wuttke.pdf. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 20-21 21 23/11/2010 20:15:57 2 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 CULTURA E IDENTIDADES NO RÁDIO DANIELA SOUZA Mestranda em Cultura e Sociedade (UFBA), especialista em Docência do Ensino Superior e em Jornalismo Cultural (F2J), graduada em Jornalismo e em Direito (FCS), professora do curso de Jornalismo da F2J. Email: [email protected] Resumo Este artigo apresenta o rádio como uma criação da cultura humana. Indica que ele é explorado e vivenciado a partir dela e passa integrar os rituais de identidade e identificações. O leitor ainda encontra um breve resumo da história do rádio e a chegada dele ao Brasil. As considerações foram realizadas tendo em vista o rádio e as emissoras brasileiras, não se fixando em um período de tempo específico, mas localizando algumas experiências que cruzaram rádio e identidade. Palavras chave Rádio. Cultura. Identidade. Resumen El presente artículo presenta la radio como una creación de la cultura humana. Indica que es explorada y vivenciada a partir de esta creación y pasa a integrar rituales de identidades e identificaciones. El lector encuentra también un breve resumen de la historia de la radio y de su llegada a Brasil. Las consideraciones fueran realizadas teniendo en cuenta la radio y las emisoras brasileñas, sin fijarse en un período de tiempo específico, pero ubicando algunas experiencias que cruzaron radio e identidad. Palabras-clave Radio. Cultura. Identidad. Independencia_03-final.indd 22-23 23/11/2010 20:15:57 RÁDIO E CULTURA A palavra rádio designa o equipamento de irradiação de sons e paisagens sonoras, mas também, sem excluir outras compreensões, é uma metonímia para duas concepções do conceito de radiodifusão, ambas ligadas a uma recepção contínua, simultânea e heterogênea, como explicita o Dicionário de Comunicação: [...] Serviço prestado mediante concessão do Estado, que o considera de interesse nacional, a emissora de rádio deve operar dentro de regras estabelecidas em leis, regulamentos e normas. A legislação brasileira admite exploração comercial (emissora comercial) ou sua utilização para fins exclusivamente educativos (emissora edutativa) [...] Atividade artística, informativa e educativa desenvolvida nas emissoras de radiodifusão [...]. (RABAÇA E BARBOSA, 2001, pp.615-616) Portanto, rádio significa o suporte de transmissão do conteúdo, o rádio (1), o sistema de transmissão, corporificado nas emissoras, ou seja, as rádios (2), e os conteúdos veiculados e irradiados, os programas (3). Este tripé, aqui separado pela necessidade, chega para nós, pelo menos para a maioria, de forma simultânea e imbricada. Por isso, às vezes desconsideramos que seus processos e desenvolvimentos ocorreram e ocorrem, concomitantemente ou não, em concurso ou não, simultaneamente ou não. E que, apesar de entrelaçados, no mais das vezes em uma relação de causa e efeito – não há como existir uma legislação de rádio antes da invenção do aparelho – os procedimentos e progressões do artefato, do sistema e dos produtos artístico-informativos sobrevêm de momentos e sujeitos históricos diferentes e representam conteúdos culturais distintos, complementares, difusos e diversos. O rádio que conhecemos e ouvimos hoje não é o mesmo do início do século XX, mas em princípio é o mesmo. Para propagar as informações, o rádio (a televisão, os celulares e as conexões sem fio) usa(m) as ondas eletromagnéticas que se alastram em decorrência da relação entre as propriedades elétricas e magnéticas da matéria, captadas em parâmetros da amplitude ou frequência (GREF, s/d). Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 24-25 25 23/11/2010 20:15:57 Seria difícil indicar o ponto inicial dos eventos e inventos da história e qual o primordial ensaio, a experiência científica original que deu sequência aos episódios que levaram à invenção do rádio. Essas ocorrências podem ser explicadas pelo processo acumulativo, criativo e revolucionário da elaboração cultural (LARAIA, 2002) ou pelo Zeitgeist1, apontado aqui como “[...] o clima intelectual, moral e cultural, predominante em uma determinada época” (CALDAS, 2004, p. 70). Sabemos que eventos e inventos iguais ou similares podem ocorrer em lugares diferentes, promovidos por pessoas diferentes e com diferentes objetivos e interesses. Entretanto, a história ocidental prescinde de origem, de um momento inicial, de uma pessoa ou grupo como aqueles que iniciaram estes fatos. Conhecer e determinar o início faz parte da nossa preocupação cultural. Sendo assim, os estudos sobre o eletromagnetismo começaram, em tese, com o escocês James Clerk Maxwell (1864-1879), foram testados e provados pelo alemão Heinrich Rudolf Hertz (1857-1894) e concretizados no aparelho radiofônico do italiano Guglielmo Marconi (1874-1937), com contribuições de outros cientistas como Graham Bell (1847-1922) e Samuel Morse (1791-1872), e outros. Fruto do inefável Zeitgeist ou dos modos de produção da sociedade e sua respectiva evolução técnica, o rádio foi explorado comercialmente primeiro pela indústria da guerra e depois pela do entretenimento. Podemos dizer que o rádio se desenvolveu em dois sentidos complementares, um escorado nos avanços tecnológicos, outro fincado nos conteúdos, formatos e formas de irradiação. O rádio-equipamento é um artefato fruto de uma cultura, o rádio-veículo de comunicação de massa é o meio e a expressão de divulgação dela, como indicamos no tripé do início do texto. Neste último sentido, o rádio é um mass media 1 Zeit em alemão é tempo, época ou período; Geist é espírito, mente (fonte: Dicionário Michaelis online). O que produz muitas vezes o conceito do espírito de uma época, ou “espírito do tempo”. Para Dario o uso mais corriqueiro do termo está nos mass media e define o que está “no ar”, ou seja, é sinônimo de contemporâneo. Entretanto, o próprio autor salienta que há uma utilização fora do âmbito do senso comum que inclui as orientações de Goethe, Schopenhauer e Hegel. Para o último é o espírito imanente às coisas. 26 que influencia audiências e grupos e é influenciado por eles, mudando em decorrência da cultura, mas, também, em consequência do desenvolvimento tecnológico – é impossível desconsiderar que a radioweb e o rádio digital2 mudaram, e vão mudar ainda mais, a nossa maneira de lidar, usar e caracterizar o veículo indicado. Os estudos sobre o artefato e o veículo de comunicação de massa começaram no final do século XIX, consolidaram-se no século XX e se espalharam pelo mundo. A partir de 1920, a radiodifusão se disseminou pelos continentes. O último empecilho foi o custo do aparelho receptor que, paulatinamente, foi vencido. Destarte, as ondas sonoras conquistaram os lares de empresários, profissionais liberais, campesinos e trabalhadores urbanos. A partir daí a recepção estava garantida a um vasto número de pessoas. O controle da produção dos conteúdos, não obstante, ficou reduzido ao grupo de poder local (ORTRIWANO, 1985). A implicação foi a falta de espaço para as “falas culturais” variadas e a criação de um novo espaço privilegiado de locução, um local de poder. O equipamento técnico foi globalizado com muita presteza, mas os valores empregados e divulgados foram os locais, o que leva a consideração de que “[...] os elementos não simbólicos (técnicos e materiais) de uma cultura são mais facilmente transferíveis que os elementos simbólicos (religiosos, ideológicos, etc.)” (CUCHE, 2002, p. 119). A tecnologia rádio foi exportada pelo mundo eurocêntrico do início do século XX, processada pela cultura estadunidense e incorporada pelo ocidente e oriente. Mas a inscrição cultural do veículo em cada país levou a caminhos diferentes, incluindo-se aí as escolhas para os sistemas de posse e uso. Ainda que o rádio fosse algo absolutamente inédito, desconhecido e inovador, os sistemas culturais de cada gruponação, não. Dito isto, fica claro que a fala foi garantida para quem já 2 Raweb é um sistema de transmissão via Internet que tem como configuração as impressões, características e formatos do rádio, aqui chamado, de rádio convencional. O rádio digital é aquele em que as informações trafegam pelas ondas eletromagnéticas em códigos binários, usado em substituição ao atual processo analógico. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 26-27 27 23/11/2010 20:15:57 tinha fala. A exploração do rádio foi questionada por Bertold Brecht (1898-1956) em seu texto Teoria de Rádio (1927-1932). criadas para dar às comunidades e também aos grupos minoritários um canal de expressão, são deixadas a mercê da sorte e não contam com Todas nuestras instituciones ven su misión principal en mantener intrascendente. El papel de las ideologías, de acuerdo, con un concepto de cultura según el cual la configuración de la cultura ya está determinada y la cultura no tiene necesidad de ningún esfuerzo creador continuado. No pertenece aquí analizar en interés de quién repercuten estas instituciones intrascendentes, pero cuando se halla una invención técnica de una utilidad tan natural para distintas funciones sociales con un esfuerzo tan angustioso por quedarse intranscendentemente en pasatiempos cuanto más inofensivos mejor, entonces surge incontenible la pregunta de si no existe ninguna posibilidad de evitar el poder e la desconexión mediante la organización de los desconectados. (BRECHT, 1932, p. 10) uma política de subsídios. Em função do abandono e da falta de apoio institucional, estes veículos são encampados por microempresários da comunicação, por assim dizer, e por políticos de menor “calibre”, como os vereadores e deputados estaduais. E são subvertidos de canais de expressão popular para canais de expressão populista. A forma como o rádio foi explorado pelos países, bem como as consequentes legislações sobre o tema, já denotavam as culturas impressas naqueles lugares. A exploração pública ou privada do veículo rendeu discussão no início da década de 20, no século XX, e mobilizou os países para a adesão a um ou outro sistema. Mas a discussão pela democratização ficou adiada. Evidentemente os veículos de massa não são capazes de abrir, nem quando utilizam ferramentas chamada interativas, um canal comunicativo que permita um fluxo informativo do tipo estímulo-resposta. Todavia, é preciso tentar criar espaços de aproximação e feedback (retroalimentação). Entre as muitas definições dadas à comunicação, Rabaça e Barbosa (2001) conceituam como palavra derivada do latim communicare, cujo significado seria “tornar comum”, “partilhar”, “repartir”, “associar”, “trocar opiniões”, “conferenciar”. Implica participação, interação, troca de mensagens, emissão e recebimento de informações novas (p. 155-156). O primeiro era centrado na estreita ligação entre o rádio, a educação nacional e o controle estatal (este o caso da maioria dos países europeus na primeira metade do século XX). O segundo, estritamente comercial e para o qual o sistema norte-americano serve de paradigma, era formado por um conjunto de emissoras voltadas para o interesse do mercado e financiadas pela verba de venda de publicidade (CALABRE, 2003, p. 162). Atualmente, contamos com algumas formas híbridas de financiamento dos veículos de comunicação, em especial o rádio. No Brasil, temos canais que são explorados comercialmente e outros destinados a instituições escolares, leiam-se universidades, e aqueles submetidos aos governos, direta ou indiretamente, organizados e geridos por secretarias ou por fundações. Eles estão organizados, de qualquer sorte, em monopólios ou oligopólios que representa uma cultura e um grupo de poder. Para dirimir estas distorções foram criadas as Rádios Comunitárias. Não vamos nos estender sobre este tópico, mas as referidas rádios, 28 Logo, o rádio é um local privilegiado de fala onde a maioria não participa; chamado de veículo de comunicação quando de fato não permite o diálogo, como salienta Brecht (1932), que permite o estar-com-outro (TRABER, 2008). A comunicação é um estar-com-outro, é um encontro que, no mundo contemporâneo urbanizado, é inevitável, ligeiro, impessoal e, na maioria das vezes, mediado. Por isso os veículos de massa são tão importantes, pois simulam este estado. Eles são um simulacro comunicativo. Desse contato, surge uma cultura específica, chamada amplamente de cultura de massa. Nomenclatura também contestada por Adorno e Horkheimer por induzir a ideia de participação popular, de um sujeito comunicativo, que espontaneamente propaga e consome aquilo que produz. Para Adorno, apud Rabaça e Barbosa (2001), “as massas são meros ‘acessórios’ da máquina. O consumidor não é o rei, como pretende a indústria cultural; não é sujeito, mas seu objeto” (p. 173). Este Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 28-29 29 23/11/2010 20:15:57 conceito já foi relativizado, pois a cultura excluída, em tese, também se apropria do que é forjado fora dela, ou seja, do que é elaborado por quem aparentemente está fora do poder midiático. A cultura de massa é produzida então em simulacro comunicativo como já foi indicado -, que inclui o popular e o massivo. Para Peruzzo (2004), três correntes indicam quais seriam as definições de popular, entre elas o popular-massivo, entendido como restrito âmbito da indústria cultural3: [...] pautando-se os estudos em três linhas, definidas como cada um vê o popular: a) na apropriação e incorporação das linguagens, da religiosidade e de outras culturas do povo pelos meios de comunicação de massa; b) nos meios massivos e em certos programas de elevado poder de penetração, influência e aceitação, a exemplo dos “fenômenos de audiência” [...]; c) em programas massivos sintonizados com as problemáticas de bairro ou comunitárias, os quais, entendidos em geral como de utilidade pública, abrem espaço para as pessoas fazerem denúncias, pedirem esclarecimento ou externarem reivindicações quanto as questões que afetam interesses comum a determinados grupos de pessoas (PERUZZO, 2004, p. 118). Então os veículos de massa e seus produtos são influenciados pela população que os consome, sofre influência destes. É muito difícil precisar quais são os graus e proporções entre um e outro, mas este também não é o caso. De qualquer forma, ninguém escapa à mídia e ao “[...] ambiente midiático cada vez mais insistente e intenso” (SILVERSTONE, 2002, p. 12). De certo mesmo, é evidente que o rádio é fruto da cultura humana, produz uma cultura de massificação, mas também é permeado por várias culturas. Por fim, os discursos radiofônicos, assim com a escola e a família, servem de mecanismo de endoculturação, servem à constituição de uma identidade. E são frutos dos valores inscritos em uma cultura. O rádio é um retroalimentador que pode ou não amplificar estes discursos, passível de ruídos comunicativos que podem até subverter as mensagens. 3 Os outros dois são o popular-folclórico e o popular-alternativo. O primeiro refere-se às expressões e manifestações consideradas tradicionais. E o segundo é fruto dos movimentos populares. 30 A mídia agora é parte da textura geral da experiência. Se incluíssemos a linguagem como uma mídia, isso não mudaria e teríamos de tomar as continuidades da fala, da escrita, da representação impressa e audiovisual como indicadores do tipo de respostas que procuro para minha pergunta, pois sem atenção às formas e aos conteúdos, às possibilidades da comunicação, tanto dentro do tido-por-certo de nossas vidas cotidianas como contra ele, não conseguiremos compreender essas vidas (SILVERSTONE, 2002, p.14). Mesmo que os grupos controladores do sistema privilegiem seus discursos e incorporem ou transformem os discursos populares e minoritários em uma apropriação que visa a manutenção do status quo, a interpenetração das culturas e o jogo desequilibrado, não indicam o apagamento de um dos lados. Nesse sentido, se evidencia o rádio como um elemento cultural altamente complexo e que, mesmo comandado por um grupo, não é unicamente determinado por ele. Mídia e identidades Quem ou o quê determina quem somos nós? Como e porquê somos como somos? Em que medida fatores que consideramos fruto e consequência de nossa condição biológica, e que estão naturalizados por força deste argumento são impressões culturais de nossos grupos? Laraia (2002) aponta que alguns comportamentos indicados como instintivos são de origem cultural, e indica, entre os exemplos, o instinto materno. Para ele, a palavra instinto tem sido mal empregada ao indicar padrões culturais de conduta em vez de biológicos. No mesmo sentido afirma Cuche (2002): “A noção de cultura se revela então o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos” (p. 10). Para os antropólogos, é perigoso assumir o cultural como inato. Essa ideia pode levar à desvalorização da cultura do outro, da qual eu me diferencio. Este outro, por sua vez, está verticalmente submetido ao jogo de poderes e discursos. Ainda que estivéssemos refletindo sobre aspectos puramente biológicos, seria impossível separar o traço biológico da sua resposta, marcada- Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 30-31 31 23/11/2010 20:15:57 mente, cultural. Por exemplo: apesar de todos sentirem a necessidade de alimento, os ritos que envolvem as refeições são diferentes entre os grupos. Então, além da carga genética, outro aditivo indica o que seremos, como seremos, o que significa que a carga cultural também é relativamente hereditária, pois é menos fixa e mais polissêmica (CUCHE, 2002). Assim sendo, fatores biológicos e culturais concorrem para a formação da identidade. Deixamos o paraíso em busca da satisfação da curiosidade e do desejo, somos seres que desejam, mas quem e o que desejamos, como e quando desejamos e por que desejamos, são impressões culturais; um exemplo é a nossa busca contemporânea pela estética. E mais: “A identidade cultural de um grupo só pode ser compreendida ao se estudar suas relações com os grupos vizinhos” (CUCHE, 2002, p. 14). Os choques de alteridades apontam na mesma direção ou em direções opostas e, se não determinam, evidenciam e transformam as nossas querências. Talvez por isso, para Cuche (2002), cultura e identidade são termos que estão associados muitas vezes por certo modismo. De acordo com o etnólogo francês, “há o desejo de se ver cultura em tudo, de encontrar identidade para todos” (CUCHE, 2002, p. 14). Claro que o cientista não exclui esta composição, tanto que dedica em seu livro A noção de cultura nas Ciências Sociais (2002) um capítulo para tecer a relação cultura e identidade. Para ele, alguns estudiosos veem as crises culturais e identitárias como fruto do amortecimento do Estado-nação, da globalização da economia e de uma integração política cosmopolita e supranacional (CUCHE, 2002). O texto ainda faz um alerta para a necessidade de não se confundir os elementos de cultura e os de identidade cultural. Em suma, a cultura pode ocorrer por processos inconscientes, inclusive de identidade, e esta última “remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas” (CUCHE, 2002, p. 176). Esta identidade cultural é marcada pela fluidez, que permite o câmbio, a impermanência e a polissemia. Ela admite várias identificações, pois 32 parte do princípio de apropriação e reapropriação simbólica. Com isso, a identidade cultural está conectada à identidade social que “se caracteriza pelo conjunto de vinculações em um sistema social: vinculação a uma classe sexual (sic), a uma classe de idade, a uma classe social, a uma nação, etc.” (CUCHE, 2002, p. 177). A mídia também se aproveita dessas vinculações. Não é à toa que os produtos e programas são elaborados para atingir um público específico com o objetivo de sensibilizá-lo (RABAÇA E BARBOSA, 2001). No rádio, a identificação do público é capital, inclusive porque o veículo, a partir de 1980, dividiu as faixas do dial para atingir determinados grupos, públicos, alguns excludentes, outros não. Se a diferença é marcada pela identidade, mais do que a semelhança, o rádio é um espaço de identificações, de identidade cultural. Este perfil da audiência, a diferença, condiciona as mensagens e define os conteúdos (ORTIZ e MARCHAMALO, 2005) e formatos radiofônicos. É o que ensina Ortriwano (1985): A especialização, que de certa forma sempre existiu, uma vez que é impossível cobrir bem todos os campos de atividade, apenas se acentuou, principalmente a partir da implantação e do desenvolvimento das emissoras de FM, acabando por mostrar-se uma fórmula eficaz para que o rádio pudesse encontrar outra vez o caminho da expansão [...] E a especialização acabou ocorrendo pela necessidade de atender ao mercado, onde existem diversas faixas sócio-econômicas (sic) que precisam ser exploradas adequadamente (ORTRIWANO, 1985, p. 29). Desde que conhecesse os símbolos e marcadores culturais da região Nordeste e do nosso País, um viajante que estivesse em Salvador não teria dificuldade para identificar nas rádios em Frequência Modulada (FM) os seus respectivos públicos. A seleção da música, o tipo de locução, os textos e seus conteúdos, as vinhetas e os comerciais evidenciam os seus destinatários, assim como tudo que fica de fora da programação. Para exemplificar, enquanto na rádio popular o locutor pretende ser um velho amigo a quem é possível confessar tudo, com quem se conta nas rádios, para o público classificados como adulto contemporâneo as locuções são econômicas e não simulam uma aproximação amistosa; o encontro entre o ouvinte e o locutor é meramente casual. Metaforicamente, as Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 32-33 33 23/11/2010 20:15:57 rádios populares simulam as saudações e congratulações de dois amigos enquanto as outras de conhecidos que se esbarram rapidamente. Outro traço interessante é que as rádios populares são inclusivas, sempre cabe mais um ouvinte, e as rádios de elite são exclusivas. Contudo, o recorte de classe apresentado pelas rádios não é só econômico, existem rádios só para jovens, para católicos, para mulheres, etc. Na Internet, os canais de áudio, as netradios4, são mais segmentados, eles são hipersegmentados e servem de encontro para comunidades virtuais, um bom exemplo de identificações pelas ondas sonoras. Ouvindo rádio podemos deduzir sobre aspectos de um indivíduo ou grupo, o nós/eles fica evidente e no rádio este embate é valorizado e estimulado. A rádio é um mecanismo de identificações que denota poder e disputa, não só pela audiência, todavia pelas classes, cultural e identificações. Ela também organiza trocas entre estes setores que se relacionam a partir da seleção da sintonia e do encontro com o outro-midiático. Não é sem razão a briga entre rádios convencionais, comunitárias e piratas, cada uma argumentando em favor de seus interesses culturais, sociais e econômicos. A luta pela reforma do espectro eletromagnético é também jogo, ora de estigmatização, ora afirmação das forças simbólicas. Dar voz a quem não tem voz é só o início. Nem todos os grupos têm o poder de nomear e de se nomear. Bourdieu explica no clássico artigo “A identidade e a representação” (1980) que somente os que dispõem de autoridade legítima, ou seja, de autoridade conferida pelo poder, podem impor suas próprias definições de si mesmos e dos outros [...] A autoridade legítima tem o poder simbólico de fazer reconhecer como fundamentadas as suas categorias de representação da realidade social e seus próprios princípios de divisão do mundo social. Por isso mesmo, esta autoridade pode fazer e desfazer os grupos (CUCHE, 2002, p. 186). Estas autoridades também definem qual rádio é comunitária e qual não é, sempre privilegiando as operações jurídicas formais ao invés 4 São rádios que só operam na Internet e não têm presença no espectro eletromagnético. 34 das informais e costumeiras. Voltando à questão da audiência, neste território radiofônico, as faixas são classificadas levando em conta o público e não os produtores dos conteúdos e os concessionários das emissoras. As consideradas populares são classificadas como aquelas destinadas a um público subalterno, que no caso de Salvador está vinculado à minoria-maioria negra e/ou afro-descente, aos moradores da periferia e aos setores com baixa escolaridade. As músicas executadas nestas rádios seguem os ritmos como a axé, o pagode, o samba, o forró e seus derivados, classificados pela cultura hegemônica como construções menos complexas e de pior qualidade5. Até pela nomenclatura é possível constatar as afirmações de identidades; em oposição às rádios populares estão as rádios chamadas de “adulto-contemporâneo”. As rádios identificadas com os grupos dominantes são adultas, ou seja, demonstram que há um amadurecimento, um crescimento intelectual. Pressupõe-se que os ouvintes destas emissoras tenham capacidade de realizar algo a partir de uma reflexão e de maneira racional e equilibrada. Este público é ainda contemporâneo, ou seja, sintonizado com as ideias de uma extensão supranacional e um consumo global. Curiosamente, excetuando-se as que só tocam música nacional ou transmitem notícias, estes veículos são os que mais executam músicas estrangeiras, mormente, o pop-rock e baladas. Seria a rádio/mídia um novo espaço de colonização? Não é preciso dizer que sim, basta advertir que ela é um espaço de luta simbólica de afirmação e reconhecimento. Concluindo, a divisão por gêneros é mais explorada em programas do que em emissoras. A Rádio Metrópole, que opera na faixa de FM, na cidade de Salvador, na frequência 101,3 Mhz6, tem um programa chamado 5 O samba e o maxixe também sofreram este tipo de preconceito logo que as Rádios Clubes e Sociedades foram montadas no Brasil. Eles foram considerados ritmos inferiores. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundado por Roquette Pinto, era uma das que preferia a música erudita em vez da popular. Não foram necessários dez anos para que o Samba virasse sinônimo de Brasil e de brasilidade. Este tipo de classificação só serve para definir as fronteiras do rádio e das culturas da nossa sociedade levando em conta um conceito superado de alta e baixa cultura. Contudo, a classificação é usada pelo mercado radiofônico mais preocupado com enquadramentos econômico-publicitário do que com a expressão da cultura, ainda que sirva de canal para ela. 6 De acordo com o site da instituição também opera em AM – 1290 Khz Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 34-35 35 23/11/2010 20:15:57 Só para Mulheres, que promete, pelo menos em sua proposta geral, cumprir o estereótipo do conteúdo para o público feminino brasileiro, reverberando os valores culturais. O conteúdo é veiculado de segunda a sexta, das 10h às 12h; são entrevistas, dicas de culinária, estética, saúde e decoração7 no estilo talknews8. veiculação baseadas no eixo-Rio/São Paulo. Este dado se verifica nas pautas e conteúdos e também na locução. Recentemente, ouvi de um estudante de jornalismo que os apresentadores da Bandnews São Paulo não tinham sotaques. Só essa afirmação valeria uma reflexão O rádio é o preferido pelos grupos políticos e religiosos porque tem alcance e grande capacidade de mobilização9. Antes da televisão, o rádio foi, de fato, o único meio de comunicação capaz de chegar a qualquer parte do Planeta. No Brasil, Getúlio Vargas tentou criar uma identidade nacional a partir da irradiação de programas que exaltassem a solidariedade e a criatividade do povo brasileiro. Vargas fez isto encampando a única rádio que tinha poder tecnológico de atingir praticamente todo o território brasileiro. A Rádio Nacional10 foi um bom exemplo de forjar uma unidade e uma identidade a partir do Estado-nação. Esta foi a postura de monoidentificação (CUCHE, 2002) perpetrada pelo Governo de Getúlio Vargas que, em 8 de março de 1940, incorpora a emissora para criar uma opinião positiva do povo brasileiro ao mesmo tempo em que administrava os valores do que seria brasileiro. O rádio permite a dupla identidade, pessoas que são não necessariamente identificáveis com os conteúdos de uma emissora podem integrar estes valores como referência para seus grupos sociais e para si mesmo. Por outro lado, com o jogo, a disputa, e os conteúdos culturais estão disponíveis a todo e qualquer ouvinte, ainda que produzidos majoritariamente por um deles. Mas como são obrigadas a seguir seus públicos, as rádios abrem espaço controlados para valores e culturas diferentes. Estes estratagemas permitem a construção, reconstrução e desconstrução a partir do que indicam as situações e das oportunidades de hibridização. Ao sintonizar o rádio não passamos por estações, mas por fronteiras de identidades que a qualquer momento podem se descolar, podem ser questionadas e podem ser reconstruídas. Os meios de comunicação de massa podem não normatizar os comportamentos culturais, todavia, são um campo fértil para a descrição e reconstrução destes. [...] seja por reconhecer apenas uma identidade cultural para definir a identidade nacional (é o caso da França), seja por definir uma identidade de referência, a única e verdadeiramente legítima (como no caso dos Estados Unidos), apesar de admitir um certo pluralismo cultural no interior de sua nação. A ideologia nacionalista é uma ideologia de exclusão das diferenças culturais (IDEM p. 188). mais complexa. Estas estratégias, comuns nas décadas de 1930 e 1940, estão presentes no rádio contemporânea em programas como A voz do Brasil, obrigatórios e de divulgação dos trabalhos dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário. A identidade como a nacional, para o rádio, é aquela de 7 Informações disponíveis no site da emissora: http://www.radiometropole.com.br/ portal2009/index_programas.php?id=VGtFOVBRPT0= 8 Misturando bate-papo e informação 9 O Brasil tem 6.218 rádios. Estima-se que 45% são de políticos, 35% de grupos religiosos e 20% de empresários. Fonte: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home. aspx?edicao=1894&pg=08 10 Fundada no Rio de Janeiro, no dia 12 de setembro de 1936. 36 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 36-37 37 23/11/2010 20:15:57 Referências BRECHT, Bertold. Retransmisión con el falso empleo de la forma de concierto. Disponível em: http://geccom.incubadora.fapesp.br/ portal/tarefas/projetos-em-multimeios-i-e-ii-puc-sp/textos-uteis/ teoriadaradio.pdf. Acesso em: 05/05/2009. CALABRE, Lia. Políticas públicas culturais de 1924 a 1945: o rádio em destaque. In: Estudos Históricos nº 31. Rio de Janeiro: 2003, p. 161181. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/346.pdf. Acesso em: 09/04/2009. CALDAS, Dario. Observatório dos Sinais. Teoria e prática da pesquisa de tendências. Rio de Janeiro: SENAC, 2004. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002. GREF. Grupo de Reelaboração do Ensino de Física. São Paulo: EDUSP, s/d. ORTIZ, Miguel Angel. MARCHAMALO, Jesus. Técnicas de comunicação pelo rádio: a prática radiofônica. São Paulo: Loyola, 2005. ORTRIWANO, Gisela Swetlana. A informação no rádio – os grupos de poder e determinação dos conteúdos. São Paulo: Summus, 1985. PERUZZO, Cicília Maria Krohling. Comunicação nos Movimentos Populares. Petrópolis: Vozes, 2004. RABAÇA, Carlos Alberto. BARBOSA, Gustavo Guimarães. Dicionário de Comunicação. Rio de Janeiro: Campus, 2001. SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2002. TRABER, Michael. A Comunicação é parte da natureza humana: uma reflexão filosófica a respeito do direito de se comunicar. Disponível em: http://www.direitoacomunicacao.org.br/novo/index.php?option=com_ docman&task=doc_download&gid=132. Acesso em 28 de fevereiro de 2008. 3 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 MODELOS COMPARADOS DE JORNAL-LABORATÓRIO ON-LINE1 ANDRÉ FABRÍCIO DA CUNHA HOLANDA Mestre e Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA), graduado em Comunicação - habilitação em jornalismo (UFBA). Professor do curso de Jornalismo e coordenador da pós-graduação em Comunicação Organizacional da F2J, diretor do POLICOM – Congresso de Comunicação Social e Políticas Culturais (F2J). Criador e editor executivo do Folha Salvador (http://www.folhasalvador.com.br) e da revista on-line Lupa Digital (http:// www.lupa.facom.ufba.br). Email: [email protected]. Resumo A prática laboratorial em jornalismo on-line exige a seleção de ferramentas eficientes e de baixo custo que proporcionem aos estudantes a competência necessária ao uso dos sistemas de publicação e comunicação on-line, assim como a compreensão dos dilemas e implicações sociais da produção noticiosa no contexto das redes digitais. Mais do que meras ferramentas de publicação, as soluções aqui apresentadas pretendem-se ambientes virtuais de interação entre alunos, professores, fontes e público, constituindo-se como verdadeiros ambientes integrais de ensino-aprendizagem. Palavras-chave Jornalismo. Educação. Jornalismo on-line. Jornal laboratório on-line. Resumen La práctica laboratorial en periodismo online exige la selección de herramientas eficaces y de bajo costo que proporcionen a los estudiantes la competencia necesaria al uso de los sistemas de publicación y comunicación online, bien como la comprensión de los dilemas e implicaciones sociales de la producción de noticias en el contexto de las redes digitales. Mas allá de meras herramientas de publicación, las soluciones aquí presentadas pre1 Trabalho apresentado no GP Conteúdos Digitais e Convergências Tecnológicas do IX Encontro dos Grupos/Núcleos de Pesquisa em Comunicação evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 38 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 38-39 23/11/2010 20:15:57 tenden ser ambientes virtuales de interacción entre alumnos, profesores, fuentes y público, convirtiéndose en verdaderos ambientes integrales de ensino-aprendizaje. Palabras-clave Periodismo. Educación. Periodismo en línea. Periodismo de laboratorio en línea. A generalização das tecnologias digitais e de meios de comunicação on-line exigiu mudanças na formação do profissional de jornalismo. Estas mudanças visam garantir, não só para que estes possam trabalhar nos veículos da web, mas em todos os meios, que há muito utilizam rotineiramente as tecnologias digitais para a pesquisa, apuração e, eventualmente, para o contato e entrevista das fontes. Não se trata, portanto, de submeter outras modalidades aos padrões do jornalismo on-line. As mudanças impostas ao ensino-aprendizagem do jornalismo on-line foram exploradas por diversos pesquisadores, dentre os quais destacaremos como fundamentos principais para o presente trabalho, “O ensino de jornalismo em redes de alta velocidade. Metodologias e softwares”, organizado por Elias Machado e Marcos Palacios (2007) e “La enseñanza del ciberperiodismo. De la alfabetización digital a la alfabetización ciberperiodística”, de Santiago Tejedor Calvo (2007). Ao explorarem o tema do jornalismo na web, outros trabalhos ajudaram a estabelecer expectativas sobre o que significaria o bom uso desta modalidade de jornalismo e, portanto, estabeleceram quais são as capacidades esperadas dos egressos dos cursos de comunicação. Já em 2001, Pavlik insistia na necessária preparação dos estudantes para o no novo ambiente (PAVLIK, 2001). Para citar uma breve lista não exaustiva destes trabalhos, lembremos Díaz Noci (2002), Escudero (2008), Fidalgo (2003), Salaverria (2005), Boczkowski (2004), Canavilhas (2007), Briggs (2007), além dos manuais mais populares como Ward (2007), Pinho (2003), Moherdaui (2002), entre muitos outros. Um dos principais problemas a serem resolvidos no âmbito do ensino é que a capacitação dos estudantes esbarra em um obstáculo considerável: as ferramentas profissionais de publicação, aquelas utilizadas nos principais veículos jornalísticos, têm um preço tão elevado e oferecem tal dificuldade de instalação que hoje é virtualmente impossível para nossas faculdades de comunicação a oferta de treinamento nas plataformas efetivamente utilizadas no mercado de trabalho. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 40-41 41 23/11/2010 20:15:57 Em compensação, a Internet oferece múltiplas ferramentas de baixo custo e até mesmo gratuitas que podem ser utilizadas para propiciar aos estudantes uma experiência instrutiva e realista dos procedimentos, problemas e alternativas que encontrarão no mercado de trabalho. O objetivo deste trabalho é relatar e discutir o uso de duas destas opções, ambas gratuitas, suas características, os problemas e limitações encontradas, assim como os resultados observados na experiência. Ensino-aprendizagem do jornalismo em redes digitais As competências que os estudantes precisam adquirir devem levar em conta tanto os aspectos operacionais e técnicos, quanto os aspectos sociais, críticos e éticos. Hoje existe um consenso tanto na academia quanto no mercado de que não basta a mera instrumentação dos estudantes. Como veremos em detalhes mais adiante, o próprio mercado de trabalho percebe que as ferramentas mudam tão rapidamente, que o conhecimento operacional aprendido corre o risco de estar desatualizado antes da formatura dos alunos. Por esta razão, os veículos percebem como mais importante uma alta capacidade de aprendizagem e de adaptação a estas mudanças (MACHADO e PALACIOS, 2007, p. 69). ta a necessidade de se compreender a adoção das tecnologias digitais como “fator constitutivo do próprio ambiente de ensino-aprendizagem” (MACHADO e PALACIOS, 2007, p. 12). É um chamado à recusa da adoção meramente instrumental da tecnologia, tendência forte tanto entre os defensores, quanto entre detratores da influência tecnológica. As implicações éticas do impacto das novas tecnologias têm gerado estudos como, por exemplo, Online Journalism Ethics (FRIEND e SINGER, 2007), cujas opiniões convergem para a necessidade de formar crítica e eticamente os estudantes para o trabalho em um campo comunicativo ainda não inteiramente balizado, como atestam os trabalhos de Gillmor (2004) e Sorrentino (2006), entre outros. Também aqui se exige mais adaptabilidade e autonomia crítica do que uma mera adequação a regras preestabelecidas. A necessidade de aliar teoria e prática no processo de ensino-aprendizagem é outro ponto incansavelmente defendido, seja por pensadores da educação (DEMO, 2005), seja por pesquisadores do campo da Comunicação (TEJEDOR CALVO, 2007; FIDALGO, 2003). Esta necessidade, que vale para qualquer tipo de estudo, tem fundamental importância em uma área ainda recente, que, de acordo com pesquisadores, como Tejedor Calvo (2007), ainda exige uma “alfabetização”. O professor Elias Machado em vários momentos (MACHADO, 2003), (MACHADO e PALACIOS, 2007) tem advertido contra a percepção das tecnologias digitais como mero instrumento de publicação e comunicação. O autor insiste em que se tenha em mente o surgimento de uma nova modalidade de jornalismo, que exige adequação de procedimentos, linguagem e parâmetros éticos. A apreensão do fenômeno como mera substituição de ferramenta tende a menosprezar a vasta gama de consequências organizacionais, expressivas e sociais trazidas pelas novas formas de comunicação em rede (CASTELLS, 1999, 2003); (LEMOS, 2002) e (LEVY, 1999). Aplicando este princípio à formação do jornalista, Elias Machado articula esta sua crítica com o trabalho do educador Pedro Demo (2005) e ressal- 42 Competências projetadas pela academia Apoiado em pesquisa realizada nas universidades espanholas, Santiago Tejedor Calvo (2007) estabelece alguns valores e princípios do que chama de alfabetização ciberjornalística. O primeiro ponto está nas mudanças exigidas na formação: para o autor é necessário conscientizar os estudantes quanto ao alcance das mudanças experimentadas, assim como quanto às características e possibilidades oferecidas dos meios on-line. O perfil desejado para este profissional seria alguém que conhece a estrutura informativa on-line, produz informação em tempo real, é capaz de assumir vários papéis na produção, domina a Rede como fonte Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 42-43 43 23/11/2010 20:15:57 informativa, é gestor de informação, competente para selecioná-la, filtrá-la, armazená-la e distribuí-la, é redator ciberjornalístico, domina os códigos da narrativa hipermidiática, tem autonomia no uso das ferramentas de software, é criativo e capaz de trabalhar em equipe, Tabela 1 – Competências exigidas pelo mercado (fragmento) Competências GERAIS explora a interação, e finalmente, está em contínua reciclagem formativa (TEJEDOR CALVO, 2007, p. 36). “Cultura de Internet”: uso cotidiano e eficiente de recursos variados oferecidos pela Rede (Advanced Digital Literacy) Conhecimentos básicos e utilização de programas (softwares) de edição de texto, tratamento de imagem, áudio, programação visual (Basic Digital Literacy) Competências exigidas pelo mercado Às exigências acadêmicas vêm juntar-se as demandas oriundas do próprio mercado de trabalho. Elias Machado e Marcos Palacios (2007, p. 61-83) apresentam os resultados de pesquisa realizada com o objetivo de definir, entre outros pontos, as necessidades profissionais das empresas e o perfil profissional procurado por estas. Os resultados atestam “a universalidade e naturalização da demanda por habilidades e capacitações digitais” (ibidem, p. 67); como já havíamos adiantado, o mercado anseia por flexibilidade e não por especialização funcional: Alta capacidade de aprendizagem de uso de novos programas (Advanced Digital Literacy) Conhecimentos básicos das diferentes “linguagens”: texto, fotografia, vídeo, áudio, infografia Conhecimentos teóricos sobre Redes e seu funcionamento Percepção clara das especificidades do ambiente digital enquanto espaço de criação de conteúdos midiáticos distintos dos meios tradicionais Conhecimentos de administração pública e privada, legislação, direito autoral etc. Houve forte convergência entre os entrevistados na percepção de que, mais importante de que competências específicas em manejo de equipamentos e softwares, são desejáveis a adaptabilidade e a capacidade de rápida aprendizagem, uma vez que as mudanças ocorrem de maneira muito célere quanto a processos e programas adotados (MACHADO e PALACIOS, 2007, p.69). Outros pontos em que mercado e academia puseram-se de pleno acordo foram: a) a exigência de uma formação não meramente tecnicista, mas, sim, “numa formação humanística, ética e intelectual num sentido amplo” (MACHADO e PALACIOS, 2007, p. 70); b) a exigência de algo que os autores chamam de “Cultura da Internet”, competência referida ainda como “ter trato com Internet” (ibidem, p. 71). As competências componentes das demandas auferidas nesta pesquisa encontram-se na tabela ao lado. Uso básico do computador como ferramenta para busca, avaliação e classificação de informação (Basic Digital Literacy). Noções sobre “modelos de negócios” para diferentes ambientes midiáticos Formação humanística sólida e bom conhecimento de atualidades Jornalismo (Competências gerais) Alto domínio das técnicas de apuração, especialmente em redes telemáticas Clara percepção de critérios de noticiabilidade e hierarquização da informação Conhecimento e manejo de técnicas narrativas que permitam produzir textos apropriados a diferentes suportes midiáticos. Capacidade para transitar entre diferentes gêneros jornalísticos “Texto Final”. Agilidade na produção de textos Capacidade de edição final Jornalismo On-line Alta capacidade de apuração de informação através da rede Texto ágil, capacidade de síntese. Fonte: (MACHADO e PALACIOS, 2007). 44 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 44-45 45 23/11/2010 20:15:57 Mesmo uma análise superficial das demandas estabelecidas neste estudo mostra que a atividade laboratorial é o espaço privilegiado para atender a todas estas exigências. As práticas a serem desenvolvidas devem compreender, para Santiago Tejedor Calvo (2007, p. 117), a criação de mensagens, práticas de busca de informações na rede, práticas de gestão de conteúdos, estudos de caso, manejo de software e desenho e desenvolvimento de um cibermeio. Outro ponto em que insiste o pesquisador espanhol é a possibilidade de que o aluno assuma diversos papéis na redação, reportagem, edição, gestão de conteúdo etc. (TEJEDOR CALVO, 2007, p. 120). O que significa que a escolha de um software de gestão de conteúdos para o laboratório exige a possibilidade de atribuição de permissões de acesso diferenciadas, o público pode ou não adicionar comentários, os alunos serão redatores, revisores ou editores, tendo cada qual permissões distintas para visualizar, alterar e publicar os conteúdos produzidos por si ou pelos outros, conforme estas atribuições. De acordo com Santiago Tejedor Calvo (2007, p. 80) e Elias Machado (MACHADO e PALACIOS, 2007), a formação do novo perfil deve ser transversal, mista, ou seja, deve combinar disciplinas específicas da área com esforços transdisciplinares. Em ambas as iniciativas descritas a seguir, isto ocorreu – em certa medida – através da colaboração com professores ora das oficinas de redação jornalística, ora das matérias de rádio, TV e impresso. Folha salvador On-line 46 O Folha Salvador On-line é o webjornal da Faculdade 2 de Julho, cumprindo função de campo de estágio e de jornal laboratório. Nasceu como versão interativa do impresso Folha Salvador, e responsável pela convergência entre os diversos produtos comunicativos criados com o empenho dos estudantes no âmbito de diversas disciplinas da grade. Operando desde julho de 2008, o site tem em vista um público alvo identificado com o jovem trabalhador e estudante da Região Metropolitana de Salvador. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 46-47 A missão do Folha Salvador On-line é estabelecer a marca da Faculdade 2 de Julho na Internet através de um veículo jornalístico multimídia, complementar ao impresso, criando um espaço para a prática de estágio e de publicação da produção estudantil. Como se vê, a atividade laboratorial não é sua única fonte de atualização. Desde seu surgimento, um grupo de estagiários contribui diariamente com o intuito de manter a atualização regular independentemente do ritmo de produção nas disciplinas, onde o engajamento dos estudantes e dos professores não pode ser constante, nem mesmo diário. Infraestrutura e implantação O site utiliza os serviços de hospedagem contratados conforme a política da Faculdade, utilizando software gratuito para gerenciar a publicação de conteúdo. Trata-se da plataforma Joomla, cuja escolha foi ditada principalmente pela flexibilidade oferecida e pelo tamanho da comunidade mantenedora do projeto. Em projetos de Software Open Source (colaborativos e não comerciais), o tamanho desta comunidade de colaboradores é fundamental para que os erros sejam encontrados e corrigidos com velocidade (RAYMOND, 2000). O Joomla oferece ferramentas eficientes de redação e gestão dos conteúdos, controle dos usuários com diversas permissões de acesso diferenciadas, ampla flexibilidade com utilização de plugins, para criar galerias de fotos, visualização de vídeo, tocadores de arquivos sonoros. Os pontos negativos seriam: a utilização exige um tempo razoavelmente longo de adaptação, a ferramenta de gestão de imagens, apesar de haver melhorado muito nas últimas versões ainda é desnecessariamente complicada. A instalação inicial do projeto contou com o trabalho voluntário do professor responsável e do diretor administrativo do jornal, em colaboração com a equipe técnica da Faculdade, principalmente CPD e Assessoria de Comunicação. O gasto total de implantação tendo sido de US$ 40 referentes à compra de um modelo pronto de design profissional (template), mais os custos de registro do endereço eletrônico Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 47 23/11/2010 20:15:57 (R$ 30 por ano) e de hospedagem, custo inserido em contrato prévio da faculdade ao qual não tivemos acesso. Um site semelhante pode ser hospedado por algo entre R$ 30 e R$ 60 mensais. Figura 1 - Evolução das visitas ao site Folha Salvador entre julho de 2008 e julho de 2009. Funcionamento O Folha Salvador On-line começou funcionado com um estagiário e um editor. Só no ano de 2009 começou a integração das disciplinas de Oficina de Jornalismo Digital do 6º semestre (atualmente, Webjornalismo) e Técnicas de Apuração e Edição em Jornalismo Digital, no 7º semestre, nos turnos vespertino e noturno, somando cerca de quarenta alunos, escrevendo uma vez por semana. Professores de outras disciplinas foram convidados a participar, ficando estes responsáveis pela correção dos textos dos seus estudantes. Somava-se uma equipe composta por três ou quatro estagiários, encarregados da atualização permanente, inclusive aos finais de semana. No seu âmbito laboratorial, as principais dificuldades encontradas foram o volume de pautas a serem geradas, do conteúdo a ser corrigido e comentado com as turmas a cada semana. Esta dificuldade inerente ao trabalho de professor vem intensificada pela velocidade exigida pela atualização do site. Esta insistência na atualização contínua, característica fundamental do webjornalismo, ainda trazia o problema de entrar em choque com a qualidade do texto e da apuração. Objetivos propostos e alcançados Após pouco mais de um ano de funcionamento, o Folha Salvador On-line superou a marca dos 135 mil acessos. O resultado de 2008 ajudou a estabelecer como meta para o ano de 2009 uma média mensal superior a 20 mil acessos. Resultado ainda não consolidado apesar do salto de visibilidade conquistado neste ano (vide figura 2 logo abaixo). O que mais atrapalhou na estabilização desta meta foi a alta rotatividade do quadro de estagiários, desde quando eles passam a conseguir novos estágios com rapidez imprevista. 48 Um elemento fundamental do projeto Folha Salvador é propiciar a convergência midiática e a integração das operações em dois níveis: em primeiro lugar os estudantes ganham espaço integrado de publicação, em segundo lugar, a estrutura profissional do nosso jornal impresso Folha Salvador pode ampliar o diálogo com a produção laboratorial, constituindo-se como espaço privilegiado para o exercício acadêmico dos nossos estudantes também na Internet, o que possibilita a publicação da nossa produção em rádio e TV digital. Este era o nosso primeiro objetivo: 1. Possibilitar a criação de um laboratório multimídia convergente e interativo para a produção dos estagiários e alunos. Foi atingido com possibilidades de progresso, graças à cooperação com as professoras responsáveis pelas disciplinas de Rádio, Daniela Souza; Telejornalismo e Convergência Digital, Cristina Mascarenhas, que proveram o site com material em áudio e vídeo. Além do professor Ivan Gargur com seu podcast sobre economia. Pequenos ajustes, no sentido de aumentar a regularidade desta oferta de conteúdo, são necessários para que atinjamos um nível ótimo neste quesito. 2. Ampliar o alcance do jornal impresso Folha Salvador, complementando a cobertura impressa. Parcialmente atingido: o modelo de preparação do jornal impresso, com múltiplas instâncias de revisão e aprovação prévia, provou-se inadequado para o ritmo de produção do site. Os dois veículos possuem ritmos muito distintos e seria necessária uma maior integração das equipes e uma maior independência na produção das matérias para que a complementaridade fosse plenamente implantada. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 48-49 49 23/11/2010 20:15:57 3. Ampliar o público, permitindo a transferência de atenção entre os veículos, reforçando-os mutuamente com a reputação e presença da marca que cada um for conquistando. Atingido com possibilidades de progresso. Outro fator positivo foi a transferência de público entre impresso e Internet. Os relatórios de acesso mostram que as visitas ao site sofrem acentuado aumento assim que o impresso sai às ruas. Seria ainda necessário criar meios para medir se já se pode detectar o mesmo efeito no sentido inverso. 4. Aumentar a visibilidade da marca da Faculdade 2 de Julho chamando atenção para os diferenciais estratégicos e valores principais da marca: o investimento na qualidade de ensino e o compromisso com a modernidade. No aspecto temporal, encontramos dificuldades de implantação da atualização contínua, questão nitidamente de limitação de recursos humanos. Não precisamos de uma cobertura contínua 24 horas por dia, sete dias por semana, no entanto, a estagnação do site durante os finais de semana seria uma insuficiência a corrigir. Desafios encontrados e próximos passos Um efeito negativo da popularidade alcançado pelo site foi que nos tornamos por duas vezes alvo de ataques de hackers, a primeira vez no mês de agosto e novamente em outubro de 2008. Os efeitos dos ataques foram revertidos graças à interferência da equipe do site juntamente com o CPD. Será necessário ainda contornar a irregularidade da oferta de conteúdo multimídia. A produção transdisciplinar não pode atrapalhar as disciplinas de Fotografia, Rádio e Telejornalismo. O Folha fica, portanto, à disposição destas disciplinas para a publicação do seu conteúdo e não o contrário. O segundo semestre de 2009 trará a incorporação da produção laboratorial dos alunos da disciplina de 4º semestre Redação Jornalística 2. Este aumento na equipe de não estagiário ampliará a oferta de 50 conteúdo e, concomitantemente, o volume de trabalho dedicado à elaboração das pautas, à correção dos textos e edição de matérias e material multimídia. As medidas para o aprimoramento do jornal Folha Salvador On-line deveriam ser: • Sistematização dos processos de produção de modo a garantir a atualização contínua. • Sistematização da infraestrutura interna de produção multimídia. Com treinamento da equipe para produção e edição de fotografias, áudio e vídeo. Dotando o veículo de autonomia para a produção em todas as mídias. • Um responsável técnico designado para a manutenção e segurança do site de modo a liberar o professor André Holanda destas tarefas. Lupa Digital A Lupa digital também surge de um veículo impresso, trata-se da revistalaboratório Lupa, projeto chefiado pelo Professor Giovandro Marcus Ferreira (Diretor da Faculdade de Comunicação) e pela Professora Graciela Natansohn, responsável pela Oficina de Jornalismo Impresso I. A versão digital é um antigo projeto da equipe. Esta segunda fase fica a cargo do professor responsável pela Oficina de Jornalismo Digital 6º semestre. Colegas que ocuparam esta vaga anteriormente já haviam tentado realizar este projeto, esbarrando sempre em dificuldades técnicas na hospedagem e com o sistema de publicação. A herança do projeto editorial da Revista Lupa impõe certas características: em primeiro lugar, o perfil de revista fortemente ancorada em cultura e cotidiano da cidade de Salvador implica o abandono do paradigma de atualização contínua em favor de um modelo mais ancorado em reportagens e personagens. Esta escolha propiciou possibilidades mais interessantes de pautas, evitando a superficialidade da atualização contínua, advinda da proliferação das notícias curtas e de notas Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 50-51 51 23/11/2010 20:15:57 informativas fragmentadas. Fenômeno que, apesar de representar fielmente o trabalho nos veículos on-line, tende a empobrecer em muito a experiência do laboratório e até mesmo o texto dos estudantes. Da revista impressa trazemos ainda a projeção de público alvo composto por jovens universitários de Salvador e Região Metropolitana. As áreas temáticas são basicamente “educação”, “cultura” e “sociedade” e a comunicação com o nosso público é feita através de texto inteligente, informado e crítico. Este direcionamento, e a concentração temática favorecem a ocupação de um nicho de mercado específico, um dos modos mais eficazes para que veículos pequenos atraiam público na internet. Infraestrutura e implantação A primeira decisão a ser tomada para esta nova empreitada foi a escolha da plataforma de publicação. Após análise das opções gratuitas disponíveis, adotou-se o Joomla como sistema de gerenciamento de conteúdos. A instalação do software sofreu atrasos sucessivos e, apesar do acompanhamento de um técnico do CPD da UFBA, trouxe dificuldades muito maiores do que as que costumam acontecer com a instalação em provedor de hospedagem profissional como foi o caso do Folha. A metade do primeiro semestre de 2008 foi gasto com a instalação, o que obrigou a uma publicação em caráter experimental para toda a turma 2008.1. O segundo semestre de 2008 trouxe a colaboração do estagiário Patrick Silva. Graças à qualidade de trabalhos anteriores deste estagiário com o sistema do Wordpress, decidimos adotar esta solução que, apesar de menos flexível e poderosa do que o Joomla, revelou ser mais simples de instalar, manter e operar2. O Wordpress possui capacidades suficientes de administração das permissões de acesso e através de plugins capacidades multimídia satisfatórias. 2 Note-se que aqui falamos do sistema de publicação que pode ser baixado e instalado no seu provedor e não do serviço de blogs disponível em http://www.wordpress.com. 52 Esta mudança tirou a Lupa do estágio experimental e em julho de 2008 o novo site foi utilizado com sucesso na Oficina de Jornalismo Digital. Neste semestre a produção manteve os níveis esperados com boa participação dos estudantes, qualidade do texto e de apuração bastante satisfatórios, o aproveitamento de material em diversas mídias foi muito bom, ficando prejudicado apenas pela dificuldade em liberar para todos os estudantes a possibilidade de publicar vídeos. Funcionamento Tirando proveito da periodicidade que o projeto editorial da revista permite (podemos dizer que exige), na Lupa Digital não existe o imperativo da atualização contínua e da cobertura noticiosa imediata do dia-a-dia. Desta forma, todo o conteúdo da revista on-line tem sido atualizado entre quatro e cinco vezes por semestre. Apesar desta periodicidade muito marcada, não adotamos a edição por números por considerá-la característica de outros meios e sem sentido na Internet. A equipe de redação é composta por todos os alunos das duas turmas de Oficina de Jornalismo Digital, somando em média 40 estudantes por semestre. Espera-se que o volume publicado chegue a pelo menos 200 matérias aproveitadas, descartando-se as pautas canceladas ou os conteúdos recusados devido à baixa qualidade. Outras atribuições da equipe são: adaptar o conteúdo publicado na revista impressa para a publicação na Internet, e interagir com os leitores através dos comentários no site. Os redatores e repórteres dispõem de amplas liberdades criativas, críticas e opinativas. No caso da Lupa Digital os estudantes estão liberados inclusive da regra do texto curto, direto e objetivo, valor tido às vezes como sacrossanto pelo jornalismo on-line. Em laboratório este é um tema de discussões periódicas. É a gramática do meio que o exige ou trata-se de mais um efeito nocivo da nossa cultura periférica? Estas discussões, assim como as questões éticas emergem regularmente do trabalho conjunto, constituindo elemento fundamental do projeto. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 52-53 53 23/11/2010 20:15:58 Objetivos propostos e alcançados 1. Propiciar o exercício e/ou a aquisição das competências exigidas pelo mercado – atingido com possibilidades de progressos. A periodicidade da atualização não reproduz condições realistas de trabalho, o que dificulta a experiência do ritmo de produção dos principais veículos. Esta dificuldade é compensada pela qualidade de texto obtida, e pelas maiores possibilidade de construção hipertextual e multimidiática. 2. Criação de um laboratório multimídia convergente e interativo para a produção dos alunos. Atingido parcialmente: uma vez que a produção do conteúdo nas diversas mídias fica a cargo dos alunos, a quantidade e qualidade do material dependem quase inteiramente da dedicação e do interesse apresentados pelos estudantes nas disciplinas de Fotografia, TV e Rádio. A Oficina de Jornalismo Digital não oferece nem tempo, nem recursos para nivelar o desempenho dos estudantes nestas diversas modalidades. 3. Complementar a atuação da revista impressa com seus potenciais multimídia. Foi Atingido parcialmente. Os planos de integração de pautas entre os dois veículos precisam ser repensados, até porque os dois possuem periodicidades difíceis de conciliar. A revista impressa é semestral: o número publicado em um semestre foi na verdade elaborado pela turma do semestre anterior, portanto, para que a publicação on-line não fure a revista, uma colaboração entre as duas deixaria “na geladeira” a produção dos estudantes do on-line até o semestre seguinte. 54 no servidor da universidade revelou-se muito mais difícil do que no serviço pago. Esta dificuldade inviabilizou a utilização do software originalmente selecionado, o Joomla, mas a adoção do Wordpress, de mais simples operação e instalação proveu a tranquilidade para a concentração na produção jornalística. Uma qualidade da revista impressa que está ainda ausente no on-line é a possibilidade de oferecer aos alunos oportunidades de ocuparem diversos cargos na produção como defende a pesquisa de Santiago Calvo (2007). No futuro seria enriquecedor criar um modelo em que os estudantes se sucedessem nas posições de pauteiros, editores, revisores, editores multimídia etc. A ausência do consagrado modelo de atualização contínua não chegou a revelar-se um problema para o funcionamento do site. Em primeiro lugar, por ser mais adequado aos horários de aula, além disto, por viabilizar a correção que de outra forma seria simplesmente impossível. Apesar disto, um interessante desafio futuro poderia ser a cobertura ao vivo de um evento acadêmico, de modo a, pelo menos desta forma pontual, oferecer aos alunos uma experiência da cobertura em tempo real característica do meio on-line. Considerações finais Desafios encontrados e próximos passos Estes dois casos de webjornais-laboratórios chamaram a atenção para a questão da temporalidade no trabalho do jornalismo on-line. Se o Folha propicia a experiência da atualização permanente, isto se dá ao preço do enfraquecimento do texto e do processo de apuração. O que pode ser visto como um mal “produtivo”, uma vez que ajuda a preparar para a realidade industrial do jornalismo na Internet e constitui elemento para a crítica (informada) da produção atual. A Universidade Federal da Bahia garante à publicação a hospedagem e suporte técnico gratuitos, no entanto, em troca destas facilidades perdemos a autonomia que teríamos com uma hospedagem comercial. Ao contrário do que se poderia supor, a instalação das ferramentas O caso da Lupa Digital não corre este risco e se beneficia de um tempo confortável para o desenvolvimento de pautas, entrevistas e textos mais interessantes, ampliando inclusive as possibilidades de narrativas verdadeiramente hipermidiáticas. Por outro lado, a prática laboratorial Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 54-55 55 23/11/2010 20:15:58 deixa de reproduzir as condições reais de produção na maior parte dos veículos on-line. A questão é: esta reprodução das coerções impostas pela atualização contínua é desejável? Contribuiria mais na formação do profissional do jornalismo da web do que a liberdade criativa do modelo de revista on-line? Uma possível solução adviria não de uma solução real, mas, antes, da dissolução do problema, ou seja, o melhor seria oferecer as duas experiências. Cobrando nas disciplinas laboratoriais tanto notícias de atualização como reportagens de maior fôlego. Estas últimas trariam a oportunidade de promover o desenvolvimento de narrativas hipermidiáticas mais elaboradas, com ampla utilização de material em múltiplas mídias, que exigem um tempo de produção e edição nem sempre compatível com a atualização contínua. As principais dificuldades operacionais foram a dependência excessiva do pessoal técnico, que nem sempre compreende bem as necessidades específicas das disciplinas de comunicação, e que frequentemente impõe censura a conteúdos que, exatamente por serem vistos como perigosos ou proibidos, podem ser tema de reportagens. Outras dificuldades familiares ao professor são o volume de conteúdo a corrigir e a dificuldade de construir colaboração transdisciplinar, parte integrante do trabalho e que podem até ser contornadas com soluções criativas, mas nunca definitivamente superadas. Referências BOCZKOWSKI, Pablo J. 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Jornalismo online. São Paulo: Rocca, 2007. A discussão sobre a designação do cinema brasileiro contemporâneo como cinema da “retomada” tem como pano de fundo uma contenda que a antecede, a de que o cinema brasileiro sempre foi feito de “ciclos”, ou seja, nunca houve “a construção e o desenvolvimento de uma obra contínua”, conforme Bernardet (2007). Assim, este artigo se propõe a abordar as diversas posições sobre a polêmica questão do cinema da retomada, que envolve autores e críticos que se debruçam sobre o tema, a exemplo de Butcher (2005), por um lado, para quem, o termo denota a recuperação de um processo de produção de filmes interrompido, primeiro com o esgotamento do modelo brasileiro baseado na Embrafilme e, depois, e de forma mais contundente, com o fim desta, do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e da Fundação do Cinema Brasileiro no governo Collor. Por outro lado, Oricchio (2003) afirma que nenhuma atividade pode ser retomada a vida toda e propõe que a “retomada” seja considerada encerrada, tendo como marco simbólico o filme Cidade de Deus, no ano de 2002. Dentro desse debate analisamos a questão do cinema também como elemento de identificação de um povo, daí a importância de todo este processo. Ademais, velhos problemas ainda emperram o crescimento da produção cinematográfica que continua perdendo a luta contra a dominação cultural, haja vista, sobretudo, as dificuldades de financiamento enfrentadas pelos produtores cinematográficos nacionais. Enquanto não for desatado este nó, são muito pequenas as possibilidades do surgimento de ousadias estéticas e políticas, de novas vanguardas que criem uma nova identidade para o cinema brasileiro contemporâneo, como fez o Cinema Novo. Palavras-chave Cinema de retomada. Cinema Novo. Identidade. Cultura. 58 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 58-59 23/11/2010 20:15:58 Resumen El debate sobre el nombramiento del cine brasileño contemporáneo como cine de “retomada” tiene como fondo una lucha que le precede, que el cine brasileño se ha hecho siempre en “ciclos”, es decir, que nunca fue “la construcción y desarrollo de un trabajo continuo”, conforme Bernardet (2007). Así, este artículo se propone discutir las diversas opiniones sobre la controvertida cuestión de el cine de “retomada”, embasado en autores y críticos que tratan el tema, como Butcher (2005), por un lado, para quienes el termo muestra la recuperación de un proceso de producción de la película que se detuvo, en primer lugar con el agotamiento del modelo brasileño basado en Embrafilme y posteriormente, y más convincente, a tal fin, el Consejo Nacional de Cine (Concine) y Fundación del Cine Brasileño en el gobierno Collor. Por otra parte, Oricchio (2003) reitera que ninguna actividad se puede retomada la vida toda y propone que la “retomada” se considere cerrada, teniendo como marco simbólico la película Ciudad de Dios, en el año 2002. Dentro de este debate examinamos la cuestión de cine, también como el instrumento de la identidad de un pueblo, de ahí la importancia de este proceso. Por otra parte, los viejos problemas detienen el crecimiento de la cinematografía que sigue perdiendo la lucha contra la dominación cultural, considerando en particular las dificultades de financiamiento que enfrentan los cineastas nacionales. En cuanto non desatar este nudo, son pocas posibilidades de la aparición de audaces estéticas y políticas, de nuevas vanguardias que críen una nueva identidad para el cine brasileño contemporáneo, como hay hecho el Nuevo Cine. Palabras-clave Cine de retomada. Nuevo Cine. Identidad. Cultura. Problematizando a noção de “retomada” Para o estudioso do cinema brasileiro, Pedro Butcher (2005), Cinema da “Retomada” é o nome que se dá ao cinema brasileiro hoje. Para ele, o termo é virtuoso, pois denota a recuperação de um processo de produção de filmes que foi interrompido, primeiro com o esgotamento do modelo brasileiro com base na Embrafilme e, em seguida, e de forma mais contundente, com o fim desta, do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e da Fundação do Cinema Brasileiro no governo Collor. Portanto, não sugere um renascimento, um ponto zero, mas uma continuidade. O crítico Luiz Oricchio (2003), entre outros, vê problemas neste nome. Em seu livro, Cinema de novo, ele afirma que nenhuma atividade pode ser retomada a vida toda e propõe que a “retomada” seja considerada encerrada, tendo como “epílogo simbólico de um ciclo” (2003, p. 24) o filme Cidade de Deus, no ano de 2002. Deste ano em diante, sugere o crítico, já seria “outra coisa” que ele não define. A discussão que travamos acima, sobre a designação do cinema brasileiro contemporâneo como cinema da “retomada”, tem como pano de fundo uma discussão que a antecede, a de que o cinema brasileiro sempre foi feito de “ciclos”, isto é, nunca houve “a construção e o desenvolvimento de uma obra contínua” (BERNARDET, 2007, p. 30). Carlota Joaquina: um símbolo do início da “Retomada” Lançado em janeiro de 1995, o filme, longa metragem de estréia da diretora Carla Camurati, começou a sua carreira com apenas quatro cópias que eram distribuídas pela própria diretora e sem contar com qualquer programa de marketing e publicidade, sendo o primeiro filme brasileiro, na era pós-Collor, a superar um milhão de espectadores (ORICCHIO, 2003). O filme tinha tudo para ser um fracasso, mas “estourou”, sendo sucesso de público e bilheteria, marcando o retorno do público brasileiro às salas de exibição de filme nacional. O filme retorna ao passado do Brasil, à chegada da família real e sua vivência, por mais de uma década, em terras brasileiras, a partir do olhar de um narrador Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 60-61 61 23/11/2010 20:15:58 estrangeiro – o filme é parcialmente falado em inglês. A abordagem da família real de forma debochada, caricata, caiu no gosto do público que andava descrente com o futuro do País e conciliou-se com a visão da diretora Carla Camurati de encontrar na formação do Brasil colônia e à frente da nossa independência política uma elite inepta, corrupta e traiçoeira, representação que ainda hoje reflete a identidade nacional na mentalidade popular. Mas, se a identidade nacional é esta, ou, esta é uma das possíveis entre as diversas identidades nacionais, qual é a identidade do cinema brasileiro contemporâneo? Faz sentido falar em cinema brasileiro? E, em caso afirmativo, sua identidade é homogênea, isto é, foi sempre a mesma na travessia do século XX? Elementos de identidades no mundo contemporâneo O sociólogo inglês Anthony Giddens, em seu livro Modernidade e identidade, procura definir a modernidade como instituições e comportamentos estabelecidos na Europa depois do feudalismo e que, após o século XX, se universalizou em seu impacto, sendo o ‘mundo industrializado’ um dos eixos institucionais e o capitalismo o outro. A principal “forma social”, para ele, é o Estado-Nação. Em síntese, a modernidade é essencialmente uma “ordem pós-tradicional”, conforme Giddens, enquanto a sociedade contemporânea é qualificada de “alta modernidade” ou “modernidade tardia”. Para o autor, hoje é “lugar comum” a idéia de que a modernidade fragmenta e dissocia, marcando, no pensamento de alguns autores, o surgimento da “era pós-moderna”, definição que ele rejeita. O sociólogo inglês discute a “dialética do local e do global” como um dos “principais argumentos” empregados no livro para sugerir que as transformações na “autoidentidade” e a “globalização” são os dois pólos desta dialética. Enfim, Giddens propõe uma redefinição do conceito de identidade dentro da modernidade, conceito este caracterizado pelo que o autor denomina de projeto reflexivo do eu, que, em situações como o divórcio, mas não só, permitem que o sujeito refaça sua iden- 62 tidade pela revisão de comportamentos, atitudes e idéias e até mesmo retomando idéias abandonadas. Assim, para Giddens, a identidade nas sociedades tradicionais era determinada fundamentalmente pela tradição, enquanto na modernidade é um projeto aberto que cabe ao sujeito construir. Manuel Castells, sociólogo espanhol, no livro O poder da identidade, parte da trilogia A era da informação: economia, sociedade e cultura, discute o que ele denomina de uma nova forma de sociedade, de um mundo novo, a “sociedade em rede” (1999, p. 17). Este mundo novo foi apanhado pelo “turbilhão” de tendências opostas, questionando a própria existência do Estado-Nação, o que leva para o “epicentro da crise a própria noção de democracia política, postulado para a construção histórica de um Estado-Nação soberano e representativo” (1999, p. 18). Este é o processo de globalização tecnoeconômica que vem moldando nosso mundo, sendo contestado e que será transformado a partir de múltiplos fatores, pensa Castells. É nesse mundo que ele define identidade como “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (1999, p. 22). Por significado, Castells entende “a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator”. Para o autor, não há qualquer dificuldade em aceitar que toda e qualquer identidade é construída. A questão é como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece. Sua hipótese é de que “quem constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem” (1999, p. 23-4). Assim, ele distingue três formas e origens de construção de identidades: legitimadora; de resistência; e de projeto. Interessa-nos aqui a identidade de resistência, considerada por este autor como provavelmente a mais importante em nossa sociedade. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 62-63 63 23/11/2010 20:15:58 Castells afirma que esse tipo de identidade é criada por atores que se encontram em posições ou condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação e que criam trincheiras para resistir e sobreviver com bases em princípios diferentes ou mesmo opostos aos que permeiam as instituições da sociedade. Não quero encerrar esta pequena resenha sobre as idéias que Castells desenvolve a respeito da identidade sem antes me reportar aos comentários que ele tece sobre o conceito de “autoidentidade” de Giddens. Para Castells, Giddens desenvolve “uma poderosa teorização cujas principais linhas encerram idéias com as quais concordo” (1999; p. 26). Mas, embora concorde com a caracterização teórica de Giddens quanto à construção da identidade no período da ‘modernidade tardia’, sustento (...) [que] exceto para a elite que ocupa o espaço atemporal de fluxos de redes globais e seus locais subsidiários, o planejamento reflexivo da vida torna-se impossível. Além disso, a construção de intimidade com base na confiança exige uma redefinição da identidade totalmente autônoma em relação à lógica de formação de rede das instituições e organizações dominantes. Sob essas novas condições, as sociedades civis encolhem-se e são desarticuladas, pois não há mais continuidade entre a lógica da criação de poder na rede global e a lógica de associação e representação em sociedades e culturas específicas. Desse modo, a busca pelo significado ocorre no âmbito da reconstrução de identidades defensivas em torno de princípios comunais (CASTELLS, 1999, p 27).1 Brasil, Cinema Novo e identidade 64 tais como, geladeiras, televisores e automóveis; o crescimento de um mercado de trabalho e de consumo para uma classe média urbana; o crescimento de uma burguesia e um operariado nacionais. Todo este movimento contribuiu para mudar o perfil da sociedade brasileira de agrário-exportador para industrial. Subsumido a este processo, o desenvolvimento de políticas populistas encontravam amplo apoio na esquerda brasileira. A política populista se consubstanciava, do ponto de vista ideológico, na defesa do desenvolvimentismo contra o subdesenvolvimento, da modernização contra o atraso. O conservadorismo, representado pelas classes rurais e pelo latifúndio, e o imperialismo, representado pelas grandes corporações estrangeiras (em sua maioria, norte-americanas) eram os inimigos do desenvolvimento “nacional autônomo e democrático”. Este capitalismo “autônomo e democrático” seria levado a termo pelas forças progressistas compostas pela aliança entre a burguesia nacionalista, o operariado urbano, os trabalhadores rurais e a classe média urbana, composta por profissionais liberais, funcionários burocratas estatais, pelos estudantes universitários e pelos intelectuais, a quem caberia a formulação teórica e política, a conscientização das massas, da luta pela independência do País, subordinado econômica, política e culturalmente ao imperialismo. A prioridade era, portanto, a luta nacional e democrática formalizada na luta pelas “reformas de base”. No contexto descrito acima, para quê se cogitava a formação de um cinema brasileiro? Na década de 1950 até meados de 1960, o Brasil passou por fortes transformações econômicas, políticas e sociais. Um processo de industrialização acelerado e contraditório, sobretudo no governo de Juscelino Kubitschek que prometeu desenvolver o país 50 anos em apenas cinco, provocou enormes transformações sociais: um processo acelerado de urbanização das nossas principais capitais com o deslocamento de massas rurais para os grandes centros urbanos, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo; uma larga escala de produção de bens de consumo duráveis, Exatamente para se inserir na “revolução brasileira”, na luta “nacional e democrática”, na luta contra a dominação cultural, contra a imposição pelo imperialismo de “uma massa enorme de produtos importados de péssima qualidade”, como afirmou Otto Maria Carpeaux2. Poucos expressaram tão bem essa perspectiva de enfrentamento político no campo cultural quanto Otto. Para ele, estava claro que 1 A obra de Anthony Giddens citada por Castells no trecho mencionado é: Modernity and Self-identity: Self and Society in the Late Modern Age. Cambridge: Polity Press, 1991. Trata-se, portanto, da mesma obra que utilizamos na tradução para o português pela Editora Jorge Zahar. 2 Afirmativa presente na orelha da 1ª edição de Brasil em tempo de cinema, reproduzida na edição de 2007, Companhia das Letras, conforme nossas referências bibliográficas. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 64-65 65 23/11/2010 20:15:58 a luta contra esse negócio abominável tem de ser travada no campo econômico. Mas também já começou a batalha no terreno estético e ideológico [pela] nova arte cinematográfica brasileira, manifestação do mesmo idealismo combativo que hoje se insurge contra a infame opressão estrangeira e contra os apoios dessa opressão dentro do país (CARPEAUX, 2005). Essa nova arte cinematográfica brasileira a que se refere Carpeaux é exatamente o Cinema Novo. Foi encarando o Cinema Novo como um “todo orgânico” e procurando identificá-lo com o “tempo nacional correspondente” que Jean-Claude Bernardet o definiu como obra produzida pela “classe média … responsável pelo movimento cultural brasileiro” (2007, p. 23). De acordo com Bernardet, no auge da primeira fase do Cinema Novo, para o público brasileiro o “cinema, por definição, era importado”, isto é, cinema “é cinema estrangeiro”3. Em sintonia com Carpeaux, Bernardet parece atribuir uma clara função política e cultural ao cinema brasileiro na luta contra a dominação cultural estrangeira ao definir como tarefa do cinema brasileiro, e das mais urgentes, conquistar o público (...) Por isso, a conquista do mercado pelo cinema brasileiro não é exclusivamente assunto comercial: é também assunto cultural artístico [pois] sem o mercado à disposição da produção brasileira, tudo é vão. Essa é a condição sine qua non para que o cinema possa existir como arte e como negócio (idem, p. 33-35). Se aceitamos os termos de Carpeaux e Bernardet, podemos pensar, de acordo com o conceito de Castells, em uma identidade de resistência, uma identidade defensiva para o Cinema Novo. Para fugir à lógica da dominação exposta acima, o Cinema Novo criou trincheiras com valores opostos aos do cinema mainstream, para resistir e sobreviver ao poderio deste. O “Glauber teórico”, sobretudo em seu manifesto Estética da fome (2004), transforma a fraqueza em força. A fome que atinge o latino-americano (“a nossa originalidade é nossa fome”) e que deve ser tema dos cinemanovistas é também metáfora de “métodos de produção” caracterizados pela falta de recursos técnicos. 3 Bernardet faz estas afirmações mesmo não desconhecendo que a Chanchada, que antecede o Cinema Novo, obteve êxito de público durante um longo tempo. 66 Vidas Secas, o belo romance do nordestino Graciliano Ramos, adaptado por Nelson Pereira dos Santos para o cinema com o mesmo título, e considerado como um dos filmes de fundação4 do Cinema Novo, é um filme sobre seca, fome e migração. Mas é também uma antecipação da estética glauberiana antes que a expressão “estética da fome” fosse cunhada pelo autor. A luz “inventada” pelo diretor de fotografia, Luiz Carlos Barreto, a partir da incapacidade do cinema brasileiro de pagar pelos watts de energia usados em Hollywood ou no cinema europeu é um bom exemplo de um cinema com orçamento austero, improvisações técnicas, estilo minimalista e agressividade vanguardista sobre uma base neo-realista (SHOHAT e STAM, 2006, p. 372). Mas, se por um lado, a tarefa do Cinema Novo era conquistar o público e o mercado brasileiros, por outro, os cinemanovistas prezavam a liberdade do autor e não estavam dispostos a fazer concessões ao Estado ou adular o público com a teoria populista de uma arte simplista, repetitiva e fossilizada, para ser de fácil compreensão e aceitação pelo público, enquanto este, por sua vez, não estava ansioso para “ver sua própria pobreza na tela” (idem, ibidem). Como o cinema brasileiro contemporâneo lida com público e mercado, veremos mais adiante. Características e identidade da nova produção Alguns filmes brasileiros contemporâneos foram em anos sucessivos indicados ao Oscar (O quatrilho; O que é isso, companheiro?; Central do Brasil; Cidade de Deus), sugerindo uma estética mais familiar aos críticos que compõem a Academia de Hollywood. Central do Brasil foi sucesso no Festival de Berlim, recebendo o maior prêmio do Festival, o Urso de Ouro, além da premiação à atriz Fernanda Montenegro. Carandiru (2003) é o filme que bate o recorde de bilheteria desta fase da “retomada”, com 4,6 milhões de espectadores (BUTCHER, 2005, p. 62). Esta marca só foi superada por 2 filhos de Francisco, o filme que conta a história do nascimento e sucesso da dupla sertaneja Zezé de 4 Juntamente com Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964), e Os fuzis, de Ruy Guerra (1964). Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 66-67 67 23/11/2010 20:15:58 Camargo e Luciano. Carandiru, além do seu sucesso particular, participou também do chamado “ano histórico”. Neste ano – 2003, o cinema brasileiro supera a casa dos 20% de ocupação do mercado nacional, com 22 milhões de espectadores para o filme brasileiro (BUTCHER, 2005, p. 65). Tal feito nem sequer se aproxima da fase áurea da Embrafilme que alcançou os índices de 30,8%, em 1980, e 34%, em 1984, de participação do filme brasileiro no mercado nacional (ORICCHIO, 2008, p. 141). Para além do sucesso de público e bilheteria em alguns poucos exemplos, os estudiosos do cinema brasileiro têm discutido quais as características do filme nacional neste período. Há algum consenso que não há no cinema brasileiro da “retomada” unidade temática nem muito menos estética, tal como mostramos acima no Cinema Novo. O que caracteriza esta fase é a presença de muitos diretores – talvez os novos diretores sejam maioria – fazendo filme ao mesmo tempo e no mesmo lugar (Brasil), mas sem qualquer preocupação de articular um movimento cinematográfico, com manifestos e posturas claramente definidas, o que seria o caminho consciente para a construção de uma identidade para o cinema brasileiro contemporâneo. Outra questão que tem chamado a atenção dos estudiosos é a tendência a uma abordagem de viés melodramático a partir de problemas individuais. Entraria como exemplo maior, configurando esta situação, o filme Central do Brasil. Nesta mesma perspectiva, alguns estudiosos apontam para a presença das mazelas e contradições da sociedade brasileira, mas apenas como moldura da trama a ser desenvolvida, sem jamais ser realmente discutida com profundidade. Se, de fato, a realidade brasileira, de alguma forma, está presente nos filmes da “retomada”, ela nunca é pensada de maneira dinâmica, ela nunca é pensada como realidade em movimento, movida por contradições internas. A discussão de projetos alternativos para a sociedade brasileira que ultrapassem, que superem as nossas carências econômicas, políticas, sociais e culturais não esteve até agora presente no cinema da “retomada”. O cinema militante da década de 1960 e 1970 vai dar “lugar 68 a uma atitude respeitosa com relação à cultura popular, uma atitude não política, mas politicamente correta” (sic!) por parte do cinema brasileiro contemporâneo (NAGIB, 2000, p. 120). O que este cinema pretende é uma “isenção política”, limitando-se a uma “observação respeitosa do outro (...) daquele de outra classe social” (idem, p. 125) que aparece apenas como ser humano e o filme trata “sem julgamentos e sem apresentar soluções” (idem, p. 126) para os seus problemas. Este cinema é qualificado pela autora como “pós-utópico”, em uma nítida referência ao que aparecia socialmente como a identidade do Cinema Novo, um cinema forte e intencionalmente marcado pela utopia. Por sua vez, o cinema “pós-utópico” não tem a pretensão de lutar a favor de um objetivo ou de um ator social (uma classe, por exemplo), tampouco combater inimigo(s) interno(s) e/ou externo(s). Assim, pensando a partir da contribuição teórica de Giddens, podemos afirmar que o cinema brasileiro contemporâneo refaz sua identidade revisando comportamentos, atitudes e ideias do Cinema Novo. Esta reconstrução identitária se faz, muitas vezes, pela incorporação de temas caros ao Cinema Novo como a pobreza, o sertão, a favela, a violência, etc. Mas, mesmo nestes casos, a perspectiva adotada marca uma oposição, ainda que de forma velada, em relação aos cinemanovistas. As críticas e as contestações Mesmo com todo o entusiasmo que o crescimento da produção cinematográfica, sobretudo da produção de longas metragens5, tem gerado no Brasil entre a crítica e o público, a unanimidade acaba aí. Está presente na trajetória do cinema brasileiro da “retomada”, contando mais de dez anos, a existência de polêmicas travadas no espaço público. A Universidade, os congressos ligados à área, os atores mais diretamente envolvidos com o cinema e o audiovisual têm se manifestado publicamente. A mídia tem repercutido este debate e tem sido ela própria, simultaneamente, geradora do mesmo. 5 A trajetória vai em um crescendo de 17 longas metragens, em 1995, até o recorde de 73, em 2006, conforme Luís Caetano (apud Oricchio, 2008, p. 143). Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 68-69 69 23/11/2010 20:15:58 Apesar do surgimento de muitos novos diretores, como nos mostra a professora Lúcia Nagib (2002) em seu livro O cinema da retomada: 90 depoimentos, não tem havido unanimidade sobre a natureza deste cinema, olhando-se a diversidade de depoimentos. Para alguns cineastas, o cinema da “retomada” é um cinema “asséptico, anódino e descarnado politicamente”. Podemos perceber que tais críticas podem muito bem ser derivadas daquelas características centrais do cinema da “retomada” que apontamos acima. Outros, entretanto, pensam que os novos diretores, sobretudo, estão menos preocupados com idéias mais ligadas a um ideário político e mais focados na recepção pelo público. Leia-se, uma preocupação com o mercado que, em verdade, é uma questão polêmica para o Cinema Novo desde quando Gustavo Dahl (1966/67) escreveu o artigo Cinema Novo e seu público. Nesta discussão, é razoavelmente recente o artigo de um jornalista que entrou no debate com um texto intitulado: Olga casa com o público e se divorcia da crítica. Este título irônico refere-se ao filme Olga, de Jaime Monjardim, que teve muito boa acolhida entre o público, mas que a crítica recebeu com certo desprezo, particularmente, pelo fato de Monjardim levar para o cinema uma linguagem televisiva. Um crítico chegou a afirmar que Olga podia ser cinema, mas não era filme. A professora Ivana Bentes (2001), do curso de Comunicação da UFRJ, talvez tenha sido a crítica mais dura. Com o seu artigo publicado no jornal do Brasil, intitulado Da estética à cosmética da fome, ela recuperou o já clássico manifesto A estética da fome, lançado em 1965 no Festival do Cinema Latino-Americano, em Gênova – Itália, por Glauber Rocha (2004), para retomar as questões propostas por ele, agora para a análise do cinema da “retomada”. Em uma síntese muito rápida, Bentes afirma que Glauber propôs uma questão ética (como retratar os excluídos, os marginalizados, etc., sem cair no populismo nem na pieguice?) e uma questão estética (como retratar a fome, a miséria, a violência, estes elementos constituintes da sociedade brasileira, como fazer deles elementos radicais para a construção de uma nova estética em um novo cinema?), que não foram plenamente resolvidos no Cinema 70 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 70-71 Novo. À abordagem dada à fome, miséria e, nomeadamente, à violência pelo cinema brasileiro desta fase atual, a “retomada”, Bentes qualifica como uma “cosmética da fome”, pois apenas estetiza, glamouriza, espetaculariza a fome, a miséria, a violência, sem discuti-la em suas origens, causas e consequências. Entendemos que este tipo de análise, essa linha de argumentação reforça as ideias que desenvolvemos sobre a construção identitária no cinema brasileiro contemporâneo. Fernando Mascarello, professor e pesquisador da UNISINOS-RS, em seu artigo O dragão da cosmética da fome contra o grande público, apropria-se do título de um filme de Glauber Rocha, ironiza e discorda de Ivana Bentes e aponta na crítica da professora carioca certo vício no olhar da cultura e das obras de arte. Para Mascarello, a partir principalmente das idéias de Pierre Bourdieu, a crítica de Bentes é “elitista”. De acordo com o seu entendimento, o problema se desloca da obra para um tipo de recepção enviesada feita por uma professora cuja percepção das obras passaria por uma suposta espetacularização (‘cosmetização’) do sertão e da favela brasileiros. Mascarello retoma, portanto, o problema apontado por Ismail Xavier da questão entre “vanguarda x mercado”, implicando a primeira parte da equação em uma prioridade para os elementos estéticos e políticos da obra enquanto a segunda parte remete para uma preocupação com a “busca por plateias mais numerosas” (MASCARELLO, 2004). Para Mascarello, o fato de que a crítica da “cosmética da fome” tenha sido produzida na Universidade faz com que esta seja vista pelos não acadêmicos como “um bloco único e essencial de autocentramento e hermetismo” (idem), embora, ainda de acordo com seu ensaio, as posições destes críticos não representem majoritariamente os ‘estudos de cinema’ brasileiros. Para além da questão estética e de público, outra questão que tem sido alvo de grandes polêmicas nesta fase do cinema brasileiro é a questão do financiamento da produção. Baseada na chamada Lei Rouanet (Lei 8.313/91)6 e, nomeadamente, na chamada Lei do Audiovisual (Lei 6 A Lei Rouanet, neste momento, está submetida a ampla consulta pública pelo Ministério da Cultura com a finalidade de ser alterada, para corrigir seus defeitos e melhorar sua performance. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 71 23/11/2010 20:15:58 8.685/93), que permitem às empresas privadas descontar no Imposto de Renda devido (renúncia fiscal) o valor aplicado em projeto cultural (no caso da Lei 8.685/93, apenas no Audiovisual), o cinema brasileiro tem seguido em frente. Contudo, não tem faltado ataques a esta forma de financiamento que, conforme os diversos críticos, deixa a cargo dos departamentos de marketing das empresas privadas a seleção dos filmes que devem chegar ao público. Estes departamentos não têm gente especializada na área e simplesmente subordina a escolha da obra a ser financiada aos interesses de construção de imagem da própria empresa, e tudo isso com dinheiro público. Desta forma, obras de vanguarda no aspecto estético ou político (ou de ambos) dificilmente são acolhidas pelos departamentos de marketing das empresas e, portanto, não chegam ao público. ANCINAV O governo Lula, desde seu primeiro mandato, tentou criar a Agência Nacional do Cinema e Audiovisual (ANCINAV) em substituição à Agência Nacional do Cinema (ANCINE), criada no governo anterior. O projeto que “vazou” e veio a público através da imprensa em agosto de 2004 pretendia que a ANCINAV tivesse poderes para fiscalizar, regular e buscar novas formas de financiamento para o Cinema e Audiovisual. A cobrança de um percentual sobre a publicidade divulgada na TV (taxa sobre a publicidade) era uma dessas formas. A ANCINAV teria poderes bem maiores que a atual ANCINE. Atacado violentamente pelas empresas de comunicação, particularmente pelas redes de televisão e, entre estas, em especial pela rede Globo, que acusavam o projeto de “dirigismo estatal”, de ser um “retorno à censura” no País, o projeto foi esvaziado, perdeu substância e finalmente morreu. O governo tirou o assunto da agenda pública, as camadas sociais interessadas no projeto abdicaram de lutar por ele, omitindo-se completamente, e os nichos de poder incrustados nas grandes empresas de mídia no País, que inviabilizaram o projeto, cuidam de 72 criar o silêncio dos cemitérios em torno de qualquer ideia que possua conteúdos semelhantes. Hoje, nenhum segmento social discute mais a ANCINAV ou qualquer coisa parecida e que possa resgatar as idéias centrais presentes naquele ambicioso e modernizante projeto. O projeto sobre a Lei Geral do Meios de Comunicação de Massa, também gestado no Ministério da Cultura, que pretendia disciplinar e ordenar o funcionamento dos meios de comunicação de massa no País, como ocorre na Europa Central, nos EUA, no Japão, foi igualmente abandonada pelo governo que se resigna a fazer apenas o que as grandes empresas de comunicação brasileiras aceitam. Conclusão: Retomamos, mas os problemas continuam! À guisa de conclusão, faremos algumas considerações sobre as questões abordadas acima. É verdade que surgiram muitos novos cineastas e que a produção se recuperou, embora em um patamar muito inferior ao pico que alcançou na fase áurea da Embrafilme. Isto significa que ainda há muito espaço para crescimento. Contudo, os problemas de financiamento da produção continuam como apontamos acima. A questão da distribuição praticamente não foi alterada na fase da “retomada”. Embora tenha aumentado o número de salas no País, elas se concentram principalmente nas grandes cidades e, nestas, dentro dos shoppings centers. De acordo com o IBGE, apenas 7% dos municípios brasileiros (menos de 500 em 5.565 municípios) têm salas de cinema. A relação do Cinema X TV não está resolvida no Brasil, como vimos na fracassada tentativa de criação da ANCINAV. No entanto, ela é fundamental para a estratégia do cinema moderno no mundo inteiro. Esta questão não será resolvida enquanto o País não tiver uma Lei Geral dos Meios de Comunicação de Massa moderna e consistente, que entenda as diferentes mídias (TV incluída) não como aparelhos técnicos, mas como produtores e difusores de cultura e identidade. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 72-73 73 23/11/2010 20:15:58 Para finalizar, vimos acima como as questões estéticas e políticas do cinema da “retomada” ainda estão amarradas a uma forma de financiamento público que submete aos departamentos de marketing das empresas a seleção de quais filmes devem ser financiados ou não, isto é, quais filmes poderão ser assistidos pelo público. Enquanto não for desatado este nó, são muito pequenas as possibilidades do surgimento de ousadias estéticas e políticas, de novas vanguardas que criem uma nova identidade para o cinema brasileiro contemporâneo, como fez o Cinema Novo, que vá além do fato de ser um “cinema novinho” e “pós-utópico”. Referências BENTES, Ivana. Da estética à cosmética da fome. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, de 08/07/2001. BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. 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Objetiva o presente estudo, retratar e reforçar a análise criteriosa da ética nas condutas dos agentes frente à máquina administrativa, com o desiderato de alertar a sociedade de modo com relação às improbidades e desvios de finalidade cometidos pela Administração Pública. Palavras-chave Ética. Moral. Direitos Humanos. Princípios. Administração pública. Resumen Este artículo muestra los desafíos de la ética como forjadores de la cultura humana y en nuestro ordenamiento jurídico, con el objetivo de proporcionar a la aplicabilidad y eficacia de las instituciones jurídicas, la reducción de cualquier forma de insulto a los principios rectores de la Constitución - la moralidad. El presente estudio tiene como objetivo describir y reforzar el análisis crítico de la ética en la conducta de los agentes frente a la máquina administrativa, con el desiderátum de proteger a la sociedad de forma más amplia y efectiva de malversación y apropiación indebida y la desviación del propósito perpetrados por la Administración Pública. Independencia_03-final.indd 76-77 23/11/2010 20:15:58 Palabras-clave Ética. Moral. Derechos Humanos. Princípios. Administración pública. Ética – palavras iniciais A Ética, ethos, em grego, em primeiro lugar significa morada. Daí se dizer o significado de “morada do ser”. A ética sublima a consciência dos homens, seu conhecimento com o mundo que o cerca com a realização do bem. Não se pode esperar que a ética seja realizada como instrumento para julgar o pensar e o fazer humanos, mas uma maneira de propor o que eles devem fazer e não fazer. Designa a reflexão filosófica sobre a moralidade, isto é, sobre as regras e os códigos morais que norteiam a conduta humana. Sua finalidade é esclarecer e sistematizar as bases do fato moral e determinar as diretrizes e os princípios abstratos da moral. Neste caso, a ética é uma criação consciente e reflexiva de um filósofo sobre a moralidade, que é, por sua vez, criação espontânea e inconsciente de um grupo. Portanto é uma questão ética o desenvolvimento das potencialidades humanas, um aprimoramento de suas virtualidades. Explica, com propriedade, Adeodato (2002, p. 139): O conceito de ética sofreu profundas modificações desde então e tem quase tantas definições quantos são os autores que examinam. Sua aplicabilidade prática, porém, permanece fiel ao sentido original de hábito, uso, costume, direito. De uma perspectiva pragmática, as normas éticas preenchem a mesma função vital: reduzem a imensa complexidade das relações humanas e ajudam o ser humano a decidir sobre como agir. E é a decisão que neutraliza o conflito. A ética serve para revelar padrões de conduta compatíveis com o bem comum, não se presta a justificar ou referendar atos humanos incompatíveis com a razão, aos seus semelhantes e à natureza que os circunda. A esse respeito, argumenta Lima Vaz (1993, p. 13): “O domínio do physis ou o reino da necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do ethos no qual irão inscrever-se os costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os valores e as ações”. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 78-79 79 23/11/2010 20:15:58 A ética, em uma perspectiva tradicional, é compreendida como um estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente teológica, sobre os costumes ou as ações humanas. Assim, pode-se extrair que a ética tem como preocupação o comportamento do homem e desenha-se nos princípios gerais que regem este tipo de comportamento, como e o porquê os homens agem de acordo ou não com a moral, discutindo, argumentando, problematizando e interpretando a mesma. Daí, observa-se o caráter filosófico da ética, que possui uma amplitude globalizante para com a Moral, o Direito, a Política, dentre outras. A ética pode ser vista, do prisma de diversas teorias: substâncias, preconizada pelo pensamento metafísico, desde Platão (428-347 a.C.), dividia o mundo inteligível do sensível, o mundo real do ideal, que por certo, foi objeto de críticas pelos Sofistas, que preconizavam que o “bom e o belo” não passam de mera convenção. Platão expõe no Mito da Caverna, realidades distintas. Para ele, a ética é substancial, sendo o bem algo valorado. Os consequencialistas, Karl Marx (1818-1883), Max Weber (1864-1920), entendiam que a ética kantiana não avaliava as ações, posto que, conforme a ótica de Kant (1724-1804), mentir não passa de um imperativo categórico, e isto não satisfaz aos consequencialistas, posto que mentir não é um mal, a depender de suas consequências. Partindo deste raciocínio, a teoria analítica se preocupa com o ser e as consequências do agir deste ser. Surgem, após o emotivismo para o qual o fundamento da vida moral não é a razão, mas a emoção. Os sentimentos humanos são causas das normas e dos valores éticos, que pregam a dependência da ótica do indivíduo em perceber tais valores e o relativismo, que propugnam pela separação de fato e valor, pois ambos são relativos à luz da ótica de cada um. Neste sentido, leciona Adeodato (1996, p. 129): A preocupação de Kant é estabelecer uma ética autônoma, cujo fundamento de validade não viria de fora, mas sim de postulados 80 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 80-81 estabelecidos pela própria razão prática. Por isso o sujeito e sua consciência sempre preponderam sobre o conteúdo e os efeitos da ação, sobre o objeto, que assume papel secundário. Mais modernamente, os utilitaristas, em uma vertente da ética consequencialista, calcada em se perceber utilidade como sinônimo de prazer e bem estar (utilidade=prazer=bem-estar). Assim, para se determinar se uma ação é boa, deve-se analisar os ganhos ou perdas obtidos; destaca-se, nesta vertente, a esfera econômica. Os utilitaristas fazem, por certo, um cálculo custo/benefício que resultam em um sacrifício e são insensíveis à distribuição equitativa no caso de Justiça. Temos como defensor da teoria utilitarista John Stuart Mill (1806-1873). Desse modo, pode-se perceber que o interesse da ética é o ser humano, é a pessoa em todas as suas dimensões, perfazendo, porém, uma unidade no seu ser e no seu dever ser. Assim, pode-se afirmar que a ética é um comportamento interior, reflexões acerca de valores, e, por conseguinte, uma tomada de posição em relação a estes valores. Muitos autores, por vezes, diferenciam ética de moral, usando uma perspectiva didática e separatista; outros englobam os conceitos por uma visão indissolúvel. De fato, não é a moral o mesmo que ética, embora o que há de mais importante é que a moral é um fundamento da ética. A ética não cria a moral. Enquanto a primeira é filosófica e especulativa, esta última é normativa, embora existam correntes que pensem ser a ética uma ciência dogmática. Para que haja uma conduta ética, faz-se necessário que se exija agente consciente, ou seja, aquele que sabe discernir sobre o certo e o errado. Atrelada aos conceitos de certo e errado está a concepção da consciência moral dos indivíduos. Esta consciência moral é aquela voz interior que diz a cada um que se deve fazer o bem, em todas as ocasiões e evitar o mal. A consciência moral reconhece a diferença entre o bem e o mal, sendo capaz de julgar o valor dos atos e condutas e de agir de acordo com os valores morais; assim o indivíduo é responsável por suas ações e sentimentos no mundo social. Sánchez Vásquez (2001, p. 83) preleciona: Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 81 23/11/2010 20:15:58 A moral é um fato social. Verifica-se somente na sociedade, em correspondência com necessidades sociais e cumprindo uma função social. A moral é uma forma de comportamento humano que compreende tanto um aspecto normativo (regras de ação) quanto um factual, atos que se comportam num sentido ou no outro com as normas mencionadas. O campo ético é formado por obrigações e valores que constituem o conteúdo das condutas morais-virtudes, realizadas pelo sujeito ou agente moral, principal integrante da existência ética. Para que exista a conduta ética, é necessário que o agente seja consciente, quer dizer, que possua capacidade de discernir entre o bem e o mal (cabe observar agora que agir eticamente é ter condutas de acordo com o bem. Todavia, definir o conteúdo desse bem é problema à parte, pois é uma concepção que se transforma pelos tempos). Este agente pode ser passivo ou ativo. Passivo, quando se deixa arrastar e governar por seus impulsos, inclinações e paixões, não exercendo sua própria consciência, liberdade e responsabilidade; ativo e virtuoso, quando capaz de controlar interiormente seus impulsos, discutindo consigo e com os demais o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, consultando sua razão e vontade antes de agir, sendo responsável pelo que faz e não se submetendo à vontade de terceiros. A ética pode ser vista, neste sentido, como uma educação interior do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente seus impulsos e desejos, para orientar a vontade rumo ao bem e à felicidade, para formá-lo como membro da coletividade sociopolítica. Sua finalidade é a harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que também deveriam ser virtuosos, pois, encontrados nos seres racionais. Com sua clareza peculiar Saldanha (1998, p. 7) salienta: De fato a ética — com ethos — se refere aos seres humanos e não abrange os animais (como certos estóicos tendiam a pensar), nem obviamente aos possíveis seres — humanos, deuses e anjos. Nesse sentido, toda teoria ética pressupõe uma antropologia filosófica. 82 Um outro elemento consciente do campo ético são os meios para que o indivíduo atinja seus fins. A afirmação que os fins justificam os meios, em ética, deixa de ser óbvia. Chauí (1995, p. 341) afirma que usar meios imorais para chegar a um fim ético não é correto, porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral, que estaria agindo por coação externa e não por reconhecimento interior do fim ético. Fins éticos exigem meios éticos. A moral é o aspecto subjetivo da ética, o que vale dizer que ela é bilateral e autônoma, ou seja, impõe uma obrigatoriedade de suas normas do interior para o exterior, por meio de uma livre iniciativa, inteira e total convicção individual do sujeito, em que a única pena para a possível violação é o remorso. Para que não ficasse a moral apenas como sugestão de comportamento, o direito, por ser bilateral e coativo, impõe a obrigatoriedade de suas normas, do exterior para o interior, independentemente da convicção individual do agente, através do Estado, com a garantia da força. Saliente-se que a moral é lastro de criação para um feixe de normas jurídicas. Enfim, tanto a moral, como o direito, integram a ética. Maia (2000, p. 111) comenta a ética da tolerância em uma perspectiva ontológica: Como forma de coadunar os problemas gerados pela ontologia, e efetuar sua respectiva junção com a retórica, Adeodato surge com a proposta de uma ‘ética da tolerância’, que busque exatamente respeitar a diversidade servindo as normas do direito positivo como forma de auferir a segurança necessária ao direito, e os espaços argumentativos como claramente existentes em respeito à diversidade de formas de percepção do jurídico. E continua Maia (2000, p. 111) em sua elucidativa explicação: “[…] Enfim a ética da tolerância seria uma maneira de não fixar na ontologia generalizante dos jusnaturalistas e positivismos até então imperantes na filosofia do direito”. Muito embora seja uma forma de ética, respeitar a diversidade cultural do direito, embora tenha críticas levantadas pelo autor, entende-se, Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 82-83 83 23/11/2010 20:15:59 que o direito não pode ficar engessado a um tipo de defesa argumentativa, devendo respeitar as diversas correntes do pensamento humano e promover cultura e senso ético, mesmo que tolerável. A dissociação entre direito e ética não pode ser admitida. Lembra Adeodato (1996, p. 200-201) que essa separação somente é admissível como “[…] artifício metodológico e pragmático […]”, não expressando “[…] qualquer ‘realidade em si’, ontológica, que pudesse vir a ser erigida em paradigma científico”. Ética: uma abordagem historicista resumida No Ocidente, o estudo da ética inicia-se com Sócrates (468-406 a.C.), que, ao percorrer as ruas de Atenas, perguntava aos atenienses o que eram os valores nos quais acreditavam, respeitavam e agiam. As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Os atenienses sentiam-se embaraçados ou mesmo irritados com as perguntas, por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis da vida cotidiana, e também porque tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes. Desse modo, Sócrates ao fazer uso da maiêutica (“a arte de parir ideias”), permitindo aos atenienses o refletir sobre os costumes de Atenas que seguiam e não sabiam o porquê, torna-se uma persona non grata à ordem social, por questionar valores que nunca foram ou não deveriam ser questionados. Em resumo, os atenienses confundiam fatos e valores, pois ignoravam as razões ou causas porque valorizavam certas coisas, pessoas ou ações e desprezavam outras. A indagação ética Socrática dirige-se à sociedade e ao indivíduo. As questões socráticas inauguram a ética ou a filosofia moral, porque definem o campo no qual valores e obrigações morais podem ser esta- 84 belecidos, ao encontrar o início, isto é, a consciência do agente moral. É o sujeito ético moral somente aquele que sabe o que faz, conhece o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. Outros filósofos influenciaram sobremaneira na ética, Platão (427-347 a.C.), com a ética platônica apoiada a aspectos metafísicos, epistemológicos, políticos. Já Aristóteles (384-322 a.C.), entendia que a finalidade da ética era descobrir o bem absoluto que chamava de felicidade. A virtude era preciosa de acordo com o pensador, vista como um justo meio entre os vícios extremos, por exemplo, avareza e prodigalidade. Importante acrescentar que para se conhecer, com profundidade, a ética aristotélica há necessidade de se estudar três livros: a Nicômaco, a Ética eudemia e a Moral magna. Não podemos deixar de registrar a ética epicurista, fonte de influência dos hedonistas na atualidade, a ética estóica lastreada pela virtude e natureza. Santo Agostinho (354-430) viveu durante os anos de declínio do Império romano, foi o maior teólogo de sua época. Seus trabalhos influenciaram profundamente as doutrinas e as atitudes cristãs por toda a Idade Média, o que, na verdade, ainda se mantém hoje. A base de gravitação da moral agostiniana são o amor e a vontade. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) redescobriu o pensamento aristotélico e napoleônico. Surge o tomismo sendo considerado a doutrina de maior influência da Igreja, só a fé salva, só a fé pode salvar. Temos neste período a fortificação da moral cristã, que reforça na atualidade com vistas à prática mercantil. Na Idade Média, as concepções éticas vincularam-se aos valores religiosos, o que resulta na identificação do homem moral com o homem temente a Deus. O cristianismo considera que o ser humano é, em si e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes, introduzindo uma nova ideia na moral: a ideia do dever. Mas, as mudanças socioculturais e econômicas da Idade Moderna trouxeram novos conceitos Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 84-85 85 23/11/2010 20:15:59 de moral e ética que se voltaram, principalmente, para a autonomia moral do indivíduo. O Iluminismo, por seu turno, conforme Aranha (1993, p. 284), mostra que ser religioso não é condição sine qua non para ser moral: “Ser moral e ser religioso não são pólos inseparáveis, sendo possível que um homem ateu seja moral, e ainda, que o fundamento dos valores não se encontre em Deus, mas no próprio homem”. Contudo, a ideia do dever permanecerá como uma das principais características da concepção ética ocidental. Entrementes, como falar em comportamento ético por dever, já que este seria um poder externo, que impõe suas leis, forçando o indivíduo a agir em conformidade com regras vindas de fora de sua consciência? Um dos filósofos que procurou resolver essa dificuldade foi o francês Jean Jacques Rousseau (1712-1778), no século XVIII. Para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos. O homem nasce puro e bom; o dever é uma forma de ele recordar essa natureza originária e, portanto, só em aparência é imposição exterior. Obedecendo ao dever, está o homem obedecendo a si próprio, aos seus sentimentos e não à razão, pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa. Uma outra resposta, também no final do século XVIII, foi trazida por Immanuel Kant (1724-1804). Opondo-se a Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Por natureza, diz Kant, o homem é egoísta, ambicioso, destrutivo, agressivo e cruel. Assim, é através do dever que o homem se torna um ser moral. O dever, longe de ser uma imposição externa feita à vontade e consciência humanas, é a expressão da lei moral no ser humano, manifestação mais alta da humanidade em cada indivíduo. Os ideários da Revolução Francesa firmam-se como uma nova ética do absoluto para o coletivo, rompendo-se várias fronteiras do poder total. 86 Obedecer à moral é obedecer a si mesmo. O homem se faz autônomo à medida que obedece a si mesmo, isto é, aos valores, à moral. Rousseau e Kant procuraram conciliar o dever e a ideia de uma natureza humana que precisa ser obrigada à moral. Já no século XIX, as relações entre capital e o trabalho fizeram surgir os movimentos de massa e a tentativa de teorização desses fenômenos. Nesse sentido, Karl Marx se destaca, observando que onde existe sociedade dividida em classes, a moral da classe dominante predomina sobre a classe dominada e torna-se um instrumento para manter a dominação. Portanto, as condições da moral verdadeira só existiriam na sociedade sem Estado e sem propriedade privada. A tradição filosófica examinada até aqui constitui o racionalismo ético, pois atribui à razão humana o lugar central na vida ética. Há, ainda, outra concepção ética, francamente contrária à racionalista (e por isso, muitas vezes chamada de irracionalista), que contesta a razão, o poder e o direito de intervir sobre o desejo e as paixões, identificando a liberdade com a plena manifestação do desejante. Essa concepção encontra-se em Friedrich Nietzsche (1844-1900) e em vários filósofos contemporâneos. Para esses filósofos, que se pode chamar de antirracionalistas, a moral racionalista ou dos fracos e ressentidos que temem a vida, o corpo, o desejo e as paixões é a moral dos escravos, dos que renunciam à verdadeira liberdade ética. Contra a concepção dos escravos, afirma-se a moral dos senhores ou a ética dos melhores, a moral aristocrática, fundada nos instintos vitais, nos desejos e naquilo que Nietzsche chama de vontade de potência, cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas. A teoria psicanalítica de Sigmund Freud (1856-1939) veio trazer uma nova concepção de moral, fundamentada no inconsciente. A descoberta de que existe na base de todo comportamento humano, um mundo oculto de pulsões, desejos, sexualidade e agressividade, ajudou na Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 86-87 87 23/11/2010 20:15:59 superação de preconceitos, bem como na valorização do corpo e das paixões, orientando a moral cada vez mais na direção do homem concreto. forma de pensar e atuar das pessoas; a ética, neste diapasão, pode ser flexível e por vezes volátil. Resultado: os riscos de quebra de conduta ética são ainda maiores. A guerra de 1939-1945 dissolveu os últimos grandes impérios coloniais, A velocidade, que é defendida por muitos no mundo empresarial, sob fazendo eclodir neste sistema os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com o advento da Guerra Fria se fez diminuta as esperanças de paz no mundo ocidental e oriental. Vários fatores no que tange à conduta humana surgiram, também, a partir da queda do muro de Berlim e paulatinamente à formação de blocos econômicos dominadores de tecnologia. pena de não se adequar ao mercado e perder clientes, no que concerne às questões éticas é um complicador. Em geral, as pessoas precisam de tempo para tomar decisões e pensar o que vão fazer quando se deparam com um dilema ético. A ética no mundo virtual é por demais complexa, impondo, inclusive, regras especiais para padronizar o comércio eletrônico. Direitos Humanos e a Ética Os direitos humanos ficaram em segundo plano pelas nações imperialistas e por países emergentes em face ao ganho do capital. A globalização e os direitos humanos estão cada vez mais sendo discutidos porque a sociedade exige mais transparência e mais respeito. Vive-se em um mundo de muitas diversidades e principalmente desigualdades sociais, culturais e econômicas, criando-se uma indignação do comportamento humano, mormente no que se refere aos dominadores de tecnologia que se utilizam da moeda como fator de escravidão — “Capitalismo Selvagem’’. Adicione-se ainda o fato de que a ascensão do capitalismo e o avanço da globalização fizeram com que a cultura ocidental de valorização do consumo se expandisse por todo o mundo, criando a noção de que para se obter respeito é necessário ter determinados símbolos de poder que representam o ‘vencedor’, todos eles adquiridos com muito dinheiro. O terrorismo, infelizmente, é expressão deste colapso. A tecnologia eletrônica, a Internet estão mudando o comportamento ético das pessoas; distanciando cada vez mais os seres humanos. A Internet atua em uma velocidade estúpida, pondo mudanças no dia a dia sobre os fatos e acontecimentos, o que inegavelmente, modifica a 88 Todo ser humano sente a necessidade de se firmar perante a sociedade e, para tanto, estipula condutas internas que se exteriorizam face à comunidade, muitas vezes, criando larga aceitação. Dessa aprovação social surgem valores coletivos que aproximam os homens e atenuam conflitos. Tais condutas em uma sociedade representam e pressupõem observância a determinados valores que os subordinam entre si. É claro que das condutas coletivamente aceitas, surgem valores sociais que podem ser normatizados pelos Estados, ou integrados nos costumes e tradições de um povo. Assim é que a ética, uma vez reconhecida como uma adesão voluntária, fez surgir os códigos de ética de cada grupo social que o reconheça ao seu modo e à sua experiência. Desta forma, nos diferentes segmentos da organização social, quer nos aspectos familiares, quer nos aspectos obrigacionais, políticos ou empresariais, urge imperiosamente a elaboração normativa de disposições jurídicas afinadas aos reclamos éticos proclamadores do código. Para a ética, não basta que exista um elenco de princípios fundamentais e direitos definidos nas constituições. O desafio ético para uma nação é o de universalizar os direitos reais, permitindo a todos a cidadania plena. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 88-89 89 23/11/2010 20:15:59 Pode-se indagar: os que mentem ou trapaceiam vivem de acordo com patrões éticos? Singer (1998, p. 17) enfrenta o tema da seguinte ótica: Os que mentem trapaceiam, mas não acreditam que é errado o que fazem, podem estar vivendo de acordo com padrões éticos. Podem acreditar, por alguma dentre inúmeras razões possíveis, que é correto mentir, trapacear, roubar etc. Não estão vivendo de acordo com padrões éticos convencionais, mas podem estar vivendo de acordo com outros tipos de padrões éticos. Insta observar que a citação acima, mesmo existindo razão lógica de ser é passível de críticas, todavia, não se pode deixar de mencionar que a ética em uma visão da Administração Pública deixa poucos espaços vazios para atuar, e quando os deixa jamais se pode perder de mira a legalidade e finalidade pública. Outrossim, sem induzir uma raiz meramente dogmática à ética, convém lembrar que, hodiernamente, muitas das condutas humanas estão visivelmente estipuladas em normas deontológicas, tais como observar-se-ão quando da análise do código de ética profissional. Importante considerar o aspecto da ética social como dimensão da ética, como aduz Bezerra (2001, p. 27): Ninguém é ético para si mesmo, mas em relação aos outros e ao mundo exterior. Portanto, a ética nunca é exclusivamente individual; refere-se pelo menos a uma pessoa em interação com outra. Somos seres éticos em relação a alguém. Esta é a ética das relações interpessoais, chamada microética. A microética abre-se à macroética ou à ética das ações coletivas, onde o sujeito não é o indivíduo mas um grupo, a associação e a comunidade política. A proteção da moralidade administrativa O administrador público está sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, sob pena de praticar ato inválido e expor-se às responsabilidades administrativa, civil e criminal. 90 A Constituição Federal em vigor assumiu postura firme, visando coibir a prática de atos de improbidade, mencionando os princípios da moralidade e da probidade. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 90-91 Moreira Neto apud Ives Gandra Martins (1999, p. 106) faz um belo retrospecto histórico acerca do princípio da moralidade: No estudo dessas relações, desde logo encontramos o magno problema da distinção entre os dois campos, da moral e do direito, e destacadamente, duas geniais formulações a respeito: primeiro, no início do séc.XVIII, de Christian Thommasius, e, depois, já no fim desse século, de Immanuel Kant. Thommasius delimitou as três disciplinas da conduta humana: a Moral (caracterizada pela idéia do honestum), a política (caracterizada pela idéia do decorum), e o Direito (caracterizado pela idéia do iustum), para demonstrar que os deveres morais são do ‘‘foro íntimo” e insujeitáveis, portanto, a coerção , enquanto os deveres jurídicos são externos e, por isso, coercitíveis. Immanuel Kant, sem, de todo, abandonar essa linha, ao dividir a metafísica dos costumes em dois campos,distinguiu o da Teoria do Direito e o da Teoria da Virtude (moral); as regras morais visam garantir a liberdade interna dos indivíduos, ao passo que as regras jurídicas asseguram a liberdade externa na convivência social. E continua Moreira Neto apud Ives Gandra Martins (1999, p. 109): caberia um pouco mais tarde, a Maurice Hauriou introduzir, sem vacilar, enfrentando a dura crítica de então, notadamente de seu amigo Leon Dugui, o deão de Bordéus, o conceito de moralidade administrativa. A literatura jus-naturalista registra, a propósito, como primeira menção à moralidade administrativa, as anotações de Hauriou às decisões do Conselho de Estado Francês proferidas no caso ‘Gommel’ em 1914. Moreira Neto alerta para o conceito de moralidade (2001, p. 58): ”Para bem compreender essa apertada síntese conceitual de Hauriou — conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da administração, é mister precisar o alcance de certas premissas que nela se subentendem” A moralidade administrativa constitui, também, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública, que deverá obedecer a ética. Carvalho Filho (2003, p. 15) ensina: O princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 91 23/11/2010 20:15:59 Moreira Neto (2001, p. 49) reforça ao afirmar: “A expressão admissão to o chefe do Poder Executivo (em qualquer dos níveis federativos), do princípio da moralidade administrativa no texto da constituição de 1988 provocou, como seria de prever, um ressurgimento dos estudos do tema ético no Direito e na Administração Pública”. como os senadores, deputados, vereadores, ocupantes de cargos ou empregados públicos da administração direta ou indireta, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista, concessionários e permissionários de serviços públicos, os requisitados, contratados sob o regime de locação civil de serviços e os gestores de negócios públicos e também os ocupantes do terceiro setor. Assim, o princípio da moralidade orienta a atuação do agente da Administração em direção à ética profissional, devendo agir com honestidade, quanto aos motivos, ao conteúdo e aos fins. Trata-se, aqui, de moralidade administrativa e não da moralidade comum, isto é, da avaliação entre o honesto e o desonesto, mas na órbita da Administração Pública. Este princípio consagra, ainda, que não basta que a atuação do administrador seja legal, ela deve ser concomitantemente moral. Por isso, incorre o ato em desvio de finalidade aquele que não respeitar à moralidade administrativa, entendida da melhor maneira técnica como a ética profissional, pois o administrador deve atender a princípios básicos tais como: honestidade, zelo com a coisa pública, sigilo quando necessário, competência, prudência, humildade, imparcialidade, lealdade, boa-fé objetiva e tantos outros. Um administrador público, no desempenho de suas funções, deve ter muitas qualidades e atributos, alguns indispensáveis para desenvolver seu mister. São essas qualidades ou virtudes que vão traçar o perfil de um administrador ético. Virtudes básicas profissionais são aquelas indispensáveis, sem as quais não se consegue a realização de um exercício ético competente, seja qual for a natureza do serviço prestado. (SÁ, 1996, p. 151). Um profissional comprometido com a ética não se deixa corromper em nenhum ambiente, ainda que seja obrigado a viver e conviver com ele. (SÁ, 1996, p. 162). Assim, todo aquele que desempenha funções admitidas pelo regime jurídico administrativo é um agente público e deve prescrevê-las com a conduta ética. Pela sua manifesta generalidade, esse conceito abrange um leque bastante amplo de manifestações, englobando tan- 92 Sérgio Andréa Ferreira apud Moreira Neto (2001, p. 90) preleciona: Cognato com a legalidade e a legitimidade é a moralidade administrativa, que, elencada com o princípio do caput do art. 37, é erigida em interesse social juridicamente tutelado, na medida em que o art. 5º, LXXIII, faz da lesão a ela, fundamento fático- jurídico e hábil a se inserir na causa pretendida da ação popular. É a moralidade juridicizada: o princípio ético tornado princípio e interesse juridicamente significativos. Na realidade, não basta, conforme salientado, que o administrador se atenha ao restrito cumprimento da legalidade, devendo o exercício de seus direitos, poderes e faculdades ser balizado por parâmetros de razoabilidade e justiça, fazer-se de modo regular, sem abuso, tudo isso informado pelos princípios éticos. É cediço lembrar que a moralidade é um tema de projeção internacional, não estando afeto apenas ao Brasil. Urge enfocar que o Estado Democrático de Direito como é o Brasil, só pode sobreviver se proteger dentre outros institutos jurídicos, o da moralidade e, para tanto, deve se precaver através de normas jurídicas de cunho, inclusive punitivo, para os algozes da imoralidade. Outrossim, mister se faz referir, neste momento, que uma vez agredida a moralidade, por via transversa ou oblíqua, agredida está a legalidade. A esse respeito cabe citar Moreira Neto (1999, p. 91): “A moralidade será poderosa aliada na busca da finalidade do ato, na busca do interesse público, no contraste do ato discricionário, na análise de possíveis desvios de finalidade”. Fazzio Junior (2002, p. 19) leciona: “A valoração moral é atributo de pessoas físicas, uma vez que as pessoas jurídicas e suas atividades não têm discernimento ético; são avaliados objetivamente”. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 92-93 93 23/11/2010 20:15:59 Moreira Neto (2001, p. 51) salienta, ainda, a respeito do cuidado com a moralidade pelos integrantes dos três Poderes e as consequências para o sistema representativo: Moralidade tem sido cada vez mais cobrada dos parlamentares, dos juízes e dos administradores, na medida em que aumentam as decepções populares com a conduta de seus dirigentes. O descrédito dos políticos, como não poderia deixar de ocorrer, se tem comunicado às próprias instituições, abalando-as profundamente nos seus alicerces, tantas vezes tão laboriosamente plantados pelos povos. Percebe-se, no estudo da moralidade, que sua violação consiste muitas vezes da participação direta ou indireta de um terceiro, por vezes, Conclusão Durante todo este estudo se percebe que os valores éticos têm que ser resgatados, mantidos e defendidos por toda a coletividade. Nesse pensar é que se defende a ética em uma perspectiva de valores e costumes válidos perante o Direito, com posição de destaque no mundo contemporâneo e que a ciência jurídica se utiliza com constância para compreender o comportamento humano, suas nuanças e reflexos sociais que cada vez mais ganham terreno nas relações dos Direitos Humanos. parente, “amigo” ou até mero conhecido, posto que estas figuras Assim, não se pode deixar de declinar da importância sólida e efer- rasteiras se aproximam daqueles que estão no poder e depois, ine- vescente também na filosofia, ora refletindo e iluminando os diversos gavelmente os denunciam. Tem-se, mormente, nesta década, vários fenômenos sociais, ora teorizando interpretações e reflexões seguras casos que poderiam ser narrados neste trabalho, todavia como muitos para o melhor convívio dos povos. ainda não foram transitados em julgado, por respeito a este princípio, A ética é um guia seguro que os homens possuem para tornar respeitosas não se cita nomes ou fatos. Oxalá, que casos terríveis e escandalosos e aceitáveis o seu convívio. Não se pode deixar de analisar os passos não mais ocorram. éticos de qualquer ação e em qualquer campo de pensamento sempre Importante destacar que para se alcançar a governabilidade, efetivi- com base no respeito aos direito humanos. dade integral das normas jurídicas, bem assim, a segurança jurídica, Importante ressaltar que na clássica expressão — interesse público —, precisa-se, indubitavelmente, promover uma mudança substancial nas repousa valores de ordem ética, moral, religiosa, enfim, uma amplitude condutas destes agentes, com moderação e equilíbrio em respeito aos de fatores internos que repercutem externamente por toda a sociedade. direitos e garantias constitucionais. Daí a importância da ética, como uma proteção do indivíduo contra os O desvio de finalidade, importante reprisar, ocorre toda vez que a desmandos de quem quer que seja, bem como, um freio seguro contra autoridade pratica um ato visando atingir um fim diverso daquele pre- as tentações do mundo moderno. visto em lei, ou não destinado a atender ao interesse público, ou, até A conduta criminosa cresce alarmantemente no Brasil, fruto talvez do mesmo, quando o ato objetivamente indique atendimento ao interesse contexto histórico de exploração e submissão, bem como, da presença público, mas subjetivamente tenha o escopo de satisfazer interesse marcante da ideia de impunidade. privado (da própria autoridade ou de terceiros); configurar-se-á, desse modo, o desvio de finalidade. De fato a sociedade mudou, clonou e conectou seus alicerces morais e ideológicos a uma nova ordem mundial, que domina a todos pela tecnologia. A pessoa teve que mudar, seus valores foram esquecidos e não exercidos, a luta pela sobrevivência induz à prática desordenada 94 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 94-95 95 23/11/2010 20:15:59 de desconsiderações e atitudes insulares. O ganhar não se trata mais de um objeto de desejo é, ao revés, verdadeira obsessão. É necessário o incentivo à cultura do espírito ético no que se refere à preservação dos direitos individuais, coletivos e, sobretudo, os direitos humanos e difusos. Assim, agindo de forma globalizada e com vista à efetividade dos mecanismos judiciais que são colocados à disposição da sociedade brasileira, unindo forças em princípio, os poderes clássicos do Estado, a sociedade politicamente organizada, bem como os integrantes das funções essenciais da justiça e segurança pública, tesouro etc., poder-se-á mudar os rumos deste País, respeitando os homens de bem e punindo severamente os dignos de má fé. Pode-se mencionar como exemplo a participação fundamental do Ministério Público, através do uso da ação civil pública; o cidadão através da ação popular e sempre denunciando os corruptos; o povo de um modo geral, elegendo aqueles compromissados com a ordem e o progresso nacional e senso ético no atuar. A educação é peça essencial na medida que forma opinião e senso crítico da população. Mister se faz que seja incluída a disciplina ética geral nas escolas de Ensino Médio e Fundamental. É de nosso instinto e natureza sermos seres de sentimentos dos mais diversos que atuam sobre a nossa índole e produz efeitos diversos na nossa vontade, de tal sorte que é imprescindível uma educação em nossa vontade. A educação em nossa vontade nos ajuda a escolher de forma racional entre o melhor caminho para o bem. Faz-se necessário a preservação dos direitos humanos e a fortificação dos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como a solidariedade entre os povos. Assim, não se deve tratar a pessoa como objeto de direitos e sim sujeito de direitos, posto que, qualquer violência neste sentido é aética e comprometedora da humanidade. A ética sustenta que nenhuma autoridade é legítima se for despótica. A saúde, a erradicação da fome, melhor distribuição de renda são requisitos de elevada importância e mantenedores da cidadania. 96 O respeito aos princípios explícitos da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade e eficiência na atual Carta política brasileira deve ser aplicado em todos os níveis da Administração Pública, sem espaço de interpretações indultoras de ilicitudes. O papel do Estado para a garantia da ordem econômica e social do povo brasileiro não se resume a harmonizar os interesses particulares em prol dos coletivos. Para que haja mais equidade, justiça social e melhor distribuição de renda, faz-se necessário uma maior conscientização das pessoas, o que se dá através de um processo longo e demorado, porém eficaz, de educação geral que, indubitavelmente, possibilita o exercício contínuo da cidadania. É forçoso acentuar, a importância dos sobredireitos que pertencem a todos e de modo com a solidariedade, aliada com a presença marcante da dignidade da pessoa humana, fatores estes que contribuirão velozmente para a preservação humana. É latente a tese que o direito jamais poderá se divorciar da ética; são aspectos da mesma engrenagem de paz social. A ética tem uma ênfase marcante em todos os campos do conhecimento humano seja no direito, na economia, no trabalho, no meio ambiente, na história, na política, na filosofia, nas ciências sociais, humanas e biológicas, exatas; enfim, não há limites de observação. No que concerne à normatização de condutas éticas, pode-se observar uma melhora considerável, a ética ganha terreno e concretude, a exemplo dos diversos códigos de éticas que nós temos. Todavia, tais normas necessitam de propaganda educativa e construtivista no nosso meio, de nada adianta ter normas se não pudermos refletir acerca dos mesmos. É preciso muita campanha neste sentido. Desta forma, a inclusão e destaque da ética como princípio explícito da Carta Magna é imperioso. Aspectos preocupantes quando encontramos, setorialmente, ausência de ética na Administração Pública de todos os poderes. Tal reflexo é Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 96-97 97 23/11/2010 20:15:59 extremamente negativo ao cidadão, o que na maioria das vezes gera violência, insegurança e descredibilidade. Os problemas se acentuam pela falta de maior esclarecimento ao verdadeiro titular do poder constituinte que, indignado, rompe com a solidariedade. A ética não é “óptica” do egoísmo, reflete sim, solidariedade para com o bem comum. Não se pode conceber a ética sem consciência, liberdade e decisão justa. Por isso que, além da educação dos valores, é imperioso o controle direto e indireto das condutas administrativas. A imprensa realiza um papel importante como forma de controle externo. É imperioso alertar que limites devem existir para que não se fulminem as garantias constitucionais adquiridas ao longo dos séculos. Não é retórico o alerta de que os operadores do direito, neste diapasão, devem atuar com ética, sobretudo aos mandamentos sagrados de suas profissões, hoje já codificados. Assim, o juramento é ato simbólico que só terá razão de existência se o profissional atuar com vistas ao bem comum. A ética não impõe neutralidade, os desafios são romper esta neutralidade, descortinando, revelando e, eventualmente, punindo quaisquer transgressões ao convívio social. As condutas dos profissionais de todo o setor público globalizado devem ter como mira o respeito aos princípios gerais e específicos de todo o sistema jurídico, sua redefinição de liberdade com vistas às condutas decisórias lastreadas ao interesse público, transparente e legítimo, servem de paradigma ao bom atuar do administrador. Não podemos nos esquecer que o interesse público tem como base sua esfera privada. Afinal, a esfera pública é dotada de elementos formadores que migraram da esfera privada. Fomentar, desde cedo, que o homem não é uma ilha, é um ser gregário e que em última análise a sociedade moderna impõem este ajuntamento, não podemos deixar de externar que a ética é o elo entre o Estado e o cidadão. Eis alguns dos desafios. Insta observar que os filósofos gregos consideravam o homem como a medida de todas as coisas; hoje, o que se observa é que as “coisas” criadas pelo próprio homem é que dominam. É necessário que se reflita que a ética não passou por um processo de vulgarização como muitas vezes é noticiada. A ética passa, isto sim, por uma crise de ordem institucional, mormente nas administrações públicas de todos os poderes. Soluções são impostas de todos os ângulos e maneiras, mais o que nos parece primordial, no exemplo brasileiro, além de práxis educacionais, não podemos deixar de elevar o conteúdo ético com preceito expresso na nossa carta magna. É evidente que se está vivendo no império de anomias e antinomias, mas mesmo diante desta cultura eurocêntrica é imperiosa, neste primeiro estágio, a criação legislativa de normas éticas cada vez mais evoluídas para com a nossa realidade. 98 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 98-99 99 23/11/2010 20:15:59 Referências SÁ, Antônio Lopes de. Ética profissional. São Paulo: Atlas, 1996. ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. SALDANHA, Nelson. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 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Rio de Janeiro: Forense, 1996. 100 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 100-101 101 23/11/2010 20:15:59 6 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 GESTÃO DA INFORMAÇÃO EM SERVIÇOS DE SAÚDE: O FLUXO INFORMACIONAL NO SEGMENTO DOS LABORATÓRIOS DE ANÁLISES CLÍNICAS EM SALVADOR RICARDO C. MELLO Mestre em Ciência da Informação (UFBA), graduado em Administração de Empresas (UFBA), Professor Assistente da UFBA e da pós-graduação da F2J. Consultor nas áreas de Tecnologia e Gestão de Projetos. Email: [email protected] Resumo Gestão da Informação em Serviços de Saúde: O Fluxo Informacional no Segmento dos Laboratórios de Análises Clínicas em Salvador investiga sobre a utilização das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTIC) em laboratórios de análises clínicas de natureza privada na cidade do Salvador. O artigo aborda a adoção da tecnologia no gerenciamento de informações, revendo o impacto nos processos organizacionais no relacionamento da organização com os seus diversos públicos. O tema é apresentado a partir de revisão de literatura, procurando caracterizar a atual orientação com os imperativos contemporâneos organizacionais. Palavras-chave Gestão da Informação. Saúde. Novas Tecnologias. Resumen Gestión de la Información en Servicios de Salud: El Flujo Informativo en el Segmento de los Laboratorios de Análisis Clínicos de Salvador investiga el uso de las Nuevas Tecnologías de la Información y de la Comunicación (NTIC) en laboratorios de análisis clínicos privados en la ciudad de Salvador. El artículo aborda la adopción de la tecnología en la gestión de informaciones, revisando el impacto en los procesos organizacionales en la relación de la organización con sus diversos públicos. El tema es presentado a partir de revisión de literatura, buscando caracterizar la actual orientación con los imperativos contemporáneos organizacionales. 102 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 102-103 23/11/2010 20:15:59 Palabras-clave Gestión de la Información. Salud. Nuevas tecnologías Nos serviços de saúde não é metafórico afirmar que a informação é um aspecto vital, na medida em que dizem respeito a aspectos relativos à saúde dos pacientes envolvidos. Neste contexto, destaca-se a importância das NTICs – Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, na otimização da gestão do fluxo informacional, pelas características intrínsecas relacionadas à área de saúde. As NTICs podem trazer inúmeros ganhos ao segmento da saúde. Em microescala, podem permitir que médicos tenham, por exemplo, acesso à informação sobre seus pacientes em tempo real. Em macroescala, as NTICs possibilitam o acesso à informação técnico-científica que contribuem para o desenvolvimento e a prática do profissional na área de saúde. Além disso, servem de apoio aos processos de tomada de decisão na planificação, formulação e aplicação de políticas públicas para a saúde, coadunando-se ao desenvolvimento econômico e social do país. Avaliando o conceito de dado na área de saúde, observa-se que pode ser considerado como um elemento peculiar – idade, sexo, etnia, ou valores numéricos específicos resultantes de exames tais como níveis de triglicerídeos no sangue de determinado paciente, entre outros fatores – em um tempo específico (data do exame) (VIEIRA et al., 2000). Os autores destacam ainda que os dados em saúde permitem livres interpretações, pois, dependem dos conhecimentos prévios e experiência do interpretador. O conceito de informação em saúde resulta da análise e combinação de vários dados que podem levar a diversas impressões acerca do estado de determinado paciente ou de determinada população. Vieira et al. (2000) afirmam que a informação em saúde somente existe na interpretação dos dados que devem estar constantemente disponíveis e atualizados para permitir novas interpretações e evitar erros diagnósticos ou terapêuticos. Em macroescala, um exemplo de informação em saúde relaciona-se à mortalidade e desnutrição infantil de uma região ou camada da populaRevista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 104-105 105 23/11/2010 20:15:59 ção, obtidas a partir de dados colhidos em uma determinada pesquisa. Em microescala, os dados presentes em um hemograma. portentosos para o arquivo e a armazenagem, tornando o acesso às informações registradas lento e/ou dificultoso. Vale frisar que a informação em saúde está também suscetível a múlti- Com o crescente desenvolvimento e uso das NTICs tem se otimizado a coleta, o armazenamento e a difusão de dados e de informações, que podem ser agrupados e organizados, agilizando a consulta para o estudo, a pesquisa e a terapêutica epidemiológica (CHEN et al., 2000). Conforme Sigulem (1997) o desdobramento do uso das novas tecnologias na prática da medicina é surpreendente, na medida em que plas variáveis – o que reforça a importância de contextualização – e que quase sempre se refere a dados relativos à melhoria, ou manutenção, da qualidade de vida, ou ao óbito de indivíduos. É um dos principais recursos, senão o principal, que um médico necessita ter em mão para o exercício profissional com eficiência e qualidade. O acesso ou não à informação, bem como à tecnologia (MOURA, 2004), pode representar o sucesso ou insucesso na adoção de práticas terapêuticas ou algum cuidado a ser prestado ao paciente. Moraes (1994) define o Sistema de Informação em Saúde (SIS) como o conjunto de componentes (estruturas administrativas e unidades de produção) integradas e articuladas que atuam com o propósito de obter e selecionar dados e transformá-los em informação, com mecanismos e práticas próprias. (apud BISPO JÚNIOR; GESTEIRA, 2004, p. 06). Sigulem (1998) enfatiza que a principal missão dos sistemas de informação eletrônicos é dar assistência eficiente e com alta qualidade aos procedimentos informacionais, tornando-os mais rápidos e eficientes. Sem um sistema adequado de informações eletrônicas, as organizações tendem a desembolsar ineficazmente recursos para criar, armazenar e recuperar informações dos pacientes. Entre outros desdobramentos, a ineficácia da gestão informacional se traduz na redundância de tarefas e no alto dispêndio de tempo na tomada de decisões. As aplicações da tecnologia da informação na saúde Até a década de oitenta do século XX, predominava o registro das informações em saúde em papel, dificultando o armazenamento e acesso por médicos e outros profissionais da saúde (VIEIRA et al., 2004; CHEN et. al, 2000). Nos hospitais, consultórios e até mesmo nos laboratórios de análises clínicas, a resultante era um enorme volume de papel, de fichas, prontuários, exames e laudos, o que demandava espaços físicos 106 as técnicas não invasivas de produção de imagem, como a ultrasonografia, a medicina nuclear, a tomografia e a ressonância magnética, alteram sensivelmente o processo de diagnóstico médico. Novos equipamentos de monitorização de pacientes, como videolaparoscopia e analisadores automáticos de eletrocardiogramas, fluxos sangüíneos e gasosos, globais e regionais, oferecem informações vitais que auxiliam o médico, seja no tratamento eficaz do paciente, seja no apoio à pesquisa (SIGULEM, 1997, s/p). De acordo com o autor, os sistemas de informação em saúde podem favorecer o processo de assistência à saúde e aumentar a qualidade da assistência ao paciente. São representativas as contribuições no processo de diagnóstico ou na prescrição da terapia, na inclusão de lembretes clínicos para o acompanhamento da assistência, na emissão de avisos – sobre interações de drogas, sobre tratamentos duvidosos e sobre desvios dos protocolos clínicos –, e na interconexão com laboratórios para o acesso rápido a exames, entre outras (HERSH apud SIGULEM, 1997). a Sociedade da Informação, nesta fase pós-industrial, exige que a medicina moderna seja orientada pela ‘qualidade’ o que implica, basicamente, o gerenciamento racional da informação. Como a medicina aumenta a sua complexidade (devido a novos métodos de investigação ou tratamento e à diversidade de organizações da saúde, como indivíduos trabalhando sozinhos, pequenas clínicas, ambulatórios especializados, hospitais secundários e hospitais de alta complexidade, componentes estes que, para adequado suporte ao paciente, necessitam trabalhar em conjunção), a informática médica é um agente indispensável para a descentralização e a integração. Ela ajuda a superar as limitações humanas de memória ou processamento de informações. Com a implementação das redes de comunicação, a informática ajuda Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 106-107 107 23/11/2010 20:15:59 a trazer o médico para mais perto do paciente (por exemplo, através da telemedicina) e facilita o acesso à informação necessária ao cuidado ótimo (por exemplo, através do acesso ao prontuário eletrônico do paciente, a bases de conhecimento, ao uso de sistemas especialistas, resultados laboratoriais ou à realização de trabalho cooperativo) (DEGOULET & FIESCHI apud SIGULEM, 1997, s/p). Vieira et al. (2000), por outro lado, assinalam que o tempo perdido com a documentação de dados em prontuários de papel é dez vezes superior ao tempo gasto para examinar os pacientes. Outro estudo citado pelos autores demonstra que 10,3% dos erros médicos que conduziram a eventos adversos em pacientes hospitalizados resultaram do desconhecimento de resultados de testes e de achados laboratoriais. A literatura médica confirma a mesma probabilidade para a ocorrência do chamado “falso positivo” em exames, o que impele à indicação no próprio laudo de que sejam feitas investigações mais aprofundadas, mas nem sempre inteligíveis pelo usuário, considerando o uso de terminologia técnica (INVERTIA, 2005). Todavia, Moura (2004) aponta outros fatores concorrentes para o erro médico, entre eles, a baixa capacitação tecnológica dos profissionais em saúde. Os sistemas clínicos, como os de apoio à decisão e os prontuários eletrônicos, devem ser ferramentas úteis na melhoria da qualidade do serviço e na redução de gastos. Porém, é difícil quantificar os benefícios financeiros proporcionados (VIEIRA et al., 2000). Sigulem (1997) aponta outras investigações sobre as necessidades de informação dos médicos durante o atendimento a pacientes em diferentes tipos de ambientes, ressaltando os contratempos da não informatização em saúde. O autor indica o levantamento de, pelo menos uma dúvida, a cada encontro do médico com o paciente. Questiona ainda se a falta de informação, ou a dificuldade de acesso à informação, impacta de sobremaneira no atendimento ao paciente. Conclui que sim, ao referendar estudos que demonstram haver prescrição inadequada de medicamentos e de tratamentos em até 84% dos 108 casos. Ressalta que um dos efeitos mais imediatos do acesso eletrônico às informações sobre o paciente é o aumento de segurança na obtenção da informação e a rapidez de se poder prescrever o tratamento adequado a cada caso. Estando a informação necessária ao médico disponível instantaneamente, ou podendo ser impressa de forma resumida a partir do prontuário eletrônico, os erros tendem a diminuir consideravelmente. Neste caso, o problema passaria a ser a segurança no sistema e a disponibilidade de terminais para o acesso ao sistema. A Tecnologia da Informação usada em um sistema de informação hospitalar tende a proporcionar confiabilidade, agilidade e racionalização de procedimentos, ou seja, resultados efetivos para as instituições da área da saúde. Sigulem (1997) comenta que os resultados da introdução de um Sistema de Informação (SI) informatizado em hospitais obtêm vantagens através do uso de prontuários de papel, pelo fato de a tecnologia disponibilizar as informações necessárias em 99% das vezes contra 72%, quando o registro ocorria somente em papel. Cumpre mencionar que são diversos os sistemas de informação em saúde disponíveis com base em NTICs. Entre eles estão os sistemas financeiros de atendimento, de administração, de telemedicina, os destinados à pesquisa, de informação em saúde pública, de educação médica e os de gerenciamento clínico. Sigulem et al. (1998) organiza esta diversidade, em caráter estritamente didático, conforme expresso a seguir. • Ferramentas para o tratamento da informação. SI que se destinam a organizar e facilitar a recuperação da informação médica. Os sistemas gerenciadores de consultórios e de laboratórios, os livros eletrônicos, os sistemas de auxílio à recuperação bibliográfica, como o Medline, pertencem a esta categoria. • Ferramentas de focalização da atenção. SI que monitoram dados através da emissão de alertas. O autor exemplifica relacionando os sistemas de interação de drogas e os sistemas de laboratório clínico que emitem avisos na presença de valores discrepantes daqueles esperados nos exames. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 108-109 109 23/11/2010 20:15:59 • Ferramentas específicas para consultas. SI destinados a apoiar o profissional da saúde na área afim. Enquadram-se nesta categoria os sistemas especialistas de apoio ao diagnóstico. O processo de incorporação das novas tecnologias da informação em saúde tem transformado uma antiga relação um para um (a relação médico-paciente) em uma relação um para muitos, na qual os dados podem ser produzidos não apenas no hospital, mas também na casa do paciente, no consultório, nos laboratórios de análises clínicas e em outras centrais diversas de realização de exames (VIEIRA et al, 2000; LOPES, 2004). O novo padrão de relacionamento interligado requer um maior compartilhamento de informações. Vieira et al. observam ainda que os sistemas de informação na área da saúde devam ser direcionados para o gerenciamento global das informações médicas e administrativas; nesse contexto, os principais objetivos desses sistemas ficam sendo a melhora da qualidade de atendimento e o controle de custos (2000). O quadro 1 elenca os objetivos principais que devem nortear os SI em saúde, assim como também as contribuições derivadas a serem alcançadas. QUADRO 1 - Objetivos Atuais dos Sistemas de Informação em Saúde. OBJETIVOS PRINCIPAIS Melhorar qualidade de atendimento Controlar custos OBJETIVOS CONTRIBUINTES Melhorar comunicações Reduzir tempo de espera Auxiliar o processo decisório Reduzir número de dias de hospitalização Diminuir sobrecarga administrativa Diminuir despesas com pessoal Fonte: VIEIRA et al., 2004. Contudo, apenas o desenvolvimento de ferramentas de gerenciamento de informações clínicas – registro computadorizado de pacientes, sistemas de apoio à decisão, gerenciamento de imagens médicas etc. – não é suficiente. A necessidade de eficiência exige que a informação médica esteja presente no local de atendimento e no momento certo para atingir a melhor resposta clínica, utilizando a menor quantidade 110 possível dos (escassos) recursos disponíveis. Assim, o grande desafio no uso das NTICs é não apenas a criação de SI adequados, mas a interligação entre os sistemas. Neste contexto, Vieira et al. (2000) assinalam que o atendimento de saúde não é exclusivo das instituições hospitalares. Em oposição ao antigo modelo “hospitalocêntrico”, cujos ambientes eram centralizados nos grandes computadores exclusivamente dessas instituições, os autores afirmam a necessidade de que “os diversos sistemas sejam abertos o suficiente para permitir a livre comunicação entre os diversos sujeitos que participam do atendimento à saúde” (VIEIRA et al., 2000, s/p). A busca da qualidade no atendimento, portanto, deve abranger todos os elementos da rede, sejam laboratórios de análises clínicas, sejam consultórios médicos particulares. Assim sendo, a Internet se destaca entre as NTICs pelas múltiplas possibilidades que oferece. Nenhum meio de comunicação, até hoje, pôde propiciar, como ela o faz, uma “via” que torna praticamente disponível em qualquer lugar uma série de informações e serviços antes só presentes nos grandes centros. Das NTICs, a Internet é a que traz mais possibilidades para a questão da difusão da informação em saúde, por suas características próprias de interatividade e interconectividade. Entre outras facilidades, a Internet possibilita aos profissionais da saúde acessar, em qualquer lugar, milhares de bancos de dados em universidades e centros de pesquisa, ler jornais e revistas eletrônicos, comprar produtos, trocar informações e opiniões com colegas da área das mais diversas partes do país e do mundo, obter exames e se comunicar à distância com laboratórios, telemonitorizar aparelhos, enviar e receber correio eletrônico, além de veicular diversas informações sobre as mais diversas doenças e estado de pacientes. Chen et al. (2000) aborda as vantagens e utilidades da Internet na área de saúde, que vão desde facilidades, como o prontuário informatizado do paciente, passando por informações relacionadas à gestão do serviço. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 110-111 111 23/11/2010 20:16:00 Outra vantagem trazida pela Internet, para a outra ponta da cadeia formações, entretanto não era possível fazer registros no prontuário (no caso os pacientes), é que informação pode estar distribuída em do paciente. múltiplos servidores e bancos de dados. Um estrato de pacientes está familiarizado com as opções da Internet e pode, assim, usufruir das vantagens proporcionadas, o que torna a informação em saúde mais democratizada. Os pacientes têm, pois, a possibilidade de estarem mais bem informados, podendo avaliar e questionar as condutas médicas. O processo de incorporação de novas tecnologias na saúde 112 O sistema não dispunha ainda de tecnologia para interligar equipamentos e sistemas dentro e fora da instituição, o que somente ocorreria na década de 80 através dos Sistemas Distribuídos, baseados na tecnologia de comunicação em rede que originou a Internet (PONTES et al., 2000). O uso da Internet como ferramenta na saúde era praticamente um processo inevitável. O crescimento exponencial das técnicas médicas Por volta de meados dos anos 50 do século XX, nos EUA, iniciou-se a de investigação e de tratamento conduziu à reorganização dos serviços introdução de computadores na área de saúde direcionada à realização de saúde, visando o controle do custo e da qualidade de atendimento, de análises médicas estatísticas, ao controle de material e da folha de redundando na necessidade crescente de maior compartilhamento de pagamento (HANNAH apud SIGULEM, 1997). informações (LOPES, 2004). Apenas o desenvolvimento de ferramentas Vieira et al. (2000) comentam que os primeiros sistemas de informação de gerenciamento de informações clínicas – registro computadorizado nos serviços de saúde foram desenvolvidos, porém, somente em meados de pacientes, sistemas de apoio à decisão, gerenciamento de imagens da década de 1960. Seguia-se, então, a tendência geral de evolução médicas etc. – não se mostrava mais suficiente; o grande desafio pas- nos sistemas de computação, com a implementação de arquiteturas sou a ser a interligação, a interconectividade e interatividade entre centralizadas integrando todas as funções. Esse modelo era de grande os locais de origem de dados com os locais de utilização (VIEIRA et al., utilidade para os administradores, uma vez que permitia o controle 2000; SANTOS e BERAQUET, 2001). simples de toda a instituição. Os SI caracterizavam-se, primariamente, Todas essas transformações se refletiram na crescente demanda por como gerenciadores de contas a pagar e de cobrança. NTICs iniciada em meados da década de 80 do século XX. A necessidade Em 1962 foi desenvolvido o primeiro projeto de informatização em um de eficiência exige que a informação médica esteja presente no local de hospital nos EUA que, dado o êxito, foi rapidamente replicado pelo atendimento e no momento certo para atingir a melhor resposta clínica, setor (SIGULEM, 1997). utilizando a menor quantidade possível dos recursos disponíveis. A década de 70 representa um período de esforços contínuos para Vieira et al. (2000) defendem que o ritmo de instalação dos sistemas de automatizar vários departamentos hospitalares e sistemas financeiros informação, apoiados nas NTICs, nas organizações tem-se revelado em (PONTES et al., 2000). Devido à estrutura elementar do banco de dados uma tendência crescente nos últimos anos. Os sistemas de informação e à onerosa do hardware, as iniciativas foram limitadas. Só no final vêm sendo incorporados à gestão do fluxo informacional gradativamen- da década de 70 é que surgiram os Sistemas Modulares, permitindo te podendo-se prever a utilização em níveis cada vez mais elevados o compartilhamento dos dados entre diferentes módulos instalados. nos próximos anos. A introdução crescente e maciça da tecnologia da Conforme os autores, cada módulo continha elementos básicos de in- informação segue um curso inexorável. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 112-113 113 23/11/2010 20:16:00 Um estudo realizado por Dorenfast (1995, apud SIGULEM, 1997), abrangendo os 2.938 hospitais americanos com mais de 100 leitos, constatou que, já naquela época, 100% dos hospitais contavam com SI administrativos e 77,6% já possuíam algum tipo de gerenciamento clínico – geralmente pedidos de exames, resultados de exames e registro resumido dos dados de pacientes internados. Lopes (2004) contata a emergência, por conseguinte, de um novo paradigma em saúde, no que se refere à manipulação da informação em todos os seus estágios, desde o emissor até o receptor. Para a autora, a Internet – a Web – constitui-se em um dos temas de maior repercussão em saúde, pois modifica a forma de acesso, produção e disseminação de informação em larga escala, revolucionando toda a estrutura em vigor. Cumpre lembrar que no Brasil o acesso à tecnologia (de ponta) é privilégio de classes sociais mais elevadas. Mesmo as aplicações menos sofisticadas são de difícil e lenta apreensão pela grande parte da população, em função da existência de uma série de indicadores de subdesenvolvimento, como o analfabetismo, a má distribuição de renda e a precariedade da infraestrutura dos serviços básicos, entre outros. Em contraposição, na área de saúde a tecnologia é usada com muita frequência – majoritariamente em hospitais, clínicas, laboratórios e consultórios particulares. Em alguns segmentos, como a medicina investigativa, de imagem ou laboratorial, faz-se necessário que o profissional esteja constantemente atualizado sobre as inovações tecnológicas e sobre as novas técnicas terapêuticas e de diagnose. Uma representativa parcela de laboratórios e hospitais (e mesmo clínicas e consultórios) utiliza a Internet e a tecnologia de rede (Intranet) para conduzir eletronicamente os processos e trabalhos, conectando todas as instâncias dos procedimentos internos e entre si, de modo a facilitar e agilizar a troca de informações. O uso crescente das NTICs no setor de saúde e, em específico no segmento de análises clínicas, não é, porém, um processo uniforme. 114 Algumas instituições ainda resistem à implementação, principalmente as micro e pequenas empresas (ALVIM, 1998). Uma das dificuldades enfrentadas neste processo é, muitas vezes, o alto custo da informatização, associado à dificuldade de manejo – por haver um grupo restrito de pessoas com conhecimento necessário para o uso da informática –, e à resistência (cultural) em incorporar a informática à prática médica (SIGULEM, 1997). Observa-se que o custo de um software, tanto para o desenvolvimento como para a manutenção, representa parcela crescente dos gastos em informática de uma organização e, algumas vezes, sobrepuja o valor de um equipamento (hardware). “O crescimento destes investimentos deve-se em grande parte à maior complexidade dos problemas a serem resolvidos e à maior exigência dos usuários” (VIEIRA et al., 2000). Os autores ressaltam que os sistemas de informação na área de saúde têm sido revestidos de uma complexidade maior. Assim, perpassam a função de controle financeiro e colaboram no gerenciamento de toda a informação administrativa e assistencial no âmbito da organização, o que torna difícil a tarefa de se estimar os custos de instalação, operação e de se quantificar os ganhos advindos pela adoção da TI. O segmento de análises clínicas e a gestão da informação No Brasil, existem aproximadamente dez mil laboratórios de análises clínicas (BARBOSA, 2002 apud BECKER, 2004). De acordo com Maia Filho (2000), na Bahia, há cerca de 400, dos quais 65% estão na capital; seis mil profissionais atuam no segmento. Os tipos de organização mais comuns são as pequenas e médias empresas. Em geral, assumem os cargos diretivos e técnicos das empresas deste segmento, médicos, biólogos e farmacêuticos (BECKER, 2004). Como observa Sannazzaro (1998 apud BECKER, 2004), o segmento de análises clínicas (ou patologia clínica) surgiu e se desenvolveu junto com a própria medicina – as histórias de ambos se confundem. Originalmente, Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 114-115 115 23/11/2010 20:16:00 não se limitava a um “serviço de apoio” à medicina, como aparenta ser hoje, mas se tratava de procedimentos estritamente experimentais com o objetivo de descobrir elementos novos ou desconhecidos, sem direcionar as atividades apenas para fins diagnósticos. Somente com os primeiros passos da patologia clínica, na segunda metade do século XIX, é que a ciência médica foi impulsionada nos laboratórios das universidades alemãs. As grandes descobertas da época – como o início da microbiologia; a descoberta dos componentes do sangue; o surgimento da citologia como auxiliar de diagnóstico, entre outras – transformaram não só a medicina moderna, como também reconfiguraram a função do laboratório de análises clínicas (SANNAZZARO apud BECKER, 2004). Comprova-se que o desenvolvimento do segmento está intimamente relacionado ao progresso e consolidação da medicina. Igualmente, a crescente incorporação em saúde de novas tecnologias não pode passar ao largo do segmento de análises clínicas, que também sofre a influência e acolhe inúmeros recursos e novas técnicas graças aos avanços tecnológicos, como é discutido adiante. O segmento de análises clínicas é uma das correntes da diagnosticoterapia moderna, ao lado da bioimagem e da telemedicina. A atividade é cruzada por várias áreas das ciências biomédicas. Sannazzaro reitera que acerca da contribuição do laboratório para com a saúde do paciente e a comunidade, e nas expectativas dos clínicos, verificamos que o laboratório pode contribuir para (a) um rápido e correto diagnóstico e daí dar início à terapêutica correta; (b) estabelecer prognóstico através do fornecimento de indicadores de níveis de severidade; (c) acompanhar a evolução ou regressão da doença, por meio dos dados que determinam a linha de base. (1998 apud BECKER, 2004). Ogushi e Alves (apud BECKER, 2004) complementam que a essência da gestão qualitativa de um laboratório de análises clínicas é possuir um serviço no qual a informação que chega ao médico, ou ao paciente, na forma de laudo, satisfaça as necessidades do usuário. 116 Como ocorre a qualquer organização, a macroestrutura que circunda um laboratório está sujeita a diversas forças e variáveis. Trata-se de um universo humano, social e econômico, cujo ambiente é constituído por variáveis tecnológicas, políticas, econômicas, legais, sociais e demográficas (SANNAZZARO apud BECKER, 2004). Para a autora, esta ordem de variáveis não é aleatória. O trabalho de um laboratório de análises clínicas está, em primeiro lugar, baseado em tecnologia, somente depois vindo a ser complementado por fatores humanos. Por isso, afirma que a tecnologia influencia a estrutura, o comportamento organizacional e o modo de administrar a organização. Compreende-se que o elenco de clientes de um laboratório é diversificado e complexo. Há certo grau de inter-relacionamento, com evidente diferenciação de percepções de qualidade e satisfação de necessidades. Compõem os tipos possíveis de clientes de um laboratório clinico: médicos, pacientes, convênios e outras organizações. O quadro 2 relaciona as principais áreas de investigações laboratoriais, classificadas por demanda pelos profissionais de saúde, em relação ao uso de tecnologia. QUADRO 2 – Tipos de Exame vs. Uso de Tecnologia Influência de Fatores Exames mais solicitados Hematologia Parasitologia Bioquímica da Urina Bioquímica do Sangue Hormônios Imunologia Bacteriologia Tecnológicos Humanos 50% 10% 10% 65% 65% 25% 50% 50% 90% 90% 35% 35% 75% 50% Fonte: adaptado de BECKER, 2004. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 116-117 117 23/11/2010 20:16:00 A despeito dos avanços tecnológicos na área de saúde, conforme discutido ao longo deste trabalho, verifica-se que ainda existe uma significativa participação do fator humano no processo de investigação laboratorial, o que permeia a incidência de erros e independe de programas de certificação de qualidade. A garantia das boas práticas investigativas e, consequentemente, da acuidade de um laudo, depende, pois, de uma estrutura organizacional que fortaleça o binômio capacidade técnica e tecnologia diagnóstica. O fluxo de informação nos laboratórios de análises clínicas A informação é o principal produto de um laboratório. É o insumo que se materializa no laudo do exame, entregue aos usuários. Frente a isto, a gestão adequada é de extrema importância. Como salienta Ogushi e Alves (1999 apud BECKER, 2004), o mais importante não é que o laboratório de análises clínicas ofereça números e índices de patologias nos resultados. Contudo, deve gerar informações de suma importância para médicos e pacientes. O fluxo de informações em um laboratório de análises clínicas é, em vista disso, considerado o núcleo central das atividades, em torno das quais as demais convergem. Inicia-se com a coleta de dados – tanto dados pessoais acerca do paciente, quanto à colheita da amostra biológica – e só termina com a entrega do laudo do exame (a informação final) aos usuários (BECKER, 2004). Os autores assumem que o exame clínico-laboratorial representa o núcleo vital. O fluxo laboratorial pode ser dividido em três grandes fases que, muitas vezes, apresentam-se de forma indiferenciada e sobreposta: • A e B: Fase pré-análise / coleta de dados • C: Fase analítica • D e E: Fase pós-análise / informações 118 A Fase A, a pré-análise, é a de cadastro, no qual os dados pessoais do usuário são fornecidos ao funcionário da recepção. Neste momento, dados – como faixa etária, sexo, o uso de medicamentos pelo paciente, exame(s) a ser(em) realizado(s) – são fornecidos ao sistema e a guia do convênio ou a ordem de pagamento é gerada. Caso faça uso de um SI eletrônico, o laboratório pode dispor de certas vantagens. O sistema informatizado gera tanto a guia eletrônica do convênio quanto uma ordem de pagamento, e automaticamente avisa o setor técnico onde a colheita é feita. Na Fase A são apontados os testes a serem realizados e, em alguns casos, emitidas as etiquetas de código de barras para que seja providenciada a coleta do material. A Fase B, ainda de pré-análise, é a fase da colheita das amostras biológicas para a análise patológica. Posteriormente, são quantificados em valores numéricos, isto é, em dados que servem de base à informação a ser contida no laudo do exame. A Fase C é a analítica, pois corresponde propriamente à análise das amostras colhidas. É realizada por especialistas em patologia clínica, através de equipamentos e tecnologias específicos para cada tipo de exame. Esta fase pode ou não ser realizada no mesmo local da colheita. No geral, laboratórios pequenos a realizam em recintos adjacentes às salas de coleta. As organizações de médio e grande porte dispõem de espaços exclusivos para as coletas e um somente para o processamento das amostras. Neste caso, alguns laboratórios costumam dispor de uma Intranet que possibilita o acesso remoto aos dados de cada usuário a partir de diferentes unidades interconectadas em rede. Após as análises, chega-se à Fase D, na qual a informação, o resultado do exame, é gerada a partir dos dados colhidos, previamente analisados. É comum uma nova conferência antes da expedição do laudo, que pode ser retirado pelo médico ou pelo paciente (Fase E). As NTICs desempenham papel importante nesta fase. Os resultados podem ser entregues não apenas na forma de papeis impressos, a serem Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 118-119 119 23/11/2010 20:16:00 retirados no mesmo local da coleta de dados, mas também podem ser entregues via fax ou eletronicamente, através de correio eletrônico ou da página do laboratório na Internet, acessada mediante uma senha fornecida ao paciente. Evidencia-se, assim, que as operações de um laboratório clínico giram em torno do fluxo de dados e informações, sendo os fluxos informacionais os insumos a serem geridos. A gestão qualitativa da informação deve se iniciar com a coleta de dados – incluindo o cadastro do paciente e a coleta de amostra biológica – e culminar na emissão da informação, o laudo técnico. Apesar do estudo citado pelos autores pautar-se em uma experiência isolada, os autores sugerem que o SI tende a proporcionar aumento na segurança, na qualidade e na agilidade dos procedimentos laboratoriais. A justificativa reside no fato do SI possibilitar a integração entre redes e por possuir facilidades de interação on-line e real time entre os funcionários, dirigentes, farmacêuticos, administradores, técnicos e auxiliares, ou seja, todo o corpo clínico e administrativo. Implicações do uso da tecnologia da informação para os laboratórios de análises clínicas Outrossim, Oliveira e Proença (2004) comentam que o uso pioneiro de entregas de exames e laudos, via Internet ou fax, propicia ao laboratório vantagem competitiva. Acerca da importância que as NTICs podem ter para a gestão qualitativa de um laboratório, assim como seu funcionamento exponencial e lucratividade, referenda-se ao estudo de Oliveira e Proença (2004). Embora primordialmente os autores afirmem que o crescimento deste segmento, a partir da década de 90, esteja diretamente ligado ao crescimento e emergência dos planos de saúde privados (à privatização em saúde), acabam por demonstrar a relevância do uso das NTICs na gestão de um laboratório e as implicações desta para a gestão qualitativa. O aumento da capacidade das instalações e a informatização/ automatização tiveram papel primordial para o laboratório de análises clínicas conseguir operar nesta nova dimensão. A mudança de sede foi primordial, possibilitando ao laboratório de análises clínicas operar com número de exames mais elevados e obter espaço para novos equipamentos, possibilitando a automatização dos processos (OLIVEIRA; PROENÇA, 2004, p. 6). Os autores enfatizam, pois, a relevância das NTICs, o próprio processo de informatização, para o crescimento de um laboratório. Demonstram, também, como as tecnologias da informação são fundamentais para o crescimento de um laboratório, pois viabilizam as possibilidades de expansão. 120 O primeiro passo para melhoria dos processos do laboratório é, na concepção de Oliveira e Proença (2004), o desenvolvimento de um SI informatizado. Sem um sistema que auxilie o processo principal tornase quase inviável lidar com grandes volumes de informação. Os laboratórios e hospitais (e mesmo clínicas e consultórios) podem usar a Internet e a tecnologia de rede (Intranet) para conduzir eletronicamente os processos e trabalhos, integrando, em todas as instâncias, procedimentos internos de modo a facilitar e agilizar a troca de informações entre profissionais, setores e organizações. Em laboratórios de grande porte, o fluxo de informação é controlado por aplicações tecnológicas desde a entrada do solicitante do exame. O SI destas organizações é concebido de modo a aplicar o que há de mais moderno em tecnologia da informação – como interfaces gráficas de alta produtividade e simplicidade, Internet, Intranet e arquitetura multicamadas com banco de dados relacional. Uma das contribuições das NTICs é o desenvolvimento de softwares específicos para o aumento da produtividade, precisão, segurança e, acima de tudo, para oferecer aos clientes serviços de excelência. Deste modo, o fluxo interno de informação é agilizado e se aufere ganhos de qualidade pela otimização dos procedimentos. Através de sistemas informativos o pedido pode ser controlado desde a solicitação na recepção do laboratório até a emissão do laudo. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 120-121 121 23/11/2010 20:16:00 As NTICs entremeiam a instalação de um fluxo eletrônico interno de informação que em muito pode contribuir aos procedimentos, substituindo o papelório, fichas e prontuários por elementos como código de barras em todas as amostras primárias ou secundárias, histórico de clientes disponíveis em Intranet, parametrização de processos e layouts, rastreabilidade absoluta dos exames e interface eletrônica segura. Desta forma, são potenciais ferramentas capazes não só de aumentar a produtividade, precisão, segurança, mas, acima de tudo, de oferecer aos usuários dos laboratórios serviços de excelência e a otimização do acesso às informações. Veiculados pela Internet ou por fax, os resultados dos exames dinamizam o fluxo de informação externo do laboratório e incrementam o relacionamento do laboratório com os usuários. As NTICs são um poderoso instrumento para se alcançar vantagens competitivas, fidelizar a clientela e reduzir os custos. A partir do referencial tecnológico, os laboratórios podem alcançar vantagens ao aperfeiçoar a estrutura organizacional, na medida em que o aprendizado organizacional possibilita a personalização dos serviços, o que gera fidelização. O uso das NTICs no segmento de análises clínicas está por ser avaliado, na medida em que deu início a um novo paradigma, apesar do processo de informatização da saúde estar em curso. Não se pode ainda prever plenamente os resultados, pois só nos últimos anos é que algumas das dificuldades iniciais começaram a ser superadas. Contudo o processo é bilateralmente dinâmico, pois tanto a tecnologia quanto o conhecimento médico estão em evolução e se complementam. Referências ALVIM, Paulo César Rezende de Carvalho. O papel da informação no processo de capacitação tecnológica das micro e pequenas empresas. 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Resumo O presente artigo mostra uma experiência com os alunos do Curso de Administração da Faculdade 2 de Julho utilizando o ambiente de Educação a Distância (EaD) de Apoio a Interação durante o primeiro semestre de 2005. A metodologia utilizada nesse estudo foi baseada nos princípios socioconstrutivistas utilizando um grupo de discussão, uma ferramenta interessante para troca de informações de modo assíncrono. Este relato de experiência trata do planejamento e desenvolvimento da disciplina com o uso do ambiente podendo ter uma turma semipresencial. A experiência proporcionou a construção coletiva do conhecimento na disciplina Arquitetura de Computadores do sexto semestre. Palavras-chave Lista de discussão. Interação. Semipresencial. Colaboração. Ambientes de EAD. Resumen El presente artículo presenta una experiencia con alumnos del curso de Administración de la Facultad 2 de Julho, utilizando el ambiente de la Educación a Distancia (EAD) de Apoyo a la Interacción durante el primer semestre de 2005. La metodología usada en este estudio fue basada en los princípios socioconstrutivistas utilizando un grupo de discusiones, una herramienta interesante para el cambio de informaciones de modo asincrónico. Este relato de experiencia trata de la planificación y desarrollo de la disciplina con el uso del ambiente pudiendo tener un grupo semipresencial. La experiencia proporcionó la construcción colectiva del conocimiento en la asignatura Arquitectura de Ordenadores del tercer año. Independencia_03-final.indd 124-125 23/11/2010 20:16:00 Palabras-clave Lista de discusión. Interacción. Semipresencial. Colaboración. Ambientes de EaD. Introdução O objetivo principal do educador é promover a aprendizagem. O que se espera é que o tema trabalhado em sala de aula possa ser levado para o cotidiano dos alunos, possa ser assunto dos corredores, dos bate-papos nas cantinas das faculdades, enfim que cada conteúdo trabalhado em sala possa romper as paredes e tornar-se significativo para o cidadão. Sobre o processo de ensino-aprendizagem Einstein (1994, p. 36) já afirmava que “vemos na escola simplesmente o instrumento para a transmissão de certa quantidade máxima de conhecimento para a geração em crescimento. Mas isso não é correto. O conhecimento é morto; a escola, no entanto, serve aos vivos”. Nessa perspectiva, a atitude passiva do aprendiz em relação ao conhecimento acumulado, estimulada por professores como forma de garantir o ensino, cede espaço à ênfase a atitudes pró-ativas, onde a criatividade e autonomia são elementos encorajados no sentido de estimular processos de aprendizagem. Atualmente um dos problemas enfrentados pelos professores nas faculdades é a falta de compromisso dos alunos em relação às disciplinas, visto que a maioria deles não participa das aulas, nem mostra interesse pelas mesmas. O objetivo dos educadores é a todo instante incentivar seus educandos a: aprender a aprender e ter autonomia para selecionar as informações pertinentes a sua ação. Uma das tentativas de alcançar esses objetivos tem sido a proposta de se utilizar os recursos de informática como mediador do processo ensinoaprendizagem. Baseado nisso, será mostrado nesse artigo a experiência da utilização de um ambiente de apoio à interação proporcionando a participação colaborativa dos alunos na construção do conhecimento da disciplina Arquitetura de Computadores do curso de Administração com Habilitação em Sistema de Informação da Faculdade 2 de Julho. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 126-127 127 23/11/2010 20:16:00 Colaboração e Ambiente de Apoio a Interação O conhecimento é visto como um construto social e, logo, a disciplina Arquitetura de Computadores é favorecida pela participação social em um ambiente que propicia a interação, a colaboração e a avaliação. Baseado nos princípios da Aprendizagem Colaborativa Assistida por Computador (Computer Supported Collaborative Learning – CSCL) que pode ser definida como um conjunto de métodos e técnicas de aprendizagem para utilização em grupos estruturados, assim como de estratégias de desenvolvimento de competências mistas (aprendizagem e desenvolvimento pessoal e social), em que cada membro do grupo é responsável, quer pela sua aprendizagem quer pela aprendizagem dos demais participantes. Em relação aos ambientes computacionais, os quais devem ter a participação ativa em grupos, Vygotsky (1998) acentua a influência da interação social na aprendizagem e no desenvolvimento. Conforme Silverman (1995), o objetivo do CSCL é proporcionar condições de “aprender através da experimentação ativa, de ações construtivistas e da discussão reflexiva do grupo”. Para facilitar essas atividades, o ambiente deve prover (OTSUKA, 1997): • Vários meios de comunicação entre os membros do grupo, tanto na forma síncrona quanto na forma assíncrona; • Meios para a representação dos conhecimentos do grupo em um dado momento e também a inclusão de novas informações e sugestões; • Base de dados que atue como uma “memória do grupo” para armazenar as informações referentes ao projeto desenvolvido pelo grupo. Assim, buscou-se a utilização de um ambiente que propiciasse a participação ativa e a interação dos alunos nas aulas. A aprendizagem colaborativa pode ter influência bastante positiva na aquisição de conhecimentos e de capacidades cognitivas e também na construção do conhecimento, para isso identificou-se no grupo de 128 discussão um ambiente que pode fornecer os recursos necessários para se trabalhar conjuntamente na construção do conhecimento, através de um ambiente agradável e estimulante. A Educação a Distância (EaD) já é uma realidade e encontramos diversos ambientes existentes. De acordo com Matta (2003), os ambientes baseados em aprendizagem colaborativa são divididos em quatro categorias: ambientes essenciais; ambientes recomendáveis; ambientes complementares e outros ambientes. Os ambientes essenciais, como o próprio nome já diz, são fundamentais para existir a EaD. Destacamos nesse estudo o Ambiente de Apoio à Interação dos sujeitos participantes, local onde teríamos a troca de informação, organização de textos, discussões, enfim interações para a construção do conhecimento. A ênfase ao grupo de discussão visto que ele possui todas essas características. O correio pessoal, usualmente utilizado pelas pessoas, dá ao usuário a possibilidade de acessar o seu email de qualquer lugar, sem precisar ter o seu computador sempre à disposição. Por outro lado o correio pessoal poderá servir não apenas para mandar ou receber mensagens esporadicamente, mas poderá ainda ser muito útil em uma lista de discussão, só que, uma mensagem enviada para um servidor de lista é enviada automaticamente a todos os emails dos assinantes cadastrados na mesma. Em um grupo de discussão, além da lista temos uma diversidade de recursos que irão auxiliar os professores a uma maior participação dos seus alunos nas atividades dentro e fora da sala de aula. Cada vez mais os grupos de discussão consolidam seu importante papel como formadores de relacionamentos e comunidades de aprendizagem. Através deles pode-se, continuamente, trocar mensagens pelo endereço de email do grupo, discutir sobre um assunto específico, trocando ideias, dúvidas e sugestões, além de promover enquetes, ter uma área reservada para colocarmos arquivos em que estarão disponíveis a todos os sujeitos participantes, proporcionando a interação de todos os envolvidos. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 128-129 129 23/11/2010 20:16:00 O grupo de discussão deverá não apenas oferecer a troca de mensagens textuais, mas a interação social e coletiva em todos através da participação conjunta. Através do FTP (File Transfer Protocol) é possível transferir arquivos inteiros, desde textos muito simples e sem efeito algum, até programas, imagens, gráficos, planilhas ou som. Para ilustrar o estudo, tomamos por base o Grupo de Discussão do Yahoo1, “é um endereço de email e web site gratuito que permite compartilhar fotos e arquivos, coordenar eventos, enviar newsletters e muito mais.” O Ambiente de Apoio a Interação e as Aulas de Arquitetura de Computadores As aulas da disciplina Arquitetura consideradas difíceis devido a complexidade dos temas que compõem o conteúdo da mesma, tornaram-se mais interativas com a participação dos alunos nos projetos desenvolvidos na disciplina: desde dinâmicas feitas em sala de aula às aulas práticas desenvolvidas em laboratório. Figura 1- Tela inicial do Grupo No início do semestre, os alunos são cadastrados no grupo. A partir de um cadastro inicial é possível inscrever os participantes que deverão ter apenas um email pessoal. Depois de feita a inscrição todos receberão uma mensagem comunicando o endereço do web site para poderem efetuar seu cadastro individual. Esse cadastro serve para que o educador possa identificar as interações feitas pelo aluno nas ferramentas do ambiente. A página do grupo pode ser configurada de forma que ela tenha o perfil do grupo: colocando imagem, escolhendo as cores que compõem o layout (Figura 1). Todos os alunos cadastrados terão acesso a todas as mensagens, uma espécie de histórico das mensagens, desde a criação do grupo. Assim, mesmo que o cadastro seja feito posteriormente ele poderá ver todas as mensagens já veiculadas na lista anteriormente. 1Yahhogrupos disponível em <http://www.yahoogrupos.com.br> 130 Figura 2 – Seção de Links Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 130-131 131 23/11/2010 20:16:00 As mensagens são enviadas automaticamente a todos os participantes do grupo. Através das mensagens são propostas as discussões e debates. Muitas vezes iniciamos uma discussão em sala de aula que se prolongou durante semanas na lista. Outra grande vantagem que os alunos em sua avaliação apontaram foi a possibilidade de acompanharem as aulas mesmo quando não podiam estar presentes nas salas de aula. Além da lista, tem-se a seção de links (figura 2), para inscrever os sites importantes, uma espécie de biblioteca virtual, a fim de que todos possam estar constantemente atualizados. Esses links podem ser cadastrados por qualquer um. Os alunos envolvidos na disciplina estavam sempre inscrevendo sites interessantes de artigos ou textos que se relacionavam direta ou indiretamente com as aulas. Vários temas do curso tiveram destaque ampliando a lista de link referente ao tema. Na seção de fotos, figura 3, foram adicionadas fotos do grupo em vários momentos de interação. Foi construído um álbum de fotografias sobre a evolução dos computadores através do qual os alunos tiveram uma visão de cada máquina durante a história da computação que tornou o aprendizado mais significativo. Outra seção importante é o Banco de Dados (Figura 4), nela podem ser construídas planilhas, com a participação de todos. Na disciplina pudemos criar uma planilha com todas as atividades que seriam desenvolvidas no semestre, outra contendo trabalhos em grupo com o nome dos integrantes e o tema a ser desenvolvido, outra como uma espécie de caderneta eletrônica onde os alunos controlam suas notas e faltas na disciplina. Foi criado ainda um quadro comparativo das características dos principais processadores, que contou com a participação de toda turma, ficando cada grupo de alunos responsável por pesquisar informações sobre um tipo de processador. Figura 3 – Seção de Fotos 132 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 132-133 133 23/11/2010 20:16:01 anexados às mensagem, ficando então disponível no grupo e cada vez que alguém incluí um novo arquivo o que chega à caixa de correio de todos é apenas um aviso de que algo novo está disponível. Figura 4 – Seção Banco de Dados Através da Agenda é possível criar um Mural com as datas mais importantes da disciplina. O próprio ambiente envia uma mensagem aos integrantes do grupo em um período pré-determinado, antes do evento para que todos estejam cientes. Não existe mais: “Professor esqueci?!” Haja vista que todas as datas das avaliações são informadas com antecedência e confirmadas na semana do evento. Na seção Arquivos, como mostra na Figura 5, é possível armazenar diversos tipos de arquivos. Todos os arquivos de aula ficam armazenados no grupo e a qualquer momento o aluno pode ter acesso. Além das notas de aulas, foram colocadas atividades desenvolvidas pelos alunos, textos para leitura e reflexão. Vale salientar que muitos desses textos foram colocados pelos próprios alunos no processo de construção coletiva, podendo modificá-lo, acrescentando novas contribuições. Essa seção também é considerada extremamente importante já que elimina um sério problema causado normalmente à caixa de correio eletrônico dos participantes, desde quando os arquivos não mais necessitam ser 134 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 134-135 Figura 5 – Seção de Arquivos O educador e os educandos podem, também, fazer enquetes, sobre o tema que será trabalhado em sala, ou um filme que vai ser apresentado na próxima semana... enfim o objetivo é que seja possível ter um feedback das aulas. Conclusão Apoiado pelas novas tecnologias, o novo século abre um leque de possibilidades para o professor que redimensiona o seu papel. Ele não é o mestre distante e autoritário. Não é um mero técnico que domina os conteúdos específicos e imutáveis. Não é o tio ou tia que os compreende. Mas um mediador no processo de construção do conhecimento que irá propiciar um ambiente inovador, atrativo e motivante para o aluno. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 135 23/11/2010 20:16:01 A utilização dos ambientes EaD é extremamente importante no processo ensino-aprendizagem, tanto pelas diversas possibilidades de interação, diálogo e comunicação como pela oportunidade de transformar as aulas em momentos de prazer e dedicação. Através do ambiente de EaD de Apoio a Interação, mais especificamente o grupo de discussão, temos mais que uma ferramenta sendo utilizada, mas um mediador no processo de construção do conhecimento. O trabalho com ambiente de apoio a interação vem sendo feito em todas as turmas que leciono nos cursos de graduação. A motivação que os alunos apresentam é surpreendente. Pois eles estão cada vez mais envolvidos com as disciplinas. O trabalho transcende a sala de aula e passa para um ambiente virtual em que eles opinam, participam, trazem contribuições. O aluno participante, ativo e construtor do seu conhecimento é a maior vitória que o educador pode ter. Referências MATTA, A.. Comunidades em rede de computadores: abordagem para a Educação a Distância - EAD acessível a todos. Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a Distância. 2003. OTSUKA, J. L.. Proposta de um Sistema de Aprendizagem Colaborativa baseado no WWW. In: Simpósio Brasileiro de Informática na Educação, 8. ed. São José dos Campos (SP): SBC, 1997. SILVERMAN, B. G.. Computer Supported Collaborative Learning (CSCL). Computer & Education. 1995. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Ao final da disciplina, os alunos fizeram uma avaliação a respeito da metodologia trabalhada em sala e a resposta foi muito gratificante, eles escreveram como foi a experiência, contaram como foi importante para integração e interação do grupo, para realização das atividades e principalmente que conseguiram entender cada tópico trabalhado. 136 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 136-137 137 23/11/2010 20:16:02 8 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 O USO DO MOODLE COMO REFORÇO NO ENSINO DE ENGENHARIA ELÉTRICA EM CURSOS PRESENCIAS ROBERTO DA COSTA E SILVA Coordenador do curso de Engenharia Elétrica (F2J), Mestre em Engenharia Elétrica (UFBA), Especialista em Administração (UCSAL), Graduado em Engenharia Elétrica (UFRS). Conselheiro da Câmara de Engenharia Elétrica do CREABA (2003 a 2009), Conselheiro Federal do CONFEA. Email: [email protected] Resumo Mostrar como um curso presencial pode ser melhorado com o uso das ferramentas tecnológicas hoje existentes, a exemplo do Moodle, é o objetivo deste trabalho. Nossa preocupação neste sentido surgiu quando, em 2004, depois de aposentado pela UFBA, iniciei a dar aulas em faculdades privadas. Ali me chamou a atenção a grande diversidade de preparo dos alunos e a falta de tempo da maioria para assistir as aulas e estudar, pois os estudantes trabalham oito horas por dia e alguns tinham, além disto, problemas de turno no trabalho, o que os impedia de assistirem as aulas de forma continuada. A partir daí passei a ter contato com o ensino a distância, suas técnicas e ferramentas e pude ver sua evolução. Acredito seriamente ser este o caminho, pois é o único que concilia tempo e espaço com qualidade de ensino. Palavras-chave Ensino a Distância. Moodle. Qualidade da educação. Resumen Mostrar como un curso en el aula puede ser mejorado con el uso de herramientas tecnológicas ya disponibles, como Moodle, es el objetivo de este trabajo. Nuestra preocupación en este sentido se produjo cuando, en 2004, después de retirarse de la UFBA, empecé a enseñar en las universidades privadas. Alí me llamó la atención la gran diversidad de preparación de los estudiantes y la falta de tiempo para ver la mayoría de las clases y estudiar, porque el trabajo de los estudiantes ocho horas al día y algunos, además, Independencia_03-final.indd 138-139 23/11/2010 20:16:02 había problemas de turnos de trabajo, que les impidió para asistir a clases de forma continua. A partir de ahí comencé a tener contacto con la educación a distancia, sus herramientas y las técnicas y pudo ver su evolución. Realmente creo que este camino es el único que combina el tiempo y el espacio con una educación de calidad. Introdução Palabras-clave Lecionei na Universidade Federal da Bahia, na Escola Politécnica, cadeiras no curso de Engenharia Elétrica, de 1975 até 2004, quando me aposentei. Tenho quatro livros publicados sobre Engenharia, tendo dois deles uma segunda edição. Em meio magnético tenho dois outros livros. Após minha aposentadoria ingressei em uma faculdade privada onde fiquei até meados de 2008, quando vim para a Faculdade 2 de Julho como coordenador do curso de Engenharia Elétrica. Ensino a Distancia. Moodle. Cualidad de la educación. Este trabalho procura mostrar como um curso presencial pode ser melhorado com o uso de ferramentas tecnológicas atualmente existentes, sendo o Moodle uma destas ferramentas. Inicialmente ministrava aulas com quadro negro e apresentações em sala. Com o avançar dos anos as aulas passaram a ser dadas com o auxílio de projetores de transparência. Após o aparecimento de computadores com preços acessíveis as aulas passaram a ser dadas com auxílio de apresentações em Power-Point preparadas com o uso de apresentações ou vídeos que se encontravam na Internet. Penso que deste modo agiram quase todos os professores. Quando, após a aposentadoria, iniciei as aulas na faculdade privada em 2004, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a grande diversidade de preparo dos alunos e a falta de tempo da maioria para assistir as aulas e estudar. A maioria dos alunos trabalhava oito horas por dia e alguns tinham, além disto, problemas de turno no trabalho, o que os impedia de assistirem as aulas de uma forma continuada. Desde então me preocupo com o problema. Passei a ter contato com o ensino a distância, suas técnicas e ferramentas e pude ver sua evolução desde o tempo do Instituto Monitor, onde fiz um curso de técnico em rádio por correspondência nos idos de 1960. A grande evolução no ramo das Telecomunicações permite hoje que se remeta e receba documentos e vídeos em tempo muito rápido e, inclusive, que se realizem aulas e palestras em tempo real, com professores Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 140-141 141 23/11/2010 20:16:02 e palestrantes situados em lugares diferentes. Os recursos de multimídia à disposição dos professores permitem que se enriqueça muito uma aula, com apresentações mais sofisticadas e exibição de fotos e vídeos. Não será este o caminho para conciliar a falta de tempo dos alunos com a manutenção de um curso de alto nível? Acredito que sim, e isto se torna realidade usando-se ferramentas tecnológicas desenvolvidas para cursos não presenciais e que se aplicadas no ensino presencial podem aumentar em muito o aproveitamento dos discentes, e minimizar as consequências na aprendizagem face ás ausências das aulas. a aula a distância tão boa quando uma aula presencial e melhor ainda se comparada às aulas ministradas em algumas faculdades. A evolução do ensino não presencial no Brasil O perfil médio do aluno de uma faculdade privada de Engenharia Elétrica em Salvador se caracteriza por: Pode-se dizer que o ensino formal a distância apareceu em 1894 na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Aqui no Brasil o mesmo apareceu em 1939 com os cursos de rádio do Instituto Monitor, o qual frequentei em 1960. Inicialmente estes cursos eram por correspondência. Em 1957 aparecem os primeiros cursos do sistema governamental transmitidos por rádio, dando continuidade a algo que já existia desde 1941. Em 1964, o Ministério da Educação reserva canais em VHF e UHF para serem usados pelas Televisões Educativas. Em 1970, o Projeto Minerva já podia ser captado em diversas rádios do País. Em 1970, cheguei a trabalhar no ITA (CNAE) com o projeto Saci que se destinava a levar o ensino básico a todas as pequenas localidades do País utilizando satélites de Telecomunicações, com os quais pelo menos assistimos a Copa do Mundo daquele ano. Pode-se notar que a preocupação com o assunto de levar conhecimento para as pessoas que estavam longe fisicamente das escolas é um fato com o qual nosso governo se preocupa desde, no mínimo, o ano de 1964. Como sempre, o Brasil se ocupa do problema, mas demora muito para se posicionar sobre o assunto. 142 A desconfiança sobre este tipo de solução não é novidade. Várias universidades ainda consideram este tipo de ensino como de segunda classe, e muitas pessoas veem o ensino a distância hoje do mesmo modo como quando apareceu há 70 anos. A evolução tecnológica mudou radicalmente o modo de se assistir as aulas e uma boa produção torna Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 142-143 Hoje em dia além do problema inicial já descrito (alunos e professores separados em distância), temos outro que é a falta de tempo dos estudantes devido aos seus afazeres. Temos alunos interessados, porém não dispõem de tempo para agir em sincronia com as aulas de um curso presencial. Perfis do aluno a) Uma base ruim do ensino médio, principalmente nas cadeiras de Física e Matemática, ou está fora do ambiente de sala de aula há bastante tempo. b) É um aluno que trabalha para se sustentar, ou seja, não dispõe de tempo para estudar. Tem tempo apenas para assistir as aulas. c) Não está habituado a ler. d) Não tem livros textos em casa das disciplinas fundamentais: Português, Matemática, Física e Química. Não costuma adquirir livro didático. e) É de classe média, ou seja, luta com dificuldade para viver. Isto significa que a quase totalidade dos alunos que ingressam em uma faculdade privada não foi devidamente preparada para ingressar no ensino superior ou está afastado dos estudos há bastante tempo, necessitando, assim, uma revisão de assuntos fundamentais antes de iniciar o curso propriamente dito. Além disto, a maioria carrega um grave defeito: não gosta de ler e tem dificuldade em entender o que lê. Deste modo, quem atua na docência em faculdades privadas encontra esta dificuldade extra com os alunos: sua falta de preparo. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 143 23/11/2010 20:16:02 Será que existe um modo de se sanar este problema? Estou convencido que sim, e a solução passa por duas etapas: a) Conscientização do aluno de seus problemas de base. b) Recuperação de conteúdo não visto em aulas adicionais não presenciais, usando-se a tecnologia Moodle. A primeira etapa vai depender do próprio aluno, mas a segunda pode ser resolvida com o ferramental tecnológico hoje existente em complemento às aulas presencias. Foi isto que me despertou para o problema de aplicar esta solução, no caso a ferramenta Moodle como complemento e reforço de aulas presenciais. Ferramental tecnológico existente O Moodle é uma ferramenta gratuita que pode ser usada para se complementar aulas presenciais com acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos alunos. Com o uso desta ferramenta pode-se disponibilizar as aulas para que os alunos assistam novamente em casa, passar e corrigir exercícios e colocar-se material de reforço para quem necessita. Pode-se planejar, inclusive, uma disciplina de nivelamento para quem necessitar. O uso desta ferramenta propicia ao aluno estudar em um ritmo diferente, contanto que o mesmo esteja disposto e siga as orientações do seu professor. Para que se possa usar esta ferramenta, faz-se necessário que o aluno disponha em casa de um computador com acesso a Internet, sendo isto indispensável para quem quer estudar Engenharia. O ensino não presencial é caracterizado por: a) Separação do professor e aluno no espaço e/ou tempo. b) Controle de aprendizado sendo realizado mais pelo aluno do que pelo professor. 144 c) Comunicação entre professor e aluno realizada por algum meio de comunicação, sendo hoje em dia a Internet o mais popular. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 144-145 Deste modo pode-se ver o ensino não presencial como um método que geralmente separa o instrutor e o aluno no tempo e espaço e que para isto vai exigir técnicas especiais na apresentação e controle dos conteúdos e formas técnicas de comunicação para fazer com que as mesmas cheguem aos estudantes. A ferramenta Moodle veio facilitar em muito esta tarefa. Gostaria de enfatizar que existe uma grande diferença entre o ensino presencial convencional (sem uso de mídias) e o ensino não presencial. Cabe à Instituição que deseja implantar este tipo de reforço de ensino fornecer aos professores o treinamento indispensável para que o mesmo possa ser implementado. Uma aula para apresentação em vídeo leva muito mais tempo para ser preparada do que uma aula convencional. Isto no passado era muito dispendioso exigindo uma equipe especializada. Hoje em dia existem softwares disponíveis no mercado a preços justos que viabilizam bastante este preparo a custos aceitáveis. O software Camtasia é um exemplo. Outro fato digno de nota é o enfoque na Pedagogia do curso. A mesma deve ser voltada no sentido de ensinar a buscar informações e com as mesmas aprender a resolver os problemas. O professor não é um mero “passador de conhecimentos”. Um reforço não presencial busca oferecer aos alunos uma total satisfação de suas necessidades no tocante ao tempo e local de estudo, bem como ao bom conteúdo do curso e uma avaliação correta do aproveitamento do mesmo. Porém, para que isto funcione, é necessário que o aluno se torne um estudante, ou seja, passe do estágio de alguém sem luz para o estágio de alguém que quer aprender, e isto só depende dele. Nenhuma ferramenta, por mais moderna que seja, irá funcionar se o estudante não se esforçar e quiser ser ajudado no aprendimento. O professor pode apenas ajudar, quem aprende é o estudante. Críticas A maior dúvida dos críticos do ensino não presencial é a execução de testes. Não poderemos jamais saber se quem faz o teste à distância Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 145 23/11/2010 20:16:02 é o aluno ou outrem. Todavia, um bom professor, quando da ocasião de um teste presencial, a depender do resultado, saberá julgar quem realizou os testes à distância. Outra dúvida se refere a determinadas 9 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 aulas práticas, evidentemente estas só poderão ser realizadas na Instituição, pois exigem equipamentos que o estudante não possui. O TABULEIRO DA BAIANA DA SENZALA À MESA DO BRANCO Outra dúvida é quanto ao aproveitamento dos alunos e a seriedade do curso. Uma boa estrutura Pedagógica resolve o problema, existindo estudos neste sentido que provam esta afirmação. O projeto pedagógico de aula presencial não pode ser o mesmo de uma aula não presencial. A seriedade do curso fica a cargo da Instituição que o patrocina e da fiscalização do MEC. Sobre este fato o problema é o mesmo que hoje se enfrenta nos cursos presenciais: necessita-se uma maior fiscalização no tocante ao cumprimento de ementas e carga horária. SEBASTIÃO HEBER VIEIRA COSTA Conclusão Sinceramente não vejo como conciliar um aluno com o perfil aqui descrito com um curso de alto nível sem o uso da ferramenta Moodle. Para o aluno que não pudesse comparecer a aula presencial, a mesma estaria à sua disposição na web para ser assistida no ritmo do estudante. As dúvidas seriam esclarecidas no ambiente Moodle e em sala de aula. Apesar das críticas aqui apontadas penso seriamente que este é o caminho, pois é o único que concilia tempo e espaço com qualidade de ensino. O ensino não presencial com acompanhamento do professor, no meu modo de ver, é a solução que deveríamos adotar para melhorar o curso, adaptando-o, sem perder a qualidade, ao estudante que temos. Independencia_03-final.indd 146-147 Doutor e mestre em Antropologia da Religião (Pontifício Instituto Teresiano, Roma, Itália), graduado em Filosofia pela (UNICAP), graduado em Pedagogia (FAFIRE). Professor dos cursos de Comunicação Social da F2J, professor adjunto da UNEB e pós-doutorando em Antropologia. Email: [email protected] Resumo A alimentação do negro, ao longo desses 450 anos, nos engenhos brasileiros, podia não ser um primor de culinária, mas, como diz Peckolt, “faltar não faltava, pois havia abundância de toucinho, feijão, mandioca, rapadura e até a cachaça”. A contribuição dos escravos consagrou-se através da cozinha afrobrasileira e os três centros que se tornaram mais notáveis por esse aspecto são a Bahia, Pernambuco e o Maranhão. Mas, especialmente a Bahia deu espaço a que fosse criada uma nova instituição na culinária afro-brasileira: o tabuleiro da baiana. A condição do negro que integrava as primeiras levas de escravos era por demais constrangedora para poder influir nos hábitos alimentares do colonizador. A fidelidade do negro aos seus costumes, especialmente a culinária – que é um elemento permanente da cultura popular – ajudou a preservar a própria cultura africana. Palavras-chave Culinária afro-brasileira. Alimentação. Negros. Tabuleiro da baiana. Resumen La alimentación del negro, a lo largo de esos 450 años, en los ingenios brasileños, podría no ser espacial, pero, como señala Peckolt, “no faltaba, pues había abundancia de tocino, porotos, madioca, turrón de azúcar puro y hasta aguardiente”. La contribución de los esclavos se consagró a través de la cocina afro brasileña y los tres centros que más se notabilizaron por ese aspecto fueron Bahía, Pernambuco y Maranhão. Sin embargo, especialmente Bahía proporcionó el espacio para que fuese creada una nueva institución en 23/11/2010 20:16:02 la culinaria afro brasileña: el quiosco de la baiana. La condición del negro que integraba los primeros grupos de esclavos era demasiado constrangedora para influir en los hábitos alimentarios del colonizador. La fidelidad del negro a sus costumbres, especialmente la culinaria - que es un elemento permanente de la cultura popular – ayudó a mantener la propia cultura africana. Palabras-clave Culinaria afro-brasileira. Alimentación. Negros. Tablero de la baiana. Introdução O jesuíta Fernão Cardim (1583-1585) em visita oficial à Bahia – Ilhéus e Porto Seguro –, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de janeiro, São Vicente e São Paulo deixou informações e comentários sobre o panorama alimentar da Colônia. Ele se refere à grande abundância de víveres que encontrou nessa Bahia que “passava de três mil vizinhos portugueses, oito mil cristãos e três ou quatro mil escravos de Guiné”. E diz ainda: “A Bahia é terra farta de mantimentos, carne de vaca, porco, galinhas, ovelhas e outras criações” (BROCA, 1950, p. 84). A escravatura negra intensificou-se e cresceu por conta da escassez da mão de obra e, sobretudo, pela experiência da subjugação dos índios que não foi, na perspectiva portuguesa, obtida com sucesso. O português se valeu do seu conhecimento e trato com o negro para o trabalho agrícola; os recursos vegetais que os africanos trouxeram foram aplicados na cultura dessa região tropical. Dessa forma, começou-se a cultivar a palmeira (o dendê e o coco da Bahia), o quiabo (elemento indispensável nos múltiplos pratos da culinária africana), também a cebola e o alho, assim como a pimenta que dá o sabor aos principais pratos da culinária baiana. Todos esses produtos foram recolhidos nos múltiplos contatos e conquistas do português na Ásia, África, Ilha da Madeira e Cabo Verde. Também é de sublinhar a importância da introdução da pecuária, que os negros do Sul da África aprenderam com a África maometana. Os bantos e sudaneses aqui vindos já estavam habituados com essa atividade agropecuária e sabiam usar o leite, a carne e os vegetais, especialmente aqueles que tinham o hábito de manusear folhas. Mas o Padre Vieira, no Maranhão, em 1565, já descreve a ausência de pontos especiais para os produtos “do comer ordinário” serem vendidos: “não havia nem açougue, nem ribeira, nem tendas”. Também Frei Vicente do Salvador relata a insatisfação de um frade da época: Notava as coisas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer e nada lhe traziam por que não se achava na praça nem no açougue e se mandava pedir as ditas Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 148-149 149 23/11/2010 20:16:02 coisas e outras mais às casas particulares e lhas mandavam. Então disse o Bispo: Verdadeiramente que nessa terra andam as coisas trocadas (ORNELLAS, 2000, p. 233). A condição do negro proveniente das primeiras levas de escravo era, de tal forma, constrangedora que não podiam influir nos costumes do colonizador. Como hábitos alimentares, que eram bastante simples, eles pouco diferiam dos indígenas do Brasil. Era-lhes familiar o uso da caça e pesca, embora as presas fossem variadas. Eles as assavam com processos bem semelhantes e também as defumavam. Os tubérculos e raízes, assim como as folhas, já eram usados. O uso dos cereais (sorgo, arroz e milhetes) era feito de formas diferentes, mas semelhantes eram as formas de preparo em mingaus, farinhas e broas. O uso da pimenta malagueta e similares foi feito de forma idêntica. O dendê e o quiabo foram contribuições importantes trazidas para o Brasil, pois a partir daí marcaram a culinária afro-baiana. A mandioca era alimento básico dos índios, foi facilmente aceito pelo português e teve uso intenso e entrou no agrado do negro. Eram alimentos de fácil cultivo, continha alta rentabilidade calórica e apesar dos métodos serem rudimentares, havia versatilidade nas formas de sua preparação, alem de representar um processo operacional de custo baixo. Por isso ela prevalece até hoje assegurada, como primazia, no prato do pobre. Tendo sido levada para África ela se expandiu e triunfou e é tida como prato nativo. Fases da alimentação brasileira A capital do Brasil mudou da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763. Fazendo essa transferência o governo português assegurou benefícios e incentivou novas influências sobre a forma de alimentação. E nesse século a Bahia chegou a sofrer de extraordinária falta de farinha, o que levou, a partir 1788, os governadores da capitania a registrar uma cláusula que obrigava, na cultura da terra, a plantar mil covas de mandioca correspondentes a cada escravo que os senhores possuíssem empregados na atividade agrícola (ORNELLAS, 2000, p. 238). Passados os três séculos de contato das três raças que se amalgamaram no 150 povo brasileiro, a tradição alimentar havia se estratificado com base no consumo rotineiro de alimentos acessíveis, feitos com preparação simples: farinha de mandioca, farofa, tutu, pirão, milho, fubá e angu, também feijão e arroz. Com a vinda de Dom João VI para o Brasil, a classe abastada teve que acolher a vasta comitiva de quase 15 mil pessoas, acompanhando Sua Alteza – desse modo, essa classe teve de melhorar o seu cardápio. Assim, iniciou-se uma nova fase da alimentação brasileira, com a divulgação da cozinha fina e vulgarização de alimentos até então restritos à mesa dos afortunados, a exemplo da manteiga da Irlanda, do azeite português, das frutas secas, das aves raras, dos vinhos importados e do pão de trigo. Mas em compensação as aves brasileiras e a caça nativa passaram a ser mais valorizadas. A partir daí dá-se realce às frutas nacionais que, através das mãos da preta-mina, aparece sob a forma de doçaria típica. Apesar de muitos fidalgos reinós teimarem em conservar por muito tempo cozinheiros europeus, a cozinheira preferida foi a negra, especialmente nas casas-grandes e fazendas desde o século XVI; lá elas recebiam, nos festins, as homenagens dos convivas e houve até casos de terem recebido a própria liberdade em troca de quitutes. Theodoro Peckolt em sua História das Plantas Alimentares e de Gozo do Brasil (1871), falando sobre a alimentação do escravo, sublinha que ele e o trabalhador da roça receberam, em geral uma alimentação boa e nutritiva, introduzida desde os tempos antigos, e que a base dessa alimentação era o feijão (Apud ORNELLAS, 2000, p. 248). Guilherme Figueiredo demonstra ser a feijoada uma degeneração do cassoulet francês e da caldeirada portuguesa; mas essa feijoada teria passado por estágios de aprimoramento: em Cabo Verde passou pela fase de cachupa, à base de grandes favas e milho, mas aqui enegreceu pela mão dos pretos escravos – constata-se que ela acompanhou os bandeirantes já em 1789 (ORNELLAS 2000, p. 248). Mas o gosto por esse prato variou – Debret a tinha em alto conceito, mas Gustavo Aimard, que por aqui andou em 1850-1885, escreve em Le Brèsil Nouveau: “comida preta e Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 150-151 151 23/11/2010 20:16:02 suja, sem gosto nem conforto e, até mesmo, sem asseio”. O Dr. Alfonso Lomanaco assim descreve a feijoada: No caldo negro da leguminosa nadam as carnes de cevado: língua, pés, orelhas, toucinho, pedaços de charque (...) cebolas, alhos, salsa, tudo isso regado com caldo de limão e pimenta (...) singular iguaria (...) só o estômago, ou antes, um buxo de lapão ou croata, pode tolerar impunemente (...) acompanhamento obrigatório uma pasta de farinha de mandioca (...) devorado pelos brasileiros, com o melhor apetite do mundo e por eles considerado verdadeiro manjar de delícias (ORNELLAS, 2000, p. 249). José Luciano Pereira Junior, em 1850, ocupando-se do regime das classes abastadas, comenta que a cozinha brasileira vinha, pouco a pouco, desafricanizando-se, pois havia redução no uso da pimenta, gordura e outros condimentos. Em vez de aloá, garapa de tamarindo e caldo de cana, usava-se o chá à inglesa; em vez de farinha de mandioca, pirão e quibebe, estava em uso a batata chamada inglesa. Os consumidores, também nessa época estavam conquistados pela novidade do pão branco de trigo. Até nas sobremesas típicas de melado com farinha, canjica, pé de moleque, milho verde, doces de abóbora com coco ou de batata roxa, tudo ia aos poucos sendo substituídos pelas sofisticadas receitas da cozinha francesa (MAGALHÃES, 1906, p. 448). A alimentação do negro Mas a alimentação do negro, nos engenhos brasileiros, conforme escreve Peckolt, podia não ser um primor, mas faltar nunca faltava e havia mesmo abundância de milho, toucinho, feijão. E, além disso, havia abundância de farinha de mandioca, rapadura e cachaça. Esse passadio era idêntico em todo interior nordestino, da Bahia ao Piauí. A contribuição do escravo consagrou-se na cozinha afro-brasileira, e os três centros que mais se notabilizaram foram a Bahia, o Maranhão e Pernambuco. Na verdade, o tabuleiro da baiana tornou-se uma verdadeira instituição, e isso por conta da variedade de doces e quitutes vendidos na rua: vatapá, mocotó, mingau, feijão de coco, pão de ló de arroz ou milho, rolete de cana, aloá, arroz de coco, angu e rebuçados. 152 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 152-153 E as baianas se deslocaram para o Sul, levando seus tabuleiros com toda aquela variedade de mungunzá, milho assado, grude, manuê, mãebenta, cuscuz de peixe ou peixe frito, pãozinho cozido, amendoim, pé de moleque com farinha de mandioca e amendoim, içá torrado, quentão, ponches e queijadas, guloseimas, em sua imensa maioria, derivadas das cozinhas africana, indígena e árabe. Os ritos e cultos dos afro-descendentes tomaram outro impulso com o advento da Lei Áurea. Câmara Cascudo mostra como o jeje—nagô explica sozinho a cozinha afro-brasileira e ainda explicita que esses pratos têm equivalentes em muitas regiões da África, como Gana, Daomé, Sudão, Angola, Guiné, Moçambique e Rodésia. Aqui foram apenas reelaborados ou recriados a partir dos elementos já existentes como o milho, feijão, batata doce, amendoim, macaxeira, ou com os exemplares vindos da África: banana, inhame, quiabo, coco, dendê. Roger Bastide, em seu livro A cozinha dos Deuses, vincula a cozinha afro-brasileira ao candomblé e a encara sob o ângulo místico – para isso se acerca de dados de Artur Ramos e Manoel Quirino. Ele afirma: “Os deuses são glutões, e os mitos que nos relatam suas vidas andam cheios de comezainas pantagruélicas, de voracidade homérica” (BASTIDE, 1950, p. 30). As festas nos terreiros, ao se penetrar no peji, são marcadas por uma abundância de comida, de pratos coloridos e saborosos, tudo oferenda dos filhos e filhas de santo aos seus orixá protetores, todos eles finos gourmets, e cada qual com o seu prato preferido. Nas festas públicas são preparados tantos pratos quantos são os orixá invocados durante as cerimônias. Oxalá reclama acaçás, abarás, pois sua cor é a branca, sendo o alimento sem sal e sem pimenta, por ser o orixá da bondade e da doçura; Oxum, sempre faceira e gulosa, exige xinxim de galinha, com miúdos e farinha de mandioca; Xangô prefere amalá, preparado com quiabo, camarão, azeite de dendê; Ogum adora guisados de carne de vaca; Iansã deseja caruru, arroz ou angu de mandioca e acarajés – e assim a lista de alimentos poderia continuar correspondendo a cada gosto dos orixá. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 153 23/11/2010 20:16:02 A comida dos orixá, conforme Vivaldo da Costa Lima, sempre requer maior cuidado em sua feitura, por ser uma oferenda religiosa (LIMA, 1950, p. 12). O candomblé conserva essa memória nas múltiplas oferendas aos seus orixá. Por isso, Raul Lody lembra que “santo também come”. Dessa forma, a comida do homem se torna comida de santo e vice-versa. O poeta Jorge de Lima inspirou-se nas comidas da Bahia para o seu famoso poema: (Apud BORBA,1950, p.42) Comer efó Pimenta, jiló Cobrei substância Com mocotó Bahia, estas comidas têm mandinga! Bahia, esse tempero tem mocó! Lá vem tabuleiro! Cocadas, pipocas! Lá vem verdureiro: Pimenta, jiló Moqueca, dendê. Arroz com efó, Pimenta, jiló. Padrões alimentares dos negros Rugendas, que observou bem os negros e os desenhou de forma excelente, assim deles diz: “São alimentados com farinha de mandioca, feijão e carne seca. Não lhes faltam frutas refrescantes” (RUGENDAS, 1940, p. 87). Infere-se pelos relatos que a lógica levaria a pensar que o escravo teve alimentação relacionada com a sua atividade. Escravos dos engenhos de açúcar, escravos das fazendas de gado, escravos das minerações, escravos dos cafezais, escravos urbanos, não deviam ter a mesma dieta. Mas tal não se verificou. A base era idêntica, e apenas variava a incidência de carne ou pescado para dar gosto – isso é o que distinguia os regimes. 154 No Rio de Janeiro, a farinha de mandioca figurava inevitavelmente na comida do escravo, ao lado do feijão-negro, que assumira realce desde os finais do século XVIII. No tempo de Debret, os escravos alimentavamse, de acordo com Cascudo, com dois punhados de farinha seca, umedecidos na boca pelo sumo de algumas bananas ou laranjas… A alimentação do negro numa propriedade onde ele trabalhava compõe-se de canjica, feijãonegro, toucinho, carne-seca, laranjas, bananas e farinha de mandioca. Essa alimentação reduz-se, ente os pobres, a um pouco de farinha de mandioca umedecida, laranjas e bananas. É permitida, entretanto, ao negro mal alimentado aplicar o produto da venda de suas hortaliças na compra de toucinho e carne-seca. Finalmente, a caça e a pesca, praticadas nas suas horas de lazer, dão-lhe a possibilidade de alimentação mais suculenta. (Apud CASCUDO, 2004, p. 203) Outros observadores também constatam o mesmo padrão alimentar, como Rugendas e Karl Seidler, que esboça o Brasil do Imperador Pedro I. Não se acreditaria que com tal tipo de alimentação pudesse um homem conservar sua força e saúde, sobretudo tendo trabalhos pesados, entretanto, esses negros são tão fortes e sadios como se tivessem a melhor alimentação. Admirava-se Seidler que o negro com tal dieta atingisse uma idade superior. Freyre lembra que nos engenhos e fazendas mais pobres davam aos escravos somente feijão cozido com angu, um bocado de toucinho, abóbora cozida; e essa comida rala, a homens que na região cafeeira tinha que se levantar às três da madrugada para trabalhar até nove ou dez horas da noite. Esses homens que trabalhavam tanto, só dormiam cinco a seis horas por noite. E mesmo durante o período de chuva, o negro tinha que se levantar cedo para colher o café. Freyre cita Dr. David Jardim, um observador do regime de trabalho escravo: “O trabalho excessivo, a alimentação insuficiente, os castigos corporais em excesso, transformam esses homens em verdadeiras máquinas de fazer dinheiro (…) sem laço algum que os ligue sobre a terra” (FREYRE, 2000, p. 62). Sobre esse tema tão polêmico – os escravos eram ou não bem alimentados? – Freyre faz uma distinção entre escravos típicos e atípicos. Ele diz que: Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 154-155 155 23/11/2010 20:16:03 O que conhecemos por outras fontes de informações, sobre o nosso sistema patriarcal, autoriza-nos a generalizar ter sido o escravo brasileiro da casa-grande ou sobrado grande, de todos os elementos da sociedade patriarcal brasileira o mais bem nutrido. Nutrido com feijão e farinha; com milho ou angu; com pirão de mandioca; com inhame, com arroz, visto pelo geógrafo alemão A. W. Sellin, como em algumas regiões brasileiras, ‘alimento fundamental’ para os escravos e não apenas para os senhores (FREYRE, 2000, p. 308) O escravo dos engenhos de açúcar tinha na cana, no mel, na garapa, refrigério e reforço alimentar disponível pela dádiva, furto ou aquisição fortuita. Mel com farinha era uma refeição, substancial, farta, indigesta. O caldo da cana tornara-se uma bebida apreciada. O mel com água era a garapa fortificante e saborosa. alimentação sadia e suficiente, mas ainda, muitas vezes, chega a vendê-lo vantajosamente (RUGENDAS,1940, p. 91). Nos tempos da seca no Nordeste alguns escravos compravam a alforria com cereais produzidos e guardados por eles ciumentamente. Manuel Dantas lembra esse episódio típico com os versos: Se for pirão de água pura, Não me chame pra comê, Que eu morro e não me acostumo Com esse tal de massapé. Eu não sou negro de Angola Que engole tudo que vê (DANTAS, 1941, p. 168) No reino da farinha O negro da fazenda tinha mais independência, liberdade, amplitude de ação pessoal, afeito a pastorear o gado. Em boa percentagem nasceria deles a dinastia dos vaqueiros, cantadores, cangaceiros. O negro do engenho, entretanto, era o escravo do eito, trabalho de conjunto, de grupo, padronizado. O negro do gado podia buscar alimento em maior distância que o escravo do açúcar, sujeito ao feitor e sob a vigilância da casa-grande em cuja varanda se balançava o senhor. Gabriel Soares, escrevendo na Bahia (1570-1587), fala que o escravo já plantava em sua roça frutos e cereais da própria preferência. Assim, ele modificava, discretamente, o ritmo monótono do cardápio imposto pelo seu senhor. Essa modalidade que se manteve até a Abolição, explica a presença de muita planta africana conservada e perpetuada pela mão do negro no solo brasileiro. Os escravos rurais, diz Câmara Cascudo (2000, p. 205), possuíam, quase todos, o roçadinho, trabalhando nele nos dias santos, feriados, dias de festa na casa-grande, dia de luto, dava-se sueto, folga de trabalho ao escravo das senzalas. Observa Rugendas, que viveu no Brasil de 1821 a 1835 : Em cada fazenda existe um pedaço de terra que lhes é entregue, cuja extensão varia de acordo com o número de escravos, cada um dos quais cultiva como quer ou pode. Dessa maneira, não somente o escravo consegue, com o produto do seu trabalho, uma 156 Tentava-se, no velho Brasil colonial, evitar o desequilíbrio na subsistência doméstica pela imposição oficial para certas culturas julgadas indispensáveis. A Ordem Régia de 27 de fevereiro de 1701 mandava promover e ativar o plantio da mandioca, gênero de primeira e básica necessidade. Houve, na Bahia, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão, ordens dos capitães-generais e senhores do Senado da Câmara exigindo o plantio prévio da farinha ao lado de qualquer outra produção. Quem produzisse gêneros alimentícios estava dispensado do serviço militar, da convocação, de exercícios, vantagens garantidas por ordem de 11 de maio de 1811 (COSTA, 1954. p.169). Na Bahia ocorrera a mesma coisa. O governador-geral Antonio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho (1690-94), ordenara, sob pena de cem mil réis de multa, quantia miraculosa para a época, que todos os moradores, dez léguas ao redor da cidade do Salvador, mandassem plantar quinhentas covas de mandioca, a fim de evitar a fome que ameaçava invadir o País. A Carta Régia de 1701 proibia o trabalho pastoril em um raio de dez léguas dos terrenos ribeirinhos, reservando essas terras para a produção da farinha (COSTA, 1954, p. 169). Ter farinha, plantar roças, dando as mil covas por unidade, tornou-se dever natural de todo proprietário, fosse qual fosse a cultura caracte- Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 156-157 157 23/11/2010 20:16:03 158 rística para o rendimento financeiro. Escravo pedir ‘de comer’ perante toda aristocracia rural, implacável na defesa da fartura, era uma vergonha para o amo (CASCUDO, 2004, p. 167). Mas de fato, a comida do escravo comum era a mesma das classes mais humildes e pobres do Império. Apenas era mais regular, diária, segura em sua limitação e com possibilidades ocasionais de melhorias festivas Sobrados e Mucambos Freyre se pergunta: “Mas que haviam de fazer as senhoras de sobrado, às vezes mais sós e mais isoladas que as iaiás de engenhos? Quase que só lhes permitiam uma iniciativa: inventar comida” (FREYRE, 1987, p. 67). Ele cita Vilhena que fala desses doces e iguarias, mas eram quitutes feitos em casa e vendidos na rua em cabeça de negras, porém em proveito das senhoras . A comida de escravo na casa-grande era especial, isto é, restos das refeições dos amos, além das furtadelas, biscates e gorjetas, imprevistas ou provocadas. A prole e parentela das amas de leite, cozinheiras, doceiras, copeiras, arrumadeiras, açafatas da sinhá-moça, os moleques de recados, os leva e traz da época, privavam das fartas condições de familiares, gente que vivia no “quente” da casa-grande, como era costume dizer-se. Dessa forma, se envolviam e até se tornavam cúmplices dos mais variados assuntos domésticos (PEREIRA, 1958, p. 174). Diz Cascudo que seu avô já repetia: “Não há nada escondido para escravo”. Mas Freyre insiste em afirmar que o “legítimo doce ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras – o das negras doceiras”. E tudo era preparado por elas. Ele também sublinha o detalhe dos enfeites dos tabuleiros, o cuidado com que elas preparavam tudo: Comparando-se os negros com os indígenas brasileiros, pode atribuirse parte de sua superioridade de eficiência econômica e eugênica ao regime alimentar mais equilibrado e rico que o dos outros, povos ainda nômades, sem agricultura regular nem criação de gados. Diz nesse sentido Freyre: “Uma vez no Brasil, os negros tornaram-se, em certo sentido, verdadeiros donos da terra: dominaram a cozinha. E conservaram em grande parte sua dieta” (FREYRE. 1987, p. 290). Conclusão Há três centros de alimentação afro-brasileira: Bahia, Pernambuco e Maranhão. Dos três, a Bahia é, certamente, o mais importante. A doçaria de rua aí se desenvolveu como em nenhuma cidade do Brasil, estabelecendo-se verdadeira guerra civil entre o bolo de tabuleiro e o doce feito em casa. Esse doce é o das negras forras, algumas tão boas doceiras que conseguiram juntar dinheiro vendendo doces e bolos. É verdade que as senhoras das casas-grandes e as superioras dos conventos entregaram-se, às vezes, ao mesmo comércio de doces e quitutes; as freiras aceitavam encomendas, até para o estrangeiro, de doces secos, bolinhos de goma, sequilhos, confeitos e outras guloseimas. Em Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 158-159 Por elas próprias enfeitados com flor de papel azul ou encarnado. E recortado em forma de corações, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes, de galinhas – às vezes com reminiscências dos velhos cultos fálicos ou totêmicos. Arrumado por cima de folhinhas frescas de banana. E dentro dos tabuleiros enormes, quase litúrgicos, forrados com toalhas alvas como pano de missa (FREYRE, 1987, p. 455). Um dos traços mais marcantes de infiltração da cultura negra na economia e na vida doméstica do brasileiro é a culinária. A cozinha colonial foi enriquecida pelo escravo africano que a dominou enriquecendo-a com novos sabores. São o azeite de dendê e a pimenta malagueta as grandes contribuições africanas ao regime alimentar brasileiro – e tudo isso é tão característico da cozinha baiana. A técnica culinária do negro foi, aos poucos, modificando as comidas portuguesas e indígenas, através do seu condimento. Por isso, alguns dos mais característicos pratos brasileiros são de técnica africana: a farofa, o quibebe, o vatapá. Estabeleceu-se uma verdadeira guerra civil entre o bolo de tabuleiro e o doce feito em casa. O do tabuleiro era o da negra forra, esse sim, considerado o legítimo doce ou quitute. No seu livro Açúcar, escrito em 1939, Freyre diz: Desses tabuleiros de pretas quituteiras, uns corriam às ruas, outros tinham seu ponto fixo à esquina de algum sobrado grande Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 159 23/11/2010 20:16:03 ou num pátio de igreja, debaixo de velhas gameleiras. Os tabuleiros repousavam sobre armações de pau escancaradas em X. A negra ao lado, sentada num banquinho. Por esses pátios ou esquinas, também pousaram outrora, gordas, místicas, as negras de fogareiro, preparando ali mesmo peixe frito, mungunzá, milho assado, pipoca, grude, manuê (FREYRE, 2002, p. 181). Esses tabuleiros se iluminavam de noite, como em uma liturgia, com rolos de cera preta ou com candeeiros, chamados fifós. Essa imagem emoldura as ruas do centro histórico da Salvador atual, mas sem a iluminação daquele tempo. Nas esquinas, lá estão as baianas de acarajé, abarás, com cocadas, bolinhos de estudante. É uma volta no tempo. O tabuleiro é símbolo da preservação de uma tradição alimentar introduzida pelos escravos. Gilberto Freyre, em Bahia e Baianos, no seu célebre poema Bahia de Todos os Santos e de Todos os Pecados, evoca os tabuleiros dentro do cenário da Salvador que ele conhecera na década de 30: Referências BASTIDE, R. A Cozinha dos Deuses. In: Cultura e Alimentação. Rio de Janeiro: SAPS, 1950. BORBA, J. C. Alimentação e Literatura do Nordeste. In: Cultura e alimentação. Rio de janeiro: SAPS, 1950. CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação do Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora LTDA., 2001. CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. 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Seguramente, os princípios da democracia podem ser considerados superiores aos dos demais sistemas de governo, porque ao contrário das organizações testadas no passado, estão apoiados na constituição: um conjunto de leis que organizam o exercício do poder no seio de uma sociedade formalmente estruturada, cujo objetivo principal é promover o bem estar social, para servir e amparar equitativamente a todos os indivíduos por ela protegidos, visando prioritariamente estabelecer normas e obrigações, assim como, garantir direitos, liberdades e igualdade. Palavras-chave Sociedade. Democracia. Constituição. Poder. Resumen La oferta de una pronto reflexión en las ventajas gozadas para la sociedad que adopta la democracia como forma del gobierno, es el objetivo de el actual artículo, que, antes de todo, pretende reiterar los principios de base de este modelo de la organización política e social, por entender que la citada configuración estatal presenta las más convenientes estructuras de poder para el mundo actual. Seguramente los principios de la democracia se pueden considerar superiores a los demás sistemas del gobierno, porque en cambio de las organizaciones probadas en el pasado, están apoyados en la constitución: un sistema de leyes que organizan el ejercicio del poder en el 162 Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 162-163 23/11/2010 20:16:03 centro de una sociedad formalmente estructurada, cuyo objetivo principal es promover el bien estar social, para servir y a la ayudar equitativamente a todos los individuos por él a protegido, teniendo como prioridad establecer normas y obligaciones, así como, de garantizar las derechas, las libertades e igualdad. Palabras-clave Sociedad. Democracia. Constitución. Poder. O exercício da cidadania deveria consistir na participação efetiva dos indivíduos na elaboração dos projetos que servirão de base para as ações do governo. Nenhuma perspectiva de consolidação da democracia pode prosperar sem a efetivação de um amplo projeto de educação capaz de atender igualmente a toda a sociedade. Somente optando por esta alternativa uma nação pode pretender alcançar o desenvolvimento e a estabilidade econômica e social, principais e indissociáveis indicadores do progresso da humanidade. Considerando as experiências anteriores faz-se necessário ressaltar que a conquista destes objetivos em momento algum poderia desconectar-se das indiscutivelmente obrigatórias preocupações ambientais, pois do equilíbrio ecológico depende o homem, o completo conjunto de todos os seres vivos, a própria natureza e, é claro, as futuras gerações pelas quais nós todos somos responsáveis. O êxito de uma sociedade que almeja superar as suas deficiências estruturais para se transformar em uma nação desenvolvida só será alcançado optando-se pelo caminho da educação e da informação do maior número dos seus indivíduos. Uma sociedade só conquista a sua estabilidade quando o seu desenvolvimento econômico for devidamente utilizado para promover a redução das desigualdades entre a sua gente. Portanto, devemos concordar que um povo educado e informado aumenta o seu poder de reivindicação e barganha, contribuindo de forma efetiva para a construção dos processos políticos. O exemplo clássico do Brasil, que apesar das suas elevadas proporções geográficas, populacionais e econômicas é frequentemente subestimado com a modesta qualificação de sociedade emergente, o Estado exibe uma história de estruturas sociopolíticas portadora de acentuadas fragilidades. Por tudo isso, neste País, conceitos como democracia e cidadania carecem de uma rápida e intensa atualização e ampliação, modificações somente possíveis pelo investimento urgente e sério de recursos financeiros, humanos e tecnológicos no seu comprovadamente defasado programa de educação. Seguramente a democracia enquanto modelo de ordenamento estatal que prioriza a vontade do povo recoRevista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 164-165 165 23/11/2010 20:16:03 nhecendo a sua absoluta soberania: todo poder emana do povo e em seu Tão exclusivo e formidável, este regime político estabelece como vital nome será exercido, precisa cumprir os seus princípios fundamentais para o próprio desenvolvimento a aplicação integral da sua essência: para que então possa atingir os ideais por ela pleiteados. popularizem-se poderes e obrigações que me perpetuarei e lhes serei Adotada na maioria dos países no mundo contemporâneo, esta forma de organização política possui elementos intrínsecos que quando respeitados garantem o bem estar do próprio Estado, da sociedade e dos indivíduos. A liberdade de pensamento e de expressão, eleições livres periódicas para a legislatura, nas quais todos os cidadãos têm o direito de votar para escolher os seus legítimos representantes e de concorrer aos cargos eletivos, compõem o conjunto das normas democráticas. Ela estabelece ainda que o governo, referendado em sufrágio universal (sistema autenticamente democrático, no qual o corpo eleitoral é constituído por todos aqueles cidadãos aos quais é reconhecida a capacidade de votar), deve impreterivelmente prestar minhas orientações mais convincentes e equilibradoras, porque constitucionais, assegurando-lhes conforto e bem estar político e social. Lamentavelmente, o Brasil ainda tropeça bastante quando tenta avançar o passo no rumo dos processos políticos, caminhos que conduziriam à sonhada praça da democracia plena, principalmente porque vive alternando períodos de progressos tímidos com outros de confirmado retrocesso (casuísmos recorrentes, ditaduras, planos econômicos equivocados etc.). A consequência desastrosa desta prática equivocada para a nação que aspira desenvolver-se socialmente é o distanciamento cada vez mais crescente do ideal de democracia moderna. conta de todos os seus atos perante a autoridade dos legisladores, Sendo assim, refletindo sobre um regime político cujos termos con- visando desta forma possibilitar a mais ampla e real participação dos ceituais defende prioritariamente a participação popular em todos cidadãos nas tomadas de decisão e evidentemente promover o eficaz os momentos da sua vigência, aspectos importantes dos canais de e necessário controle da opinião pública sobre ele. Nesta perspectiva, comunicação e expressões de sentimentos dos indivíduos, precisam dois elementos precisam ser priorizados e amplamente colocados à ser considerados quando a proposta for discutir a democracia, um disposição da maioria da população, são eles educação e informação, sistema político que coloca o povo no comando das decisões gerais porque constituem direitos universais inequivocamente indispensáveis da vida pública. Isso se aplica sempre que se pretender avaliar se um ao desenvolvimento da sociedade humana. determinado Estado é verdadeiramente democrático, ou não. A pro- Pensando nessa linha, a existência da democracia exigiria uma renovação cotidiana dos seus preceitos mais elementares, ou seja, da efetiva democratização de direitos civis, políticos e sociais, inerentes ao conceito mais amplo de cidadania. Requereria a construção de um espaço especial de convergência de elementos indiscutivelmente imprescindíveis, como virtudes e liberdades, para que se possa alcançar uma existência tranquila na qual prevaleçam a harmonia e o respeito às individualidades. Este, seguramente, só poderia ser o estado democrático porque ele constitui o ambiente mais adequado para o reconhecimento, valorização e adoção plena da cidadania. Brilhante! 166 eternamente grato, retribuindo-lhes a atenção dispensada com as pósito, qual o grau de liberdade experimentado pelos seus cidadãos, qual o grau de estabilidade das instituições políticas do país, como se efetiva a participação popular nas tomadas de decisões públicas, ou qual o grau de responsabilidade do governo perante os cidadãos? Como são exercidas as garantias constitucionais da soberania e da autonomia dos três Poderes previstas nos princípios fundamentais da democracia? Existem mecanismos reais de controle de abusos de poder? O Governo segue os padrões de procedimento por ele mesmo estabelecidos e fiscaliza o comportamento das instituições e concessionárias por ele autorizadas a servir aos seus concidadãos? Essas são apenas algumas das Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 166-167 167 23/11/2010 20:16:03 principais perguntas que não podem ser desprezadas quando a proposta de nomear os seus auxiliares mais importantes (ministros de Estado, for verificar o respeito às normas estabelecidas, e consequentemente, secretários, etc.), e que inúmeras vezes a escolha destes últimos não à supremacia popular nas sociedades declaradamente democráticas. corresponde às expectativas dos eleitores. Evidentemente, que todas essas regras, todos esses instrumentos de orientação da conduta dos administradores públicos que estão disponibilizados pelas organizações estatais contemporâneas, só podem funcionar e servir efetivamente a toda a sociedade, se os indivíduos encarregados de elaborar e executar as leis e os projetos de ações do governo, estiverem mais vinculados ao povo e às suas demandas mais urgentes, do que ao contrário, inetressados em viabilizar os seus projetos pessoais e atender as suas necessidades particulares. Assim, considerando o conjunto das atribuições conferidas ao Estado, presentes na maioria das teorias políticas, pode-se tranquilamente admitir que ele somente cumpriria dignamente as suas responsabilidades se na realização das suas mais diversas ações aplicasse impreterivelmente estas convicções de que a inspiração dos seus projetos e consequentemente o produto dos seus atos deve ser o bem estar geral dos indivíduos que ele, o Estado, se propõe servir. Aprofundando esta reflexão e examinando cuidadosamente a postura assumida pelo Estado O Estado democrático de direito deve, entre outras coisas, reconhecer, em relação à sociedade brasileira na atualidade, é possível conjeturar legalizar e assegurar os direitos civis, políticos e sociais em todos os que os indivíduos que integram as instituições estatais têm adotado recônditos do seu território. Estes se reduziriam, em útima análise, à práticas que negam absolutamente tais preocupações e responsabili- pretensão de que o Estado reconheça a legitimidade e garanta a par- dades. Através de fatos facilmente verificáveis, percebe-se que o Es- ticipção dos cidadãos também na criação da própria ordem estatal. tado vem com demonstrações claras de inaptidão e, em muitos casos, O benefício alcançado ao se franquear o acesso dos indivíduos que negligência, além de outros procedimentos incorretos, descumprindo compõem a base da sociedade, para o acompanhamento das ações os mais importantes papéis a ele confiado. político-administrativas, representa uma das vertentes em que se desdobra o estudo do sistema jurídico como um processo político. Governar deveria ser, basicamente, atender os desejos e as necessidades dos governados. Por essa ótica, o mais importante da análise política reside exatamente nos canais pelos quais as aspirações, resistências e apreciações da comunidade chegam aos órgãos em que se localizam o poder de decidir e mandar. Participar, neste sentido, significa contribuir direta ou indiretamente para uma decisão política. No entanto, a contribuição direta, hoje em dia, só por exceção pode ser compreendida. Na generalidade dos casos, ela é indireta e se expressa através da escolha de um grupo bastante limitado de dirigentes, isto é, na indicação de um número reduzido de indivíduos que serão investidos do poder de tomar decisões que vinculam toda a sociedade. É importante lembrar que aos dirigentes escolhidos nos pleitos eleitorais é outorgado o direito 168 As ingerências do Executivo Como compreender as sucessivas e absurdas intervenções do Poder Executivo no funcionamento do supostamente autônomo Poder Legislativo? Influências na organização da pauta de votação, exigência de celeridade na apreciação dos projetos de lei apresentados pelo titular da cadeira presidencial e dos seus ministros de Estado, permanente “recomendação” de prioridade e urgência para os assuntos quase sempre populistas e eleitoreiros da equipe de governo que esteja de plantão? O que dizer da participação atabalhoada do Poder Judiciário cada vez que é solicitado a agir em momentos marcantes da história do País, como no julgamento do processo do banqueiro Daniel Dantas? Todas essas observações apontam as falhas que insistimos em cometer no campo das práticas políticas, aponta o quanto estamos distantes do Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 168-169 169 23/11/2010 20:16:03 modelo de administração pública que a sociedade esclarecida deseja. Decepcionante! Nada disso condiz com a organização política e social sobre a qual se apoiam as democracias atuais, nem pode atender o desejo de interação apresentado por uma significativa parcela do nosso povo. O filosofo e escritor francês Montesquieu (1689-1755), um dos grandes pensadores da ciência política, defensor incondicional da democracia, teorizou que a forma de governo é o fator determinante das leis em todos os domínios: política interna e externa, educação, direito civil e penal, etc. Para ele, era preciso obedecer às leis, porém o ambiente propício para que esta conduta espirituosa fosse praticada não poderia ser outro que não o da democracia com a sua salutar separação e independência de poderes: “É uma verdade eterna: qualquer pessoa que tenha o poder tende a abusar dele. Para que não haja abuso, é preciso organizar as coisas de maneira que o poder seja contido pelo poder” (MONTESQUIEU, 2009). Desse modo, diz o autor, “somente a lei pode assegurar a liberdade dos cidadãos” (idem). A independência dos poderes é a condição fundamental para a liberdade política dos cidadãos. Esta norma é tão importante que deveria ser considerada por todos como uma verdadeira doutrina, justamente porque ela busca impedir a subordinação de um dos três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – aos outros, visando, na prática, garantir o equilíbrio entre eles e evitar que um dos poderes venha se sobrepor aos demais. Respeitando-se os preceitos reguladores da democracia ninguém precisaria temer os males da arbitrariedade, porque tal ameaça estaria seguramente descartada se a separação dos poderes e a sua proposta de equilíbrio funcionarem a contento. Ampliando a discussão sobre as relações políticas na atualidade podemos observar as inúmeras influências recebidas de outras nações cujas estruturas democráticas continuam servindo de exemplo para a nossa jovem sociedade. Contudo, é preciso reconhecer que o Brasil ainda tem muito a fazer no sentido de se aproximar dos modelos tomados como referência para a nossa democracia. É importante lembrar que neste 170 momento particular, na América Latina, um movimento liderado pelo pensamento retrógrado de alguns dirigentes dos principais países da região, portanto um equívoco que parte de cima, vem patrocinando um verdadeiro retrocesso nos princípios democráticos em curso de restauração no nosso continente que já possui uma comprometedora tradição de colonização e ditaduras. Um infinito número de restrições está sendo impostas à democracia no chamado bloco latino-americano, sobretudo, à manifestação de ideias (liberdade de pensamento), que tem sido o alvo mais frequentemente atacado. Não pode haver dúvidas de que tal cerceamento compõe um um conjunto muito mais amplo de estratégias montadas pelos iminentes simpatizantes do despotismo, que tem por finalidade reduzir todas possibilidades de apreciação negativa das suas ações e subjugar a sociedade prejudicada pelos seus atos arbitrários, impedindo eficazmente quaisquer questinamentos. Consenso universal, a existência de uma nação estabelece que, para além de um espaço físico, é fundamentalmente necessário haver uma unidade histórica (política) linguística, cultural e econômica. Entretanto, a ideia mais completa de nação vem do Direito, enquanto ciência das regras jurídicas vigentes no seio da sociedade mundial: uma nação constitui uma comunidade política distinta dos indivíduos que a compõem, sendo ainda titular da soberania. Reiteradamente, esta excelente noção civilizada e diplomática de organização política só poderia ter como inspiração os prudentes e conciliadores princípios democráticos, fomentadores originais dos direitos individuais e dos ideais de liberdade e igualdade. Ora, a experiência histórica está aí a nos mostrar que os princípios da democracia devem ser considerados superiores porque ao contrário dos modelos testados no passado, estão apoiados em um documento bastante especial, a Constituição, ou seja, um conjunto de leis que estabelece qual deve ser a conduta de todos os cidadãos. Compõe uma síntese da organização e do exercício do poder cujo objetivo maior é contemplação equitativa das carências mais elementares da sociedade defendida na soberania popular. Diante de todas essas vantagens preconizadas pela democracia que se atualiza Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 170-171 171 23/11/2010 20:16:03 com uma proposta ainda progressista de administração participativa, entre outras intenções inovadoras, não se pode compreender e muito menos aceitar o ressurgimento do conservadorismo absolutista aqui na América Latina. Examinando a realidade brasileira percebemos muitas diferenças em relação aos países vizinhos, no que diz respeito ao retrocesso político, porém devemos tomar alguns cuidados porque aqui, mesmo com a manutenção da liberdade de expressão, avançamos a passos largos no caminho da corrupção moral, no meio político principalmente, além da comprovada falta de critério na escolha dos dirigentes públicos, o que só facilita a eleição de lideranças forjadas pela mídia, na maioria das vezes, pessoas indignas e despreparadas. Isso vem com certa força, impondo uma interminável sequência de dissabores ao povo brasileiro, ao tempo em que assinala absoluta falta de percepção, inteligência e atualidade de boa parte dos nossos dirigentes. Perversamente esta prática dificulta o amadurecimento político e patrocina o indesejado e pernicioso enfraquecimento das instituições sociais e políticas do País. A permanente ausência de planejamento, o abandono e/ou substituição injustificáveis dos projetos que serviriam para o atendimento das demandas prioritárias da sociedade, contribuem enormemente para o agravamento das mazelas que malogradamente estamos habituados a suportar. Somente pelos níveis de desigualdade social, sempre em ascensão, chegando mesmo a compor um emblema da nossa sociedade, porque esteve presente em toda a história do nosso povo, já podemos apontar sem correr o risco de cometer algum engano, uma total desconexão entre as aspirações dos cidadãos e as ações implementadas pela maioria dos governantes brasileiros. O processo sucessório – arranjos e conveniências Outro ponto bastante polêmico na vida política brasileira é o período eleitoral, marcado sucessivamente por acontecimentos capazes de macular a nossa história contemporânea, repetidas vezes, um sem número de ações condenáveis no que diz respeito à ética, tem servido com 172 certa frequência para expor as fragilidades da nossa jovem democracia. O casuísmo (uma adequação perigosa das normas adminstrativas às conveniências do Governo), ocupa um espaço privilegiado no cenário político nacional e regional. Notadamente em períodos eleitorais este recurso, pouco recomendável do ponto de vista da moral, tem sido o mais recorrido, com o fim exclusivo de beneficiar o próprio grupo que está no exercício do poder. Recentemente um episódio curioso, porém bastante ilustrativo e previsível, marcou de forma indelével a vida política brasileira, na gestão do ex-presidente FHC. Naquela época para tornar possível a realização das ambições políticas do presidente tucano e da sua troupe, propôs-se uma série de alterações na ainda debutante Constituição Cidadã / 1988, para que se garantisse a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, já nas eleições majoritárias daqule mesmo ano. Houve abuso de toda natureza, condutas indecorosas foram adotadas, muitas delas comprovadas posteriormente. Nomes importantes do governo estiveram envolvidos em fatos escandalosos, parlamentares, que à época desfrutavam de bom conceito perante à opinião pública, viram seus projetos políticos ruírem rapidamente em consequência da sua participação direta naquele capítulo vergonhoso em que se praticou manobras mais do que suspeitas. O grupo promoveu uma verdadeira usurpação do dinheiro público (R$ 200 mil para cada um), comprando voto de deputados e senadores pela aprovação do projeto, e aquela foi apenas uma das inúmeras denúncias confirmadas. Aliás, vale ressaltar que a instituição da reeleição em democracias ainda não estruturadas completamente já favorece uma disputa desigual, além de estimular mais diretamente a deslealdade absoluta entre o concorrente que ocupa a chefia do Executivo e os demais postulantes da cobiçada cadeira. Para reforçar esta reflexão, considero oportuno aproveitar as observações feitas por Tocqueville, outro pensador francês (Paris-1805, Cannes-1859), que analisou com muita sobriedade este tema de inquestionável relevância, contribuindo enormemente para a compreensão e explicação deste delicadíssimo assunto com a seguinte formulação: A intriga e a corrupção são vícios naturais aos governos Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 172-173 173 23/11/2010 20:16:03 eletivos. Quando, porém, o chefe de Estado pode ser reeleito, tais vícios se estendem indefinidamente e comprometem a própria existência do país. Quando um simples candidato quer vencer pela intriga, as suas manobras não poderiam se exercer senão sobre um espaço circunscrito. Quando, pelo contrário, o chefe de estado mesmo se põe em luta, toma emprestada para seu próprio uso a força do governo. O renomado cientista gaulês referia-se, àquela época, à sociedade americana, da qual ele era um especialista, e sobre a qual produzira uma excelente obra intitulada A Democracia na América (1835-1840). Os defensores da emenda constitucional da reeleição apresentavam como principal argumento na defesa do seu projeto o direito que o povo teria de votar e confirmar os políticos que deram certo, afirmando que à sociedade seria conferida a oportunidade de avaliar os procedimentos adotados pelos homens públicos para que munidos de uma experiência prática a respeito destes pudesse decidir pela sua manutenção no cargo, ou pela rejeição e efetiva substituição ao final de cada gestão. Defendeu-se a instituição ao direito de reeleição como forma de garantir aos investidores (especialmente os estrangeiros) a estabilidade da política dos governantes. Justificava-se a defesa do projeto citando a adoção desta instituição pelos países desenvolvidos a exemplo dos Estados Unidos, França, entre outros, com uma clara tentativa de convencer a opinião pública que a opção pela reeleição conduziria o país ao desenvolvimento, permitindo à sociedade brasileira a conquista da estabilidade econômica e social, um sonho antigo que era acalentado por todos. Entretanto, negou-se à sociedade o esclarecimento de que o político incompetente, ou pior ainda, que adotasse práticas corruptas também se beneficiaria desse direito e, como os demais, usá-lo-ia pleiteando um segundo mandato. Nomes expressivos da política nacional que àquela época se opuseram ao projeto de reeleição mudaram completamente de opinião e, hoje, sinalizam estar interessados na ampliação deste direito pensando em disputar um terceiro mandato. Neste caso, ficaria muito difícil para a sociedade proceder ao julgamento das ações do governante porque 174 ele certamente procuraria compensar os desvios de conduta com ações de cunho populista junto aos grupos que manifestassem insatisfação contra os atos irregulares praticados por ele. Outro aspecto a ser considerado sobre esta questão da reeleição é a regulamentação do processo sucessório em democracias carentes de estruturas sólidas. A partir das práticas abusivas recorrentes constatase que, logo nos primeiros dias de exercício do mandato, o grupo que assume o governo começa a montar os seus esquemas visando preparar o caminho para o próximo pleito. Assim, logo nos primeiros instantes o chefe de governo se porta como um candidato de fato, não conseguindo dissociar suas funções de governante das suas pretensões político-partidárias, ou seja, da sua conduta eleitoral. Desse modo, o desejo de ser reeleito passa a dominar os pensamentos do executivo e consequentemente toda a política de sua administração converge para esse ponto, fazendo com que as suas mais simples providências estejam subordinadas ao seu projeto político para o futuro. Considerando as devidas e raríssimas exceções, a máquina pública utilizada indevidamente passaria a servir ao ocupante da chefia do governo dando-lhe inúmeras vantagens em relação aos outros concorrentes. Oportunamente, podemos dizer que isso não significou perspectivas de avanço para a história política do País, mais tem contribuído para elevar o nível de desigualdade institucionalizada nas campanhas eleitorais, além de caracterizar uma prática absolutamente antidemocrática. Estado, sociedade e desenvolvimento. O Estado no Brasil atual, ou seja, os homens que o dirigem, parecem desconectados dos princípios democráticos. Tal dedução é possível porque eles vêm manifestando um autismo vigoroso, com capacidade para afetar igualmente pessoas e partidos das tendências mais variadas. Observa-se, sem grande esforço, que as práticas são tão parecidas (senão idênticas), que não nos permitem, com toda a boa vontade do mundo, perceber quaisquer diferenças (mínimas que sejam), entre as Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 174-175 175 23/11/2010 20:16:03 ações de um grupo ou de outro quando está à frente do governo, ainda que tais grupos não apresentem nenhuma afinidade ideológica, tenham feito trajetórias opostas, jamais tenham sido aliados, ou tenham tentado afastar qualquer semelhança de preferências pelas práticas políticas criticáveis, façam questão de expressar um antagonismo ostensivo e muitas vezes desnecessário, identificando-se como de direita, centro e esquerda, ou mais do que isso, conservadores ou progressistas. Analisando mais delicadamente a realidade política do nosso País, podemos perceber que há algum tempo o Estado vem discursando no vazio, enquanto que a sociedade desordenadamente parte nas mais variadas direções. Notadamente após 1982 a principal tarefa do Governo tem sido a de contemplar os seus colaboradores, acomodando-os em cargos públicos distribuídos entre aqueles que participaram da aliança que o elegeu. Para isso, criam-se cargos e instituições, e os postos oferecidos, de forma generalizada, garantem salários elevados, disponibilizam boa estrutura para o funcionamento das mesmas, além das prerrogativas sempre interessantes. Claro que isso tem uma consequência desastrosa para a vida da sociedade, porque traz prejuízos significativos para o orçamento sempre deficitário e os critérios de idoneidade, inclusive moral, frequentemente não levados em conta. Especialmente em períodos eleitorais como o momento que vivemos agora os casuísmos são recorridos com tanta frequência que desmoralizam os seus protagonistas e consequentemente as instituições que representam. Nesta falta de comprometimento absoluta, nenhum projeto que vise melhorar objetivamente a vida do brasileiro é apresentado, assim como nenhuma proposta sensata no sentido de alterar a situação social e econômica dos trabalhadores pode germinar na classe dirigente. Angustia a constatação de que códigos e metas são escritos para que as ansiedades do povo sejam preteridas em favor das permanentes e espúrias barganhas políticas. Neste cenário, apenas medidas paliativas são aplicadas, as grandes questões da sociedade não conseguem sensibilizar os tecnocratas, por isso, são frequentemente postergadas. Desse modo, imagina-se com infinita tristeza, existir no seio da equipe 176 governamental uma orientação para dissimular a real situação em que se vive e apenas administrar as crises que se sucedem permanentemente, porque as pessoas que integram o grupo não teriam a mínima capacidade para realizar e acompanhar uma mudança mais substancial que fosse capaz de melhorar as condições de vida da sociedade. Enfim, o Estado se faz negligente na sua função primeira, que seria regular as relações entre os diversos segmentos da sociedade, mercado, instituições, trabalhadores etc. Consequentemente, essa trágica apatia leva a classe política a se refugiar nos seus palácios e gabinetes confortáveis e, assim, cada vez mais distante do povo se confirma que não existe nenhuma coerência entre aquilo que os políticos dizem e o que se verifica no cotidiano do homem brasileiro. Apesar da bela retórica invariavelmente utilizada, em inúmeros casos o discurso dos políticos pode ser contestado e desmontado com um simples questionamento ou apuração dos fatos e índices apresentados por eles. Lamentavelmente o resultado disso tudo tem sido bastante oneroso para o povo brasileiro que sofre com os problemas sociais que se avolumam em uma velocidade sem precedentes. Merecendo destaque para o analfabetismo, uma mazela da qual somente com muito esforço conseguiremos nos livrar; o desemprego que impossibilita o indivíduo de ter acesso a uma série de direitos que o emprego proporciona; o déficit habitacional, motivo de desconforto tanto pessoal quanto coletivo; o aumento dos índices de mortalidade por doenças provocadas pela falta de saneamento básico; o alarmante crescimento da violência urbana que leva a sociedade a viver em um eterno clima de terror; as lutas no campo, que caracterizam um verdadeiro anacronismo quando pensamos no tratamento que foi dado ao setor agrário nas sociedades desenvolvidas, cujos modelos democráticos buscamos com pretensa vaidade nos espelhar, entre outros indicadores negativos do desserviço perpetrado pelos nossos homens públicos. Ao final, podemos constatar com indesejada sensação de desencanto e frustração coletiva, que o desdobramento desta inércia oficial Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 176-177 177 23/11/2010 20:16:03 repercute de forma bastante maléfica na sociedade brasileira que se aprofunda enormemente tanto na deterioração física quanto simbólica. A nossa realidade de injustiças sociais e absoluta falta de atualidade democrática, demanda uma rápida mudança no procedimento político capaz de construir uma representação popular mais vigorosa. Sabemos, todavia, que isso só funcionará se for devidamente precedido de uma importante renovação das nossas estruturas política, econômica, social e cultural. Obviamente, estas transformações precisam ser implementadas com uma urgência máxima, pois em muitas regiões do País, já vivemos situações de comprovado descontrole em que predominam a falta de assistência, a ameaça constante e o medo generalizado, isto porque os níveis de degradação social já são por demais evidentes, preocupantes e incontestáveis. 178 Referências BUARQUE, Cristovam. O que é educacionismo? São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 2008. L’ACTUALITÉ. Série philosophes – De la Renaissance aux Lumières: Montesquieu, Voltaire e Hume. Edição n° 2.765, de 17.jan 2009. ROMITA, Arion Sayão. A cidadania dos trabalhadores na empresa. In: SOUZA, Ronald Amorim e (Coord.). Trabalho e Cidadania. Salvador: UFBA/Epresa Gráfica da Bahia, 1990. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 178-179 179 23/11/2010 20:16:04 11 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 40 ANOS DO MAIO DE 68: ECOS DE UMA DÉCADA DE RUPTURAS. GUSTAVO ROQUE DE ALMEIDA Doutor em Educação, Mestre em Ciências Sociais e Licenciado em Ciências Sociais (UFBA). Professor adjunto da UNEB, professor assistente da UFBA, e da Faculdade 2 de Julho. Email: [email protected] Resumo O presente texto foi apresentado como palestra de encerramento do I Congresso de Comunicação Social e Políticas Culturais (PoliCom) realizado em 2008 pelo Colegiado do Curso de Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho. Sua publicação se deve à excelência e atualidade de seu conteúdo e da importância daquele evento que influenciou toda uma geração, tanto na Europa quanto no continente americano. Palavras-chave Maio de 68. Movimento popular. Revolta e barricada. Movimentos de esquerda. Revolução. Resumen Este texto fue presentado como una conferencia en la clausura del Primer Congreso de Medios de Comunicación y Políticas Culturales (PoliCom) llevó a cabo en 2008 por la Junta de del curso Comunicación Social de Facultad 2 de Julio. Su publicación se debe a la excelencia y oportunidad de su contenido y la importancia de ese acontecimiento que ha influenciado a toda una generación, tanto en Europa y las Américas. Palabras-clave Mayo del 68. Movimiento Popular. Revuelta y barricada. Izquierda movimientos. Revolución. Independencia_03-final.indd 180-181 23/11/2010 20:16:04 A década de 1960 mostrou ser uma das mais importantes da contemporaneidade pelo caráter transformador, revolucionário, mesmo, no que respeita às tradições e costumes da sociedade ocidental de então. O Modo de Produção Capitalista – MPC apontava, no ocidente, para sociedades de opulência material, sem prever os danos ambientais pela exploração irresponsável dos recursos naturais, mas absorvendo contingentes cada vez maiores de trabalhadores nos mais variados setores de produção, principalmente no industrial que, àquela altura, dava sinais de que seria o grande nicho de empregos e de elevados salários. Sob a perspectiva política, a democracia vigente nos continentes europeu e americano patrocinava governos mantenedores do desenvolvimento econômico das classes média e alta, deixando as categorias subalternas entregues à própria sorte por conta de uma legislação trabalhista conservadora e decerto que caracterizada pelo autoritarismo. No plano sociocultural, o quadro não era diferente, posto que a cultura de massa, incentivada pelo cinema e pela mídia eletrônica, que se popularizava cada vez mais, alijava os estratos socioeconômicos inferiores das oportunidades mais sofisticadas de conhecimento e cultura. Convém lembrar que o mundo naquele momento ainda se ressentia das consequências da Segunda Guerra Mundial, traduzidas pela necessidade do esforço de reconstrução das economias, e pela chamada Guerra Fria, ou seja, a disputa pela hegemonia mundial entre a URSS e os EUA. Nesse particular aspecto, essa disputa se concretizava através das corridas espacial e armamentista, e da influência política e, às vezes, econômica, nos países ditos de periferia. Ressalte-se aqui que os EUA sentiam-se ameaçados pela atitude do governo revolucionário de Cuba em manter uma relação visceral com a URSS, a ponto de admitir aquele a instalação de uma base de mísseis soviéticos em seu território, atitude que levou a delicadas e perigosas negociações entre os dois impérios no sentido de não se concretizar tal intento. Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 182-183 183 23/11/2010 20:16:04 Em que pese tal desfecho, o governo de Castro iniciou um processo qual a França não passava desde os tempos do Iluminismo: em 1964, a de “exportação da Revolução Cubana” para países do continente proporção de jovens que entravam na universidade deveria ser multi- sul-americano, influenciando cada vez mais as jovens democracias a plicada por dez em relação a 1946. “Foi esse peso que deu aos jovens libertarem-se da influência imperialista norte-americana, o que vai a sua força”, revela Roche. redundar em governos e políticas de características cada vez menos conservadores, desagradando assim ao governo norte-americano, por perceber a grave ameaça à sua hegemonia no continente. O início da década apresentou uma crescente perda de espaço das forças políticas conservadoras tanto na América do Sul como na África, manifestada pela eleição de governantes preocupados com um desenvolvimento nacional menos atrelado aos interesses norte-americanos. Isso vai promover uma série de intervenções militares nesses países, instalando regimes de exceção, ditaduras sanguinárias que ceifaram a vida de milhares de cidadãos. No caso do continente africano não se pode esquecer das inúmeras guerras fratricidas que dilaceraram o continente em quase todos os seus quadrantes. Mas foi exatamente uma decisão do governo francês de proibir aos estudantes do sexo masculino a visita aos alojamentos femininos da Universidade francesa, no caso Nanterre, o estopim para a grande mobilização estudantil em maio de 1968. O começo De 1960 até maio daquele ano (que, conforme Zuenir Ventura, não acabou), surgiu na França um movimento contestatório da juventude contra a sociedade dos seus pais e avós. De acordo com o historiador Alexandre Roche, tal contestação nascia do abandono dos ideais de liberalismo e comunismo, da revolução sexual, da democratização dos costumes, das modificações da Igreja e de uma abordagem existencial da vida. “A França de 1958 era uma sociedade do século 19, sobretudo no interior”, diz Roche. Ele sustenta que, de 1946 a 68, o movimento jovem foi sustentado e impelido por uma explosão demográfica pela 184 A história A guerrilha urbana de maio de 1968, em Paris, começou dois meses antes na Universidade de Nanterre, por um motivo reles: em março, a reitoria da instituição (12 mil alunos) baixou norma proibindo que rapazes visitassem moças em seus dormitórios. De carona, um jovem estudante judeu-alemão, Daniel Cohn-Bendit, reuniu um grupo de cem colegas e invadiu a secretaria da escola. Assustado com a represália, o reitor Pierre Grappin suspendeu as aulas e chamou a polícia. O incidente foi, de início, apenas um fato isolado. Porém, foi ali que nasceu a estrela de Bendit no meio estudantil, que se transformou em Dany le Rouge. Ele era bolsista do governo alemão, filho de pais judeus que emigraram para a França fugindo do nazismo. Contra a estudantada de esquerda, um grupelho fascista, formado por ex-paraquedistas, o Occident, apelava para a ignorância contra seus adversários. Estes, não se intimidavam: enchiam as paredes brancas da universidade com grafites. Muitos ficaram famosos: Aqui termina a liberdade! Nem Mestre nem Deus! O Vietcongue vencerá! Amemo-nos uns sobre os outros. Somos todos enragés (raivosos). E o mais célebre: Corre, camarada, o velho mundo está atrás de ti!... No dia 3, os estudantes de Nanterre organizam uma manifestação na Sorbonne. No local, corria o boato de que os baderneiros do Occident pretendiam invadir a escola. Logo, os estudantes esquerdistas come- Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 184-185 185 23/11/2010 20:16:04 çam a demolir classes e mesas. A polícia é chamada. Conflitos entre estudantes e a tropa de choque ocorrem no Quartier Latin. A polícia faz 596 prisões. Para organizar a luta, os estudantes precisavam de um líder. No meio da bagunça, Le Rouge aparece, entre apupos e assovios. É Daniel Cohn-Bendit, que conclama a todos, e discursa: “A Sorbonne deve transformar-se em uma nova Nanterre!”. Os aplausos chegam aos ouvidos até então ensurdecidos do reitor Jean Roche, que toma uma decisão inédita na história da Universidade de Paris: escreve ao Comissariado de Polícia do Quartier Latin exigindo medidas para acabar a manifestação naquela histórica instituição. À tarde, é a vez dos gendarmes invadirem o pátio da faculdade, como iconoclastas furibundos. Se Deus não existe, tudo é permitido. No rescaldo do dia seguinte, as aulas são suspensas, a União dos Estudantes da França (UNEF) e o Sindicato Nacional de Ensino Superior (SNESUP) convocam greve por tempo indeterminado. 6 de maio de 1968. Cresce a escalada da violência em Paris. Uma multidão sobe a Rue St. Jacques, disposta a retomar a Sorbonne ocupada por policiais. As primeiras barricadas aparecem. Um poderoso efetivo da tropa de choque impede-lhes a passagem. A batalha começa. De um lado, rapazes e moças jogam nos policiais paralelepípedos arrancados das ruas. Estes respondem com granadas de gás lacrimogêneo. A vanguarda dos estudantes é formada por rapagões, a cabeça protegida por capacetes de moto. As moças repõem a munição, com paralelepípedos e pedras. Durante a batalha, que durou quase duas horas, 350 policiais foram feridos, a maioria com fraturas. Os estudantes se aperfeiçoam: protegem os olhos com óculos de mergulhadores e bicarbonato de sódio, como antídoto contra o gás. Rádios portáteis transmitem-lhes ordens da liderança. É o prenúncio das barricadas que deixariam Paris em chamas nas noites de 10 e 24 de maio. Naquela altura, a cobertura do incidente pela imprensa (eram mais de mil repórteres, a maioria pega de surpresa) foi realizada apenas por emissoras periféricas, com transmissores localizados em Luxemburgo 186 ou em Monte Carlo, e com unidades móveis em Paris. Com o silêncio da Office de la Radio Télévison Française, (ORTF, estatal), os franceses só ficaram sabendo da situação “por fora”. Censura? O constrangimento foi tanto que, envergonhados e revoltados, seus funcionários se declararam em greve geral em prol da liberdade de informação. A segunda noite das barricadas aconteceu a 24 de maio de 1968, logo depois de o presidente Charles de Gaulle ter proposto um referendo para decidir se permaneceria ou não no governo. Ao mesmo tempo, o movimento estudantil tentava atrair para a luta os operários. Uma semana antes, centenas de fábricas foram ocupadas pelos trabalhadores. No dia 20, o número total de grevistas chagou a 10 milhões. Le Rouge foi proibido de permanecer na França. Dois dias antes, a oposição não conseguiu obter votos necessários para a moção de censura a Georges Pompidou, primeiro-ministro, na Assembleia Nacional. Estudantes se manifestam contra a expulsão de Cohn-Bendit. Um a um, os serviços públicos essenciais interrompiam o trabalho. O aeroporto de Orly fechou. Os vôos eram obrigados a descer em Le Bourget. Mas as coisas se complicaram mesmo quando as garotas do famoso cabaré Lido declararam-se também em greve. Rei posto Paris, 28 de maio de 1968. A França está paralisada. Nas ruas, multidões de estudantes e de operários (em manifestações distintas, já que os trabalhadores consideravam a estudantada um bando de filhinhos de papai) substituem o slogan “De Gaulle assassin” por “De Gaulle démission”. As pessoas abandonam as cidades. De repente, o suspense e, logo, o pânico: De Gaulle havia desaparecido. No dia anterior, sindicatos, empresários e governo negociavam um acordo que previa aumento de salários, redução de horas de trabalho e a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No dia 29, todos souberam: De Gaulle havia partido secretamente para Baden-Baden. O objetivo era encontrar-se Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 186-187 187 23/11/2010 20:16:04 com o general Massu e os principais comandos, em um quartel na Alemanha. Fez um apelo dramático: ou o Exército o apoiava ou a subversão totalitária tomaria conta do país. Os oficiais se comoveram, e o general ditatoriais, como os existentes na América do Sul e na África. Metz, comandante da Praça de Paris, jurou lealdade ao presidente. Janeiro: Ofensiva do Tet (Vietnã) De Gaulle sentiu-se vencedor. Voltando do encontro secreto, o primeiro mandatário francês dirige-se à nação pelo rádio e televisão. Com firmeza, anuncia a dissolução da Assembléia Nacional, diz que não renuncia e convoca eleições gerais, que são realizadas em dois turnos, a 23 e 30 de junho de 1968. No mesmo dia, cerca de 800 mil pessoas manifestam-se em apoio a De Gaulle, em Paris. As forças norte-vietnamitas atacavam centenas de cidades do Sul, entre A rebelião dos jovens passou a ter seus dias contados. No dia 31 de maio, o governo é reorganizado. A nova equipe tem 19 ministros e secretários de Estado remanescentes da anterior, mas doze deles apenas trocam de função — é o chamado ‘seis por meia-dúzia’. Como dizia um cartaz, com um desenho de um rebanho de ovelhas, afixado na Sorbonne: De volta à normalidade. Ativista contra a segregação racial nos EUA, o pastor negro e Prêmio A pá de cal na Rebelião de Maio ficou a cargo da maioria silenciosa, quando o partido do medo demonstra a sua pujança. Concluídas as apurações, os resultados foram surpreendentes: os gaullistas conquistam 297 das 387 cadeiras no parlamento. Seus aliados Republicanos, 53, e as esquerdas reunidas, 137. O Partido Comunista tem seus 73 assentos reduzidos a 34 e a Federação da Esquerda, do ex-candidato-a-candidato François Mitterrand, que antes da crise tinha 121 deputados, consegue eleger apenas 57. Falando ao France Soir, seus inconsoláveis líderes praguejam: “Pagamos pelas barricadas que não erguemos”. Junho: Um segundo Kennedy assassinado (EUA) Vejamos alguns dos fatos marcantes do período: elas Hue e Saigon. A ofensiva surpresa, que causou comoção na opinião pública americana e desacreditou o governo do presidente Lyndon Johnson (1963-1969), mostrou que uma guerrilha poderia desafiar até mesmo o poderio bélico dos EUA. Abril: Assassinato de Martin Luther King (EUA) Nobel da Paz em 1964 foi assassinado no dia 4 por um segregacionista branco em Memphis (Tennessee). Os distúrbios que se seguiram atingiram as grandes cidades americanas, entre elas Washington. Pouco tempo depois, o presidente americano Johnson assinaria a lei dos direitos cívicos, proposta por King. No dia 5 de junho, na noite de sua vitória nas primárias democratas da Califórnia, o senador Robert Kennedy, o Bobby, irmão mais novo do expresidente John F. Kennedy (1961-1963), assassinado em 1963, recebe vários tiros à queima-roupa disparados pelo palestino Sirhan Sirhan, e morre no dia seguinte. Julho: Fome em Biafra (Nigéria) Tragicamente famosa pelas imagens da fome difundidas pela mídia na época, a Guerra de Biafra, iniciada em 1967 pela luta separatista dessa Conclusões região do Leste da Nigéria, desencadeia um movimento humanitário O movimento de Maio de 1968, na França, reverberou no resto do mundo ocidental. Não que tivesse sido o pioneiro, àquela época, mas internacional. sua contundência reforça em diversos outros países mobilizações estudantis e de operários contra a tradição castradora e/ou contra governos 188 Agosto: Repressão à Primavera de Praga (Tchecoslováquia) Nomeado secretário do Partido Comunista tcheco, em janeiro, Alexander Dubcek instaura a experiência original do “socialismo com face Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 188-189 189 23/11/2010 20:16:04 humana” e liberaliza o regime, algo inaceitável para Moscou, que, no dia 21, envia os tanques do Pacto de Varsóvia (aliança militar dos países do Leste Europeu) para reprimir os anseios por democracia. Outubro: Massacre no México Entre 200 e 300 estudantes mexicanos que realizavam protestos morrem após serem atacados pelas forças de ordem, no dia 2 de maio, na praça das Três Culturas, na Cidade do México. O massacre ocorre dez dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos, quando, diante das câmeras de TV do mundo todo, dois atletas afro-americanos sobem ao pódio com os punhos erguidos com luvas negras, uma saudação do grupo de defesa dos direitos civis aos negros Panteras Negras. Convém lembrar que naquela época já se assistia, pela televisão, o massacre que os EUA promoviam no Vietnam, haja vista o mais do que conhecido massacre de My Lai, aldeia vietnamita onde, em 16 de maio de 1968, centenas de civis, na maioria mulheres e crianças, foram executados por soldados do exército norte-americano no maior massacre de civis ocorrido durante a Guerra do Vietnam. Há registros incontestáveis de que antes de serem mortas, algumas das vítimas foram estupradas e molestadas sexualmente, torturadas e espancadas sendo que alguns dos corpos também foram mutilados. Na parte sul do continente americano vicejavam ditaduras na Argentina (28 de junho de 1966, Juan Carlos Ongania derruba Arturo Illia), Brasil (31 de março de 1964, Castelo Branco depõe João Goulart), Chile (11 de setembro de 1973, Augusto Pinochet derruba Salvador Allende), Uruguai (em 1972, Juan Maria Bordaberry dá um golpe e dissolve o Parlamento), Paraguai (Alfredo Stroessner governa o país de 1954 a 1989). No caso do Brasil, para lembrar aos mais velhos e alertar os mais jovens, o golpe militar que depusera João Goulart, empossado constitucionalmente, partira da elite econômica que não admitia as reformas propostas pelo presidente no sentido de promover maior igualdade de direitos aos cidadãos de baixa renda, notadamente trabalhadores urbanos e camponeses. 190 Tal elite, apoiada pela igreja conservadora, busca apoio nas Forças Armadas que, incentivadas pela política anti-comunista do governo norte-americano, enxerga o “perigo vermelho” no populismo de Jango. O golpe se inicia na madrugada de 1º de abril de 1964. Congresso fechado, partidos políticos e parlamentares cassados, intelectuais e estudantes presos e banidos, imprensa amordaçada, cultura e ciência vilipendiadas. Uma trajetória que ao longo dos seus mais de vinte anos promoveu perseguições, prisões, torturas e o assassinato de um incontável número de brasileiros. Dentre os aspectos mais importantes desse “revival” que ora apresento quero ressaltar, em primeiro lugar, o elevado espírito de luta e rebeldia da juventude brasileira contra a ditadura, a capacidade de organização da classe operária e campesina, a atitude de intelectuais, aí incluídos os professores, no que respeita à permanente análise da situação e apontamento das possíveis soluções para o combate ao regime. Em segundo lugar, apontar o quanto devemos aos profissionais de comunicação destemidos que sempre encontraram formas criativas de denunciar, geralmente através de uma imprensa alternativa que não se alinhava àqueles veículos tachados de “imprensa chapa-branca”. Por último, mas não menos importante, convém aproveitar a oportunidade da comemoração dos 40 anos do maio de 1968 na França, como marco do rompimento com os tradicionalismos do século XX, para exaltar a memória de todos aqueles que tombaram no combate aos regimes de excessão, mas também, instar a juventude a aprofundar-se cada vez mais no conhecimento e na participação da vida política de seu país como meio de promover uma sociedade mais justa e igualitária, condizente com os ideais humanísticos que tanto prezamos. Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 190-191 191 23/11/2010 20:16:04 12 Revista Independência Ano 3, n. 3, Agosto de 2010 TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO POSSÍVEIS ANALOGIAS ENTRE O CAPITÃO DO MATO E O POLICIAL Eliezer Santos ([email protected]), Jordânia Freitas (jordaniafreitas@ bol.com.br) e Shagaly Araujo ([email protected]), estudantes do 7º semestre do curso de Comunicação Social – Jornalismo da Faculdade 2 de Julho. Resumo Este artigo é fruto de um conjunto de discussões realizadas por nós acerca da condição do negro na sociedade e como o mesmo ainda ocupa espaços sociais semelhantes aos dos seus antecedentes, no período escravista. Baseado nas leituras da bibliografia proposta pelo orientador, José Henrique de Freitas Santos o texto abaixo apresenta dois personagens que ajudam a visualisar a analogia proposta: o ressurgimento do capitão do mato na figura do policial. Palavras-chave Capitão do mato. Policial. Segurança pública. Resumen Este artículo es fruto de un conjunto de discusiones realizadas por nosotros acerca de la condición del negro en la sociedad y como este aun ocupa espacios sociales semejantes a los de sus antepasados en el período esclavista. Basado en las lecturas de la bibliografía propuesta por el orientador, José Henrique de Freitas Santos, el texto presenta dos personajes que ayudan a visualizar la antología propuesta: el resurgimiento del cazador de esclavos en la figura del policía. Palabras-clave Cazador de esclavos. Policía. Seguridad Pública. Independencia_03-final.indd 192-193 23/11/2010 20:16:04 “É mole de ver Que em qualquer dura O tempo passa mais lento pro negão Quem segurava com força a chibata Agora usa farda Engatilha a macaca Escolhe sempre o primeiro Negro pra passar na revista Pra passar na revista” (Todo camburão tem um pouco de navio negreiro – Marcelo Yuka) Diante do crescimento da violência urbana em todo o País, a figura do policial surge fundamentalmente sob duas óticas: ora como herói, ora como algoz. Observando estas atribuições, traçamos análises a fim de compreender a ligação histórica entre o policial da atualidade e o capitão do mato do regime escravocrata, tomando como base a observação das idéias dispostas pelo e sobre o narrador – personagem do livro Elite da Tropa, escrito por Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel. Para tanto, pautaremos nossas discussões nos seguintes autores: Rugendas (1824); Goulart (1972); Bezerra (2004); Focault (2004); Silva Jr (2005); Nascimento (2006); Pereira (2007); Vargues (2007). Elite da Tropa descreve o cotidiano do Batalhão de Operações Especiais do Rio Janeiro – BOPE, sob o prisma de um policial negro, estudante do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC), que, em nenhum momento da narrativa, tem seu nome citado. As situações descritas na obra nos possibilitaram visualizar aspectos psicológicos e metodológicos que giram em torno da função policial, os quais serviram como suporte comparativo na observação de semelhanças com as práticas do capitão do mato. Os capitães do mato eram homens responsáveis pela captura de negros fugidos. Em sua maioria, eram libertos, que exerciam essa função em troca de um pagamento por parte dos proprietários, conhecido como tomadia. A escolha de ex-escravizados para o cargo se dava pelo fato Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 194-195 195 23/11/2010 20:16:04 de estes conhecerem bem as rotas de fuga. Conforme Bezerra (2004), nem todos os forros estavam aptos para o ofício, pois para um homem livre pobre tornar-se capitão do mato, era necessário que fossem reconhecidos nele “bons antecedentes”, ratificados por uma recomendação prestigiosa. Por isso, o interessado em tornar-se capitão do mato deveria se apresentar a um “homem-bom”, que o recomendaria às autoridades locais (IDEM, 2004). O termo “capitão do mato” faz alusão a um pássaro homônimo, que auxiliava os homens no resgate dos fugitivos. Quando estes adentravam nas matas, a ave cantava estridentemente, o que permitia aos capitães identificar o esconderijo. Para atuar em seu trabalho, o capitão recebia de seu contratante armamento e uma equipe de homens para auxiliá-lo nas buscas. Este, como descreve Rugendas (1824), também utilizava cães ensinados, além de outros recursos, caso fosse necessário. O cargo era exercido no período de um ano, podendo ser estendido, mediante o aval do Império. Sua posição social era ambivalente, pois se situava entre a camada escravizada e o senhorio. Entretanto, o capitão do mato gozava de baixo prestígio na sociedade. Nascimento (2006) explica que mesmo sendo considerado livre o negro que já fora escravo não tinha sua integração à sociedade assegurada. Este negro não circulava tranquilamente entre os brancos, nem entre os negros escravos, restando-lhes a vida marginalizada, ou seja, não possuía seus espaços de fato como Homem Livre na sociedade. Diante disso alguns se entregavam a função de perseguir e ir contra os negros que apresentassem tipos específicos de resistência ao sistema vigente. Faziam isso como forma de ofício, como maneira de ganhar sua ascensão social, como forma de transitar próximo dos senhores, numa falsa impressão de participar da elite (IDEM, 2006). Não há registros de quando surgiu esta profissão, entretanto, sua normatização se deu a partir do século XVIII. De acordo com Goulart (1972, p. 77) o ofício “resultou de geração espontânea, motivada pela imperiosa necessidade de capturar escravos fugidos, não só para fazêlos retornar à posse e aos serviços de seus senhores, como para reprimir suas constantes tropelias”. 196 Para a sociedade brasileira colonial, o capitão do mato figurava-se como o instrumento usado pelas autoridades para a manutenção da ordem escravista, mediante o uso de métodos repressores e hostis, alicerçado pelo poder armado, para com a população negra subalternizada. Atualmente, podemos identificar, no ofício policial, vestígios da postura adotada pelos capitães de outrora, tendo em vista que ele assume hoje tal papel. Além disso, a organização hierárquica do sistema de segurança pública da contemporaneidade assemelha-se com a estrutura que demarcava os papéis dos agentes que compuseram a base escravocrata, como observamos neste trecho: “O governador dorme o sono dos justos; o secretário descansa em berço esplêndido; o comandante repousa como um cristão; e o soldado, lá na ponta, suja as mãos de sangue” (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 37). Assim como o capitão do mato ocupava um dos últimos lugares na escala de controle do sistema vigente em sua época, o policial é quem executa, no cotidiano, as táticas esquematizadas por seus superiores. O elemento primordial na associação desses personagens é, sem dúvida, o objeto de perseguição compartilhado por ambos: o negro. O narradorpersonagem do livro Elite da Tropa deixa claro que a abordagem policial mais rigorosa é direcionada, quase que automaticamente, à população negra, obedecendo ao imaginário predominante na sociedade, que projeta no sujeito negro o estigma de indivíduo suspeito: não vamos ser cínicos e fingir que vivemos no paraíso da democracia racial. E não estou falando só porque sou negro e vítima do preconceito, não. Milhões de vezes me pego descriminando também. Na hora de mandar descer do ônibus, você acha que escolho o mauricinho louro de olhos azuis, vestidinho para a aula de inglês, ou o negrinho de bermuda e sandália? E não venha me culpar. Adoto o mesmo critério que rege o medo da classe média. É isso mesmo, a seleção policial segue o padrão do medo, instalado na ideologia dominante, que se difunde na mídia (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 135). A percepção estereotipada adquirida pela maioria da população em relação ao negro, não provém unicamente de vivências atuais. Ela Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 196-197 197 23/11/2010 20:16:04 também é fruto de um construto histórico, que sempre o apresentou como um ser inferior, marginalizado e propenso à atividades criminosas. Nesse sentido, a ideologia dominante que se prolifera ao longo dos anos, apresenta-se como estímulo e reforço para justificar as ações policiais: vocês ficam me olhando com essa cara e resmungando, mas eu queria ver se fosse uma negrinha de cabelo pixaim, malvestida. Duvido que me viessem com essas delicadezas. Atire em mim a primeira pedra quem jura que não faria galhofa da pobre coitada e não faria questão de contribuir com um pontapé para a surra na negrinha. Como você vê, a cor da pele é a nossa bússola. E, nisso, somos apenas adeptos modestos fiéis da cultura brasileira (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 136 – 137). As semelhanças entre as figuras em discussão neste artigo evidenciamse, se observarmos, também, as descrições trazidas por Goulart (1972) sobre o “caçador de escravos”, em seu livro Da Fuga ao Suicídio, e as compararmos com os relatos dispostos em Elite da Tropa. As obras, em certos momentos, dialogam entre si, tendo em vista que narram indivíduos situados em diferentes momentos históricos, mas que possuem características extremamente parecidas. Goulart (1972) descreve o capitão do mato como: corpulento, de má catadura, que tem o andar macio dos felinos e a disposição dos afeitos à luta, em especial, a capoeiragem. O chapéu de abas largas, desborda-lhe, sobre o rosto, escondendolhe a direção do olhar: no olhar duro, penetrante e frio; ou defende-lhes das soalheiras faiscantes e abrasadoras do verão. Botas de cano alto, de couro flexível de veado, montam-lhe ao meio das coxas. Longa capa de baeta despenca-lhe dos ombros, agasalhando-o nas épocas invernosas. No punho, dependurada, a indefectível tala, pronta a entrar em ação no lombo de qualquer das arimárias: no do cavalo ou no do escravo (IDEM, 1972). A postura e a indumentária deste profissional funcionavam como um modo de confirmação da autoridade que lhe era conferida. Para o policial contemporâneo, atributos como estes, aliados ao uso de armamento mais sofisticado, não são simplesmente elementos que compõem seu fardamento, mas sim, uma representação simbólica, que, em si, já demarca a ideologia do aparelho policial: 198 temos um puta orgulho do uniforme preto e do nosso símbolo: a faca cravada na caveira. Os marginais tremem diante de nós. Não vou iludir você: com os marginais, não tem apelação. À noite, por exemplo, não fazemos prisioneiros. Nas incursões noturnas, se toparmos com vagabundo, ele vai pra vala (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 26). Essa imagem arquetípica, que dá ao fardamento militar um peso ideológico, é assinalada também por Focault (2004): o soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas - essencialmente lutando - as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal da honra (IDEM, 2004, p. 141). As rondas policiais, intensificadas nos últimos tempos, e a captura dos negros fugidos aparecem nas narrativas seguintes como verdadeiras caçadas: “caçador de gente, o capitão-do-mato vive de engenho em engenho, de fazenda em fazenda, ofertando seus serviços a senhores que porventura tenham escravos ‘tirando o cipó’, isto é, sumidos por aqueles pedaços de mundo” (GOULART, 1972, p. 69); e “aconteceu assim: eu descia a favela no bagaço; tinha sido uma noite daquelas. Mais de três horas caçando vagabundo, sem resultado” (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 24). O foragido, nas duas épocas, é percebido por um viés animalesco, objeto que deve ser perseguido e apreendido para assegurar a ordem pública. A necessidade de conter o avanço da violência urbana surge como uma espécie de álibi para justificar a utilização de técnicas de torturas físicas e psicológicas, executadas pelo policial, na investigação do suspeito: “todo policial do BOPE sai do quartel com seu saquinho plástico, peça que já foi integrada ao kit básico. O saco serve para pôr na cabeça do marginal, apertando bem na base, que fica amarrada no pescoço. O sujeito sufoca, vomita e desmaia” (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 38). E ainda: a velha e boa porrada, que costuma bastar. Nada. Enfiamos fiapos de madeira debaixo das unhas (...). Diante da delegada, Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 198-199 199 23/11/2010 20:16:04 ele resmungou: “os policiais do BOPE me torturaram”, e mostrou os dedinhos roxinhos, com as unhinhas levantadas. A doutora delegada era uma profissional escolada e não nos decepcionou. Encarou o sujeito e emendou de primeira: “Ah, é? Coitadinho... Tá doendo, tá, filhinho? Quer que chame a mamãe, seu filho-daputa?” (IDEM, 2005, p. 39). Também, durante o regime escravocrata, os capitães empregavam métodos violentos em seus interrogatórios, como, por exemplo, o “anjinho”, instrumento que servia para “esmigalhar cabeças de dedo, arrancando juntamente com frangalhos sangrantes de unhas, aos fugitivos, as informações que desejavam e porventura não obtinham de pronto” (GOULART, 1972, p. 84). na ligação entre os dois objetos analisados, vislumbrar uma mudança de percepções acerca do modo de controle da segurança torna-se utópico. Se realmente esta situação for uma tendência, como podemos observar em Elite da Tropa, a cor da pele vai continuar servindo como bússola na seleção de quem merece ou não arcar com as consequências de uma segregação histórica. Notadamente, as práticas dos policiais e as dos homens do mato comungam de uma mesma lógica, que sustenta um mecanismo de segurança opressor do sujeito negro, no Brasil. Épocas distintas, então, se fundem para alimentar estigmas construídos pelos aparelhos hegemônicos, figurados como arquétipos nas profissões abordadas, e refletidos como um alarde instalado na sociedade. Considerações finais Com base nas análises supracitadas, observamos que as formas de manutenção da ordem pública permanecem alicerçadas nas amarras do passado. A opressão ganha uma nova configuração, reforçada pelas modernas tecnologias no âmbito do confronto bélico, porém, está intimamente direcionada a um público demarcado histórico e ideologicamente. As abordagens policiais não são apenas fruto de um treinamento sistêmico, pautado na aplicabilidade da violência, mas cumprem a função representativa dos anseios sociais, em relação aos sujeitos comumente autuados. Neste sentido, o policial, simultaneamente, assume o papel de títere, sob o domínio de seus comandantes, e detentor de um “pseudo poder” provisório. Sendo assim, se a opressão apresenta-se como algo contínuo e gradativo 200 Revista Independência Revista Independência Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Ano 3, n. 3, Novembro de 2010 Independencia_03-final.indd 200-201 201 23/11/2010 20:16:04 Referências BEZERRA, Nielson Rosa. Entre Escravos e Senhores: a ambigüidade social dos capitães do mato. In: Espaço Acadêmico. n. 39. ano 6. Maringá, 2004. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com. br/039/39ebezerra.htm>. Acesso em: 04 nov 2008. ___________________; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. TRILHA BOA PAZ. Capitão do Mato (Lipaugus Vociferans). In: Trilha Boa Paz. Itacaré, s/d. Disponível em:< http://www.fazendaboapaz.com. br/capitao/>. Acesso em: 04 nov 2008. BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 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A REVISTA INDEPENDÊNCIA tem interesse na publicação de artigos de desenvolvimento teórico, trabalhos empíricos, ensaios e resenhas. A REVISTA INDEPENDÊNCIA está aberta a colaborações do Brasil e do exterior, sendo a pluralidade de abordagens e perspectivas incentivada. ENCAMINHAMENTO DE ARTIGOS Os artigos deverão conter, no máximo, 15 páginas e ser encaminhados para a Editoria com as seguintes características: Formatação Folha: A4 Editor de texto: Word for Windows 6.0 ou posterior Margens: esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm. Fonte: Times New Roman, tamanho 12. Parágrafo: espaçamento anterior: 0 pontos; posterior: 12 pontos; entre linhas: duplo; alinhamento à esquerda. Texto: a primeira página do artigo deve conter: Título, com, no máximo, oito palavras, em maiúsculas e negrito. Resumo em português, com cerca de 150 palavras, alinhamento à esquerda, contendo campo de estudo, objetivo, método, resultado e conclusões. Cinco palavras-chave, alinhamento à esquerda, em português. Independencia_03-final.indd 204-205 23/11/2010 20:16:04 Resumo em espanhol, com cerca de 150 palavras, alinhamento à esquerda, contendo campo de estudo, objetivo, método, resultado e conclusões. Cinco palavras-chave, alinhamento à esquerda, em Espanhol. Em seguida, deve ser iniciado o texto do artigo. Referências: devem ser citadas no corpo do texto com indicação do sobrenome, ano e página de publicação. As referências bibliográficas completas deverão ser apresentadas em ordem alfabética no final do texto, de acordo com as normas da ABNT (NBR-6023). Notas: devem ser reduzidas ao mínimo necessário e apresentadas ao final do texto, numeradas sequencialmente, antes das referências bibliográficas. As obras escolhidas para preparação das resenhas devem ser recentes e apresentar conteúdo inovador e consistente, de interesse para o público da REVISTA INDEPENDÊNCIA. As resenhas devem conter, no máximo, cinco páginas e podem ser enviadas em dois formatos: Resenhas de um livro, analisando um lançamento, nacional ou estrangeiro, e resenhas múltiplas, analisando duas a cinco obras, com as mesmas características de formatação dos artigos. Os arquivos devem ser encaminhados para a Editoria da REVISTA INDEPENDÊNCIA, através do email: [email protected]. Diagramas, quadros e tabelas: devem apresentar título e fonte e ser colocados ao final do texto, após as referências. Sua posição deve ser indicada no próprio texto e também deve constar referência a eles no corpo do artigo. Deve-se evitar que repitam informações contidas no texto. Informações complementares: em separado, o autor deverá enviar: Titulação: título do artigo; seguido da identificação do(s) autor(es) – nome completo, instituição a qual está ligado, cargo, endereço para correspondência, telefone, fax e email. Os artigos podem ser enviados em português, inglês ou espanhol. Excepcionalmente, a critério do editor, serão aceitos artigos em outras línguas. Os artigos são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). AVALIAÇÃO O processo de avaliação da REVISTA INDEPENDÊNCIA consta de duas etapas: · primeiro, uma avaliação preliminar pelo editor, que examina a adequação do trabalho à linha editorial da revista; · segundo, revisão técnica pelo conselho editorial. Os autores serão comunicados dos passos do processo por email. Os avaliadores da REVISTA INDEPENDÊNCIA devem apresentar, quando necessário, além do parecer quanto à publicação, sugestões de melhoria quanto ao conteúdo e à forma, inclusive aos artigos não aceitos. RESENHAS A seção de resenhas tem como objetivo apresentar aos leitores os lançamentos nos campos da Administração, Comunicação Social, Direito e áreas afins, contribuindo, assim, para a disseminação dos referidos conhecimentos. Independencia_03-final.indd 206-207 23/11/2010 20:16:04