PROCESSO DE TRABALHO EM PEDIATRIA HOSPITALAR
Neusa Collet1
Beatriz Rosana Gonçalves de Oliveira2
Cláudia Silveira Viera2
Resumo: Este estudo tem como objetivo apresentar como os profissionais da equipe de
saúde percebem a mudança em seu processo de trabalho com a inserção do
acompanhante para a criança hospitalizada. É um estudo de natureza qualitativa, em que
se utilizou o estudo de caso como delineamento metodológico, realizado junto à equipe
de profissionais de saúde que atuavam no alojamento conjunto pediátrico do Hospital
Universitário do Oeste do Paraná, constituindo-se estes os sujeitos deste estudo. A
análise dos dados foi realizada à luz do referencial proposta por Minayo (1993). A
equipe de saúde atuante no alojamento conjunto pediátrico tem sua rotina de trabalho
alterada com a inserção da mãe/acompanhante na hospitalização da criança gerando,
portanto, mudanças em seu processo de trabalho. Os problemas apontados, em sua
maioria, dizem respeito à organização da unidade, o que demanda sua reestruturação
tanto para envolver a mãe no cuidado de forma participativa, não como mera
coadjuvante, quanto para desenvolver melhor o processo de trabalho de cada membro
da equipe, de forma integrada e não apenas como justaposição de funções com um fim
comum. Observamos nas respostas apontadas a necessidade de reorganização do
processo de trabalho da equipe que atua no alojamento conjunto pediátrico, seja com
relação a interdisciplinaridade ou na própria forma de condução cotidiana dos trabalhos
de uma mesma categoria, em relação a abordagem do binômio mãe-criança e a
execução de suas tarefas rotineiras.
Palavras-chaves: criança, hospitalização, processo de trabalho, enfermagem.
Introdução
O trabalho historicamente foi se modificando obtendo significados e naturezas diferentes.
Com a evolução do homem, as novas exigências da vida produtiva levaram a uma
complexificação do trabalho, com tarefas cada vez mais difíceis e uma especialização da
produção, necessitando de muitos homens para um só trabalho, ocorrendo à divisão dos
meios de produção e da força de trabalho. No sistema de produção capitalista, os homens
trabalham de forma fragmentada, sem a visualização do produto final que consumiu a sua
força de trabalho para ter a forma de mercadoria final (ENGELS, 1985).
Nesse sentido, Braverman (1977, p.72) coloca que “a divisão social do trabalho divide a
sociedade entre ocupações, cada qual apropriada a certo ramo de produção; a divisão
1
Enfermeira, Doutora em Enfermagem pela EERP – USP, Docente do Curso de Enfermagem da
UNIOESTE. Endereço, fone: (45) 224 7445, email: [email protected]
2
Enfermeira, Mestre em Enfermagem pela EERP – USP, Docente do Curso de Enfermagem da
UNIOESTE.
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pormenorizada do trabalho destrói as ocupações consideradas nesse sentido, e torna o
trabalhador inapto a acompanhar qualquer processo completo de produção”.
À medida que as relações sociais de produção passaram a ser hegemonicamente
marcadas pela mercadoria, o trabalho consolidou ainda mais o caráter alienante
negando-se como atividade inteligente e proposital. O trabalho então, que é a expressão
de realização dos homens, torna-se impedimento dessa realização. Portanto, o trabalho
que proporciona sobrevivência e satisfação ao homem pode também causar sofrimento e
doença, advindo de todo o contexto sócio-histórico que envolve o processo de trabalho.
Assim, surge a psicodinâmica do trabalho, que tem como objeto de estudo o sofrimento
gerado pela falta de equilíbrio entre o que é exigido nas organizações de trabalho e as
condições físicas e psicológicas do indivíduo trabalhador, considera também que a
relação trabalhador e trabalho não é estática, estando ligada a um grande variabilidade
de fatores, que estão sempre em constante mutação (DEJOURS, 1992).
O referido autor refere ainda que, muito mais que descobrir o sofrimento do operário
fora dos limites da fábrica, é buscá-lo principalmente no local onde este indivíduo está
inserido, e que normalmente o sofrimento deste operário não é conhecido pela maioria
de seus colegas, isto se deve provavelmente pelo fato que as metas da tarefa prescrita
devem ser mantidas.
Nesse contexto, surge o processo de trabalho de enfermagem voltado para a assistência
à criança hospitalizada. A evolução da assistência à saúde da criança, caminhou do
internamento hospitalar que rompia o vínculo afetivo com a família para o modelo de
alojamento conjunto, que envolve a família na hospitalização, na promoção da saúde e
prevenção de doenças a seus filhos. Esta situação acarretou mudanças no processo de
trabalho da equipe de enfermagem nas unidades pediátricas, pois passam a ter a
presença da mãe/acompanhante como um agente de seu processo de trabalho.
Com base nessa compreensão este estudo tem como objetivo apresentar como os
profissionais da equipe de saúde percebem a mudança em seu processo de trabalho com
a inserção do acompanhante para a criança hospitalizada.
Metodologia
Este estudo é de natureza qualitativa, em que utilizamos o estudo de caso como
delineamento metodológico, realizado junto à equipe de profissionais de saúde que
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atuavam no alojamento conjunto pediátrico do Hospital Universitário do Oeste do
Paraná, constituindo-se estes os sujeitos deste estudo.
A técnica de coleta de dados empíricos empregada foi o questionário, construído com
base no referencial clínico-epidemiológico. Aplicamos por um período de três meses,
respectivamente aos membros da equipe multiprofissional dessa unidade que aceitaram
participar desse estudo por meio de um termo de consentimento livre e esclarecido.
A análise dos dados foi realizada à luz do referencial proposta por Minayo (1993).
Assim, a partir dos dados empíricos coletados, passamos a apresentar a percepção dos
membros da equipe de saúde que integram o trabalho na unidade em estudo em relação
ao alojamento conjunto pediátrico.
Resultados
No alojamento conjunto pediátrico a participação da mãe/acompanhante durante a
hospitalização contribui muito para o restabelecimento mais precoce da mesma, bem
como da melhor interação entre ela e sua família, diminuindo o estresse causado pela
hospitalização. Contudo, a inserção da família, mãe/acompanhante, no período de
hospitalização trouxe mudanças no processo de trabalho da equipe multiprofissional
atuante nas unidades pediátricas, uma vez que tiveram que lidar mais diretamente com
esses indivíduos.
Esta situação gerou conflitos entre os membros da equipe, em especial a enfermagem,
pois estes estavam acostumados a “controlarem” as crianças sem interrupções ou
questionamentos sobre o que estavam fazendo. O lidar com a mãe/acompanhante
traduziu-se em sentimentos diversos vivenciados pela equipe.
Percebemos na fala dos entrevistados que a presença da mãe traz modificações em sua
rotina de trabalho. Dentre as modificações citadas, salientamos: interferências dos
acompanhantes durante os procedimentos como na venopunção; a presença de objetos
que são trazidos em excesso para a unidade e que tornam o ambiente desagradável; a
presença de conflitos na convivência com a mãe/acompanhante que exige paciência e
tolerância por parte dos profissionais, pois questionam ou ficam solicitando atenção o
tempo todo; não colaboram com a limpeza do setor nem da unidade da criança.
Sim, as mães não são orientadas como deveriam, sendo assim interferem muito nas punções
etc... acho que tem pouco espaço para muita coisa (AE4);
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Muitas vezes algumas mães são chatas, tem que se ter muita paciência, atrapalham o serviço,
toda hora querem alguma coisa ou outra, não deixam organizados os leitos. Estão mais
bagunçados de quando a crianças ficavam sozinhas (AE5);
Sim, às vezes as mães não colaboram com a limpeza, usam calçados sujos, derramam
alimento e líquido, pisam não chamam o serviço de apoio (ASGApoio3).
Gomes e Lunardi (2000) desenvolveram um trabalho sobre a percepção da equipe de
enfermagem em relação às famílias presentes na unidade, mais especificamente em
relação à criança, à mãe e ao pai. Os autores discutem a possibilidade da família
também se tornar cliente da enfermagem durante a internação hospitalar da criança.
Conhecer o significado de cuidar da família para os membros da equipe de enfermagem e
identificar como este significado se reflete na prática, conhecendo as crenças que
norteiam o significado de cuidar da família, são fatores que devem ser considerados na
assistência prestada pela equipe multiprofissional no ACP. A conotação ainda percebida
no contexto em estudo é a participação da família como obrigatória no ACP e não como
membros que necessitam também de cuidado, pois o que se percebe é que a assistência é
centrada na criança ou na sua patologia e o envolvimento da família no cuidado é feito
como um dever da mãe e não como uma inserção negociada.
No cotidiano da assistência percebemos que a mãe/acompanhante cuida da criança ao
seu modo, ou seja, não há orientação nem acompanhamento quanto aos cuidados
realizados. Estes fenômenos permitem compreender que os profissionais da equipe de
saúde do ACP não contemplam a família na perspectiva do cuidado.
Pai (1999) procurou em seu estudo conhecer e apresentar o dia-a-dia de duas unidades
de internação conjunta pediátrica de um hospital de rede pública, por meio dos
significados atribuídos pelas enfermeiras e pelos familiares participantes às suas ações e
seus comportamentos. O que emergiu desse estudo foi a carência de diálogo entre
profissional/profissional e entre profissional/familiar participante; a utilização
instrumental do familiar pela equipe de enfermagem para atender às necessidades da
criança, executando cuidados de higiene, conforto e alimentação e participando ainda de
maneira direta e indireta da administração de medicação oral e endovenosa; e a
constatação que o binômio criança/família participante não recebe atenção direcionada
às suas reais necessidades, revelando o distanciamento entre este contexto e as
proposições existentes para o ACP, que tem como prioridade a humanização da
assistência prestada ao binômio.
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O trabalho do enfermeiro, num primeiro momento é apresentado indistintamente no rol
das atividades de enfermagem diretamente ligadas ao cuidar biológico, destacando-se a
relação de poder sobre a clientela no decorrer de sua execução. Num segundo momento
a inserção do familiar traz à tona o tema do ACP tornando evidente que tal inserção é
mediada pela execução de um trabalho que guarda semelhança com algumas atividades
manuais do cuidado direto historicamente executados pelos profissionais de
enfermagem de mais baixa qualificação. Na monotonia da rotina das tarefas executadas
pelas mães emergem espaços para o tédio, a dor, o sofrimento e a culpa que não
recebem o mesmo tratamento formal oferecido pela instituição ao trabalho da mãe
integrado nas atividades de enfermagem. As evidências deste estudo encaminham a
proposição de atuação conjunta entre profissionais de enfermagem e o acompanhante
das crianças internadas, no sentido de que os mesmos busquem alternativas em conjunto
para transformação desta realidade (HORTA, 1991).
Picolo (2002) coloca que a presença da mãe durante a hospitalização do filho tem sido
enfatizada por vários autores devido aos benefícios que traz para ambos. Em seu
trabalho buscou explorar a percepção da equipe de enfermagem sobre a mãe que
acompanha o filho hospitalizado. O mesmo autor evidencia as percepções dos
participantes sobre o papel do profissional e o foco da sua assistência voltada para a
recuperação da criança doente. Embora a vivência materna de acompanhar o filho
hospitalizado se configure para o grupo como uma experiência difícil e desagradável, o
olhar do grupo para ela se mostra incipiente e muitas vezes sem resposta.
Assim, esses estudos contribuem e corroboram com a presente pesquisa, em que não
diferiu muito dos achados dos demais a que se teve acesso na literatura. Identificamos que
a equipe percebe a inserção da mãe/acompanhante num sentido figurativo no processo de
internação, porém a vê como mais um membro que pode servir enquanto recurso humano
no desenvolvimento de atividades e cuidados junto à criança hospitalizada.
O desgaste físico, a angústia, o nervosismo e a ansiedade, somados à sobrecarga de
tarefas, são as principais causas do estresse vivido pela maioria das mães em unidades
pediátricas de internação. Esta questão muitas vezes não é considerada pelos
profissionais de enfermagem, bem como pelo restante da equipe de saúde, levando-se
em conta apenas que a presença dos pais junto ao filho hospitalizado revela que o
contato direto minimiza as chances de traumas psicológicos na criança.
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Nesse sentido, para que haja harmonia entre filhos internados, família e equipe diversos
pontos devem ser considerados, a saber, identificar, especificamente, que fatores apóiam
a mãe/acompanhante e quais a estressam durante a hospitalização do filho, podendo-se
detectar os conflitos vivenciados pelas mães durante a hospitalização e que, apesar de
não estarem doentes fisicamente, elas se internam com os filhos e ficam doentes
psicologicamente. Portanto, a equipe de saúde do alojamento conjunto pediátrico deve
planejar a assistência à criança contemplando as necessidades da mãe. Assim,
ressaltamos a importância da equipe de enfermagem no cuidado com mãe, respondendo
suas dúvidas quanto à saúde da criança e dizendo que a presença dela, por si só, já
contribui para a recuperação do filho.
Outro ponto que emergiu dos dados analisados é a preocupação da equipe quanto ao
cuidado prestado à criança. Em relação aos diversos aspectos que abrangem o cuidado,
alguns membros da equipe multiprofissional destacam:
Todos os cuidados que atendam a criança em seus aspectos físicos e emocionais, sociais,
educativos e de lazer, visando seu bem-estar (AS);
Recreação, conforto e bem-estar social e mental (AE1);
Um todo, um cuidado depende do outro (ASGL1);
O acompanhamento da equipe multidisciplinar, não havendo um cuidado mais importante
que outro. Deve haver uma interação entre os profissionais para troca de informações que
enriquecerá tanto o lado profissional como no atendimento ao paciente (Ps);
Tanto o cuidado físico como o psicológico (E2);
Cada caso é um caso, depende da característica de cada criança, mas os cuidados
emocionais de toda a equipe para com a criança, aliado aos cuidados físicos e
psicológicos são prioridade (E3);
Para atingir a recuperação da criança todos os profissionais são considerados como
prioridade (Fi14).
Essas falas demonstram que o cuidado é abrangente e não se limita à assistência física
das demandas necessárias, mas também de uma atuação mais abrangente que dê conta
da assistência psicológica e da família. Contudo, as respostas são vagas e não denotam o
entendimento dos profissionais sobre a integralidade da assistência e seu significado.
Outros profissionais, ainda, continuam priorizando os cuidados físicos à criança
hospitalizada: “cuidados físicos em minha opinião são prioritários” (Me), “como ela
está internada, a prioridade são os cuidados físicos” (E4). Há também aqueles que
consideram os cuidados médicos mais importantes ou mais necessários que os demais
cuidados: “o mais importante é o cuidado médico, depois todos os cuidados da equipe
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multidisciplinar” (Fo), “primeiramente devem ser feitos os cuidados médicos e a
interação da família com as auxiliares” (AE 5), “atendimento médico, os outros se
completam” (Nu).
A hospitalização é uma situação que envolve profunda adaptação do homem às várias
mudanças que acontecem no seu dia-a-dia. Para responder a essa nova necessidade, os
instrumentos e meios de trabalho também precisam ser alterados. A equipe de saúde
precisa buscar referenciais das ciências sociais e da psicologia, que forneçam subsídios
para a reorganização da assistência, incluindo novas percepções sobre o meio onde a
criança está inserida, buscando desenvolver ações que auxiliem no relacionamento da
criança com a família, com a equipe, e com a família e equipe. As questões afetivas,
psicológicas e emocionais devem ter significado, pois fazem parte do processo de
desenvolvimento infantil.
Assim, além da competência técnico-científica para atender as necessidades decorrentes
do diagnóstico e terapêutica, a equipe de saúde necessita de instrumentos teóricos sobre
crescimento e desenvolvimento e relações interpessoais que possibilitem compreender
pais e filhos como pessoas. Assim sendo, buscar auxílio nos referenciais da psicologia e
outras ciências humanitárias, por si só, não garante à equipe uma assistência à criança
hospitalizada que envolva o contexto bio-psico-sócio-cultural-ambiental-familiar. Para
que essa assistência ocorra é importante a participação de todos os profissionais, tais
como enfermeiro, médico, assistente social, psicólogo, nutricionista, fonoaudióloga,
farmacêutico,
fisioterapeuta,
auxiliares
de
enfermagem,
possibilitando
a
complementariedade de ações que resultem em eficácia e eficiência na prestação de
cuidados físicos e psicológicos à criança e família no alojamento conjunto pediátrico.
Quando a mãe está presente para proporcionar a atenção às necessidades afetivas, o
serviço de enfermagem tem uma aliada no desenvolvimento da assistência integral,
contudo, na ausência da mãe, este mesmo serviço, juntamente com os demais membros
da equipe, deve incorporar a assistência emocional à criança, de modo a garantir a
continuidade no recebimento da afetividade. Os profissionais de saúde parecem, em
algumas situações, não perceber que na ausência da mãe a criança requer mais atenção,
carinho e proximidade.
A participação da mãe ou outro familiar, independente do modelo que propicie essa
interação, é de extrema importância para a assistência integral da criança doente. Os
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profissionais de saúde podem assumir o compromisso de tentar suprir a carência
psicológica da criança e da mãe devido ao rompimento temporário do vínculo que os
une as suas famílias e à comunidade. O estabelecimento de vínculo também pode
ocorrer entre a criança e a equipe de saúde. Pela vivência no hospital a criança passa a
conhecer os trabalhadores e a manter um relacionamento afetivo e carinhoso com os
mesmos, se houver abertura da equipe para isso. As funcionárias de enfermagem e
membros da equipe de saúde, ao se relacionarem com a criança compreendem suas falas
e entendem seus gestos e comunicação não verbal, abrindo uma prerrogativa de
amplitude no relacionamento. A equipe percebe as necessidades emocionais da criança:
Dependendo da causa de internação da criança sabe-se que há necessidade de um trabalho
psicológico e emocional mais afetivo, para que a mesma não fique traumatizada em
conseqüência de procedimentos aos quais é submetida (AS);
Acho muito importante conversar com a criança sobre o porque da hospitalização, pois ela
fica muito assustada vendo todo aquele pessoal de branco (Fo);
A criança precisa de um preparo, pois elas não endentem porque estão sendo picadas (AE1);
A assistência emocional é prioridade para quem está doente, debilitado (AE2);
Se a criança estiver bem emocionalmente, a recuperação é melhor (AE4);
Acho fundamental, pois a criança doente está carente, insegura, tem muitos fantasmas do
que está acontecendo e deveria ser melhor trabalhado quanto a sua doença e os
procedimentos que estão sendo executados, favorecendo a colaboração da criança e a
evolução clínica durante a hospitalização (Ps);
Quando a criança sabe e participa do tratamento, tudo fica mais fácil (E 5).
Concordamos com Lima (1996), quando coloca que ao se estabelecer o vínculo
pressupõe-se o estabelecimento da responsabilidade, não individual, mas do binômio
serviço de saúde/profissionais e paciente/família. Esta é outra “tarefa” que não é fácil,
mas a aposta na construção de um futuro mais solidário, fraterno e esperançoso nos
impulsiona a transpor barreiras, pois o que está em jogo não é apenas o prolongamento
da vida das crianças, mas a melhora de sua qualidade de vida.
Acreditamos que além do cuidado com o corpo biológico, a criança hospitalizada tem
outras necessidades, percebidas por meio da vivência profissional e da análise dos dados
desta pesquisa, como formação e manutenção dos vínculos, dispor de lazer, contar com a
companhia da mãe durante a internação, brincar, receber afeto, amar e ser amada, seja
pela família ou pela equipe de saúde.
Salientamos que a hospitalização da criança é, na maioria das vezes, uma experiência
traumática em razão das agressões decorrentes do ambiente hostil, de pessoas
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desconhecidas e de procedimentos que causam dor e sofrimento. Considerando que a
doença em si já é uma agressão, a criança nesta fase torna-se mais vulnerável às
alterações emocionais.
Ou seja, o desenvolvimento da criança sem traumas não depende apenas de alguns
fatores, mas do contexto que a cerca. Relacionar a possibilidade de traumas futuros ao
diagnóstico ou a algumas condutas no relacionamento com a criança carece de
profundidade de entendimento do papel social de cada membro que compõe a equipe de
saúde a fim de se conseguir a construção coletiva de um modelo de assistência que
considere a criança como um ser pleno de direitos e em toda sua complexidade.
Segundo Collet e Rocha (1996), a noção de integralidade está relacionada à não
fragmentação do cuidado em tarefas, à participação da mãe neste cuidado, à interação
com a mãe e a criança por meio do brinquedo facilitando a comunicação com ambos. A
assistência integral compreende um trabalho interdisciplinar de parceria sem eliminar a
competência
técnica
profissional
dos
agentes
envolvidos
no
cuidado.
A
interdependência do cuidado construído no cotidiano, também estabelece uma relação
de cooperação envolvendo tanto a equipe de saúde como a criança e a família.
Acreditamos que além do cuidado com o corpo biológico, a criança hospitalizada tem
outras necessidades, como formação e manutenção dos vínculos, dispor de lazer, contar
com a companhia da mãe durante a internação, brincar, receber afeto, amar e ser amada,
seja pela família ou pela equipe de saúde.
Nesse contexto, emerge também a participação da mãe no cuidado à criança
hospitalizada, a qual é percebida pela equipe como uma obrigatoriedade da mãe em
realizar os cuidados que englobam os tidos como domiciliares como a higiene, a
alimentação, sono, recreação e conforto, além de cuidados decorrentes da hospitalização
como segurar inalação e termômetro, cuidar do acesso venoso, ajudar na medicação,
comunicar anormalidades, dar apoio psicológico a fim de minimizar traumas e ajudar a
criança a aceitar o tratamento, além de contribuir para que a criança não perca sua rotina
fora do hospital. Isto é bem exemplificado com as falas a seguir descritas quando
relatam sobre a função da mãe/acompanhante na hospitalização.
Segurar inalação e termômetro (AE1);
Banho, alimentação e higienização (AE3);
Cuidar quando está no soro para não perder a veia (AE5).
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Foram abordados nas entrevistas aspectos levantados pela equipe referente à conduta da
mãe na unidade que poderiam contribuir para um ambiente favorável visando um bom
envolvimento equipe/mãe e possibilitando um meio adequado à realização da
terapêutica. Entre esses aspectos temos que a mãe não deveria interferir no trabalho da
equipe e acatar as normas e rotinas da unidade, ter boa higiene pessoal, não ficar de
quarto em quarto batendo papo, não ficar nos corredores nem no telefone “pra lá e pra
cá”, cumprir o que é solicitado pela equipe, ter uma postura de respeito e consideração
para com os profissionais, ter atitude de aceitação e participação no tratamento, procurar
se manter calma e ter paciência.
Manter a criança sempre limpa (AE3);
Não ficar de quarto em quarto batendo papo, esquecendo a criança (ASGLac.1);
Colaborar nos cuidados à criança e nas rotinas do setor, não causando problemas (Farm.);
Postura de respeito e consideração aos profissionais (E3).
Percebemos nessas colocações que a equipe se sente incomodada em sua rotina de
trabalho com a presença da mãe/acompanhante. Nesse sentido, os profissionais querem
moldar ou padronizar o comportamento da mãe de acordo com as perspectivas da
equipe e concepções pessoais.
O que se verifica no dia a dia do ambiente hospitalar, é a divisão de tarefas da
assistência e que o processo de trabalho é fragmentado por diversas intervenções
terapêuticas do médico, enfermagem, psicóloga e etc. Nesta realidade constata-se que a
mãe é outro agente do trabalho, pois ela realiza uma série de responsabilidade que
muitos profissionais delegam como sendo funções domiciliares e também alguns
cuidados de enfermagem e da equipe multiprofissional menos complexas às mães, como
cuidar do soro, auxiliar na medicação, acalmar a criança na punção, desenvolver
atividades recreativas, além de ter papel informativo para a equipe. Tem-se que algumas
atividades são importantes que a própria mãe desenvolva para que se sinta mais
participativa no processo de hospitalização. Contudo, em muitos casos vemos que as
mães têm sido responsabilizadas por funções que elas não têm preparo técnico nem
psicológico para desenvolvê-las e que a equipe, por não ter tido uma negociação prévia
desses cuidados com a família, acaba por delegar funções que não são de competência
materna, desresponsabilizando-se de suas funções (LIMA et al., 1999).
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Esses autores ainda referendam que as crianças são beneficiadas quando os pais
participam dos cuidados, entretanto, os enfermeiros apresentam atitudes negativas em
relação a eles. A partir do momento que a enfermagem delega à mãe determinadas
ações, nota-se que a mãe/acompanhante passaria a interagir com a equipe de
enfermagem em relação aos cuidados prestados à criança, essa situação faz com que
esses profissionais sintam-se controlados em suas ações, uma vez que essa
mãe/acompanhante estará questionando, emitindo opiniões, constituindo-se como parte
do processo de trabalho desses profissionais, os quais nem sempre aceitam ou
compreendem essa situação.
Observamos ainda que a equipe entende como uma participação no cuidado o
cumprimento de normas e rotinas, o respeito e consideração para com a equipe; boa
organização do ambiente em que a mãe está, enfim, o cumprimento do solicitado pela
equipe, além de manter uma postura passiva: “seguir as normas do hospital e procurar
se manter calma” (P21).
É de grande importância que haja uma negociação prévia entre a equipe e a família
sobre o que os pais gostariam e teriam condições de participar, identificando a melhor
forma de trabalharem, amenizando situações problemáticas no decorrer da
hospitalização da criança (IMORI, et al., 1997).
Antes do funcionamento do ACP, a enfermagem fazia todos os cuidados físicos para a
criança. Os procedimentos eram realizados sem a presença do olhar observador e crítico
das mães e a enfermagem podia tomar atitudes sem ser avaliada por uma terceira
pessoa, nem precisava se preocupar com questionamentos, apenas realizava com os
procedimentos. Assim, “era mais fácil”, pois a enfermagem não sentia a necessidade de
explicar seu que-fazer, não se sentia invadida em seu território profissional e não
precisava explicar os cuidados realizados. Por outro lado, procuravam entender a
angústia das mães ao terem que deixar seus filhos sozinhos no hospital.
Quando da implantação do ACP houve resistência por parte da maioria dos profissionais
quanto à permanência da mãe em período integral. Depois de algum tempo de
convivência da equipe com as mães, a resistência quanto à presença desta na unidade
muda de enfoque. Antes a equipe não aceitava a permanência de uma pessoa estranha ao
seu território, além do doente propriamente dito. Todavia, ao perceber os benefícios da
presença da mãe para a criança, assim como para o desenvolvimento de seu trabalho, a
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resistência da enfermagem passa a estar relacionada às atitudes das mães no cotidiano da
assistência, afirmando que há algumas mães que seria melhor se não estivessem no
hospital, pois apresentam atitudes e comportamentos que podem prejudicar a recuperação
da saúde do filho. A participação das mães na assistência à criança hospitalizada foi
introduzida desde que as mesmas começaram a permanecer em período integral no
hospital junto do filho. Contudo, no hospital em estudo ainda identificamos
profissionais que demonstram resistência da permanência da mãe junto ao filho durante
a realização de procedimentos e até dizem que as mães “atrapalham” e condicionam sua
permanência ao não atrapalhar.
A relação que vai sendo construída, nesse contexto, demonstra, implícita ou
explicitamente, as nuanças de como a equipe lida com as situações singulares
experenciadas por cada um e no contato entre ambos. É na relação com o outro, e por
meio do outro, que o ser passa a assumir a sua existência humana, começa a conhecerse e a reconhecer-se como um ser único, manifestando sua própria maneira de ser
(MOTTA, 1998).
No hospital, a mãe passa por um processo de adaptação à dinâmica de trabalho aí
existente e, na relação com a equipe de profissionais que aí atuam, manifesta sua
maneira singular de ser, de acordo com as próprias experiências pelas quais passará
durante o período que lá permanecer.
A equipe, por sua vez, está familiarizada com o ambiente, mas precisa estar alerta a
estas singularidades das mães, ao mesmo tempo em que traz para a relação suas próprias
singularidades, para que possa criar veios de contato, comunicação (sintonia) e
interação (envolvimento) com as mães (ERSKINE; TRAUTMANN, 1997).
A presença afetiva da equipe junto à mãe–criança demonstra que o afeto tem uma
função importante no relacionamento que aí se estabelece. As necessidades relacionais
podem ser captadas por meio da escuta e de comportamentos da mãe e da criança para
podermos entender sua comunicação. Assim, poderemos começar a desenvolver a
sensibilidade para estabelecer essa sintonia com o binômio mãe–criança no ambiente
hospitalar. Mas, a sintonia é mais do que uma empatia, é um processo de comunhão e a
unidade do contato interpessoal pode ser facilitada pela capacidade da equipe de
focalizar o processo do binômio mãe–criança e de sua forma de interpretar e interagir
nesse processo (ERSKINE; TRAUTMANN, 1997).
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Ao estar sintonizada, a equipe torna possível um relacionamento mais dinâmico, do
contrário, continuará cumprindo tarefas sem interagir, desenvolvendo atividades sem
envolvimento.
Nesse momento pretendemos também trazer a luz da discussão aspectos como o
relacionamento entre a equipe, recursos humanos, inter-relação com outros setores de
assistência, atendimento de necessidade físicas e emocionais dos componentes da
equipe de saúde, formas de resolução de problemas familiares e de trabalho, conforme
podemos apreender nas falas transcritas a seguir: “não existe em meu local de trabalho,
procuro contornar o problema, tento resolver da melhor forma” (Fo), “meus problemas
familiares procuro resolver em casa, não misturo, e no emprego, resolvo aqui mesmo”
(AE1), “me isolo no meu quarto, choro quando tenho vontade, penso muito e tomo a
decisão que for preciso” (AE2), “com a família eu resolvo em casa, quanto ao emprego
não sei, nunca tive nada sério ainda” (AE4) “entre os colegas de turno, considero uma
boa relação entre a equipe, mas tem dias que não levanto bem, fico mal-humorada; tento
resolver de imediato o problema no local em que ele ocorra, sou direta, falo na hora”
(AE5), “encaro o problema e procuro solucioná-lo, envolvendo o menor número de
pessoas possível” (E3), “com a família, problemas familiares, no emprego com a
chefia” (E4), “procuro apoio com minha família ou amiga” (E5).
Fica aparente que existem dificuldades cotidianas no processo de trabalho da equipe,
porém estas não permitem uma análise acurada dos significados.
No modelo clínico de assistência ora vigente no sistema de saúde, especialmente nas
organizações hospitalares, a produção de serviços efetiva-se no constante conflito e
negociação entre os diversos poderes e saberes que o compõem. Em nossa experiência
profissional, temos observado quotidianamente que o modelo de racionalidade do poder
administrativo adotado nos serviços hospitalares está estruturalmente dominado pelo
modelo da racionalidade médica, o que resulta num campo permeado de conflitos e
negociações entre os diferentes poderes e saberes, tendo, estrategicamente, as formas do
poder médico como nucleares na lógica da produção e reprodução dessas instituições.
Assim, o hospital é um locus privilegiado para analisar a transformação das relações de
trabalho. A compreensão das determinações histórico-sociais do poder nessa instituição
possibilita-nos intervir como agentes sociais na sua definição, ao invés de executar
passivamente as resoluções advindas de cima para baixo.
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Conclusões
O saber e a competência técnica de cada profissional outorgam-lhe um poder
correspondente. O médico, na produção e reprodução dos serviços hospitalares no
modelo clínico vigente, ocupa o poder nuclear na medida em que ele é o profissional
que institui o processo de diagnóstico e terapêutica. Todos os outros profissionais e seus
saberes: bioquímico, fisioterapêuta, nutricionista, enfermeiro, psicólogo, fonoaudiólogo
e outros, entram em cena a partir de um indicativo médico. É este quem desencadeia
todo o processo de restabelecimento da saúde ao corpo biológico doente.
Nas relações que são estabelecidas no contexto hospitalar vão aparecendo conflitos de
ordem técnica e administrativa e o caminho tomado para resolvê-los é o da negociação.
As relações de trabalho conflituosas, competitivas e alienantes no setor saúde podem ser
explicadas não como desvio que pode ser tratado com medidas administrativas, mas sim
como inerente ao processo de alienação do trabalhador no controle sobre seu processo
de trabalho. Portanto, qualquer mudança que se pretenda realizar, levando em
consideração a satisfação no trabalho e a recuperação da capacidade criativa da pessoa,
precisa ter a coragem de superar os interesses corporativos e a lógica da organização
capitalista do trabalho como forma de devolver ao homem a sua integridade.
Foulcault (1995) analisa historicamente o poder enquanto instrumento capaz de explicar
a produção dos saberes. O poder é entendido como estratégia, como relação de forças
disseminadas e presentes em todas as relações, em qualquer processo na forma de um
sistema de dominação já estabelecido. Nesta perspectiva, a possibilidade de resistência,
de contra-poder, encontra-se presente em toda a trama ou rede de poder, como pontos de
resistência indefinidos, dinâmicos, variáveis, passíveis de desencadear rupturas nas
diferentes relações sociais.
Os espaços de conflito exigem constantes processos de negociações nas relações
cotidianas que nem sempre são estabelecidos de imediato, mas faz-se necessário a
compreensão, reflexão e (re)construção permanente das ações e relações.
Como não há incompatibilidade explícita entre as regras das quais falamos, pode haver,
em determinadas situações, incompatibilidade entre interesses específicos produzindo
situações de conflito cuja resolução passa pela cumplicidade de interesses ou, quando há
divergência de interesses, passa pela negociação através da troca de favores, cedência de
algumas parcelas do poder de decisão ou invasão recíproca de territórios e funções.
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As situações de tensão giram em torno dos problemas resultantes de perturbações das
fronteiras que demarcam os territórios e funções dos profissionais, espaços permitidos e
proibidos. Criam-se zonas de indeterminação e ambigüidade em que serão negociados
os saberes, porém, conservando intacta a relação de poder, um poder disciplinar.
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PROCESSO DE TRABALHO EM PEDIATRIA