UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS SANDRO LUCKMANN EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA TERRA INDÍGENA GUARITA Um olhar sobre a trajetória missionária indigenista da IECLB e COMIN Ijuí, Rio Grande do Sul 2011 SANDRO LUCKMANN EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA TERRA INDÍGENA GUARITA Um olhar sobre a trajetória missionária indigenista da IECLB e COMIN Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Educação nas Ciências, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UMIJUI, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências. Orientador: Walter Frantz Ijuí, Rio Grande do Sul 2011 DEDICATÓRIA Dedicado às pessoas que, de diversas formas, participaram do fazer a história aqui abordada. Às pessoas que contribuíram no fazer desta investigação e dissertação. Às pessoas próximas e nem tão próximas que contribuíram e possibilitaram o fazer-se pesquisador e parceiro de reflexão. Dedicatória especial (em memória) ao professor kaingang Natalino Góg Crespo (25.12.1961 - 01.03.2011), que completaria 50 anos de vida neste ano. Uma vida dedicada à educação escolar concebida a partir da realidade e cultura kaingang. AGRADECIMENTO Agradecimento às muitas pessoas que tornaram este momento possível. Desde muito tempo, antes mesmo de iniciar o tempo de pesquisa. Das diferentes etnias. Dos diferentes lugares, nos continentes sulamericano, europeu e asiático. Lugares e pessoas com quem se experimentou e compartilhou reflexões, momentos e experiências de vida. Foram trilhas, caminhos, morros, planícies, terra, mar, ar, portas, janelas, malocas e casas que mudaram e mudam a nossa visão do mundo. Agradecimento às instituições Ecumenical Scholarship Programe/Diakonisches Werk der Evangelischen Kirche in Deutschland; Assessoria de Assuntos Internacionais da UNIJUÍ; Serviço de Projetos de Desenvolvimento em Educação (PróEduc/IECLB); Conselho de Missão entre Índios (COMIN/IECLB), que possibilitaram institucionalmente a realização deste período de estudo, pesquisa, reflexão e desafio. RESUMO A presente pesquisa aborda a historiografia e o envolvimento da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e do Conselho de Missão entre Índios (COMIN) com a educação escolar indígena na Terra Indígena Guarita. O envolvimento da IECLB/COMIN inicia com a instalação da Escola Evangélica Indígena na TI Guarita (03/03/1961). Inicialmente participou da proposta oficial de política indigenista brasileira, que estipulava a educação escolar como espaço e meio para a integração das comunidades indígenas à sociedade brasileira. Na década de 1980, ocorrem mudanças na ação indigenista da IECLB, evidenciada pela criação do COMIN. A alteração no perfil de atuação é influenciada pela solidificação do movimento indígena, exaltando o reconhecimento jurídico e estatal com a Constituição Federal de 1988 e as legislações específicas à educação escolar indígena que a seguem. Assim, pauta-se uma educação escolar indígena como política pública de garantia à educação diferenciada, bilíngue e intercultural, tendo a comunidade indígena como sujeito, no estímulo à plena cidadania dos povos indígenas do Brasil. A partir desse referencial, as ações da IECLB/COMIN se caracterizam pela ação em espaço público da educação escolar, como entidade de apoio, assessoria e diálogo com a comunidade kaingang na capacitação, qualificação, produção e definição da educação escolar kaingang. Outra característica que se pauta é a atuação na perspectiva da interculturalidade, na qual se estimula a troca de saberes e ciências da comunidade kaingang e da sociedade não indígena. A pesquisa objetiva a reflexão sobre as motivações do envolvimento com a educação escolar indígena, abordando as contribuições e dificuldades estabelecidas pela atuação indigenista da IECLB/COMIN entre as décadas de 1960 e 2000, quais os referenciais que possibilitaram partir de uma educação formal e integracionista para uma educação intercultural, de uma política de substituição da função pública da educação para a atuação no espaço público da educação. Palavras-chave: Educação Escolar Kaingang; Terra Indígena Guarita; Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil; Educação Intercultural. ABSTRACT The present research deals with the historiography and the involvement of the Evangelical Church of Lutheran Confession in Brazil (IECLB) and the Mission Council among the Indigenous with the indigenous school education at the Guarita Indigenous Land. IECLB/COMIN involvement starts with the installation of the Indigenous Evangelical School at Guarita (03/03/1961). Initially it took part in the official Brazilian indigenist policy proposal that stipulated the school education as space and means for the indigenous communities’ integration to the Brazilian society. In the 1980s there were changes in the indigenist activity at IECLB, evidenced by the creation of COMIN. These changes were influenced by the indigenous movement solidification, exalting the legal and state acknowledgement with the Federal Constitution of 1988 and the specific legislation that follows concerning the indigenous school education. Thus comes out an indigenous school education public politics that guarantees a differentiated, bilingual and intercultural education, with the indigenous community as the subject, stimulating the full citizenship of Brazilian indigenous peoples. Based on this referential the IECLB/COMIN activities are characterized by the action in the school education public space, as an entity of support, counseling and dialogue with the kaingang community for the capacitation, qualification, production and definition of the kaingang school education. Another characteristic is the action from the interculturality perspective, in which the knowledge and science exchange between the kaingang community and the non-indigenous society is stimulated. The research aims for the reflection about the motivations for the involvement with the indigenous school education, dealing with the contributions and difficulties established by IECLB/COMIN indigenist work between the decades of 1960 and 2000. Which are the referentials that allowed to change from a formal and integrationist education to an intercultural education. From a politics of replacement of the education public role to the action in the educational public space. Keywords: Kaingang School Education; Guarita Indigenous Land; Evangelical Church of Lutheran Confession in Brazil, Intercultural Education. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Mapa dos dialetos kaingang ...................................................................................... 16 Figura 2: Mapa do território kaingang no século XIX ............................................................. 42 Figura 3: Porteira do Posto SPI – Guarita, década de 1950 ........................................ .............58 Figura 4: Terras Indígenas no norte e noroeste rio-grandense ................................................. 64 Figura 5: Prédio da CTPCC, no Setor Km 10 / Guarita ........................................................... 93 Figura 6: Curso complementar ao Ens. Fundamental, E.E.E.M. Américo dos Santos .......... 117 Figura 7: Casas, depósitos e escola do Posto Indígena Guarita (1944) .................................. 127 Figura 8: Grupo de crianças kaingang, alunas da Escola do Posto Indígena Guarita (1947) .............................................................................................................................................. 1277 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANAÍ – Associação Nacional de Apoio ao Índio APBKG – Associação de Professores Bilíngues Kaingang e Guarani CAMP – Centro de Assessoria ao Movimento Popular CAPA – Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, órgão vinculado à IECLB CEAI – Centro Educacional e Assistência Educacional CF 88 – Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 out. 1988 CIMI – Conselho Missionário Indigenista, órgão da Igreja Católica Apostólica Romana COMIN – Conselho de Missão entre Índios CONEEI – Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena CPQI – Centro de Pesquisa da Questão Indígena do COMIN CTPCC – Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão E.E.I.E.F. – Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental EEI – Educação Escolar Indígena EST – Escola Superior de Teologia da IECLB FUNAI – Fundação Nacional do Índio IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil LDB – Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 dez. 1996 MCB – Movimento Comunitário de Base MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário MEC – Ministério da Educação MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra NEI – Núcleo de Educação Indígena, vinculado à Secretaria Estadual de Educação/RS NIT/UFRGS – Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais, UFRGS ONISUL – Organização das Nações Indígenas do Sul PPIGRE – Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia ProLInd – Programa de Licenciatura Indígena SEC/RS – Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade SEE/RS – Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul SIL – Summer Institute of Linguistic SPI – Serviço de Proteção ao Índio TI – Terra Indígena UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UnB – Universidade de Brasília UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UPF – Universidade Passo Fundo URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9 1 APROXIMAÇÕES AO POVO KAINGANG ................................................................... 14 1.1 CARACTERIZAÇÕES ÉTNICAS .................................................................................... 14 1.1.1 Língua e escrita kaingang ................................................................................................ 15 1.1.2 Organização sociocultural e sociopolítica ....................................................................... 17 1.1.3 Educação kaingang .......................................................................................................... 23 1.2 SOBRE A OCUPAÇÃO TERRITORIAL ......................................................................... 28 1.3 CONFRONTOS INTERÉTNICOS COM A FRENTE COLONIZADORA ..................... 30 1.3.1 Kaingang e as reduções jesuíticas ................................................................................... 31 1.3.2 Período pós-jesuítico e século XIX ................................................................................. 37 1.3.3 A demarcação territorial da TI Guarita e o SPI – FUNAI: século XX ............................ 55 2 IECLB: IMIGRAÇÃO, EDUCAÇÃO E POVOS INDÍGENAS..................................... 66 2.1 UMA IGREJA DE MIGRAÇÃO NO BRASIL – IECLB ................................................. 66 2.2 IMIGRANTES, IGREJA E POVOS INDIGENAS ........................................................... 73 2.3 MISSÃO NA TI GUARITA .............................................................................................. 81 2.3.1 Fundação e propósitos da Missão Guarita ....................................................................... 81 2.3.2 O curso de formação de monitores bilíngue .................................................................... 86 2.3.3 Escola Marechal Rondon e a transição ............................................................................ 94 2.3.4 A retirada da Missão Guarita: 1985 ................................................................................. 99 2.4 A AMPLIAÇÃO DAS AÇÕES DA MISSÃO GUARITA/COMIN ............................... 102 2.4.1 Consolidação na ampliação das ações missionárias indigenistas .................................. 103 2.4.2 O COMIN e a consolidação da EEI .............................................................................. 108 2.4.3 A trajetória no século XXI ............................................................................................ 116 3 REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA INDIGENISTA NA EEI ............................. 123 3.1 O BILINGUISMO E A AUTONOMIA NA EEI ............................................................. 124 3.2 A INTERCULTURALIDADE NA EEI ........................................................................... 142 3.3 A EEI E A TERRITORIALIDADE ................................................................................. 146 PARA CONTINUAR REFLETINDO, APOIANDO, ... ... ............................................... 151 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 155 INTRODUÇÃO O tema dissertado, sobre a educação escolar kaingang e a atuação da IECLB/COMIN, resulta da atuação do autor junto às comunidades escolares kaingang na região noroeste riograndense, sobretudo na Terra Indígena (TI) Guarita. O autor é membro da equipe do Conselho de Missão entre Índios, órgão vinculado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (COMIN-IECLB) que atua no apoio e assessoria aos povos kaingang e guarani na bacia hidrográfica do Rio Uruguai. A motivação para a pesquisa ocorre do envolvimento missionário indigenista junto aos kaingang. A pesquisa objetiva a reflexão sobre a educação escolar indígena na atuação missionária indigenista da IECLB e COMIN entre as décadas de 1960 e 2000 na TI Guarita, atuação que inicia na persuasão ao bilinguismo e constituição/consolidação da língua kaingang (em sinais gráficos do alfabeto latino), que, posteriormente, se constitui no apoio e acompanhamento à comunidade kaingang, visando à autonomia e autodeterminação desta na educação escolar. Concebe-se, como hipótese, que a mudança da postura na atuação da IECLB e COMIN é condizente com a percepção e consideração da mobilização indígena para o reconhecimento da plena cidadania, autodeterminação e constituição de políticas públicas específicas à diversidade étnico-indígena no Brasil no transcurso da segunda metade do século XX, pois tais mudanças na prática missionária indigenista ocorrem concomitantes à mobilização indígena. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) se estabelece em solo brasileiro a partir de 1824, com a chegada de imigrantes germânicos, porém se constitui como unidade eclesiástico-administrativa em 1968, com sede em Porto Alegre/RS. Contudo, a ação missionária indigenista mais antiga e contínua da IECLB são as atividades desenvolvidas na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, sobretudo na TI Guarita, ação esta que teve início com uma visita pastoral (set/1960) e a instalação da Escola Primária Evangélica, 10 destinada à comunidade kaingang da TI Guarita, em março de 1961. A partir dessa ação, estabelece-se a educação escolar como uma das principais e permanentes ênfases de ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN. Inicialmente, a atuação missionária indigenista participou da política indigenista brasileira, que estipulava a educação escolar como espaço e meio para a integração das comunidades indígenas à sociedade brasileira, evidenciada pelo convênio IECLB-FUNAISIL1 para a formação de monitores indígenas bilíngues pelo Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão. Destaca-se que, nesse período, correspondente às décadas de 1960 e 1970, a atuação ocorreu em substituição ou em consonância com o poder público estatal na implantação da educação escolar na TI Guarita. A década de 1980 é pautada pela mudança do perfil da ação indigenista da IECLB, evidenciada pela criação do COMIN. A saída da equipe missionária da TI Guarita em 1985 torna-se um evento significativo na trajetória histórica, com mudanças na atuação indigenista em educação escolar, sobretudo nas décadas seguintes, de 1990 e 2000. No entanto, a alteração no perfil de atuação é influenciada, sobretudo, pela solidificação do movimento indígena, exaltando o reconhecimento da plena cidadania na Constituição Federal de 1988 e as legislações específicas à educação escolar indígena que a seguem. Assim, pauta-se uma educação escolar indígena como política pública que garanta a educação diferenciada, bilíngue e intercultural, tendo a comunidade indígena como sujeito. A educação escolar indígena é pautada como meio de estímulo à plena cidadania dos povos indígenas do Brasil. A partir desse referencial, as ações da IECLB/COMIN se caracterizam pela atuação em espaço público da educação escolar, como entidade de apoio, assessoria e diálogo com a comunidade kaingang na capacitação, qualificação, produção e conceituação da educação escolar kaingang. Nessa última dinâmica, da constituição da educação escolar kaingang, concebe-se que a educação escolar kaingang se paute na perspectiva do bilinguismo, da autonomia e da interculturalidade, na qual se estimula o reconhecimento e o intercâmbio da ciência e dos saberes da comunidade kaingang e da sociedade não indígena, perspectivas essas que ainda se inserem na questão da territorialidade kaingang. A educação escolar e as questões territoriais estiveram e estão inter-relacionadas, sendo postuladas como desafio na construção de uma sociedade paritária, justa e dialogal, a que se propôs a ação missionária indigenista em apreço. 1 FUNAI: Fundação Nacional do Índio; SIL: Summer Institute of Linguistics/Associação Internacional de Linguística. 11 No presente ano (2011), a IECLB celebra cinquenta anos de ação missionária indigenista no Brasil. A celebração jubilar considera o período de ação permanente e contínua junto aos povos indígenas, iniciada em 1961. No ano vindouro (2012), celebrar-se-ão os trinta anos de atividades do Conselho de Missão entre Índios (COMIN), órgão assessor e de coordenação da ação missionária indigenista da IECLB, criado em 1982. Assim, a dissertação também se constitui como espaço de reflexão nas celebrações jubilares. Neste contexto, cabe refletir sobre o que significou e significa a implantação do bilinguismo como esteio da educação escolar indígena. Da mesma forma, cabe a reflexão sobre a disposição atual de considerar a educação escolar indígena como espaço de articulação para uma educação intercultural. A estrutura da dissertação está organizada em três capítulos. No primeiro capítulo, são abordadas questões concernentes ao povo kaingang, ressaltando-se as informações e o histórico da comunidade kaingang, vinculado ao espaço geográfico de abrangência e proximidades da TI Guarita. Nesse capítulo, são apresentadas as principais características culturais e uma breve historialização da presença kaingang na região entre os rios Guarita e Turvo, no Rio Grande do Sul, a partir do século XVII. O segundo capítulo aborda a atuação da IECLB e do COMIN. O capítulo inicia com um breve histórico da chegada dos imigrantes germânicos ao Rio Grande do Sul no século XIX. Destacam-se os confrontos e disputas territoriais que as famílias imigrantes tiveram com o povo kaingang e a disposição e preocupação das famílias imigrantes com a educação escolar ao implantarem escolas concomitantemente aos templos. Também se aborda brevemente o processo histórico da constituição da IECLB, como unidade eclesiástico-administrativa, entre as décadas de 1940 e 1960. O capítulo privilegia a apresentação do histórico de atuação da IECLB junto aos kaingang, na TI Guarita, atuação iniciada com a implantação da Escola Primária Evangélica na TI Guarita, que se estabelece com a instalação da Missão Guarita e do Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão (CTPCC), privilegiando as ações referentes à educação escolar com a comunidade kaingang. Enfatiza, também, o histórico de atuação e prioridades das ações missionárias indigenistas estabelecidas a partir da criação do Conselho de Missão entre Índios, como órgão assessor e de coordenação da ação missionárioindigenista da IECLB, em 1982. Complementando o resgate histórico da ação missionária indigenista da IECLB/COMIN, aborda-se ainda a continuidade dos trabalhos desenvolvidos a partir da segunda metade da década de 1980, quando se consolida a alteração na postura de atuação missionária indigenista junto aos kaingang. Destaque às atividades desenvolvidas em 12 parcerias, realizadas na década de 1990 e 2000, como: o Curso de Formação de Professores Indígenas; o acesso de kaingang ao ensino superior; elaboração de material didático; políticas públicas de educação escolar indígena; entre outras. Ressalta-se que o segundo capítulo trata da atuação missionária indigenista da IECLB e COMIN na educação escolar junto à comunidade kaingang. A disposição desta pesquisa é organizar uma linha temporal de atuação na educação escolar kaingang. Contudo, ressalta-se que, apesar da densidade das informações apresentadas, motivada pelas diferentes perspectivas da ação missionária indigenista e da política pública de educação escolar indígena, não se constitui em uma análise da totalidade das ações e envolvimentos da ação missionária indigenista. A apresentação e análise da trajetória objetiva, sim, evidenciar as alterações ocorridas nesse processo. Menciona-se que o início da atuação missionária indigenista da IECLB e COMIN esteve calcado na política integracionista da população indígena à sociedade nacional, para uma postura de respeito e reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas e da educação escolar intercultural. O terceiro capítulo apresenta a reflexão sobre bilinguismo, autonomia, interculturalidade e territorialidade na perspectiva da EEI, pontuando os desafios que tais princípios estipulam. As reflexões apresentadas transcorrem tanto na perspectiva conceitual como a partir de considerações de agentes kaingang e aspectos da atuação missionária indigenista da IECLB e COMIN nesse processo. A reflexão e as considerações incluem conclusões e demandas definidas na I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, da qual participaram delegados kaingang formados e capacitados por cursos promovidos pela IECLB/COMIN, bem como delegados representantes da IECLB/COMIN. Ao final do capítulo terceiro, são apresentadas algumas questões sobre o tema da garantia e do respeito à territorialidade kaingang. A inter-relação entre a EEI e o esbulho territorial que afligiu as comunidades kaingang, desde os primeiros contatos interétnicos até o presente momento, constitui-se num desafio na mediação intercultural. A elaboração da dissertação constituiu-se na perspectiva metodológica da interdisciplinaridade, enfatizando as questões concernentes à educação escolar entre os kaingang, ao tomar elaborações de diferentes disciplinas, como a História e a Antropologia (etnografia). A elaboração constitui-se de acordo com a periodização temporal dos relatos históricos analisados, mantendo uma sequência cronológica. Os períodos temporais foram organizados de acordo com os acontecimentos históricos ou sistematizados de acordos com os interesses e o objetivo da pesquisa. 13 A pesquisa também se propõe a aproximar conhecimentos, refletir conceitos e dinâmicas ocorridas na fronteira intercultural entre duas sociedades distintas, kaingang e não indígena. Assim, opta-se em privilegiar (quando possível) a fala, a escrita, a forma de contar a história e o modo de ser dos próprios kaingang, evidenciando que a história é contada a partir de diferentes perspectivas, com diferentes nuances. Para tanto, as reflexões e referências são elaboradas a partir de material bibliográfico, buscando destacar e privilegiar os materiais de autoria indígena ou, então, que apresentem manifestações, entrevistas ou relatos de indígenas. A proposta também é elaborada na conceituação e desdobramentos dos conceitos de autonomia, autodeterminação, territorialidade, bilinguismo, sobretudo no terceiro capítulo. Ressalta-se que se realizou pesquisa em arquivos históricos, como: Centro de Pesquisas da Questão Indígena do COMIN (CPQI-COMIN); Arquivo Histórico da IECLB (São Leopoldo/RS); Museu Antropológico Diretor Pestana, vinculado à UNIJUÍ-FIDENE; Paróquia Evangélica de Tenente Portela (Tenente Portela/RS). A dissertação e a inserção do autor no curso de pós-graduação se integram à linha de pesquisa “Educação Popular em Movimentos e Organizações Sociais”, do Programa de PósGraduação de Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (PPGEC-UNIJUÍ). A linha de pesquisa contribuiu no se fazer pesquisador, desafiando o autor da dissertação à reflexão da prática militante, que executa como membro das ações missionárias indigenista na IECLB/COMIN. A investigação e a elaboração no espaço acadêmico científico obviamente se pautam por princípios e ritos distintos da práxis militante. Contudo, ambas não se dissociam, como proposto e reafirmado pela linha de pesquisa nesse curso de mestrado. Cabe destacar, ao finalizar esta introdução, que, no decorrer das pesquisas para a elaboração da dissertação, possibilitou-se a doação dos arquivos pessoais de Norberto Schwantes († 17.09.1988), com anotações em português e alemão e registros fotográficos do início da ação missionária indigenista da Paróquia Evangélica de Tenente Portela, paróquia membro da IECLB, na TI Guarita. A doação foi concedida pela Sra. Gertrudes Schwantes2 ao Arquivo Histórico da IECLB. O material torna-se relevante, carecendo de outras pesquisas e estudos, sobretudo por se tratar de uma ação que extrapola as fronteiras e barreiras confessionais, sociológicas, étnicas, entre outras. Outro desafio interdisciplinar e intercultural. 2 A Sra. Gertrudes Schwantes é viúva de Norberto Schwantes e participou do início das atividades de atuação missionária indigenista na TI Guarita. Ela cedeu material durante visita do autor a sua residência (Brasília-DF) em novembro de 2009. 1 APROXIMAÇÕES AO POVO KAINGANG O objetivo, neste primeiro momento, é apresentar o povo kaingang ressaltando alguns aspectos e considerações importantes para a abordagem do tema dissertado. Entende-se que é necessário reconhecer a voz, o rosto, o corpo e a presença dos kaingang como entes de interação e convívio histórico-social neste espaço e tempo, no contexto da multietnicidade e pluriculturalidade brasileira. Também se concorda com a manifestação do docente kaingang Natalino Góg Crespo († 01.03.2011) de que se “contasse a história a partir de um ponto de vista Kaingang. Como ensinar, numa reserva Kaingang hoje em dia, que os índios vivem da caça e pesca como dizem os livros?” (VYJKÁG, 1997, p. 28-9). Entende-se que a postura de como ensinar conforme o que está escrito nos livros não se refere tão somente ao desafio da educação escolar kaingang, mas também a todos os sistemas de ensino. O desafio de contar a história a partir de outros pontos de vista enriquece e desafia, pois significa desalojar-se do supostamente conhecido e seguro. Nesta perspectiva, apresentar-se-á algumas considerações sobre a etnografia e a presença histórica e territorial kaingang, privilegiando as informações referentes ao espaço geográfico dos rios Guarita e Turvo, no atual território do Estado do Rio Grande do Sul. 1.1 CARACTERIZAÇÕES ÉTNICAS A denominação “kaingang” visa estabelecer o reconhecimento e a autoidentificação étnica da população falante da língua kaingang na região sul brasileira. Atualmente, a maior densidade populacional kaingang está “nas terras indígenas regularizadas e oficialmente demarcadas pela União, através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI3)” (SOUZA, 2002, p. 24). A demarcação de terras indígenas visa garantir espaços para a preservação cultural, direito consuetudinário garantido na Constituição Federal. No entanto, sabe-se que, no transcorrer do processo histórico, ocorreram mudanças significativas aos povos indígenas. Destacam-se aqui algumas que afligiram a comunidade kaingang: desmatamento; concentração da população; alteração de hábitos e práticas tradicionais; introdução de novas 3 FUNAI – Fundação Nacional do Índio, órgão público vinculado ao Ministério da Justiça, criado pela lei nº 5.371, de 05 de dezembro de 1967, que é “responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988” (Disponível em: <http://www.funai.gov.br/> Acesso em: 15 ago. 2011). 15 práticas alimentares e medicinais. Contudo, a caracterização étnica distinta da sociedade não indígena ainda é presente. Reconhece-se que o povo kaingang constitui “uma grande nação que se subdividia em grupos locais de famílias entrelaçadas, mas que guardava padrões culturais e sociais semelhantes” (FRANCISCO, 2006, p. 13). A seguir, serão apresentadas características étnicas ou padrões culturais relevantes a uma “aproximação” aos kaingang, bem como pertinentes à dissertação. 1.1.1 Língua e escrita kaingang Os povos indígenas no Brasil são organizados de acordo com os troncos linguísticos, que pressupõem uma origem comum, mas, no transcorrer do tempo, se estabelecem manifestações diversas (RODRIGUES, 2002, p. 29). No Brasil, são reconhecidos dois grandes troncos linguísticos entre os povos indígenas: Tupi e Macro-Jê. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), ainda existem famílias linguísticas que não são agrupadas em troncos e outras consideradas como “línguas isoladas”, por não se assemelharem a outra conhecida. O povo kaingang pertence ao tronco linguístico Macro-Jê, que é reconhecido somente no território brasileiro, encontrando falantes deste o sul do Pará e Maranhão até o Rio Grande do Sul. De acordo com critérios geográficos, socioculturais e linguísticos, o tronco Macro-Jê é subdividido em três grupos: os Jê Setentrionais [Kayapó, Timbira e outros], os Jê Centrais [Akwen, Xavante, Xerente e outros] e os Jê Meridionais [Xokleng e Kaingang]. Segundo Rosa (2005, p. 29), “os Kaingang se constituem na primeira etnia do tronco Macro Jê e a segunda etnia do território brasileiro”. O linguista D’Angelis (200-, p. 1) ressalta o fato de que “a língua Kaingang é uma das línguas com maior número de falantes entre as línguas indígenas do Brasil”. A constituição e revisão da grafia da língua kaingang em sinais gráficos latinos é recente. Ocorre a partir do trabalho desenvolvido por Úrsula Wiesemann junto à comunidade kaingang de Rio das Cobras (Laranjeiras do Sul/PR). A pesquisadora, entre os anos de 1958 e 1966, junto com Pedro Fẽnkanh Rosário, João Maria Vẽnhkág Pereira, Pedro Krẽjuja Barão, Candoca Fidêncio, Emília Krugnĩnh Ribeiro e Valdomiro Vigtar Ribeiro, organizou uma base sistemática e científica, sobretudo para a revisão do padrão silábico da escrita kaingang (WIESEMANN, 2002, p. 8). 16 Wiesemann (2002, p. 08) identifica, em 1971, numa publicação provisória de dicionário kaingang, cinco dialetos da língua kaingang. A antropóloga Juracilda da Veiga (2006, p. 57) referenda a identificação de Wiesemann ao tratar da organização social dos kaingang, explicitando a região geográfica de cada dialeto: A língua Kaingang possui, de fato, dialetos, que são cinco na análise de Wiesemann: São Paulo, ao norte do Paranapanema; Paraná, entre Paranapanema e Iguaçú; Central, entre Iguaçú e Uruguai; Sudoeste, ao sul do Rio Uruguai e oeste do Rio Passo Fundo; Sudeste, ao sul do Rio Uruguai e leste do Passo Fundo. Figura 1: Mapa dos Dialetos Kaingang Fonte: Veiga, 2006, p. 59. 17 Sobre a persistência no uso dos dialetos no século XXI, Wiesemann (2002, p. 8-9) afirma a existência de tais dialetos, acrescentando “a preocupação de ter uma língua de comunicação para o grupo como um todo, especialmente na sua forma escrita”. Para a linguista, há o reconhecimento e opção do dialeto “Paraná” como diferencial, ressaltando que o dialeto São Paulo pode correr risco de se tornar uma língua morta, uma vez que os falantes “estão deixando o uso da língua Kaingang em favor do Português”. Ainda conforme Wiesemann, há constantes mudanças no uso da língua kaingang em virtude das migrações e intercâmbios entre grupos e famílias das diferentes regiões dos dialetos. Apesar de Wiesemann apontar a preferência pelo dialeto Paraná como padrão da escrita kaingang, ela reconhece a necessidade da harmonização da escrita entre os diferentes dialetos, tendo que “abandonar certas variações morfológicas do dialeto do Paraná, por serem antigas e quase desconhecidas nos outros dialetos” (WIESEMANN, 2002, p. 9). No decorrer da pesquisa tornar-se-á a refletir sobre a formalização da escrita e uso da língua kaingang, pois é a partir desta que se constituirá a implantação e organização da educação escolar kaingang. Para o momento, destaca-se a caracterização etnolinguística kaingang como pertencente ao grupo Macro-Jê, da família Jê Meridional, que se subdivide em cinco dialetos, conforme apresentado anteriormente, sendo a escrita da língua de configuração histórica recente, menos de um século, coincidindo com a implantação da educação escolar entre as diferentes comunidades kaingang. 1.1.2 Organização sociocultural e sociopolítica A organização sociocultural kaingang se estabelece a partir de grupos sociocêntricos que reconhecem princípios sociocosmológicos dualistas, de acordo com o mito de origem, representado pelos antepassados Kamè e Kairu-krê4 (INSTITUTO WARÃ, 2008), que não impõem uma separação espacial entre as diferentes dualidades (ROSA, 2005 b, p. 101). Os kaingang são identificados economicamente como um povo coletor, caçador e cultivador, que, para reproduzir a sua economia, exigia uma área bastante abrangente fisicamente, que oferecesse também as devidas condições para garantir a manutenção da identidade étnica. 4 Ainda não há uma padronização na forma de escrever as identidades das partes constituintes da sociedade kaingang. No transcorrer do texto serão utilizadas as diferentes formas, conforme apresentadas pelos diferentes pesquisadores e estudiosos utilizados. 18 A organização sociocultural referenda-se na narrativa mitológica como apontada por Schwingel (2001, p. 39): Segundo a narrativa mitológica sobre a origem e sociabilidade Kaingang que foi registrada por Telêmaco Borba (1908), por volta da penúltima década do século XIX, na região do Tibagi, no Estado do Paraná, as metades kanherukre e kame são consideradas progenitoras e protagonistas do sistema de relações sociais e políticas dos kaingang. A organização em grupos sociocêntricos, com princípios sociocosmológicos dualistas, de acordo com o mito de origem, determina o modo de ser e viver kaingang, ao mesmo tempo opostos e complementares, preservando a unidade através dos laços matrimoniais. A complementariedade se estabelece no encontro entre as metades diferentes, o que, segundo Schwingel (2001, p. 42-3), “implica que alguém deve buscar seu parceiro matrimonial necessariamente junto à metade oposta à sua”, disposta pela regra da exogamia entre os kaingang. Ou seja, o casamento deve ocorrer entre uma pessoa da metade Kamẽ e uma pessoa da metade Kanherukre, e não da mesma metade. A descendência ou reconhecimento das metades é definido pela patrilinearidade, onde “define-se como regra na sociedade Kaingang que os filhos de ambos os sexos devem pertencer exclusivamente à metade paterna” (SCHWINGEL, 2001, p. 43-4). Para Schwingel (2001, p. 44-5), o reconhecimento do pertencimento às duas metades de cada pessoa é um aspecto fundamental para as relações sociais entre os kaingang, com implicações diretas e imediatas no cotidiano familiar e social, pelo fato de que as “metades clânicas kairukre e kamé tornam-se, pois, protagonistas de uma aliança perene, pela qual se possibilita criar laços de solidariedade entre diferentes e estabelecem alianças matrimoniais que se fundam na complementariedade”. Esta característica ideal da sociedade kaingang, de ter a parceira matrimonial do grupo social da metade oposta, define que o homem estabeleça residência junto ao núcleo familiar da esposa, concebido como “a casa do sogro” (SCHWINGEL, 2001, p. 45). Tal prerrogativa é conceituada na antropologia como uxorilocalidade, entendida como uma “regra que permite o controle do pai sobre as filhas e, a partir delas, consolidar as alianças com seus genros. Portanto, a regra de residência abarca um aspecto fundamental das relações políticas Kaingang” (SCHWINGEL, 2001, p. 47). A uxorilocalidade se estabelece como uma modalidade de convivência harmoniosa, com constantes fricções sociais, sobretudo ao “chefe da casa” ou “sogro”, uma vez que mantém “sob seu comando um grupo de parentes consanguíneos e afins”, uma vez que “os 19 genros” são oriundos de outros grupos familiares, conforme Schwingel (2001, p. 49). Tal situação pode se constituir numa dissensão quando da disputa de prestígio e apreço do “sogro”, possibilitando a insubordinação à “casa” e a constituição de novos grupos. Para além da constituição matrimonial e dos núcleos familiares, Schwingel (2001, p. 41) ressalta a importância do reconhecimento do pertencimento às metades como elemento essencial da relação social e política. Afirma-se que quando dois Kaingang defrontam-se entre si e não se conhecem previamente, normalmente interrogam-se mutuamente sobre as marcas (metades) a que pertencem. Compreende, pois, essa prática, que para se estabelecer uma boa relação social e política, isto é, uma relação que se considera “respeitosa”, é necessário que cada qual saiba a marca de seu interlocutor. Isso porque as referidas marcas definem, de antemão, o status de cada um nas relações que podem estabelecer. O que denota, entretanto, que as “metades” apresentam-se como fundamentais na sociabilidade Kaingang. O reconhecimento do pertencimento às metades kaingang também pode ser visualizado por pintura cerimonial. A antropóloga Juracilda Veiga (2006, p. 97) define que para os Kamẽ se identificam com a ‘marca comprida’ (râ téi), enquanto que os Kanhru se identificam com a ‘marca redonda’ (râ rôr), “correspondendo a traços e riscos para os primeiros, e pontos para os segundo”. Ainda conforme Veiga (2006, p. 98) os kaingang também podem indicar o pertencimento às metades através de um gesto, “que permite marcar o pertencimento ao grupo daqueles que se pintam com pontos ou daqueles que se pintam com riscos” (VEIGA, 2006, p. 98). Ressalta-se que é observada uma alteração na finalidade das pinturas que caracterizam o pertencimento às metades, que extrapola a “identificação em ocasiões rituais, mas são paradigmaticamente usadas como identificação das seções” (VEIGA, 2006, p. 98). O estilo ou variação na representação das marcas das metades (riscos e pontos) são considerados como variações estéticas de quem as pintam. A distinção entre o número de pontos e riscos, no passado, também estabelecia “relações com outros aspectos da vida social, como os nomes pessoais ou obrigações rituais” (VEIGA, 2006, p. 99). A organização sociocultural também se estabelece nas demais dimensões da cosmovisão kaingang. Assim, os demais seres e elementos da natureza, também são identificados de acordo a estrutura do sistema das metades Kamẽ e Kanhuruke. Os seres e objetos do mundo natural estão relacionados a essas metades, conforme a aparência que tenham, para os Kaingang, os objetos, coisas e 20 animais: se são redondos (proporcionalmente semelhantes nas suas dimensões de altura e largura) são classificados como rôr (KANHRU) e se são compridos (desproporcionais nas dimensões de altura e largura) são téi (KAMẼ) (VEIGA, 2006, p. 81-2). A organização sociocultural kaingang, caracterizada pelas metades Kamẽ e Kanhurukẽ, perpassa pelas relações sociais, como o matrimônio, família nuclear; perpassa as relações políticas e as interlocuções entre desconhecidos; e estrutura e ancora a cosmovisão do povo, organizando a biologia animal e vegetal pelas percepções de rôr e téi. Inclusive a cosmologia é organizada por tais categorias, como demonstrado nos mitos sobre os dois sóis, o surgimento da lua e a separação entre dia e noite (COMIN, 2003, p. 13). A distinção entre rôr e téi também se relaciona à educação indígena, que ocorre junto ao núcleo familiar, onde as crianças se relacionam com primos da mesma marca. Esse fato ocorre por seus tios serem da marca oposta à mãe e ao avô materno, que são a referência do núcleo familiar, como exposto anteriormente. Assim, a mãe e as possíveis tias, ditas como primeiras educadoras e socializadoras, serão da metade oposta. Cabe ressaltar ainda, no tocante à organização sociocultural dos kaingang, que a própria nomeação das crianças é de acordo com a dualidade entre rôr e téi. Conforme estudo de Veiga (2006, p. 145), o nome corresponde à marca do pai. A antropóloga afirma que a concepção kaingang de ser humano considera que o mesmo “é formado do organismo e de espírito, sendo este último relacionado ao nome. Idealmente a constituição física e o nome (espírito-caráter) devem coincidir” (Idem). Cada metade possui um acervo de nomes próprios, e cada nome caracteriza a identidade social e cerimonial de cada indivíduo. É através do nome kaingang (jiji) que “o individuo recebe os papéis sociais e/ou cerimoniais correspondente ao nome” (VEIGA, 2006, p. 145). Também é através do nome da pessoa que se poderá saber a que metade ela pertence. O nome, como afirmado anteriormente, é a representação ideal da constituição física e espiritual da pessoa, sendo a pertença a uma das metades definida pela filiação patrilinear. Também o nome é definido pela patrilinearidade, uma vez que cada metade possui um acervo de nomes. Diante de tais fatos, Veiga (2006, p. 145) constata que “os Kaingang são categóricos em afirmar que a criança é o que for o seu pai”. Esta característica de identificação pelo pai também revela a importância em saber quem é o pai da criança “para que se possa atribuir a ela um nome da metade e seção à qual seu pai pertence”. Isso 21 possibilita que seja membro da comunidade kaingang, recebendo um nome (VEIGA, 2006, p. 146). Nessa dinâmica retoma-se o exposto inicialmente sobre a organização sociocultural kaingang, baseada no mito dos irmãos Kamẽ e Kanhurukẽ. A importância na identificação entre rôr e téi como elementos da organização sociocultural kaingang garante a complementariedade e oposição social, política, familiar, cosmovisão e cosmologia. Romper ou desconsiderar tal percepção fundante da sociedade kaingang também se revela no cotidiano kaingang, como manifestado em encontro de mulheres na TI Guarita. Na ocasião, afirmou-se que a desconsideração de tais preceitos implica a separação e agressões entre casais, desconhecimento da identidade cultural pelos jovens e a desorganização social kaingang (FALCADE; LUCKMANN, 2007). A partir da concepção da organização sociocultural, estruturada nas metades rôr e téi, como exposto anteriormente, estabelecer-se-á a organização sociopolítica kaingang. Schwingel (2001, p. 57-8) afirma que a dualidade kaingang está fundamentada no princípio da oposição e da complementariedade, sendo que “as metades clânicas constituem as bases para um amplo raio de articulações, rearranjos e posicionamentos”. Essa predisposição da dualidade como eixo é sintetizada pelo antropólogo Cid Fernandes (FERNANDES apud SCHWINGEL, 2001, p. 57) da seguinte forma: […] entre os kaingang a autoridade política era construída sobre dois fundamentos básicos: o controle sobre os núcleos residenciais e a negociação de alianças consagradas em prestígio ritual. Estas duas possibilidades de expressão da autoridade política não são excludentes, podemos admitir que são complementares. Por um lado, o controle sobre os núcleos residenciais fomenta a fissão social, a atomização da sociedade Kaingang em grupos domésticos que disputam recursos para garantir sua subsistência. Por outro, a autoridade ritual representa uma possibilidade de comunhão social de um mesmo espaço e de um mesmo tempo, a qual combina a abundância de recursos com a manipulação do acervo de crenças e mitos Kaingang. A partir dessa dinâmica irá se constituir a organização sociopolítica kaingang no contexto atual. Atualmente se estabelece a autoridade política como sendo uma “autoridade que trata de questões relativas ao conjunto da população kaingang de sua aldeia, identificado na língua e cultura Kaingang pelo termo pã’ĩ mbag”, traduzido para a língua portuguesa como cacique. A designação pã’ĩ mbag significa “grande líder” e é entendida como “a autoridade que se situa no centro de uma ordem política, sobrepondo-se a um conjunto de autoridades 22 que atuam como seus ‘auxiliares’, designadas pelo termo Kaingang pã’ĩ sĩ – que significa ‘chefias menores’” (SCHWINGEL, 2001, p. 112). A organização sociopolítica baseada na dualidade se evidencia na afirmação de um dos mais antigos pã’ĩ mbag no Rio Grande do Sul, José Lopes, da TI Nonoai. Em depoimento a Schwingel (2001, p. 115), José Lopes afirma que “normalmente o apoio mais forte para os cargos de chefia Kaingang vem do lado dos jamré, que são os cunhados, ou seja, com todos os que são de ‘marca diferente’ da sua”. Contudo, isso não impede que os kenke, irmãos e parentes, prestem apoio também. Referente às modalidades de eleição da pã’ĩ mbag, atentar-se-á para a modalidade que se encontrava em prática na TI Guarita, local de interesse para a presente pesquisa. As referências apresentadas até o momento se valeram de estudos e pesquisas junto a outras comunidades kaingang, que referendam e se assemelham à organização sociopolítica na TI Guarita. Esta, contudo, se destacava na modalidade de eleição para tal função social. Cabe destacar que o tempo de exercício da função social era indeterminado, distinto da prática recente na TI Guarita (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 41). Esse fato é constatado pela sequência e pelo histórico das lideranças na TI Guarita: Em 1950 o Coronel que comandava era Sebastião Jacinto, sendo que em 1959 tomou posse o primeiro cacique, Sr. Sebastião Alfaiate, o qual comandou por vinte anos a Reserva. Em 1980 foi escolhido o cacique Ivo Ribeiro, que permaneceu por três anos no cargo. No ano de 1984 aconteceram conflitos internos na Reserva, que resultaram em três mortes entre os índios. A época foi marcada pela rivalidade envolvendo questões territoriais, e aconteceu a divisão da Reserva em Irapuá e Guarita. […] Nesse período havia dois caciques e dois postos da Funai. Na localidade de Posto Guarita o cacique era Domingos Ribeiro, e no Posto Irapuá era cacique Ivo Ribeiro. Conforme relato do representante da Funai, “os índios fizeram uma picada de Tronqueiras até a costa do Guarita de cerca de 30 Km, com foice, tamanho o clima de rivalidade”. No ano de 1995, após um período de conversações e tentativas de instauração da paz, houve a unificação da Reserva e do posto da Funai, assumindo como cacique Samuel Claudino, que comandou por um ano a Reserva. Depois, assumiu Valdir Joaquim, que comandou a Reserva até o ano 2000 (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 41). O estudo da alternância na liderança da TI Guarita evidencia que o tempo de exercício da função social é variado até o ano de 2000. Contudo, é a partir dessa data que se institui junto à comunidade kaingang da TI Guarita a eleição do cacique, através de escrutínio eleitoral, sendo habilitadas as pessoas maiores de dezesseis anos que se cadastrassem junto À Comissão Eleitoral, esta constituída para organizar e realizar as eleições. A partir de 2000 23 também se institui que o período no exercício da função de cacique fosse de quatro anos. Assim, foram eleitos Carlinhos Alfaiate em 2000 e Valdonês Joaquim em 2004 e 2008 (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 40-1). Cabe salientar que o processo eleitoral na TI Guarita ocorre no estabelecimento de chapas para as funções de cacique e vice-cacique. As demais lideranças, que podem ser concebidas como pã’ĩ sĩ, são escolhidas posteriormente pelo cacique eleito (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 42). Contudo, apesar da eleição de cacique ter sido realizada de modo análogo à sociedade não indígena, não significa que as atribuições e percepções ocorram de modo semelhante. Destaca-se que a função é considerada como vital na organização social kaingang, na perspectiva onipotente, sendo o cacique a “autoridade competente para compor as leis e aplicá-las, julgando o caso em concreto” (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 42). No entanto, a prática iniciada em 2000 foi rejeitada em plebiscito realizado junto à comunidade kaingang da TI Guarita em 2010. Conforme noticiado na impressa eletrônica de Tenente Portela, constituiu-se um conselho para acompanhar e fiscalizar as ações do cacique. O conselho foi composto por 26 representantes de todos os setores kaingang da TI Guarita (MEDEIROS, 2010, s/p.). Suspeita-se que, de modo semelhante ao exposto sobre a organização sociocultural, quando se exaltava a necessidade do seguimento dos princípios e percepções próprias do povo kaingang, tratava-se de tentativa de reaproximação e revitalização da organização sociopolítica de acordo com os princípios da dualidade rôr e téi. Essa tentativa talvez almeje o fortalecimento das alianças articulação entre jamré, como ressaltado por José Lopes, na organização política da comunidade kaingang, no lugar de assumir modalidades de eleição e organização sociopolíticas estranhas à cultura kaingang. 1.1.3 Educação Kaingang As formas tradicionais de educação indígena criam, reforçam e rearticulam as percepções culturais junto às crianças das diferentes comunidades indígenas. 5 Tomar-se-á como base para esta reflexão a análise produzida por Nunes a partir do povo A’uwẽ-Xavante, 5 Para o momento, concebe-se como educação indígena o processo próprio, autônomo das famílias e/ou comunidades indígenas de educação, transmissão e construção de saberes. Distingue-se, desta maneira, o que se concebe como educação escolar indígena dos processos educacionais desenvolvidos a partir das instituições escolares implantadas nas comunidades indígenas. 24 também pertencente aos grupos Jê, como o povo kaingang. O povo A’uwẽ-Xavante tem “a sua intrincada organização social, com base em um sistema de metades muito marcante no espaço e em grupos e classes de idade” (NUNES, 2002, p. 68), de forma semelhante ao povo kaingang. Conforme Nunes (2002, p. 65-6), a infância indígena é marcada por uma enorme liberdade na vivência do tempo e do espaço e das relações societárias, delegando à idade adulta percepções de limites e constrangimentos. Ao comparar a concepção indígena de infância com as concepções de infância das sociedades urbanas, afirma que cada qual organiza o tempo e o espaço de maneira própria. A antropóloga salienta “que para compreender o modo como cada sociedade os vive é preciso atender às condições geográficas e ambientais, e, fundamentalmente, às relações menos óbvias entre os indivíduos, o meio e sua vida coletiva” (NUNES, 2002, p. 65-66). Nunes (2002, p. 67) afirma que nas sociedades indígenas há um espaço e um tempo de sociabilidade e de educação informal, […] que existe e é vivenciado concretamente pelas crianças, e que penso deve ser respeitado e considerado ao refletirmos sobre os rumos da educação escolar. [E] Que tempo e espaço não devem ser considerados meras noções quantitativas e, sim, qualitativas simbólicas, por intermédio das quais as crianças localizam-se e posicionam-se no mundo social. A rotina do cotidiano e do brincar das crianças indígenas se estabelecem como pontos referenciais e cruciais para a percepção cultural de espaço e tempo. Essa rotina do cotidiano e do brincar das crianças se constitui numa lógica de permissividade quase sem limites, meio caótica, na percepção não indígena, mas “obedece a esquemas rigorosos de construção e transmissão de saberes, e é desse modo que as crianças os incorporam e deles vão tomando consciência” (NUNES, 2002, p. 71). Conforme Nunes (2002, p. 72), […] é de uma maneira muito livre que as crianças aprendem a identificar os limites que regem sua sociedade, abordando-os e vivenciando-os por todos os lados e em todos os sentidos, dentro e fora, pública e privadamente, obtendo um conhecimento pleno da vida naquele lugar e daquelas pessoas com as quais interagem. De modo semelhante a pedagoga kaingang e coordenadora pedagógica de escola kaingang na TI Guarita Sara C. K. Sales (2010, p. 11-15) constata que, entre as crianças kaingang, a liberdade e a percepção dos limites sociais também transcorrem no seio das famílias kaingang como processos educacionais próprios. Sales relata que o fato ocorre em tarefas rotineiras, como a busca de cipó no mato para a confecção de artesanato (uma das 25 fontes de recursos de famílias kaingang). Durante a caminhada, as crianças brincam e conversam entre si, mas também aprendem da mãe sobre os tipos de plantas benéficas e de conhecimento tradicional kaingang para nutrição e medicina. Para Sales (2010, p. 12), a “prática da mãe, ao ensinar as crianças sobre a planta, pode ser concebida como pedagogia kanhgág”. A percepção de Sales como pedagogia kanhgág encontra respaldo no estudo de Veiga (2005, p. 138-141) sobre a pedagogia indígena. A concepção da pedagogia kanhgág encontra respaldo na observação de Nunes, uma vez que constata que as atividades, as brincadeiras das crianças transcorrem como se brincassem de fazer coisas de verdade. Assim, as crianças utilizam instrumentos de verdade, não imitações ou miniaturas, e podem produzir um resultado final verdadeiro. Conforme a pesquisadora, “tudo é permeado por um significado real e tem uma aplicabilidade concreta.” (NUNES, 2002, p. 73-74). Constata-se, então, que a sociedade indígena considera que “a criança tem capacidade, ou habilidade para fazer, é respeitado como tal e é aceito como participação efetiva” (NUNES, 2002, p. 75). Tal percepção também se faz presente no acompanhamento e elaboração de Sales (2010, p. 12), que relata: Ainda no acompanhamento àquela família, ao chegar ao local onde tinha as taquaras e cipós a mãe começou a cortar a taquara, os filhos mais velhos começaram a ajudá-la, enquanto que os dois filhos menores faziam pequenos montes. Nesta tarefa pode-se observar que ao cortarem o cipó não tiravam tudo de um mesmo lugar, sempre deixavam um pouco. Esta prática está de acordo com o saber tradicional, que estabelece ser necessário deixar um pouco para a reprodução. Na observação, contatou-se que não foi necessário a mãe alertar os filhos a respeito, mas que esse saber já havia sido internalizado pelos filhos através da prática contínua. No momento de retornar à casa todos ajudaram a mãe levar as taquaras e cipós, quem não ajudou levando cipós e taquaras cuidava dos irmãozinhos pequenos, que também foram juntos. O relato de Sales também respalda a elaboração de Veiga (2005, p. 139), que aponta que “os pais deixam a criança experimentar suas possibilidades na execução de habilidades, na imitação dos comportamentos dos mais velhos. Desde a mais tenra idade as crianças participam da vida da família e todos são responsáveis pelo grupo”. Para Nunes (2002, p. 75), essa realidade implica conceber uma disposição de tempo e acompanhamento dos adultos, para que a criança desempenhe as determinadas tarefas, pois o ritmo de vida permite. 26 Da mesma forma, constata-se “a existência de um repertório de brincadeiras que têm estreita relação com as condições ambientais resultantes do ciclo e do ritmo sazonais” (NUNES, 2002, p. 79), fato salientado por Sales no relato do corte da taquara, que evidencia o respeito aos ciclos da planta no transcorrer do tempo. Assim, pode-se conceber que a sazonalidade e os arranjos acabam por estabelecer uma repetição cíclica das brincadeiras. Contudo, Nunes (2002, p. 82) pondera que tal fato não é uma repetição metódica, mas […] permite uma crescente e renovada possibilidade de participação em função do registro anterior, uma vez que, a cada ano, as habilidades são outras e esse gesto e essa palavra, somados a outros gestos e outras palavras, sofisticam-se e ganham novos contornos e conteúdos, num ritmo muito velos e constante experiência. Por isso as crianças insistem em repetir tanto o que para nós parece ser sempre igual. A constatação de Nunes também é perceptível no relato de Sales, uma vez que esta aponta a diferença de atividade entre os filhos maiores e menores. Sales (2010, p. 13) ressalta o fato de que “as crianças realizam tarefas desde pequenas, sem considerar isto como exploração infantil, pelo contrário estão aprendendo/vivenciando”. Esse fato também é destacado por Veiga (2005, p. 139), ao afirmar que “as crianças são chamadas a serem prestativas a ajudar àqueles que estão precisando de ajuda”. Concebe-se, assim, que a educação kaingang ou pedagogia kanhgág possui um aspecto importante, que é a socialização. Como apontado anteriormente, na questão dos nomes kaingang, a pessoa se constitui na relação com a outra pessoa, no ambiente interno da comunidade kaingang. Neste sentido, torna-se relevante a afirmação de Veiga (2005, p. 139) de que: As crianças não vivem apenas no meio dos adultos, aprendem umas com as outras, com os grupos de sua idade com os quais compartilham as descobertas do mundo da aldeia. As crianças sabem em detalhes o que acontece na comunidade, embora sejam muito discretas, têm olhos atentos que tudo vêem e tudo sabem. As crianças aprendem o que vêem. Aprendem involuntariamente. Conforme outro relato de Sales (2010, p. 13-14), sobre o preparo de um almoço familiar, tendo como prato o ẽmĩ (bolo de milho), as crianças aprendem observando, experimentando e executando as tarefas. Destaca-se, outra vez, a espontaneidade e o prazer das crianças ao executarem a atividade como se fosse uma brincadeira. Ou seja, as rotinas do cotidiano e as brincadeiras estão intrinsecamente ligadas. 27 A educação indígena/kaingang, concebida no processo ou na dinâmica de socialização, evidencia que as crianças aprendem observando ou imitando. Para Veiga (2005, p. 139-40), a criança indígena aprende no seguimento de modelos considerados exemplares. Assim, “aquele que está em posição de honra como um irmão mais velho (kẽnke), chefe (põ’ĩ) ou professor é modelo. O modelo deve ser perfeito e um aprendiz deve almejar ser tão bom quanto seu mestre”. Outra vez confere-se validade ao apontado anteriormente, referente a designação de um nome kaingang à criança, conforme designação vinculada ao grupo ao qual o pai pertence. Ainda revela a inter-relação da educação kaingang com a sua organização sociopolítica, onde a figura do põ’ĩ torna-se um referencial a ser seguido, caso apresente um comportamento digno. Outra característica apontada por Veiga (2005, p. 140), quanto à educação indígena ser pautada pela socialização, é “estar atento às palavras e comportamentos dos demais. Aprender faz parte da vida. Todos os momentos são momentos de aprendizagem”. Essa constatação é respaldada no primeiro relato de Sales, apresentado anteriormente. O relato da busca do cipó para o artesanato destaca que as crianças aprendem observando e ouvindo a mãe durante o trajeto e no corte da taquara. Evidencia-se também a inter-relação da organização sociocultural kaingang, pois a criança está inserida no núcleo familiar do avô materno, recebendo a designação da metade pela patrilinearidade, observando a relação entre seu pai e seu avô materno, como referenciais no entendimento e interação com a cosmovisão e organização sociopolítica do povo kaingang. Os apontamentos sobre educação ou pedagogia indígena/kaingang despertam a constatação da inter-relação entre as diferentes dimensões e percepções do modo de ser kaingang. Destaca-se, porém, na percepção de Sales (2010, p. 15), que […] a educação indígena nas famílias apresenta uma metodologia rica que parte da vivência e prática contínua, de maneira livre que as crianças kanhgág aprendem a identificar os limites que regem a sua sociedade, identificar usos e costumes, conhecer as regras de sua comunidade, enfim, e é através da liberdade que constroem suas descobertas, pois a criança indígena é muito livre não tem regras a serem cumpridas como na sociedade não indígena desde as brincadeiras até as tarefas domésticas, elas vão adquirindo traços culturais de seu grupo (povo). Assim, concebe-se a educação kaingang como elemento próprio da cultura, pautado na cosmovisão e cosmologia kaingang. A educação kaingang também pode ou não dialogar com a educação escolar. As percepções apresentadas visam caracterizar que a dimensão da 28 educação não é algo restrito ao ambiente escolar, mas que o povo e a cultura kaingang têm estruturas e pedagogias educacionais próprias, que se regulam e se organizam de acordo com os princípios, modalidades e organização kaingang. 1.2 SOBRE A OCUPAÇÃO TERRITORIAL O kaingang é habitante tradicional da região sul do Brasil, atualmente identificada geopoliticamente nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, uma região que teve densas florestas e uma rica biodiversidade (INSTITUTO WARÃ, 2008). A região se caracterizava por planaltos, floresta de araucária e bacias hidrográficas no sul do Brasil, sendo as atuais terras demarcadas com acesso rodoviário (ROSA, 2005, p. 29, 126). O kaingang constitui a terceira maior população indígena no Brasil6 e o maior povo das sociedades Jê (CREPEAU, 2002, p. 114), com uma população aproximada de trinta mil indivíduos, ocupando cerca de trinta áreas demarcadas ou reservadas, além de diversos acampamentos na região sul-brasileira. Destaque para as regiões das Terras Indígenas: Guarita e Nonoai (RS), Xapecó e Chimbangue (SC) e Palmas e Mangueirinha (PR) que concentram 50% da população kaingang (VEIGA, 2006, p. 37). No Rio Grande do Sul, ocupam áreas oficialmente demarcadas, áreas em fase de demarcação e diversos acampamentos, concentrando-se ao lado sul da bacia hidrográfica do Rio Uruguai. A população kaingang no Rio Grande do Sul é estimada em 23.924 pessoas,7 sendo a Terra Indígena Guarita a maior área demarcada, com 23.406 hectares; e a população kaingang, estimada em 6.100 pessoas, nos municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco. A região de ocupação tradicional kaingang é considerada uma das ocupações humanas mais antigas do sul do Brasil, sendo os kaingang identificados como “grupos coletorescaçadores que viveram ao longo das barrancas do Alto Rio Uruguai (atual divisa Rio Grande 6 7 Disponível em: <http://www.museudoindio.org.br/template_01/default.asp?ID_S=33&ID_M=115>. Acesso em: 05 ago. 2009. Disponível em: <http://www.scp.rs.gov.br/principal.asp?conteudo=noticias&act=view&cod_noticia=85>. Acesso em: 02 ago. 2005. Para calcular o número de pessoas, deve-se multiplicar o número de famílias por 6,5 componentes, alcançando o resultado de: 6.461 kaingang. A estimativa do número de componentes foi obtida da seguinte informação: “O Rio Grande do Sul tem uma população indígena de 23.924 pessoas, distribuídas em 3.665 famílias, segundo dados da Secretaria da Agricultura”, divulgada no mesmo endereço eletrônico. Na TI Guarita também vivem 45 famílias guarani. 29 do Sul – Santa Catarina)” (VEIGA, 2006, p. 37).8 Tais grupos não praticavam a agricultura, tampouco a confecção de objetos em cerâmica. Estudos indicam que tal ocupação data do período de 8.670 e 5.970 AP.9 A arqueologia denomina os grupos como cultura altoparananense. Estes grupos ancestrais na região do Alto Uruguai possuem semelhanças com outros grupos que ocuparam a região de Missiones/Argentina, que, de acordo com estudos arqueológicos, “estão possivelmente associados a casas subterrâneas e a túmulos circulares, com fossos e valas, que serão marcas características – e exclusivas, no Sul – dos grupos Jê, Kaingang e Xokleng” (VEIGA, 2006, p. 39). A tradicionalidade na ampla ocupação kaingang e, também, sua expressiva população, uma das maiores no Brasil, caracterizam-se como fatos relevantes contrários ao senso comum de que inexistem comunidades indígenas nos estados do sul brasileiro, após a colonização por imigrantes europeus. Na atualidade, a região ocupada pelos kaingang se distingue pela ocupação das etnias indígenas no espaço amazônico do Brasil, caracterizado pela diversidade étnica indígena. O povo kaingang ocupa um vasto espaço geográfico no Brasil meridional, praticamente sem diversidade étnica indígena. As relações interétnicas são estabelecidas na atualidade, sobretudo, com a sociedade não indígena. Tal fato não caracteriza a inexistência da diversidade étnica no espaço geográfico tradicionalmente ocupado pelos ancestrais kaingang, anterior à colonização por imigrantes europeus. A tradicionalidade e amplitude da ocupação kaingang são confrontadas com a situação atual. Estudos indicam que a faixa de domínio e trânsito kaingang, por exemplo, no século XVII, confere à região entre as bacias dos rios Piratini,10 Jacuí e Caí, no atual estado do Rio Grande do Sul (BECKER, 1975, p. 103; 1995, 13-4; ANDREI, 2009, p. 2). Os atuais espaços garantidos e de uso exclusivo dos kaingang se constituem em espaços geográficos 8 Conforme indicação em mapa (VEIGA, 2006, p. 40), a região identificada como Alto Rio Uruguai consistiria na região entre a foz dos rios Chapecó e Peperiguaçu (ambos à margem direita do Rio Uruguai), no curso do rio Uruguai. 9 A sigla A.P. na arqueologia é a abreviação de Antes do Presente, tendo por base a data de 1950, definida como padrão e referência para a datação dos eventos (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Antes_do_Presente> Acesso em: 03 fev. 2011). Segundo Didonê (2008), essa datação é utilizada na arqueologia “para se referir à préhistória que, nas Américas, segue divisão diferente do restante do mundo”. 10 Rio Piratini, aqui referido, é afluente da margem esquerda do rio Uruguai, com nascente na área de abrangência do atual município de São Luiz Gonzaga. Às margens sul do rio Piratini, próximo a sua foz no rio Uruguai, fundou-se a primeira redução jesuítica em solo rio-grandense, a 03 de maio de 1626, pelos padres Roque González e Miguel de Ampuero, acompanhados pelo cacique Nicolau Nenguiru. A redução foi denominada São Nicolau (São Nicolau do Piratini). 30 demarcados ou reservados,11 sendo estes fragmentados, reduzidos e limitadores no trânsito e no acesso aos recursos naturais, que implica alteração no modo de ser e constituir-se kaingang. Essa constatação torna-se relevante, pois implica nos propósitos da implantação da educação escolar junto às comunidades kaingang, bem como na disposição e protagonismo dessas ao estabelecer a educação escolar indígena. 1.3 CONFRONTOS INTERÉTNICOS COM A FRENTE COLONIZADORA A ocupação pela sociedade não indígena do território tradicional kaingang no Rio Grande do Sul é considerada como a ocupação da última fronteira interna do Brasil meridional. Para Tau Golin (2003, p. 291), essa ocupação é a “extinção desse espaço indígena e sua incorporação ao Estado-nação”. O historiador propõe que a historiografia da região noroeste rio-grandense seja abordada na perspectiva da intrusão das frentes de ocupação não indígenas ao território tradicionalmente ocupado pelos kaingang e guarani. Ou seja, a fixação da fronteira interna no noroeste rio-grandense ocorreu na perspectiva da fricção interétnica, num movimento processual da conquista territorial. A fricção interétnica (indígena e não indígena) estabeleceu-se em disputa de fixação de divisa entre Brasil e Argentina, como afirma Golin (2003, p. 291): Em seu movimento processual, a conquista do noroeste sul-rio-grandense pelo governo brasileiro dimensionou um fenômeno geopolítico de disputa territorial entre o Brasil e a Argentina, a destruição de uma fronteira interna, cujo território era dominando pelos kaingangs e guaranis [sic] – com o objetivo de consolidação do Estado-nação – e a implantação de um modelo baseado na pequena propriedade capitalista combinado com grandes empreendimentos coloniais e extrativistas, especialmente de madeira. A fixação da divisa geopolítica entre Brasil e Argentina, também a divisa entre os estados brasileiros, pautou-se por critérios e modelos alheios aos povos indígenas. Sobre os kaingang, é consenso entre os pesquisadores que a área de domínio tradicional, anterior à intrusão das sociedades não indígenas, vinculava-se ao planalto meridional, de vegetação dominada pela floresta ombrófila mista, composta por araucária angustifólia, e às encostas do 11 A demarcação de espaços geográficos tradicionalmente ocupados por comunidades kaingang é garantida pela Constituinte Federal de 1988, artigo 231 e 232, que estabelece: “São reconhecidos aos índios […] os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Os procedimentos administrativos para a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas são regulamentados pelo Decreto 1.775/1996 e Portaria do Ministério da Justiça nº 14/1996. Também se sugere, para aprofundamento, TCC elaborado por Júlio Cesar Salles Ribeiro, kaingang graduado em Direito-UNIJUÍ, em 2006, intitulado: “O direito de demarcação das terras originariamente ocupadas pelos índios”. 31 planalto e litoral.12 Inclui-se também a região de Missiones/Argentina (VEIGA, 2008, p. 20; FRANCISCO, 2006, p. 13; ANDREI, 2009, p. 2). Justifica-se, assim, a importância de considerar tais elementos na reconstrução historiográfica do espaço ocupado tradicionalmente pelos kaingang. Como demonstrado anteriormente, a ocupação territorial dos kaingang é milenar. É a partir da intrusão da sociedade não indígena a este território que se constituirá a implantação da educação escolar, visando não somente auxiliar na ocupação territorial, mas também na conquista e interferência cultural desse povo. 1.3.1 Kaingang e as reduções jesuíticas As reduções jesuíticas nos séculos XVII e XVIII significaram o início da conquista do interior do cone sul da América do Sul. Apesar da referência de que a ação jesuíta tenha ocorrido somente com o povo guarani, talvez induzido pelos próprios missionários ao se referirem sobre “pueblos de Guaraníes” (SANTOS; BAPTISTA, 2007, p. 241), é importante ressaltar que o povo kaingang também foi alvo e teve reflexos da ação jesuítica. Destaca-se o alerta de Robert Crèpeau (2002, p. 115), de que A influência histórica das reduções jesuíticas sobre os Kaingang é, a meu ver, subestimada e deverá ser objeto de uma pesquisa futura. A proximidade geográfica das missões com o território ocupado historicamente pelos Kaingang por certo implica uma participação desses últimos na esfera de influência jesuítica. Da mesma forma, tornam-se relevantes a disposição e o estudo de Freitas (2005, p. 5867) sobre a análise da territorialidade kaingang, em que argumenta serem relevantes o estudo e a pesquisa sobre as missões jesuíticas e a participação ou influência sobre as parcialidades kaingang. Os argumentos do resgate histórico são importantes para a “etnologia Kaingang na medida em que fazem referências a aspectos socioculturais e a parcelas dos territórios históricos em que acabaram à margem dos estudos contemporâneos” (FREITAS, 2005, p. 58). Torna-se relevante garantir um breve espaço na dissertação para tal análise, ressaltando que, na presente pesquisa, o interesse se concentra em apontar a influência e/ou a participação dos kaingang nas reduções jesuíticas. Esse interesse é motivado pela percepção de que esse pode ter sido o primeiro contato desses com a educação escolar, no caso na 12 Referente à ocupação do litoral, indica-se que o mesmo corresponderia, na atualidade, à faixa entre Paranaguá/PR e Quintão/RS. Também há o debate sobre que tais espaços de ocupação e manejo ocorriam de forma sazonal (FRANCISCO, 2006, p. 13). 32 modalidade de catequese. Desta forma, os primeiros registros de participação de kaingang (denominados nos registros como Gualacho e Coroados) nas reduções jesuíticas são datados do período de 1609 a 1629, em que se afirma a presença kaingang nas reduções de Guairá, de Conceição de Nossa Senhora dos Gualucho e de Encarnação (CRÈPEAU, 2002, p. 115). Essa informação é também apresentada pela antropóloga Andrei (2009, p. 1) ao traçar um histórico do contato interétnico kaingang e sociedade não indígena. As reduções de Guairá foram atacadas e dizimadas pelos bandeirantes paulistas. Após os ataques à Redução de Guairá, os jesuítas transferem-se para a Província de Tape (atual Estado do Rio Grande do Sul), fundando novas reduções entre 1632 e 1636, também influenciando grupos kaingang. As dificuldades em constatar a participação ou influência das reduções jesuíticas sobre os grupos ancestrais dos atuais kaingang ocorrem tanto pela variedade de termos que designam os diferentes grupos Jê ocupantes do planalto, como a ideologia nacionalista lusobrasileira. Sobre essa última constatação é importante a análise que Freitas (2005, p. 58) apresenta de que as fontes jesuíticas foram […] produzidas no contexto da experiência de contato hispânico-religiosa, estas fontes foram por muito tempo negligenciadas na historiografia do Rio Grande do Sul relativamente às fontes luso-brasileiras, em grande parte devido ao viés ideológico nacionalista. Como já dito, em parte disto resulta ser razoavelmente bem conhecida a história Kaingang no curso dos séculos XIX e XX, enquanto pouco se sabe a respeito de suas populações, territórios e territorialidades nos séculos XVI, XVII e XVIII.13 Acresce-se a essa negligência na historiografia rio-grandense o fato de que muitas das designações geográficas e das demais etnias terem sido obtidas de forma indireta, através de informantes guarani, com os quais os jesuítas tinham maior contato. Isso é evidenciado pelo fato de os jesuítas terem gerado uma língua nas reduções baseadas no idioma guarani, por serem os “Guarani a maioria da população missional”. Assim, as demais etnias e suas culturas são entendidas e apresentadas por tais determinantes. Tal condicionamento de outras culturas e etnias revela a situação de redução, não somente no aspecto geográfico, como tido no senso comum, mas também nos aspectos linguístico e cultural, uma vez que os grupos sob a ação dos missionários jesuítas não dominam nem determinam o padrão linguístico e cultural, estabelecendo que: 13 A mesma situação é indicada para a historiografia do Mato Grosso do Sul, em estudo a redução jesuítica de Itatim, em que se afirma: “Após a destruição das missões na região, o passado espanhol e resistência indígena aos espanhóis e portugueses foi omitido na pena de historiadores comprometidos com o serviço à coroa portuguesa e suas pretensões territoriais sobre esta região concretizadas com o Tratado de Madri (1750)” (SOUZA, s/d, p. 5). 33 Com isso, os missionários não apenas reduzem a cultura Guarani, mas também todas as demais à primeira, ocasionando, assim, um fenômeno que se estende, sobretudo, à historiografia clássica. Os não-Guarani, de fato efetivos naquele processo, são relegados a um papel de última importância, quando não absolutamente ignorados pelos historiadores. Como resultado, tais grupos permanecem com sua história suprimida, ocorrendo, como no caso dos Jê, uma pré-história que salta diretamente à história contemporânea, especificamente a partir do século XVIII (SANTOS, BAPTISTA, 2007, p. 241). Desta forma, pode-se justificar que a atual toponímia persista com nome em guarani ou “guaranizado”, mesmo nos espaços de ocupação tradicional kaingang. Da mesma forma, deve-se considerar que a designação para os demais grupos étnicos é estabelecida a partir da fonte guarani-jesuítica. De fato, esse é o ocorrido com os ancestrais dos atuais grupos kaingang, que foram designados “como guainá, no século XVI, pinarés, caáguas, entre outros, nos séculos XVII e XVIII, e coroados, bugres e botocudos” (FRANCISCO, 2006, p. 12-3). De acordo com Veiga (2008, p. 20), a variação das designações é maior, pois “nos mapas e documentos coloniais encontram-se nomes como Guaianá, Goianá, Guananás ou Guananáses, Ybiraiyaras ou Ibiraiaras, Gualachos, Chiquis ou Chequis, Cavelludos, Coronados ou Coroados, Camperos e, ainda, Pinares, denominação que se refere à ocupação dos pinheirais”. Veiga (2006, p. 42-3) esclarece que nem todas as designações na documentação histórica podem fazer referência aos ancestrais dos atuais kaingang, “o que é possível concluir da descrição de características culturais na própria documentação”. Contudo, Veiga (2008, p. 20) enfatiza que a documentação jesuítica do século XVII corrobora na ocupação preponderante dos kaingang na região do rio Ijuí até o Alto Jacuí, então denominados como “Guaianás”. Becker (1975, p. 98; 1995, p. 11) indica que, pelo tipo de economia, baseada na horticultura, aos kaingang “não se estabelece influência jesuítica”, excetuando “as tentativas de Cristóvão de Mendonça, em meados do século XVII, entre os Pinaré e a Redução de Conceição”. Ainda conforme Becker (1983, p. 105), as diferenças socioeconômicas das diferentes etnias indígenas podem ser determinantes na realização das missões jesuíticas, pois “os Guarani, dados à agricultura, estavam mais condicionados a um tipo de vida sedentária, o que não aconteceu com os Kaingáng, embora também pequenos horticultores”. Nessa perspectiva, Becker (1983, p. 107) admite que a atuação de missionários jesuítas junto aos 34 kaingang ocorre a partir do retorno em 1842, quando se reiniciam “as atividades apostólicas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina durante os anos de 1848 a 1855”. Contudo, como apontado pela designação jesuítica a outros grupos étnicos, a ação missionária também ocorreu entre diferentes grupos kaingang no Rio Grande do Sul. Por vezes, os contatos foram considerados esporádicos e de pouca relevância, no entanto apresentam evidências históricas na conturbada ocupação ibérica. A situação conturbada considera as diversas reações dos grupos indígenas frente à ação de ocupação políticaterritorial, com a implantação das missões jesuíticas. Assim, a aceitação, as fugas, guerras ou alianças empreendidas pelos diferentes grupos dependiam “do momento histórico motivadas por disputas entre os diversos grupos nativos, ou entre estas e também com os ocidentais” (FRANCISCO, 2006, p. 16-7). Referente, especificamente, à ação missionária jesuítica no atual território do Rio Grande do Sul, são garantidas a presença e influência a grupos kaingang durante os séculos XVII e XVIII (VEIGA, 2008, p. 20). Conforme indicado, “os Kaingang estiveram presentes nas missões jesuíticas nas Reduções de Santa Tereza (atual Passo Fundo) e de São Carlos (atual Carazinho), e São Miguel” no período anterior aos ataques dos bandeirantes na década de 1630 (VEIGA, 2009, p. 59). Além da constatação de que os kaingang participaram e foram influenciados pela ação jesuítica no século XVII, também se afirma que os mesmos impuseram uma fronteira na expansão das reduções. A antropóloga Freitas (2005, p. 59), ao analisar a territorialidade kaingang, afirma que quando […] da fundação das Missões do Tape (1627-1641), [os jesuítas] se deflagraram com as territorialidades Kaingang (Ibirajara) tensionando e opondo limite à expressão missionária (e Guarani), a partir dos territórios que estes índios então ocupavam e que incluíam a margem oriental do Lago Guaíba, onde se assenta o atual município de Porto Alegre. O limite da expansão missionária era reconhecido através da Redução de Santa Tereza,14 considerada como ponto mais avançado, uma vez que adiante, ao norte e a leste, se encontrava o território dos “ferozes ibirajaras”, tida como uma parcialidade kaingang (FREITAS, 2005, p. 96-7). Esse limite também é o limite entre as províncias de Tape e Ibiaçá.15 Reconhece-se que a Província de Ibiaçá é território dominados pelos Jê Meridionais 14 Instalada “no divisor de águas dos rios da Várzea e Jacuí, na abrangência do atual município de Passo Fundo e fundada em 1632 pelo padre Ximenes” (FREITAS, 2005, p. 96). 15 “Os limites da Província de Ibiaçá se estendiam de Laguna, pelas cabeceiras do rio Pelotas, seguindo pelo rio Uruguai até o rio Turvo (Uruguai-pitã). Deste ponto, segui o curso do Turvo até suas cabeceiras, no divisor de águas, para então alcançar as cabeceiras setentrionais do Jacuí e prosseguir por todo seu percurso até a Laguna 35 (Kaingang e Xokleng). Freitas (2005, p. 61), apoiada nos estudos de Aurélio Porto, assinala que essa província foi a única “não ocupada por Reduções jesuíticas, mas apenas por vacarias e ervais, dada a resistência e hostilidade indígena (principalmente Kaingang) à empresa missioneira”. Além do reconhecimento de que os grupos kaingang impuseram limites à expansão jesuítica, também foram registrados conflitos com parcialidades kaingang, como o indicado na morte do jesuíta Roque Gonzalez em Caaró.16 O Pe. Antônio Ruiz de Montoya ([1639] 1985, p. 196-207), supervisor geral dos jesuítas hispânicos, relata que a região era dominada pelo cacique Neçú, que matou três religiosos jesuítas. Para Ítala Becker (1975, p. 104; 1995, p. 14)17, a morte do Pe. Roque Gonzalez na Redução de Caaró decorre da recusa à imposição de mudanças de hábitos no modo de vida, no caso a prática da poligamia, “destacando-se os Caaró, para os quais a proibição desse hábito foi a principal causa de seu levante contra os jesuítas”. Becker também indica o abandono do adorno labial, pela parcialidade Pinaré, como outra mudança de hábito influenciada pelos jesuítas em grupos ou parcialidade de ancestrais kaingang. Registraram-se conflitos de ordem econômica, no caso o domínio e exploração de ervais entre guaranis missioneiros e kaingang, na região de domínio do cacique Nheçu, entre os rios Ijuí e o Uruguai-pitã (rio Turvo). “Nesta região, de acordo com a narrativa histórica de Nicolau Mendes (1954) se dariam, no ano de 1752, as contendas entre Guarani missioneiros e dos Patos e o canal do Rio Grande” (FREITAS, 2005, p. 61). Apoiada na pesquisa de Aurélio Porto, Freitas (2005, p. 59-60) afirma que “o conhecimento colonial sobre o Rio Grande do Sul desde os primeiros registros se estabeleceu três províncias etnográficas: Uruguay, Tape e Ibiaçá. Estas designações assinalavam regiões distintas, já perfeitamente delimitadas, quer por acidentes geográficos, quer pela existência de ‘nação aborígene’: a Província do Tape [onde se concentraram as reduções jesuíticas] inseria-se entre a do Uruguay e a do Ibiaçá, como uma grande cunha territorial”. 16 Baptista (2002, p. 196) afirma que Caaró é uma “antiga denominação para os grupos Coroados (Kaingang)”. 17 Freitas (2005, p. 60), em nota explicativa, afirma: “A filiação de Ítala Basile Becker (1995) ao esquema etnográfico proposto por Antônio Serrano (1936), associado ao fato de Nheçú e Tabaca serem termos do idioma Guarani, fez com que esta autora incorresse no equívoco de considerar o Cacique Nheçú (ou Niezú), assim como toda a sua parcialidade Caaro, sua subordinada, como sendo Kaingang e não Guarani. Cabe ressaltar que tanto o cacique Nheçú como a sua parcialidade Caaro (ou Caaroguara), sua subordinada, são referidos pelos jesuítas como parcialidade Guarani da nação Tape, e como tal foram mantidos no esquema etnográfico de Aurélio Porto [...]”. Apoiando-se nessa definição de Aurélio Porto, de que esses caciques eram Guarani, Freitas (2005, p. 96) irá concluir que a morte dos padres Roque González, Cristóvão Mendonza e João de Castilho, pelo cacique Nhençú e sua gente, revela “que os Guarani não eram hegemonicamente adeptos à experiência jesuítica. Em outras palavras, As Missões e a catequese não atingiram de forma homogênea todas as unidades político-territoriais deste povo”. O mesmo fato é registrado sobre a redução de Itatim (MS), sobre a qual se afirma: “Na época das missões, nem todos os itatines viviam nos povoados, mas junto de suas parentelas nos arredores das missões e ali permaneceram após a retirada dos missionários. O fato de não permanecerem dentro das missões denota uma resistência às práticas catequéticas dos missionários e uma articulação com os residentes nas missões por meio do comércio constante que, entre os itatines, já havia antes da chegada dos castelhanos e missionários” (SOUZA, s.d., p. 6). 36 Kaingang em torno da exploração dos territórios dos ervais, resultando na configuração do ‘Império dos Coroados’” (FREITAS, 2005, p. 60). Conforme pesquisa de Becker (1992, p. 158), os ervais da Redução de Santo Ângelo, fundada em 1707, eram formados por “ervais nativos do Nhucorá até o Rio Conceição, em terras posteriormente dominadas pelo Cacique kaingáng Nonohay”. A implantação das reduções jesuíticas nos séculos XVII e XVIII é considerada como uma das primeiras ações expropriatórias de terras indígenas. Estes jesuítas não só se apropriaram diretamente de terras indígenas para a implantação de seus projetos missionários, como houve imposição de uma nova organização espacial, implementada de acordo com finalidades religiosas, habitacionais e produtivas. Talvez a implicação mais dramática desta imposição tenha sido e seja a sedenterização. Embora muitos indígenas tenham aceitado com certa tranqüilidade a presença de missionários, autores como Montoya também documentaram a resistência de muitos outros a tais projetos (SIMONIAN, 1995, p. 85). Os reflexos da expropriação persistem aos grupos e comunidades kaingang no século XXI, quando, ao analisar as situações de violência e expropriação sofridas pela comunidade da Terra Indígena Guarita (Tenente Portela, Redentora, Erval Seco/RS), a pesquisadora Simonian (1993, p. 35) afirma que tal situação é consequência das “pressões e mesmo transformações impostas pelas ‘conquista espiritual’ nos séculos XVII e XVII [sic] [XVIII]” a seus ancestrais. A informação pode ser referendada também pelo historiador Luis Fernando Laroque, citado por Freitas (2005, p. 97), que informa que o cacique (pa’i mág) Fongue, liderança na região dos rios Guarita e Turvo, “teria estado na Redução de Santo Ângelo (da segunda fase) em 1767 [sic] [1677?], mas com a expulsão dos jesuítas saiu com sua gente e retornou ‘à vida selvagem’”. A informação citada sugere a presença de parcialidades kaingang nas reduções jesuíticas, pelo menos na segunda fase das Missões (1682-1750). Outra evidência apontada por Laroque é a de que, posteriormente ao evento das reduções jesuíticas, as parcialidades kaingang teriam retornado à ocupação de antigos territórios. Essa evidência é corroborada por Veiga (2008, p. 20), ao afirmar que, “com o fim dessas missões, puderam voltar ao seu modo de vida tradicional, até a penetração de seus territórios pelas frentes pastoris, na primeira metade do século XIX”. Noutro momento, Veiga (2009, p. 59) também induz à compreensão de que a ocupação pelos não índios às terras de ocupação tradicional kaingang inicia-se após o evento da Guerra Guaranítica, em 1756. 37 O evidenciado até o momento comprova a presença, a adesão, o confronto e a influência da ação missionária jesuítica sobre grupos, parcialidades ou comunidades kaingang, nos séculos XVII e XVIII, na área que se configurou como o atual Estado do Rio Grande do Sul. Veit (1995, p. 133), inclusive, aponta que os kaingang participaram das missões jesuíticas de São Miguel, onde receberam ensinamentos catequéticos. No entanto, ainda persiste o debate sobre o quanto a ação jesuítica incidiu sobre os kaingang. De acordo com a historiadora Andrei (2009, p. 2), “foram poucos os que aceitaram viver sob o comando dos jesuítas, os Kaingang viveram livres nas regiões de campos e florestas do sul do país até o século XIX, quando foram conquistados”. Retomam-se, aqui, as ressalvas apontadas inicialmente, da necessidade de mais pesquisas sobre o tema, uma vez que é recente a percepção e a consideração sobre a questão linguística nos registros jesuíticos, fontes primárias, bem como a questão da historiografia nacionalista luso-brasileira frente ao período de ocupação hispânico-religioso do atual território sul rio-grandense. Ratifica-se que ocorreu ação missionária jesuítica junto aos grupos e comunidades kaingang, sobretudo junto às que se referem à área de interesse a essa pesquisa, a saber, a região do atual território da TI Guarita. Sabe-se que o propósito da ação jesuítica era a civilização e/ou cristianização dos grupos indígenas, utilizando-se da metodologia catequética para tal, implicando a mudança de hábitos, caracterizadas como expropriação cultural, como apontado anteriormente. A catequese jesuítica pode ser considerada como primeiro contato das comunidades indígenas com a educação escolar não indígena. Assim, evidenciar e ressaltar que houve a participação ou adesão kaingang nas missões jesuítas, e a influência dessas junto aos kaingang, visa demonstrar que há tempos busca-se implantar a educação escolar junto a tais comunidades. Posteriormente, neste estudo, retomar-se-á a metodologia do ensino catequético, no intuito de apresentar quais suas características e pressupostos. 1.3.2 Período pós-jesuítico e século XIX Ao término das reduções jesuíticas, na segunda metade do século XVIII, os grupos e parcialidades kaingang se expandiram pelas “terras de planalto no Sul do país, em áreas de florestas subtropicais e de araucária, desde o Estado de São Paulo aos estados da região Sul”. Quando esse território novamente é alvo de investidas pela sociedade não indígena, isso provoca forte reação dos diferentes grupos (ANDREI, 2009, p. 2). A ocupação kaingang no território do atual Estado do Rio Grande do Sul foi identificada desde o Rio Piratini (afluente da margem esquerda do Rio Uruguai) até as cabeceiras do Rio Pelotas, e ao sul os limites são 38 “os últimos contrafortes do Planalto Sul-Rio-Grandense junto à bacia do Caí”, caracterizando a mesma área ocupada pelos Guaianá (ancestrais dos kaingang), nos séculos XVII e XVIII (BECKER, 1975, p. 107; 1995, p. 15). Especula-se que com o fim das missões jesuíticas os kaingang, que estiveram presentes nas reduções, “puderam voltar ao seu modo de vida tradicional, até a penetração de seus territórios pelas frentes pastoris, na primeira metade do século XIX” (VEIGA, 2008, p. 20). No entanto, a região em que se localiza a atual TI Guarita já era de conhecimento dos missionários jesuítas, que enviaram um grupo para realizar uma expedição, organizada a partir da Redução de São Miguel. Relata-se que, em 1752, o superior de São Miguel organizou uma expedição composta por trinta índios guarani e encabeçada por dois espanhóis, Miguel de Aguillar e Alejandro Martinez, para explorar os ervais entre os rios Turvo e Guarita. A expedição foi atacada por um grupo kaingang liderado pelo cacique Konkó, da aldeia do Campo Novo, sendo preservada somente a vida de Miguel de Aguillar. O espanhol foi “adotado” pelo cacique principal Fongue. Miguel de Aguillar destacara-se entre os kaingang, participando de lutas contra os Xokleng, sendo nominado como “Fondegue” e desposando-se com mulheres kaingang. Um de seus descendentes foi o cacique Nonohay. Atribui-se a Fondegue e Fongue a organização e junção de vários grupos e parcialidades, pois conseguiram unir diversos grupos indígenas desta região, “Kaingángs e Coroados, das diversas aldeias do Nhucorá, do Campo Novo, do Rincão do Guarita, do Pary e do Erval Seco formando o Império dos Coroados, entre os anos de 1752 e 1772” (VEIT, 1995, p. 133; RAMOS, 2008, p. 120-1). Assim evidencia-se que o contato interétnico entre os kaingang e a sociedade não indígena na região do Alto Uruguai intensifica-se no final do século XVIII, consagrando-se em meados século XIX, quando grupos e parcialidades kaingang passam a viver sob os aldeamentos. Ressalta-se que a região do Alto Uruguai foi a última fronteira agrícola a ser ocupada e apropriada, daquilo que atualmente se constitui o território do Rio Grande do Sul. Conforme aponta Zarth (1996, p. 69): A construção da atual sociedade da região tem como marco inicial, a conquista do território das Missões, em 1801. A ocupação do território por parte de milicianos rio-grandenses naquela data, marca a construção de um novo tipo de sociedade, diferente daquela construída pelos indígenas sob o controle dos jesuítas. A nova sociedade regional, em sua primeira fase, teve como características mais salientes a grande propriedade pastoril, o extrativismo de erva-mate e a escravidão. Uma segunda fase importante iniciou no final do século XIX, com um amplo processo de distribuição e 39 comercialização de terras e imigração, dando origem à uma forte expansão demográfica com base na pequena propriedade agrícola. A região do Alto Uruguai é limítrofe ao espaço das reduções jesuíticas, que foram alvo de ações de litígio entre Brasil e Argentina até a década de 1830, quando o território jesuítico consolida-se como território brasileiro. Nesse contexto, a região do Alto Uruguai é considerada como espaço de “‘fronteira interna’ de ‘fricção interétnica’”, que necessitava ser vencida para a consolidação do Estado-nação brasileiro (GOLIN, 2003, p. 291). A partir da década de 1830, quando o processo litigioso das fronteiras internacionais se resolve, se estabelecera “a ocupação efetivas dos campos missioneiros com o estabelecimento de centenas estâncias” (ZARTH, 2002, p. 117). As tentativas de ocupação da região entre os rios Turvo e Guarita já ocorreram durante a década de 1820, com reação dos grupos kaingang. Relata-se que em 1827 ocorreu um combate entre kaingang e invasores luso-brasileiros, sendo que “a derrota indígena ficou conhecida como ‘Pontão da Mortandade’ e grande parte da aldeia se transferiu para a região do Guarita formando duas aldeias distintas: a da Estiva e da Campina” (VEIT, 1995, p. 134). No ano seguinte, em 1828, instala-se nos campos de Rincão da Guarita o Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira, em terras então doadas pelo Governo Imperial do Brasil. Conforme o historiador Hugo Veit (1995, p. 134), ocorre nesse ano uma primeira aproximação entre grupos kaingang e o Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira. O Cacique Fondengue ou Dom Miguel de Aguillar procura o Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira visando uma aproximação entre brancos e índios. O Cacique Prudente de Rincão Guarita e sua aldeia aceita a pacificação sob a condição de branco respeitar os ervais do Nhucorá e as terras da Guarita (entre os rios Turvo e Guarita). No final de 1828 morre Fondengue e o Cacique Prudente, ajudado pelo Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira consegue a pacificação dos grupos liderados por Fongue, principalmente Nhucorá e do Erval Seco. O estabelecimento do Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira na região ocorreu em acordo aos propósitos do governo da época de povoar a região de fronteira e, também, por interesses econômicos. Os interesses econômicos se evidenciaram através da extração dos ervais nativos, tida como geração de renda desde a época das reduções jesuíticas do século XVII. O interesse econômico na exploração dos ervais da região foi estimulado, sobretudo, pela suspensão da exportação de mate pelo governo paraguaio (ZARTH, 1997, p. 117). Assim, a expansão e ocupação da região dos campos e ervais do Alto Uruguai organizaram-se a partir de Cruz Alta e Villinha (Palmeira das Missões) (MELIÁ, 1983, p. 176). 40 Apesar da indicação de pacificação de grupos kaingang no período de ocupação e expropriação do território kaingang, registra-se que ocorreram resistências e confrontos entres as frentes de ocupação e grupos kaingang, como mencionado no evento acima, do Pontão da Mortandade. Tau Golin (2003, p. 293) afirma que “a única resistência à progressão brasileira era a indígena. Assim, não era uma alteridade com a dimensão do inimigo estrangeiro, mas de um ‘entulho’ interno a ser removido”, convertido num “etnocídio”. A resistência apontada por Golin também é constata por Laroque (2006, p. 127) ao relatar a aproximação de grupos ou parcialidades kaingang do Rincão de Guarita, na década de 1840, a grupos invasores não indígenas. Essa aproximação não foi unânime entre os kaingang, pois houve a dissidência de parte deles, que “atravessaram o rio Uruguai em direção ao rio Peperi-Guaçu para viverem com as facções lideradas por Nhancurá e Nonêcofé”. Como já indicado anteriormente, parte do grupo kaingang, liderado pelo cacique Fongue, influenciado por Dom Miguel Aguillar, alcunhado Fondegue, já havia se aproximado do Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira em 1828. Conforme Gasparetto (2006, p. 23), pode-se constatar uma política de cooptação de lideranças kaingang, inclusive com designação de patentes militares, que contribuiu na “pacificação de dezenas de grupos rebeldes que foram vencidos entre 1840-1930”. Esta prática, de cooptação de lideranças para a pacificação e subjugação dos diferentes grupos, ocorreu como uma prática oficial de conquista e expropriação aos kaingang. Pode-se dizer que, a partir da segunda década do século XIX, com o interesse crescente da sociedade luso-brasileira sobre as terras ocupadas pela população Kaingang, a conquista dessas terras realizou-se à custa de violência generalizada contra todos os grupos que se opuseram-se a ela, violência essa freqüentemente praticada por grupos indígenas já submetidos e aliados ao ‘brancos’, armados e subvencionados pelos governos provinciais. Nessa triste história destacaram-se os nomes de alguns caciques Kaingang que serviram aos interesses luso-brasileiros, como os de Condá, Viry, Doble, Portela, Prudente e Fongue. Viry e Condá colaboraram, inclusive, no extermínio e submissão de grupos Xokleng (VEIGA, 2006, p. 53).18 Porém, a suposta cooptação de liderança é entendida pelo historiador Laroque (2006, p. 127-9) como uma mudança de postura dos próprios kaingang. Para o historiador, as 18 Torna-se relevante constatar que muitas dessas lideranças são reverenciadas como heróis regionais, mitos fundantes da historiografia não indígena de municípios. Exemplifica-se com o Cacique Condá, reverenciado como herói e desbravador na cidade de Chapecó/SC, com estátua na área urbana central, nominação de bairro, de estação de rádio, entre outras homenagens. Da mesma forma, porém em menor proporção, ocorre no município de Cacique Doble/RS. Marcon (1994, p. 101) relata que Condá firmou acordo, em 1846, com o governo da Província de São Pedro, recebendo gratificação mensal para aldear indígenas. 41 lideranças kaingang avaliaram que não poderiam fazer frente à expansão luso-brasileira. Como também tinham interesses de estabelecer alianças com estes, para “fortalecerem-se contra as parcialidades inimigas e também interessados em utensílios, roupas, etc introduzidos pelos estrangeiros, recorrem à política de alianças”. Conforme tal entendimento, não se especula que a totalidade kaingang aderiu à proposta de aliança, mas que, pelo menos por algum tempo, “facções de lideranças Kaingang como, por exemplo, a de Fongue, Votouro, Nonohay, Condá, Nicafim, Braga, Doble, entre outras, as quais seguindo aos interesses de seu grupo […] cogitavam ou não alianças para em troca de estabelecerem-se com seus liderados nos aldeamentos”. Assim, pode-se compreender a indicação de que, voluntariamente, os kaingang se apresentavam para aldear. Pois, conforme Laroque (2006, p. 128), […] foram os próprios Kaingang que mudaram de estratégia em relação aos brancos, sinalizando para a política de alianças, o que vai culminar com a atuação dos padres jesuítas em seus territórios, a partir de 1845, atendendo o projeto do governo para concentrá-los em aldeamentos. […] este projeto ocorreu por um lado, devido à situação conflituosa envolvendo “índios” e “brancos” praticamente durante toda a primeira metade do século XIX e, por outro, em decorrência de que os governantes, aproveitando-se dos jesuítas espanhóis […], se encontravam no Rio Grande do Sul por terem sido expulsos da Argentina, pelo ditador Juan Manuel Rosas. A cooptação por parte do governo, ou a busca de aliança de lideranças kaingang, possibilitou o atendimento da demanda do governo imperial e provincial da época: a comunidade indígena como povoadora da faixa de fronteira do Brasil com as repúblicas do Prata. A tese é apresentada pelo historiador Paulo Zarth, para quem a intenção governamental não era eliminar, mas “submeter e controlar os nativos”. Isso implicava adotar outras medidas no sentido de garantir a presença dos índios na zona de fronteira, mas de forma pacífica. O governo estabeleceu uma política de aldeamentos – por via da catequese – para delimitar o espaço de atuação dos índios e sistematizar o controle da população, utilizando-a à medida do possível para os interesses governamentais, integrando-a, por via da produção, à comunidade regional. Ao mesmo tempo, adotou-se uma forte repressão aos que se negavam a aldear-se ou criavam problemas (ZARTH, 1997, p. 40). Para Tau Golin (2003, p. 292), tal propósito governamental visava, no entanto, liberar os territórios para a colonização, afirmando que “os kaingang foram limpados do noroeste juntamente com as matas, para que o território fosse ocupado com os contingentes da ‘colonização branca’”. Para tanto, utilizou-se uma campanha de usurpação, através de ordens religiosas, na “criação de aldeamentos para confinar os indígenas”. Zarth (1996, 73) também afirma que o interesse do governo era a colonização e comercialização dos espaços liberados 42 pelo aldeamento, pois constata que, a partir de 1850, após promulgação da Lei de Terras, se constitui um processo crescente de privatização das matas, que passaram gradativamente ao controle privado. Assim, nesse contexto, é que se estabelecem os aldeamentos nominados como “Reduções dos índios Bugre e Coroados”, induzidos pelo governo, com apoio inicial de fazendeiros e ervateiros, e realizados por um grupo de jesuítas espanhóis, que haviam sido expulsos da Argentina pelo ditador Juan Manuel Rosas, como mencionado anteriormente (MELIÁ, 1983, p. 177; LAC, 2005, p. 43; LAROQUE, 2006, p. 128; SIMONIAN, 1995, p. 87). Estabelecem-se, então, entre 1848 e 1850, os aldeamentos de Guarita, Nonohay e Campo do Meio, que “tinham como objetivo específico, concentrar as várias tribos indígenas dos Figura 2: Mapa do território kaingang no século XIX Fonte: LAROQUE, 2007, p. 36. 43 caciques Nonohay, Fongue e Braga em áreas determinadas, para atender ao avanço da colonização”, sobretudo a colonização de imigrantes germânicos (BECKER, 1983, p. 108). A instituição dos aldeamentos também seguia a percepção da época de que “a catequese e civilização dos índios vinha ser sinônimo de redução dos índios em aldeamentos. […] que tão úteis nos podiam ser” (MELIÁ, 1983, p. 177). Denota-se que ainda persistia a mentalidade de que as comunidades indígenas, além de serem usurpadas e expropriadas de seus territórios, auxiliassem no desenvolvimento econômico local ou regional, constatado pela expressão “tão úteis nos podiam ser”. Essa é uma das razões apontadas para o estabelecimento do projeto dos aldeamentos indígenas na província. Destaca-se que tais projetos foram debatidos e implantados a partir de 1846, ano posterior ao final da Guerra Farroupilha (1845). As razões econômicas, como já apontadas, somaram-se a razões sociais e políticas, que objetivavam reduzir e impedir os conflitos entre indígenas, colonos e fazendeiros (MARCON, 1994, p. 103-4). Referente à região do rio Guarita, relata-se que o cacique Fongue se apresentou voluntariamente ou pacificamente, acompanhado por cerca de duzentos índios, ao Ten. Cel. José Joaquim de Oliveira, para aldear-se, em 1847. No ano seguinte, em 1848, o Pe. Bernardo Parés, superior do grupo jesuíta, visita a aldeia de Guarita e designa dois padres para a ação missionária (MELIÁ, 1983, p. 176-7; LAROQUE, 2006, p. 12; VEIT, 1995, p. 134; LAC, 2005, p. 43; NONNENMACHER, 2000, p. 34; GASPARETTO, 2006, p. 24-5). Indica-se que já no segundo ano do aldeamento, em 1849, a parcela aldeada tornou-se “pacíficos agricultores sedentários e produtores de erva-mate para o mercado”, fato que agradava as autoridades locais, mesmo que nem todos os grupos aceitassem tal condição (ZARTH, 1997, p. 43-4). Aliás, o objetivo de fazer trabalhar as parcelas aldeadas é descrito explicitamente pelo Pe. Parés (1848, fl 2)19 como um dos objetivos da catequese: Julgo pois conveniente pª a Cathequese, que os PP Missionários desde já por huma escola pª ensinar a ler e escrever aos meninos: assim se acostumarão a estar separado dos mais velhos, e se poderá lograr de faze-los trabalhar separadamente. Contudo, tal proposição não se realizou, uma vez que a ação jesuítica junto aos kaingang foi encerrada. Com efeito, “no dia 1º de janeiro de 1852, o superior da Missão, Pe. Bernardo Parés, dava por encerrada a missão e os compromissos assumidos com o Governo da Província a este respeito” (MELIÁ, 1983, p. 177). As justificativas são diversas. Os padres 19 Acervo do Museu Antropológico Diretor Pestana, FIDENE-UNIJUÍ. Pasta Cathequese dos Índios. 44 jesuítas apontaram: as dificuldades no ensino da doutrina cristã; as impossibilidades do aprendizado da língua kaingang; o mau exemplo de outros cristãos e a própria falta de respeito humano e a preguiça dos kaingang são razões apresentadas pelo Pe. Villarrubia como motivos do fracasso catequético (LAROQUE, 2006, p. 128). Aliás, apesar da ressalva apontada no caso de Guarita, no geral consideravam-se os kaingang aldeados como “‘ordinários’ e ‘indolentes’, por não se dedicarem ao trabalho e não reconhecerem as vantagens da civilização” (NONNENMACHER, 2000, p. 33). Considera-se, ainda, o fato de que as parcialidades que se submeteram ao aldeamento não permaneceram ali continuamente, mas que, por vez, atendidos os seus interesses, retornavam aos espaços anteriores do aldeamento (LAROQUE, 2006, p. 299). Ressalta-se o envolvimento dos padres jesuítas na defesa das comunidades kaingang frente aos interesses de fazendeiros e intrusos nos aldeamentos (LAC, 2005, p. 44) como fato em desacordo aos propósitos provinciais ou político-econômicos com as reduções. Para a antropóloga Simonian (1995, p. 87), o envolvimento do Pe. Parés na questão das terras kaingang sobressaiu na ação missionária, o que se evidencia nas correspondências de 1848, 1850 e 1851. Meliá (1983, p. 177) também indica que “a recusa dos índios para se juntar a grandes aldeamentos e o escasso interesse que mostravam para o trabalho agrícola” dificultaram a proposta de uma catequese sistemática. Essa situação, agregada ao fato de haver um baixo número de índios aldeados – em Guarita se contabilizava cerca de 250 kaingang – impulsionou uma “oposição movida pela maçonaria tanto a nível de Governo como a nível de opinião pública[sic]”, provocando o fim da ação jesuítica nos aldeamentos kaingang. Além de tais motivos apontados, Meliá (1984, p. 15, 17) ainda afirma que houve o desejo dos colonos, estancieiros e fazendeiros de que a ação dos padres jesuítas nos aldeamentos pudesse “facilitar a entrega das terras dos índios”. Mas, ao perceberem que os “padres defendiam os direitos dos índios e denunciavam as injustiças e mortes praticadas contra eles, deixaram de apoiá-los”, o que provocou o desânimo e a desistência da ação jesuíta junto aos aldeamentos. Considera-se que, de modo geral, em comparação à experiência anterior das missões jesuíticas, nos séculos XVII e XVIII, a proposta desenvolvida entre os kaingang no período de 1846 e 1852, “no que se refere aos preceitos da ‘catequese’ e ‘civilização ocidental’” não foi satisfatória (LAROQUE, 2006, p. 128), sobretudo a julgar pelas manifestações do setor político-administrativo da província. Ao comparar essa proposta com as missões dos séculos 45 anteriores com o povo guarani, Becker (1975, p. 110-1; 1995, p. 19) afirma que assim ocorreu pelo fato de os kaingang não se disporem ao sedentarismo e às atividades agrícolas como base econômica. Cabe ressaltar que, de modo semelhante ao período anterior das missões jesuíticas, a ação missionária junto aos kaingang significou um período de mudanças culturais. Outra vez se exemplifica com o combate à poligamia cacical a adesão ao uso de vestuário, a sedentariedade e a agricultura como base econômica (BECKER, 1995, p. 18-9). Estipula-se que os aldeamentos visavam “a transformação dos antigos costumes dos indígenas, que de um modo de vida primitivo, baseado na caça, coleta e agricultura incipiente, passariam a participar dos modos de produção modernos”, incutindo a percepção capitalista de lucro na comercialização dos excedentes no custeio das despesas dos aldeamentos (BRIGMANN, 2009, p. 7). A decisão pelo final da ação jesuítica nos aldeamentos kaingang coube ao presidente da província, conforme manifestação em 1851, ao afirmar que os padres missionários e os “gastos na catequese e civilização dos indígenas” eram sustentados pelos cofres provinciais (NONNENMACHER, 2000, p. 36). No caso, A opinião do Presidente da Província, Patrício Correia Câmara, era a de que não se empenhassem e nem se fizessem tantos gastos com aquilo que dependia só do tempo. Que os índios fossem deixados entregues a si mesmos, que fossem tratados com bondade, uma vez que eles não aceitavam a “generosidade” do governo, o qual estava pronto para lhes levar as “luzes” e os “benefícios” da civilização (NONNENMACHER, 2000, p. 37). A suposta generosidade e benefícios da civilização passariam, então, a ser exercidos e administrados de forma laica, diante do suposto fracasso eclesiástico. Esse fracasso foi expresso de forma contundente pelo vice-presidente da província de São Pedro do Sul, Luiz A. L. de Oliveira Bello, na abertura da Assembleia Provincial em primeiro de outubro de 1852, ao afirmar: “de catequização propriamente dita pouco se tem feito, sem dúvida porque aqueles padres ignoram a língua, em que deveriam dirigir aos índios as palavras de conversão” (apud ZARTH, 1997, p. 42). A administração laica não se responsabilizou pela catequização, mas o “objetivo principal era trazer os indígenas para as luzes da civilização e transformá-los em cidadãos produtivos e não meramente indivíduos dependentes do assistencialismo do governo” (BRIGMANN, 2009, p. 8). Apesar da disposição para gerar o assistencialismo do governo, este se propõe a introduzir “ferramentas, roupas e novas 46 habitações”, com o objetivo de estimular a “inclusão do indígena que possibilitasse à província lucrar, ao invés de onerar os cofres públicos” (BRIGMANN, 2009, p. 9). Como forma de liberar mais espaços para a colonização, de limitar a circulação dos grupos indígenas e no intuito de diminuir os esforços públicos no trato com os indígenas, o governo propõe, a partir de 1853, a concentração dos kaingang no Aldeamento de Nonoai (LAROQUE, 2006, p. 130; MELIÁ, 1983, p. 180). O objetivo do aldeamento de Nonoai era “reunir num mesmo espaço todas as chamadas hordas indígenas, liberando territórios para a colonização estrangeira, pois a chegada de imigrantes à província, iniciada em 1824, crescera rapidamente após a Lei de Terras de 1850” (VEIGA, 2006, p. 55). Assim, em 1854, todos os kaingang aldeados em Guarita haviam sido transferidos para Nonoai, sendo que o diretor desse aldeamento Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira, torna-se diretor também de Nonoai (BECKER, 1976, p. 50). Para cumprir com o objetivo de reunir num único espaço todos os kaingang, o governo da província de São Pedro do Rio Grande do Sul demarca, em 1856, o Aldeamento de Nonoai, com um vasto território entre os rios Passo Fundo, Várzea, Uruguai e Lajeado Papudo, totalizando 428.000 ha (VEIGA, 2009, p. 59). Contudo, a tentativa de reunir os kaingang no aldeamento de Nonoai fracassou, uma vez que grupos kaingang “não aceitaram abandonar as aldeias onde têm enterrados os seus mortos, e os seus locais de nascimento, onde tem enterrados os ‘seus umbigos’ e também por serem muitos grupos, inimigos entre si” (VEIGA, 2009, p. 59). Os conflitos pré-existentes entre os grupos kaingang transferiram-se para Nonoai. Conforme relato de Becker (1976, p. 50-1), “se agrava a situação entre os Caciques Pedro Nicofé, Manoel Grande, Fongue, Antonio Prudente e Victorino Cundá”. Conforme relato, Fongue e Antonio Prudente auxiliam, em 1855, na perseguição a outros grupos que realizavam assaltos e ataques a fazendas da região. Os conflitos perduraram, sendo que, em 1858, o grupo de Fongue ainda era perseguido, provocando o retorno de Fongue e seu grupo à região do rio Guarita. O relato acima evidencia que a própria modalidade do aldeamento, de concentrar diferentes grupos num mesmo espaço, baseada na falsa compreensão de grupos homogêneos, potencializou as tensões e conflitos internos. A insistência na produção agrícola e no controle da distribuição de alimentos também contribuiu para a fuga dos aldeamentos, “cujos dissidentes passaram a unir-se aos grupos hostis às políticas do governo” (BRIGMANN, 2009, p. 8). Para Becker (1983, p. 108), a concentração em aldeamentos, as perseguições e a 47 cisão interna determinam que “o grande grupo Kaingáng enfraquece” e “colabora para o seu desgaste”. A situação de conflito e perseguição não se restringiu ao espaço e grupos nos aldeamentos. Os grupos que optaram em permanecer em seus espaços originais de circulação foram perseguidos e sofreram fortes repressões. No entanto, também esta prática não obteve o resultado desejado num primeiro momento (LAROQUE, 2006, p. 129-30), fato esse que é explicitado pela criação das “companhias de pedestres que policiam as áreas, os bugreiros que retiram os índios do mato, as construtoras de estradas que, traçando caminhos pelo meio dos territórios indígenas, os destroçam ou desestimulam”, para além da cooptação de caciques e grupos kaingang que auxiliam no contato, perseguição e amansamento de outros grupos (BECKER, 1976, p. 69). A estratégia de abertura de estradas como uma forma de expropriar os territórios de circulação e presença kaingang foi organizada na década de 1860 no Rincão da Guarita. Relata-se que Em 1860 o Governo Imperial envia para a região do Alto Uruguai uma Comissão de Engenheiros Militares, chefiada pelo Ten. Cel. José Maria Pereira Campos, para proceder a um levantamento das terras compreendas entre os rios Ijuí Grande, Uruguai e Várzea. Esta Comissão partiu do Quartel Imperial de Cruz Alta e estabeleceu seu “posto de apoio’ no Rincão da Guarita junto a aldeia do Cacique Prudente. Foi designado o Alferes Brandão para chefiar o grupo de militares, civis e índios, os quais seguindo pela cordilheira, entre os rios Turvo e Guarita, abriram uma picada de 70 quilômetros até atingir a fronteira com a Argentina. Esta foi a “Picada do Pary” e mais tarde serviu de novo divisor entre área indígena do Guarita e as terras devolutas do Estado do RS (VEIT, 1995, p. 134). A abertura da “Picada do Pary” consolida o período da influência e consequências dos aldeamentos, como política de governo, conduzidas nas décadas de 1840 e1850. A disposição governamental de limitar e concentrar os diferentes grupos num determinado espaço geográfico persistira, visando garantir espaços “livres” para a colonização. Também a abertura da “Picada do Pary” foi simbólica por evidenciar o abandono da modalidade catequética como forma de atrair os kaingang para a civilização e integração à sociedade nacional, postura evidenciada e constituída na condução dos aldeamentos na década de 1850, quando sob a administração pública. A abertura da “Picada do Pary” também se tornou simbólica, uma vez que se estabeleceu no contexto de fixação de divisas internacionais entre o Brasil e a Argentina. O 48 governo imperial, preocupado com a defesa da fronteira, buscou povoar estrategicamente a região, incluindo a fundação de colônias militares na região fronteiriça à Argentina. Durante as expedições, de acordo com o relatório da comissão, denunciou-se a “presença de supostos militares paraguaios, disfarçados de ervateiros, no erval da Guarita” (ZARTH, 1996, p. 70). Assim, propôs-se a criação de uma colônia militar na foz do Rio Turvo como forma de incentivar o povoamento deste sertão. Apesar da preocupação com a defesa da fronteira, a colônia foi criada somente em 1879, denominada como Colônia Militar do Alto Uruguai 20 (ZARTH, 1996, p. 71). O atraso na instalação da colônia militar foi motivado pela Guerra do Paraguai, declarada em 1864, com batalhas e incursões de guerra no território da província de São Pedro do Rio Grande do Sul a partir de 1865. Esse fato avalizou a preocupação militar do governo imperial brasileiro na proteção das fronteiras geopolíticas internacionais. Durante a Guerra do Paraguai, houve a participação de kaingang do Rincão de Guarita. Relata-se que, Em 1865, um ano após o início da guerra do Paraguai, três índios kaingang, oriundos do toldo do cacique Fong, se obrigavam “a servirem como voluntários do exército”. Os indígenas não só achavam-se autorizados pelo cacique a prestarem tais serviços, como tiveram sua própria autoridade reconhecida pelo dono da estância, que permitiu que se “fizesse a reunião no toldo, ou taba de baixo, sob a direção do capitão”, dando “aos mesmos o armamento a fuzil, equipamentos, arreios, cavalos e o fardamento que for necessário”. Tal autorização foi concedida através de uma portaria, visto que se tratava da estância do presidente da Província, Francisco do Rego Barros, o Visconde de Boa Vista. Os três índios, a saber, Antônio Portella, Manoel Feliciano e Manoel da Silva, foram respectivamente nomeados como capitão, tenente e alferes da Companhia ou Corpo que os mesmos formaram com cerca de duzentos guaranis (MELO, 2009, p. 8). A participação de kaingang na Guerra do Paraguai, dita como de apresentação e disposição voluntária, pode ser deduzida como resposta ao arregimento promovido pelo estancieiro. A prática da época conferia patentes militares aos estancieiros e fazendeiros. Estes, então, gozavam de benefícios do governo, participação em decisões políticas e econômicas, porém, em contrapartida, precisavam prestar serviços de guarnição das fronteiras e arregimentar voluntários para a guerra (ZARTH, 1997, p. 51-6). O controle político e militar dos fazendeiros era inquestionável. Basta lembrar que, durante a guerra do Paraguai e quando de guerras intestinas, os 20 Ainda há vestígio da instalação da Colônia Militar do Alto Uruguai, sendo apresentado como um dos pontos turísticos do município de Três Passos/RS. 49 coronéis locais não tinham grandes dificuldades em arregimentar soldados para as batalhas, mesmo que muitas batalhas fossem de caráter político e pessoal. Nesse sentido, o prestígio e o poder de um estancieiro estava muito ligado à sua capacidade de aliciar homem dispostos a um enfrentamento armado contra qualquer inimigo possível (ZARTH 1997, p. 69). Desta forma, a designação de patentes militares serviu para o aliciamento de contingentes indígenas para as frentes de batalha, bem como forma de cooptação de lideranças kaingang para os feitos da definição e defesa das fronteiras internacionais do Brasil. Relata-se, ainda, que o “próprio Fongue foi agraciado com o cargo de ‘major’ da Guarda Nacional” (VEIT, 1997, p. 134). A designação de patentes pode ter contribuído para a incorporação de títulos de hierarquia militar na designação de liderança ou chefia da organização social kaingang nesse período da segunda metade do século XIX, que perdura até o momento presente (VEIGA, 2009, p. 59). Além da designação de patentes militares para as lideranças, numa publicação da FUNAI intitulada Os Kaingangs no Rio Grande do Sul (1995), citada pela pedagoga Bonotto (2004, p.17-8), ex-diretora de escolas kaingang da TI Guarita, afirma-se que as terras da Área Indígena de Guarita foram reconhecidas no decorrer da Guerra do Paraguai, quando os índios, liderados pelo Cacique Fongue, famoso pela sua coragem e decisão, participaram com muito destaque nas lutas mostrando serem valentes e destemidos. Como recompensa a Princesa Isabel presenteou-os com as terras entre os rios Turvo e Guarita, legitimando o local como sendo de ocupação tradicional indígena.21 Ainda que pese a disposição em reconher a área como “ocupação tradicional indígena”, questionam-se as motivações e interesses governamentais em tal proposição, pois, apesar de a informação ser corroborada pelo pesquisador Renz (2005, p. 14), que também relata a demarcação entre os rios Guarita e Turvo como recompensa pela participação kaingang na Gerra do Paraguai, o usofruto das comuidades indígenas não se efetivou. A demarcação não garantiu de fato o território tradicional, conforme percepção dos próprios kaingang. A ocupação de vastas áreas era alvo da especulação econômica para a colonização de imigrantes europeus, como também ocorreu na região do Alto Uruguai, organizada a partir de Cruz Alta (ZARTH, 1996, p. 79). Tal situação provoca a reação de parcialidades kaingang, que “continuavam a atuar frente a esta trama segundo as suas próprias pautas culturais”, abandonando os aldeamentos e “percorrendo regiões pertencentes aos municípios de Passo Fundo e Cruz Alta” (LAROQUE, 2007, p. 132). Relata-se que, em 1875, “guerreiros 21 FUNAI. Os Kaingangs do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. da Funai, 1995. A publicação não foi localizada no original. 50 pertencentes ao grupo do Pã’í mbãg Fongue” atacaram a Fazenda Monte Alvão. Em 1879, relata-se o ataque a outras propriedades da região, sem se especificar a autoria dos ataques (Idem). Em 1871 o Cônego Leme, Vigário da Freguesia da Palmeira, ao visitar o povoado do Campo Novo, verificou a existência de muitos índios, em sistema de escravidão e total analfabetismo, atuando na extração da ervamate para os brancos (VEIT, 1997, p. 136). Na década de 1880, a situação persiste. O historiador Laroque (2007, p. 132-3) afirma que as lideranças, de diferentes parcialidades kaingang, agiam de acordo com seus interesses, estabelecendo alianças com os não índios, bem como “permanência ou não dos integrantes de suas parcialidades nos aldeamentos”. Destacando o relatório do presidente da província em 1880, afirma “que os fazendeiros estabelecidos nas vizinhanças dos aldeamentos de Guarita, Nonoai e Campo do Meio frequentemente reclamavam das correrias e ameaças Kaingang em suas propriedades”. A afirmação diverge da apontada por Zarth (1996, p. 72), que afirma, em relação ao mesmo período temporal, que “o ‘problema indígena’, como era considerado, estava acabado e os índios completamente submetidos e controlados em suas aldeias”. Zarth (1996, 80-1) destaca que, para a época, a principal preocupação governamental era “criar colônias com imigrantes europeus nas matas do Noroeste” como forma de “saída para a estagnação econômica regional”. Considera-se, porém, que a implantação das colônias motivou o cacique Fongue a se fixar em Inhacorá. O historiador jesuíta Meliá (1983, p. 180) registra que, em 1880, o cacique Fongue estabeleceu-se na região do rio Inhacorá por solicitação de proprietários da região, que visavam amenizar os prejuízos pelos ataques e assaltos realizados por outros grupos kaingang. Conforme o historiador, eram oito os aldeamentos kaingang nesse ano, entre eles Guarita e Inhacorá, totalizando 1.225 índios aldeados na província. Contudo, pondera: Parece que de fato esses aldeamentos nunca concentravam a totalidade dos Coroados, que continuavam seu modo de vida bastante livre nas matas e só chegavam à direção do aldeamento quando precisavam alguma ferramenta ou fazenda. Mas essas mudanças nos assentamentos indicam, também, até que ponto os índios tinham perdido o controle do próprio chão e passaram a depender da flutuante vontade do governo e dos administradores, mais interessados em favorecer os novos “donos” da região e sua segurança que a vida e a tranqüilidade dos índios. Conforme Becker (1976, p. 49), o estabelecimento do grupo de Fongue no Inhacorá provocou a extinção do Aldeamento de Guarita, devido à “solicitação de fazendeiros da 51 região, que alegavam prejudicarem os índios a tranquilidade da região, com correrias, roubos e outros atos agressivos”. Porém, a informação da extinção do Aldeamento de Guarita, conforme o relato de Becker, contrasta com a informação de Renz (2005, p. 14), que afirma que, mesmo após a fixação de Fongue em Inhacorá, ainda se mantiveram dois grupos na região de Guarita: “o da Estiva, liderado pelo cacique Fifo, o de Campina pelo Cacique Nihe, ambos organizavam seus grupos conforme os costumes da tribo”. Constata-se, que, provavelmente, Becker se afiançou na informação sobre a liderança maior para determinar a extinção de Guarita. Mas, ao afirmar a mudança de Fongue de Guarita para a região de Inhacorá, Becker reconhece e afiança “a presença indígena Kaingáng na região, desde meados do Século XVIII em seu estado primitivo”. A pesquisadora pondera que, devido às pretensões de colonização pelo governo provincial e pela necessidade de subsistência, o próprio Fongue escolheu a região do rio Inhacorá pelos “ótimos terrenos de caça bem como constatou ser abundante a existência de peixes. Decidiu, então, abandonar Guarita e estabelecer-se com a sua gente no Inhacorá, onde se originou uma nova tribo”. Essa informação não descaracteriza a informação de Renz. Uma vez que, para Becker, Fongue foi “com sua gente”, Renz afirma que Fifo e Nihe “organizavam seus grupos conforme os costumes da tribo”. Assim reafirmase a dimensão de que a proposta de aldeamento e transferência de grupos se restringia a parcialidades kaingang. Da mesma forma, a resistência ou a manutenção de antigos espaços de permanência por outras parcialidades kaingang. A constatação de Meliá e Becker sobre a aceitação de grupos kaingang ao aldeamento é corroborada por Zarth (1997, p. 44), que afirma apesar da longa resistência, os grupos indígenas, à medida que a fronteira agrícola avançava, obrigavam-se a aceitar as imposições e o aldeamento para poderem manter-se numa região que já não mais fornecia mais condições de sobrevivência no estilo tradicional de caça e extrativismo associados à agricultura de coivara. Talvez o escritor e político Evaristo Afonso de Castro, numa publicação de 1887, resuma bem a longa luta entre os indígenas e os invasores, demonstrando o triunfo da política governamental: “O major Oliveira, na Guarita pode travar relações e catequizar o cacique Fongue de modo que no decurso de alguns anos pode o governo aldear em Nonohay os índios que vagavam nesta província apresentando-se depois os que existiam em Guarapuava, na província do Paraná. Assim aldeados esses índios tornaram-se nossos fiéis aliados, porém evitando sempre mesclar-se com a população do país e conservando-se sempre sob a direção de seu cacique”. Zarth (1997, p. 78) destaca que o debate público sobre o desenvolvimento da agricultura e a formação de colônias dominou a década de 1880 na região, como resultado 52 decorrente da Lei de Terras de 1850. O historiador Laroque (2006, p. 132) afirma que, na década de 1870, “respaldados pela Lei de Terra de 1850, os governantes, para viabilizar os interesses da Frente de Expansão, inicialmente demarcavam as áreas Kaingang” e, em seguida, alegava-se que estas eram improdutivas e, então, liberadas à colonização. Essa situação pode se supor em relação à Guarita na transferência do grupo de Fongue ao Inhacorá, na década de 1880. No entanto, as tentativas de esvaziar a área de Guarita não surtiram efeito, pois, durante a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893-95) e a Revolução da Palmeira (1902), a área “serviu de refúgio para ‘maragatos’, criminosos, caboclos, e migrantes das áreas envolvidas nos conflitos”, diminuindo o espaço territorial de circulação, manejo e moradia dos kaingang (VEIT, 1997, p. 135). O pesquisador Renz (2005, p. 14) afirma que os efeitos da Revolução Federalista também proporcionaram o aumento da fronteira agrícola na invasão das terras indígenas de Guarita, e que “para evitar as barbáries cometidas contra os índios, agiliza-se a organização da reserva”. Porém a organização da reserva ocorreu somente no período posterior, no século XX. O resgate histórico apresentado, o período das reduções jesuíticas nos séculos XVII e XVIII, os conflitos, aldeamentos, resistência e alianças estabelecidas pelos kaingang no período posterior às reduções jesuíticas e no século XIX expõem a modalidade e característica da ocupação territorial do Alto Uruguai pela sociedade não indígena. O processo de ocupação caracterizou-se pela formação de uma sociedade com classes sociais econômicas distintas: fazendeiros/estancieiros; lavradores/extrativistas; minifúndios ocupados por imigrantes (ZARTH, 1996, p. 72). A constituição da sociedade não indígena em classes socialeconômicas estabeleceu-se pela expropriação territorial da comunidade indígena, habitante tradicional da região. A expropriação territorial ocorreu com a disposição de aliança de lideranças kaingang, mas também com a resistência desses e de outros grupos que não aceitavam as investidas da colonização e estabelecimento das fronteiras. Aliás, o estabelecimento de diferentes projetos, como os aldeamentos do século XIX, “somente foram implementados, na medida em que estes [os indígenas] impuseram resistência e constituíram-se em ‘obstáculos’ ao avanço da colonização” (MARCON, 1994, p. 87). Uma das modalidades de subjugação constantemente utilizada ou estimulada era a catequese. A catequese constitui-se numa forma de assimilar as comunidades indígenas à 53 sociedade não indígena, de forma mais branda, evitando conflitos. Conforme entendimento da época, a catequese obteria resultado positivo se “se pautasse no trabalho (lavoura) e na religião” (NONNENMACHER, 2000, p. 44). Estabelecer o vínculo à agricultura evidencia que “a finalidade última de toda a catequese era de incorporar o índio ao processo produtivoagrícola com vida sedentária” (MARCON, 1994, p. 120). Considerava-se trabalho somente as lidas da agricultura. E, devido à expansão da colonização, a subsistência tradicional indígena sobre as matas ficou impossibilitada (MARCON, 1994, p. 122). A impossibilidade da subsistência tradicional também decorre da proposta do aldeamento, pois ocorreu a drástica redução dos espaços de trânsito e sustentação. Essa redução territorial interferiu diretamente sobre as forma de obtenção das fontes alimentares, baseadas na caça e coleta, sobretudo do pinhão. O projeto dos aldeamentos no século XIX também se constituiu através da implantação de escolas às crianças, para, através da escolarização, se facilitar o processo de civilização das comunidades indígenas. Conforme pesquisa de Nonnenmacher (2000, p. 46) A educação proposta pelos padres jesuítas é uma educação tradicional, rígida, dentro da concepção de mundo europeu. Em um ofício enviado ao Presidente da Província, o Padre Pare sugere que, “Seria conveniente para facilitar a catequese, que os padres missionários, desde já, estabelecessem uma escola para ensinar a ler e escrever aos meninos, assim se acostumarão a estar separados dos mais velhos, e se podem lograr de fazê-los trabalhar separadamente. Como esta separação pelo trabalho deverá haver dificuldades, é preciso proceder de modo que eles não entendam no princípio o que se pretende”22. A pretensão à escolarização dos kaingang dava-se através de “métodos rígidos do tipo tradicional da civilização européia”, o que provocava o afastamento dos indígenas das escolas. A insistência ao letramento persistiu na ação do governo provincial quando dirigia os aldeamentos, também não obtendo o êxito desejado, mas a rejeição semelhante ao intento dos padres jesuítas (NONNENMACHER, 2000, p. 46). Marcon (1994, p. 126) destaca que, neste sentido, que ao se propor um modelo de escola “nos moldes da civilização européia, da racionalidade capitalista e com uma pedagogia tradicional, as resistências logo se manifestaram”. Apesar dos intentos dos jesuítas e do governo provincial, avalia-se que os mesmos tiveram como um dos principais obstáculos nos aldeamentos as interfaces: trabalho/lavoura; 22 No acervo do Museu Antropológico Diretor Pestana (MADP) encontra-se fotocópia incompleta da referida carta do Pe. Parés. A carta é datada de 06.nov.1848 e refere-se à implantação da escola no Aldeamento de Guarita. Acervo do MADP. Catálogo 1. Kaingang / Cathequese kaingang Guarita. 54 catequese/religião; e escola/civilização. Essas interfaces resultaram de decisões oriundas de fora das comunidades indígenas. Ou seja, a decisão de adesão aos “aldeamentos não partiu dos próprios índios que, em vista disso, resistiram” (MARCON, 1994, p. 122). Também para os que aderiram às reduções e aldeamentos se constata que fora uma causa perdida, impondo a resignação da sobrevivência na dependência da sociedade não indígena, “dos brancos” (BECKER, 1976, p 69). De forma geral, os intentos não consideraram a perspectiva kaingang neste processo. Ao refletir sobre a ação dos padres jesuítas no século XIX, Marcon (1994, p. 127) identifica que “os jesuítas tiveram dificuldades em olhar os índios a partir deles mesmos e da sua lógica de pensamento, ou seja, da sua concepção de mundo, tanto em relação ao trabalho, à religião, quanto à educação”. Apesar do intento em aprender a língua kaingang, essa atitude visava à doutrinação e catequese, em lugar do fortalecimento da identidade cultural. Destaca-se a ciência de que a avaliação da desconsideração da perspectiva kaingang no intento jesuíta ocorre a posteriori dos fatos, no final do século XX. Contudo, a mesma possui valia, pois estudiosos apontam dimensões que se propagaram para além do século XIX, presentes na atualidade. De acordo com Meliá (1983, p. 181), a década de 1980 ainda apresentava semelhança, ou melhor, conforme própria designação do historiador, “herança” do modelo de catequese e civilização da segunda metade do século XIX, a saber: […] instabilidade dos assentamentos indígenas, dependência do índio do governo, abusos na administração dos toldos, intrigas e ocupação abusiva de terras por parte dos fazendeiros, precariedade da missão católica, ideologia discriminatória contra o índio, ‘estrangeiro na sua própria terra’. Questiona-se se o mesmo processo também se aplicará à educação escolar. A avaliação presente aponta que a prática catequética-escolar imposta aos kaingang, sobretudo a partir dos aldeamentos, será superada a partir da nova organização geopolítica brasileira, com a proclamação republicana e os referenciais teóricos do século XX. Contudo, a perspectiva do aldeamento de liberar terra para a colonização persistiu no início do século XX, quando “o governo do Estado do Rio Grande do Sul decidiu constituir pequenas áreas reservadas no antigo território Kaingang” (VEIGA, 2008, p. 20). De forma semelhante, no que concerne à catequização dos kaingang, a polêmica persistirá além da Proclamação da República (MACIEL; MARCON, 1994, p. 137). 55 1.3.3 A demarcação territorial da TI Guarita e o SPI – FUNAI As tentativas de agrupar ou aldear as comunidades kaingang, no século XIX, não lograram êxito, pois, no início do século XX, na região do rio Turvo e Guarita, identificava-se a existência de diversos “toldos”, inclusive para além do espaço demarcado após a participação dos kaingang na Guerra do Paraguai.23 De acordo com Simonian (1993, p. 37), havia o toldo da Estiva, do Xindangue (próximo ao rio Turvo),24 do Capinzal no Campo Novo (ocupado pelas famílias Sales e Ribeiro), de Redentora e outras comunidades menores dispersas na região. Apesar da constatação da amplitude da ocupação kaingang na região, o avanço da colonização intensificou-se na última década do século XIX. O interesse colonial foi justificado pelo potencial econômico da região costeira do Rio Uruguai, sobretudo na extração de madeira e erva-mate, além dos interesses geopolíticos de fixação das fronteiras. A frente colonialista decorreu do investimento e desbravamento dos próprios colonos, ou organizados por empresas de colonização (SPAREMBERGER, SANTOS, 2007, p. 117). Consequentemente, ocorreu a invasão das áreas dos toldos e das comunidades kaingang dispersas na região (SIMONIAN, 1993, p. 37). Diante da necessidade de regularizar a colonização e, também, reduzir o espaço ocupado pelas comunidades indígenas, elabora-se a proposta do governo estadual para contatar as lideranças indígenas e propor-lhes a redução formal da área de ocupação. Ou seja, concentrar as diferentes e dispersas comunidades num determinado local, proposta consolidada em 1912. A demarcação física foi conduzida pela Comissão de Terras do Estado, com sede em Palmeira das Missões. No processo da demarcação, definiu-se que o limite ocidental fosse uma rodovia, que ligava Redentora ao povoado Paris (atual Tenente Portela). A conclusão da demarcação ocorreu em 1918, definindo uma área de 23.183 ha (ou 231,83 km²). Na época da demarcação, a área constituía-se de floresta de araucária e outras madeiras 23 Torna-se relevante constatar que, posterior à Guerra do Paraguai, a região do Guarita também é ocupada por famílias guarani. Simonian (1993, p. 37) afirma que: “Os que chegaram ainda no século passado ou em inícios deste eram procedentes do Paraguai, mas chegaram ao noroeste do Rio Grande do Sul após uma passagem por Misiones, Argentina, de onde muitos foram e têm sido expulsos (Topé, 1978). Embora muitos guarani (Mbyá, Xiripá, Tambeopé) tenham se fixado em Guarita, muitos outros tomaram ou continuam tomando essa área indígena apenas como área de passagem, mais ou menos temporária. Em que pese sua presença já antiga na área, em momento algum os guarani ameaçaram a posse kaingang em Guarita” [sic]. 24 Em nota, explicita a localização: “Mais precisamente, no Alto Alegre, junto aos Lageados Burro Magro e Tigre, onde a presença indígena foi mantida até aproximadamente 1950” (SIMONIAN, 1993, p. 40). 56 nobres (SIMONIAN, 1993, p. 37). A população indígena, quando da demarcação do Toldo Guarita, totalizava 200 habitantes (GASPARETTO, 2006, p. 27). A determinação para a demarcação e sua execução, realizada pelo governo do Rio Grande do Sul, foi posterior à criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), ocorrida em 1910, pelo governo federal. O SPI foi concebido de acordo com os princípios positivistas e instituído pelo decreto nº 8.072 de 20 de junho de 1910, pelo presidente Nilo Peçanha (MACIEL; MARCON, 1994, p. 146). De acordo com a proposta positivista, “os civilizados deveriam proteger os indígenas” para que estes alcançassem o estágio da razão, da ciência positiva. E, para tal realização, a demarcação de áreas exclusivas aos índios, em isolamento do mundo “civilizado”, constituindo-se nações independentes, foi uma demanda necessária (MACIEL; MARCON, 1994, p. 139). O propósito era uma obrigação do Estado, de promover a progressiva evolução das comunidades indígenas, visando integrarem-se à nação brasileira. Para tanto, além da demarcação das terras indígenas, delegou-se ao SPI também as tarefas de proteger as comunidades indígenas das invasões e da violência de exploradores; instruir técnicas de cultivo e administração de bens; assistência médica; educação formal aos “índios mais integrados” no aprendizado de novos ofícios (MACIEL; MARCON, 1994, p. 149-50). No Rio Grande do Sul, o governo do Estado também era de orientação positivista, por isso o próprio Estado assumiu a condução da política indigenista nos aldeamentos, excetuando o Posto Indígena do Ligeiro. A justificativa se constituía na consideração de que os indígenas presentes no estado já eram pacificados e viviam em aldeamentos desde 1846. Assim, o governo estadual administrou os postos indígenas e, por consequência, também realizou a demarcação das terras, como explicitado no caso do Toldo Guarita. A condução pelo governo estadual ocorreu até 1941, perfazendo três décadas (MACIEL; MARCON, 1994, p. 152-3; MELIÀ, 1984, p. 19). Apesar de o governo estadual do Rio Grande do Sul imbuir-se dos princípios positivistas, tal qual os que conceberam e orientaram o SPI, também na disposição de gerir e administrar a política indigenista no estado, não se garantiu a proteção e defesa dos territórios demarcados. Após a demarcação do Toldo Guarita, em 1918, ocorreu um aumento do afluxo de famílias caboclas e descendentes de imigrantes europeus para a região. E, após a passagem da Coluna de Prestes pela região, em meados da década de 1920, diversas famílias caboclas se instalaram nas proximidades do toldo, enquanto que o afluxo das famílias de descendentes e imigrantes europeus se intensificou em meados da década de 1930. Nesse período, a Vila 57 Paris passa a se designar Miraguay, sendo designada como Tenente Portela25 uma década mais tarde. Simonian (1993, p. 37-8) afirma que, devido a tal afluxo colonizador, “os Kaingang de Guarita recomeçaram a enfrentar problemas decorrentes de disputas quanto às divisas, pois eles referem-se sempre a inúmeros moradores que ocupam faixas de suas terras junto à divisa”.26 A ocupação das áreas limítrofes, ou até a invasão dos toldos demarcados, não representava que áreas demarcadas a partir de 1911 fossem extensas. Melià (1984, p. 19) afirma que, no total, foram demarcadas 12 áreas no Rio Grande do Sul, somando 98.583 ha (985,83 km²). Em comparação ao território livremente ocupado pelos indígenas, era drasticamente menor, como evidenciado na referência aos grupos transferidos ao Toldo Guarita. Os territórios anteriormente ocupados pelos índios foram ocupados pela frente colonizadora. A transferência da responsabilidade de assistência aos indígenas no Rio Grande do Sul ao SPI consolidou-se em 28 de março de 1941, por uma proposta da Secretaria de Agricultura do Estado. A transição ocorreu sem muitos debates e discussões, pois o Estado do Rio Grande do Sul encontrava-se sob intervenção federal (MACIEL; MARCON, 1994, p. 153-4). A proposta, contudo, restringiu-se somente aos maiores toldos, a saber: Nonoai, Ligeiro, Guarita e Cacique Doblê (MELIÀ, 1984, p. 19; MACIEL; MARCON, 1994, p. 153). A transferência ao SPI não assegurou a garantia e proteção das terras demarcadas e dos recursos naturais nelas existentes, ao contrário, afirma-se que “a expropriação de terras indígenas intensificou-se” (MACIEL; MARCON, 1994, p. 156). Com referência ao Toldo Guarita, o SPI se instalou através de um “posto” na localidade de São João do Irapuá. A instalação do “posto” visou estabelecer medidas que evitassem a invasão do toldo, como a abertura de “roçados” próximos à estrada, na divisa a oeste do toldo (Simonian, 1993, p. 38). Suspeita-se, porém, que tal medida propiciou o contrário, ou seja, a devastação da mata (comercialização de madeiras nobres), o arrendamento das terras, exploração da mão de obra indígena, dos recursos naturais, a 25 Homenagem prestada ao “tenente de engenharia Mário Portela Fagundes, um idealista e revolucionário membro da Coluna Prestes, morto na Barra do Rio Pardo em 1925” (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Tenente_portela> Acesso em: 01 ago 2011). 26 Especula-se que a situação dos conflitos entre indígenas e a sociedade não indígena, no período da ocupação colonizadora, impeliu os kaingang a construírem “guaritas nas árvores onde tinham visão para proteger e guarnecer seu povo, advindo daí terras indígenas Guarita” (RENZ, 2005, p. 14). 58 usurpação de posse pela exploração agrícola, esta denominada como “roças do posto” (SIMONIAN, s.d., p.11-2; 1993, p. 38; GASPARETTO, 2006, p. 27).27 Figura 3: Porteira de entrada do Posto do SPI - Guarita, década de 1950 Fonte: Acervo digital Museu do Índio - Disponível em: <http://base2.museudoindio.gov.br/> De forma geral, a instalação do posto do SPI contribuiu para agonizar a situação de pressão sobre as comunidades indígenas, iniciada anteriormente pela frente colonizadora. Os arrendamentos das terras indígenas para a produção de soja e trigo e a extração de madeira se intensificaram (SPAREMBERGER, SANTOS, 2007, p. 117; MELIÀ, 1984, p. 19). Tal realidade, protagonizada pelo SPI e pela frente colonizadora, constituiu-se numa […] tentativa violenta de transformar os Kaingang em agricultores e colonizadores num certo espaço de tempo, fazendo com que se integrassem ao “progresso” e à nação brasileira. Na prática os agentes governamentais tratavam de mudar seu modo de vida através da proibição de rituais, do ensino monolíngüe em português, da imposição de interlocutores substituindo as autoridades tradicionais, de um regime rigoroso de trabalhos agrícolas dirigidos a partir dos Postos Indígenas, de massivas transferências territoriais compulsórias etc (VYJKÁG, et al., 1997, p. 12-3).28 27 Na página virtual do Museu do Índio disponibilizam-se fotos da viagem do superintendente do SPI aos toldos do Rio Grande do Sul, onde se destacam as fotos das ‘roças do posto’, com o cultivo do trigo, arroz, criação de animais e as instalações construídas em madeira (Disponível em: <http://base2.museudoindio.gov.br/>). Também se destaca que a designação do primeiro administrador do posto do SPI em Guarita, Sr. José Alves Ferraz, alcunhado como o “Capitão Ferraz”, evidencia a situação de exploração e esbulho que os indígenas sofreram. Afirma-se que o administrador “usou a sua influência política sobre as lideranças dos índios estabelecendo na área uma invernada sua e iniciando também uma lavoura de arroz. Passou também a vender madeiras da área e arrendar terra para os ‘amigos’” (VEIT, 1997, p. 136). 28 O texto é a apresentação do livro e do contexto da TI Guarita, elaborada por André Toral. 59 Conforme estudo de Simonian (s.d., p. 12-3), os primeiros contratos para exploração de madeira são firmados a partir de 1951 entre o SPI e diferentes firmas ou madeireiros. Ela inclusive relata que, em 1956, firmou-se contrato de arrendamento de 300 ha, que se constituíram na “Granja Marta Rocha”, para exploração agrícola e suinocultura. A pesquisadora afirma que milhares de hectares são arrendados e milhares de metros cúbicos foram extraídos desde então.29 Ela ressalta que tais procedimentos eram realizados sem a participação e decisão da comunidade indígena, que tampouco obteve benefício de tal exploração ou extração. Conforme a pesquisadora, a situação persistiria nas décadas vindouras. Os modelos de agricultura na década de 1950, além de serem introduzidos de forma exploratória nas terras indígenas, influenciaram na alteração do modo de ser e produzir kaingang.30 Assim, além de firmar contratos de exploração, o SPI atuou na implementação de projetos e perspectivas político-econômicas pautadas por uma orientação “modernizante” e desenvolvimentista, abandonando a perspectiva humanista, da qual era imbuída em sua criação (TEDESCO; MARCON, 1994, p. 178). Na década de 1960, ocorreu uma nova tentativa de esbulho da terra demarcada no início do século XX, na oportunidade em que o deputado Antonio Bresolin apresentou, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, projeto de redução do Toldo Guarita para 8.696 ha. O projeto destinava 14.487 ha ao assentamento de famílias “sem-terra”, que se propunham a migrar para Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso. O projeto foi arquivado após a mobilização de deputados contrários à expropriação dos kaingang.31 Porém, o arquivamento do projeto não impediu a ocupação do Toldo Guarita, por “centenas de famílias de agricultores ‘sem terra’ […], na qualidade de arrendatários ou de invasores/posseiros” (SIMONIAN, 1993, p. 38). 29 A pesquisadora identifica as contrapartes nos contratos do SPI: 1951, com Waldomiro Arbo para exploração de madeira; 1956, com Waldomiro Arbo e Frederico Roever, que instalaram a “Granja Marta Rocha”; 1957, com a firma madeireira Tonetto, Araujo & Cia. Ltda. 30 Os autores Tedesco e Marcon identificam (em nota de rodapé) as fases: “Na trajetória Kaingáng é possível identificar quatro grandes momentos de rupturas sócio-econômicas e culturais: a) a passagem da vida nômade nas matas onde a sobrevivência consistia na caça, pesca e coleta, para a vida sedentária nos aldeamentos (produção agrícola) pela metade do século XIX; b) a criação do Serviço de Proteção aos Índios – SPI – onde o Estado passa a intervir diretamente nas áreas e na vida dos indígenas; c) a terceira fase tem um marco histórico na segunda metade do século atual [XX], quando ocorrem profundas mudanças na agricultura, verificando-se a entrada de colonos nas reservas, a produção para o mercado internacional, bem como, a transformação das reservas em empresas rurais; d) a emergência das organizações indígenas e a reconquista das terras e da cultura dos antepassados” (1994, p. 178). 31 A pesquisadora identifica os deputados Porcinio Pinto, Jairo Brum e Paulo Brossard como partícipes da mobilização contrária ao projeto de redução do Toldo Guarita (SIMONIAN, s.d., p. 13-4). 60 O fato ocorrido, do projeto de redução e entrada de famílias agricultoras, pode ser consequência de uma orientação política de integração das comunidades e povos indígenas à sociedade nacional, descaracterizando-as culturalmente e no esbulho das terras demarcadas. Tal orientação política se constitui na década de 1960, tendo o SPI como agente protagonista no esbulho territorial e exploração das riquezas, sendo acusado de envolvimento de crimes e de legitimar a expropriação das terras indígenas (TEDESCO; MARCON, 1994, p. 160). Devido às acusações e denúncias de crimes, assomado ao desgaste político do órgão indigenista, o SPI foi extinto. Institui-se, então, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), através da promulgação da Lei nº 5.371, em 05 de dezembro de 1967, assinada pelo presidente Artur da Costa e Silva32 (Idem, p. 179-80). A FUNAI, instituída como órgão indigenista do governo federal, foi criada no intuito de proteger as terras demarcadas, o equilíbrio ecológico dessas e a cultura indígena, como disposto no inciso I, do primeiro artigo. Além dessas atribuições, a FUNAI também foi incumbida de estimular a causa indigenista (inciso VI, art. 1º) e de “promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional”, como disposto no inciso V, do artigo primeiro. A disposição da “progressiva integração na sociedade nacional” evidenciar-se-á na década de 1970, quando a orientação política da FUNAI esteve pautada no modelo econômico “desenvolvimentista” (TEDESCO; MARCON, 1994, p. 182-3). A meta fundamental a ser atingida, dentro desta nova orientação política da FUNAI, era a transformação dos índios em “empresários” e as reservas em “empresas rurais”. Para tanto, era necessário modernizar as forças produtivas e “racionalizar” a produção, direcionando-a para o mercado externo. No sul do Brasil, os índios passaram a produzir, principalmente na década de setenta, soja e trigo e incorporar as tecnologias modernas (máquinas agrícolas e insumos em geral). A idéia da “empresa rural” havia sido definida como modelo de produção no Estatuto da Terra, aprovado em novembro de 1964. De certa forma, a parte do Estatuto que não tocava na estrutura fundiária, referindo-se apenas à “modernização da agricultura” e da colonização, foi implementada pelos governos militares. É neste quadro mais global que inserem as orientações políticas e a atuação da FUNAI junto aos índios nas reservas, especialmente no sul do Brasil, em regiões onde predomina a pequena propriedade e uma agricultura voltada para a exportação. A idéia básica era a transformação dos índios em “agricultores capitalistas”. 32 Recorda-se que a instituição da FUNAI ocorre após o Golpe Militar de 1964, sendo o Mal. Artur da Costa e Silva o segundo presidente do regime militar, entre os anos de 1967 e 1969. O presidente militar Artur da Costa e Silva também promulgou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que estabelecia amplos poderes ao presidente da república e suspendia várias garantias constitucionais. 61 Conforme Simonian (1993, p. 38), a promulgação da Lei nº 6001 (Estatuto do Índio) 33 estipulava o fim dos arrendamentos em terras indígenas, bem como sua regularização fundiária. Desta forma, os kaingang de Guarita se mobilizaram na década de 1970 para fazer cumprir o disposto legal. Porém, O autoritarismo militarista vigente nos quadros da recém criada FUNAI, cerceava qualquer tentativa mais arrojada de defesa de direitos. A classe política local (representada por vereadores e prefeitos) e regional (representada por deputados estaduais e federais), sempre esteve à frente na luta pela manutenção dos arrendamentos e/ou pela expropriação das terras indígenas no Estado. Anos mais tarde a própria FUNAI iniciou ações judiciais visando a retirada dos arrendatários e dos posseiros, mas dado à inércia do poder judiciário as mesmas se tornaram inefetivas [sic] (SIMONIAN, s.d., p. 14). A situação se agravaria quando os arrendatários e posseiros receberam a proposta de se transferirem para um projeto de colonização em Canarana (MT), administrado por Norberto Schwantes (ex-pastor da IECLB). Schwantes foi acusado pelos arrendatários e posseiros de acirrar os ânimos, por, suspostamente, instigar os kaingang à mobilização.34 Apesar das resistências, muitas famílias agricultoras, que arrendavam pequenas áreas, e famílias posseiras se retiraram ou foram retiradas da área dos kaingang em Guarita. Contudo, conforme Simonian (s.d., p. 14-5), “um número significativo de arrendatários que mantinham glebas substanciais arrendadas permanecem na área, e desde então passaram a pagar arrendamento para a liderança indígena, e não mais para a FUNAI”. A presença desses arrendatários fará persistir a devastação e a exploração agrícola na Terra Indígena de Guarita na década de 1980. Para Simonian (1993, p. 39), tal realidade potencializou a destruição das condições materiais de sobrevivência indígena, kaingang e guarani, agravada pela situação de que a maior parte populacional de Guarita não teve oportunidades para se manifestar e se organizar. A pesquisadora avalia que, no período de transição da década de 1980 e 1990, os resultados foram “a fome, a condição de sem-terra, o 33 A lei foi promulgada em 19 de dezembro de 1973 pelo presidente Gen. Emílio Garrastazu Médici. O mandato do Gen. Médici ocorreu entre os anos de 1969 e 1974, sendo o terceiro presidente do regime militar (desconsidera-se, para tanto, o período da Junta Governativa Provisória, que destituiu o pres. Costa e Silva e exerceu mandato em forma de triunvirato pelos chefes das três forças militares: aeronáutica, marinha e exército, nos meses de setembro e outubro de 1969). 34 Na nota 22, Simonian (1993, p. 40-1) afirma: O ex-pastor Norberto Schwantes, que iniciou o trabalho missionário da IECLB na A.I. de Guarita em 1964 [sic], responsabilizou a Missão da IECLB, juntamente à FUNAI, por omissão e, portanto, por não assumirem o controle da situação na área, por ocasião da retirada da maior parte dos arrendatários e posseiros, ao final da década de 70. Numa das passagens de suas memórias, Schwantes afirma que “A omissão da Igreja (leia-se IECLB) e da FUNAI ... teve conseqüências de certa forma definitivas para os Kaingang. Eles, que poderiam ter conhecido as benções do trabalho comunitário e organizado, conheceram a desgraça do suborno e da venda da própria causa”. 62 agravamento das condições de saúde e a violência [como] […] fatos marcantes na vida destes povos”. De forma análoga a tais agravamentos no esbulho e exploração da TI Guarita, cumprindo o disposto no Estatuto do Índio (1973) e na promulgação da Constituinte Federal de 1988, em 04 de abril de 1991 promulgou-se o decreto sem número que homologa em definitivo a Terra Indígena Guarita, com registro em Cartório de Registro Civil e no Serviço de Patrimônio da União, concluindo o processo demarcatório.35 A homologação estabeleceu a área de 23.406 ha.36 Apesar da homologação da TI Guarita, visando à proteção e garantia da vida e cultura kaingang, a realidade de muitas famílias kaingang alijadas do uso-fruto das terras provocou o deslocamento dessas famílias para a região metropolitana de Porto Alegre, em meados da década de 1990. A justificativa para o deslocamento era a continuidade dos arrendamentos, exploração de madeiras e o faccionalismo interno da comunidade kaingang (AQUINO, 2008, p. 50).37 A prática do arrendamento foi apontada como causa de óbitos por desnutrição entre 1985 e 1995. Essa situação foi constatada em estudo sobre o atendimento à saúde, prestado aos kaingang no Rio Grande do Sul. No estudo constatou-se que “a grande quantidade de óbitos por desnutrição poderia estar associada ao arrendamento das terras para colonos da região, em razão de restringir o espaço para plantio de subsistência em Ligeiro, Cacique Doble e Guarita” (HÖKERBERG et al., 2001, p. 269). O estudo também afirma que o arrendamento é resultante de política de incentivo do SPI e da FUNAI, porém constata que, a partir de meados da década de 1990, […] esta prática vem sendo reprimida pela própria FUNAI, com o auxílio da Polícia Federal, sob a alegação de impedir o desgaste das terras, já intenso, seja pelo desmatamento seja pelo uso indiscriminado de agrotóxicos. Também, o arrendamento favorecia apenas pequena parcela da população 35 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/mapas/fundiario/rs/rs-guarita.htm> Acesso em: 05 jul. 2010. O decreto foi assinado pelo presidente Fernando Affonso Collor de Mello, que foi o primeiro presidente eleito pelo voto direto após o regime militar. Exerceu mandato nos anos de 1990 a 1992, quando, em outubro de 1992, sofreu um impeachment, em votação no Congresso Federal. 36 A área corresponde a 234,06 km², semelhante à área de municípios do Rio Grande do Sul, como: Campos Borges, Carlos Barbosa, Caseiros, Ernestina, Gramado, Mato Castelhano, Marcelino Ramos, Planalto, Riozinho, Tiradentes do Sul e Victor Graeff. 37 Em artigo sobre o arrendamento em assentamentos de famílias agricultoras “sem-terra”, justifica-se o acirramento de faccionalismo na TI Guarita: “o arrendamento prejudica a população indígena, na medida em que divide a comunidade, pois somente aqueles que detêm as maiores quantidades de terra ganham algum dinheiro” (CHEOLOTTI, PESSÔA, 2006, p. 8). 63 indígena, o que se resumia às lideranças, aumentando ainda mais as tensões políticas locais (HÖKERBERG et al., 2001, p. 263). Desta forma, através de ação judicial e uso de força policial, a FUNAI iniciou, em 1996, a retirada de cerca de 500 exploradores da TI Guarita, mas permaneceram ainda cerca de 20 arrendatários ou madeireiros na área, conforme dados do Relatório Azul 1996 (AL/RS, 1997, p. 101).38 Contudo, a ação não resultou eficaz, pois ainda é constatada a prática do arrendamento na década de 2000. Em entrevista, uma universitária kaingang da UNIJUÍ afirmou que persistia o arrendamento na época e que a situação era calamitosa (MATTE, 2001, p. 115).39 Na Apelação Cível nº 2000.04.01.091484-5/RS,40 sendo a juíza federal Taís Schilling Ferraz a relatora, constata-se que os cultivos de soja, trigo, milho e feijão, de forma predatória, com o empobrecimento do solo e outros danos ambientais, decorrente do uso de agrotóxicos e exploração madeireira, provocam a miserabilidade da comunidade indígena. Cabe destacar, ainda, a ponderação apresentada pela juíza, em voto da apelação cível, de que a demarcação de terras indígenas, em razão da “intromissão histórica”, física e cultural, da sociedade não indígena, estabeleceu uma realidade em que as comunidades indígenas não logram mais viver conforme os seus usos e costumes, tampouco conforme os modelos da sociedade não indígena (FERRAZ, 2002, fl. 6-7), pontuando que A ocupação de parte dessa área, por agricultores, mediante cessão de espaços em contratos de arrendamento, não apenas traz “ganho fácil” a alguns índios, em geral os ligado às lideranças que foram coniventes com a intrusão, mas, e principalmente, os confina em área diminuída da reserva, já não suficiente à subsistência, segundo seus costumes [grifo da autora]. A constatação da juíza, da diminuição da área para o cultivo e a persistência do arrendamento, agrava-se com a instituição do “Contrato de Prestação de Serviço”, em que a pessoa índia contrataria os serviços de não índio para o cultivo agrícola de uma determinada área. Essa prática, também denominada “parceria”, é investigada pela Procuradoria da República no Município de Santa Rosa/RS, conforme ofício enviado ao Posto Indígena 38 O Relatório Azul é uma publicação da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (AL/RS). 39 Apesar da afirmação da universitária kaingang ser identificada com a TI Guarita, a entrevistadora afirma em nota de rodapé: “A comunidade Kaingang referida é a de Guarita, onde, no entanto, o arrendamento de terras atualmente, como em outras comunidades Kaingang, não está mais sendo praticado” (MATTE, 2001, p. 115). Porém, considera-se verídica a informação da universitária, pois a mesma informação consta em outras fontes. 40 Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev2/files/JUS2/TRF4/IT/AC_91484_RS_1270999842560.pdf> Acesso em: 04 set. 2011. 64 Guarita – FUNAI em 16 de julho de 2008.41 Conforme o ofício foram apresentadas denúncias de que as “parcerias” seriam uma forma dissimulada e atualizada da prática histórica do arrendamento e esbulho da terra indígena, com participação de lideranças e membros da comunidade kaingang da TI Guarita. Figura 4: Mapa das Terras Indígenas no norte e noroeste rio-grandense Fonte: Instituto Socioambiental - ISA, 201142 1. Guarita; 2. Inhacorá; 3. Rio dos Índios; 4. Iraí; 5. Rio da Várzea; 6. Nonoai; 7. Serrinha; 8. Kandóia-Votouro; 9. Votouro; 10. Votouro Guarani; 11. Ventarra; 12. Mato Preto (Guarani); 41 13. Ligeiro; 14. Carreteiro; 15. Passo Grande do Rio da Forquilha; 16. Cacique Doblê; 17. Monte Caseros. a. Aldeia Condá; b. Chimbangue; c. Chimbangue II; d. Toldo Pinhal; e. Araça’í Disponível em: <http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/docs_outros_documentos/recomendacao _operacao_arrendamentos_na_reserva_Guarita.pdf> Acesso em: 04 set. 2011. 42 Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?id_arp=3680> Acesso em: 06 nov. 2011. 65 As “parcerias” de prestação de serviço agrícola mantêm o incentivo histórico da monocultura comercial de soja, trigo e milho. Ou seja, persiste-se na prática de sufocar e desvalorizar a produção de subsistência, que visa o autoconsumo e a geração de renda complementar. Em consequência disso, desestimula-se a biodiversidade das variedades tradicionais ou crioulas, cultivadas pelas famílias kaingang (BALLIVIÁN, 2007, p. 7). Ainda que pese a garantia da terra demarcada, o processo histórico da TI Guarita se estabelece em constante conflito com o esbulho e a expropriação territorial e ambiental. A prática do arrendamento ou “parceria”, protagonizada pelos órgãos indigenistas oficiais, SPI e FUNAI, ou pelas lideranças indígenas, sempre se fez presente no contexto histórico da comunidade kaingang. Nesse contexto histórico instituiu-se a educação escolar na comunidade kaingang da TI Guarita, por vezes, como brevemente já apontado, no intuito de potencializar o esbulho e a expropriação territorial da comunidade indígena. A TI Guarita está localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul, na área de abrangência dos municípios de Erval Seco, Redentora e Tenente Portela. A comunidade kaingang, estimada em 5.100 indivíduos, se organiza territorialmente em doze setores, enquanto a comunidade guarani, estimada em 280 pessoas, se organiza em dois setores. A TI Guarita se caracteriza como a maior área indígena demarcada na região sul do Brasil, sendo o Rio Grande do Sul o que tem maior contingente populacional indígena da região. A população kaingang no estado é estimada em 17.289 pessoas,43 cerca da metade da população indígena meridional. 43 Os dados populacionais apresentados neste trabalho são extraídos da Fonte: SIASI - FUNASA/MS. Disponível em: <http://www.funasa.gov.br/internet/desai/sistemaSiasiDemografiaIndigena.asp> Acesso em 05/07/2010. 2 IECLB: IMIGRAÇÃO, EDUCAÇÃO E POVOS INDÍGENAS O presente capítulo apresenta aspectos da história dos imigrantes germânicos no Rio Grande do Sul, no século XIX, e os conflitos decorrentes das disputas territoriais que as famílias imigrantes tiveram com o povo kaingang. Os imigrantes trouxeram na bagagem a disposição e preocupação com a educação escolar, impulsionando-os a implantar escolas concomitantemente aos templos. Também o processo histórico da constituição da IECLB, como unidade eclesiástico-administrativa, que se concretizou na década de 1960. O capítulo privilegia a apresentação do histórico da atuação da IECLB junto aos kaingang, atuação iniciada com a implantação da Escola Primária Evangélica na TI Guarita, que se estabelece com a instalação da Missão Guarita e do Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão, privilegiando as ações referentes à educação escolar com a comunidade kaingang. 2.1 UMA IGREJA DE IMIGRAÇÃO NO BRASIL – IECLB O histórico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) remonta ao século XVI, anterior à chegada dos imigrantes alemães no Brasil, em 1824. A IECLB professa o seguimento do movimento de reforma da igreja, iniciado em 1517, por Martim Lutero. A IECLB se congrega ao luteranismo no mundo, por coadunar sua confissão de fé conforme os preceitos da Confissão de Augsburgo, documento apresentado na Dieta de Augsburgo (1530), que caracterizou a formação eclesiástica independente, ou seja, estabelecido pela cisão com a Igreja Católica Apostólica Romana. O luteranismo se expandiu pela Europa e, sobretudo, se consolidou na Alemanha e nos países escandinavos. Devido ao advento da emigração europeia, nos séculos seguintes, difundiu-se pela Oceania e América (IECLB/Luteranismo).44 A chegada do luteranismo no Brasil ocorreu posteriormente à declaração da independência do Brasil, em 1882. Até esse evento, a coroa portuguesa não permitia a fixação de família de imigrantes de origem não lusa e de confissão de fé evangélica. Devido ao acordo entre a coroa portuguesa e a coroa inglesa, por ocasião da independência, permitiu-se o ingresso de pessoas de outros credos que não católicos (DREHER, 2005, p. 50). Assim, somente a partir de 1824 é que ocorrerá a chegada de migrantes alemães evangélicos ao 44 Disponível em: <http://www.luteranos.com.br/categories/Quem-Somos/Nossa-Hist%F3ria/Luteranismo/> Acesso em: 06 abr. 2011. 67 Brasil. Primeiramente, em Nova Friburgo/RJ, 03 de maio de 1824, e, posteriormente, em São Leopoldo/RS, em 25 de julho do mesmo ano. A chegada dos imigrantes no Brasil fez parte da estratégia geopolítica governamental de consolidar o território brasileiro e proteção das fronteiras internacionais, sobretudo pela iminência de incursões na região do Prata. Para a ocupação territorial, havia a necessidade premente de soldados para formação do exército, de colonos, enfim, de muitas pessoas. As demandas são apresentadas por Dreher (2005, p. 50) como: “estradas tinham que ser construídas. As colônias militares que guarneciam essas estradas precisavam de alimento. Precisava-se de colonos”. Concomitante à estratégia geopolítica governamental, a chegada dos imigrantes europeus também atendeu a outros dois propósitos, um racista e outro econômico. O primeiro considerava que o Brasil era constituído majoritariamente pela população negra. Concebeu-se, então, a estratégia de branquear a população. Para tanto, fez-se necessário permitir o ingresso de populações europeias, também protestantes, constituindo as bases para o segundo propósito, de ordem econômica. O translado dos migrantes europeus ao Brasil também visou substituir a mão de obra escrava, à qual a população negra estava submetida. Instituiu-se o regime da pequena propriedade familiar e o sistema de “parceria” nas grandes fazendas, onde o imigrante branco substituía a mão de obra negra (DREHER, 2005, p. 50). Os migrantes alemães evangélicos tomaram parte de projetos de colonização e ocupação territorial no Brasil inicialmente na região sul e sudeste, onde estabeleceram comunidades religiosas protestantes e centenas de escolas comunitárias e confessionais (ALTMANN, 2008, p. 108). Porém, nas primeiras décadas, os migrantes estavam entregues à própria sorte. Apesar da liberdade religiosa, garantida pela Constituição do Império do Brasil, os migrantes encontravam dificuldades na organização da vida de fé, como o impedimento da identificação exterior dos locais que serviam de templo; questões concernentes ao matrimônio; educação de fé; o impedimento de sepultar em cemitério público, pois eram administrados pela Igreja Católica (DREHER, 2005, p. 52). Além das questões de ordem religiosa, os migrantes teutos também enfrentaram outras situações de marginalidade decorrentes de seu estabelecimento em povoados em regiões pouco habitadas, que lhes expuseram a hostilidades e adversidades (DECKMANN, 1985, p. 15). Para superar os impedimentos e minimizar as adversidades, organizaram-se para a construção de prédios comunitários, que lhes serviam de escola e também de local para as 68 celebrações. Da mesma forma, ao lado do prédio escolar, estabeleceram o cemitério comunitário. Para superar a ausência de pastores, instituíram a figura do "pastor-colono”, pessoa que assumia as funções pastorais na comunidade concomitantemente às lidas da agricultura. Por vezes, o “pastor-colono” também desempenhava as funções de mestre-escola, já que a escola também era o local de culto, por isso também era designado como “professor paroquial”, pois foi “responsável pelo ensino, pela catequese e pelo aprofundamento da vida comunitária” (DREHER, 2008b, p. 42). Dreher (2005, p. 52) destaca que daí “surgiu o binômio escola-igreja, professor-pastor, característico para o maior período da história da IECLB”, o que evitou a clericalização na igreja.45 Somente no final do século XIX se organizou o primeiro organismo eclesiástico permanente, o Sínodo Rio-Grandense – Igreja Evangélica no Rio Grande do Sul, fundado em São Leopoldo em 1886 (ALTMANN, 2008, p. 108). A constituição do Sínodo Rio-Grandense não significou a separação de vínculo com igrejas na Europa. A Proclamação da República do Brasil, em 1889, possibilitou a concessão de cidadania brasileira aos imigrantes e uma maior liberdade de expressão religiosa, em decorrência da separação entre Igreja e Estado. Apesar dos conflitos posteriores à Proclamação da República do Brasil, como a Revolução Federalista (1893-5), o Estado do Rio Grande do Sul adotou, na constituição estadual, a ideologia positivista, o que representou a garantia de não intervenção do Estado em questões culturais e religiosas dos imigrantes e seus descendentes. O reflexo dessa garantia constatou-se no desenvolvimento das escolasparticulares teutas, considerado como “período áureo” para as famílias migrantes e seus descendentes no Brasil. Outro reflexo dessa garantia foi a preservação da cultura germânica nas congregações dos Sínodos Evangélicos. A insistência na preservação e estímulo da cultura e identidade alemã implicou numa marginalidade social, por vezes considerada como gueto (DECKMANN, 1985, p. 15-6). 45 As informações aqui prestadas expõem as condições em que se estabeleceram os imigrantes europeus no Brasil meridional, conforme as pesquisas apresentadas por Deckmann e Dreher. Estes divergem da informação prestada por outros pesquisadores, como Darci Ribeiro, que afirma que “o empreendimento colonizador foi um dos objetivos mais persistentemente perseguidos pelo governo imperial, que nele investiu enormes recursos” (RIBEIRO, 1995, p. 433). Ribeiro pontua que o governo concedia aos imigrantes transporte, instalações, recursos de manutenção e concessão de terras. Tais condições não foram disponibilizadas às populações caipiras brasileiras, considerando-as como massas marginalizadas pelo latifúndio (idem). Ainda que o governo investisse recursos dispendiosos no empreendimento da colonização com imigrantes europeus, a ação governamental não se reproduziu em dirimir a miserabilidade e marginalidade que muitas famílias colonas e imigrantes sofreram, como evidenciado por Deckmann e Dreher. 69 Segundo Deckmann (1985, p. 13), em 1900, a Igreja Prussiana admitiu a filiação de comunidades evangélicas alemãs em outros países. Essa filiação possibilitou, entre outros benefícios, que as comunidades evangélicas teutas recebessem auxílio financeiro para a sua organização e sustento de pastores. Em 1911, o Conselho Superior Eclesiástico de Berlim instalou uma representação permanente no Brasil, sediada em Porto Alegre/RS. Porém, devido aos eventos das guerras mundiais (1914-18; 1939-45) e da política governamental integracionista (a partir de 1930), as relações entre as igrejas no Brasil e na Europa foram afetadas e, por vezes, interrompidas.46 Os efeitos de tais eventos também afetaram as escolas das comunidades evangélicas, como a proibição do uso do vernáculo alemão para lecionar e o impedimento de que estrangeiros exercessem o magistério – no caso muitos pastores alemães foram impedidos de lecionar (DECKMANN, 1985, p. 13). Devido à Segunda Guerra Mundial, o uso do vernáculo alemão também foi impedido nas celebrações e atividades religiosas. Essas deveriam ser ministradas em língua portuguesa, o que implicou em dificuldades de compreensão e diálogo entre a membresia e pastores, fato agravado pelo afastamento do exercício de pastores nascidos na Alemanha (DECKMANN, 1985, p. 14). Em decorrência de tais eventos, foi constituída a Federação Sinodal, em 1949, em caráter de organização nacional como Igreja de Confissão Luterana. Em 1950 e 1952, a Federação Sinodal obtém a filiação de organismos eclesiásticos internacionais, como igrejamembro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e da Federação Luterana Mundial (FLM), respectivamente. Após a filiação internacional, em 1954 ampliou a nomenclatura para “Federação Sinodal Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil” (ALTMANN, 2008, p. 108; DECKMANN, 1985, p. 14). A constituição como “igreja independente” se estabelece em 1955, quando se responsabiliza por estabelecer um corpo pastoral homogêneo e autóctone, rompendo com a subordinação ao Departamento para o Exterior da Igreja Evangélica na Alemanha (DECKMANN, 1985, p. 14). Esse fato oportunizou que, em 1968, no Concílio Geral, realizado em Santo Amaro/SP, se aprovasse a fusão dos sínodos em corpo eclesiástico único, sob uma estrutura nacional, com sede em Porto Alegre/RS, denominada de “Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB” (DECKMANN, 1985, p. 14; ALTMANN, 2008, p. 108). 46 Para Ribeiro (1995, p. 436), os imigrantes alemães, japoneses e italianos viviam uma realidade de marginalidade étnica, a qual foi explorada pelos governos dos seus países de origem, que teve a reação da política integracionista do governo brasileiro. 70 A constituição da IECLB, em 1968, também definiu a identidade confessional imbuída na realidade brasileira. Deckmann (1985, p. 14) expressa essa definição como “envolvimento do ‘povo da IECLB’ com a realidade do povo brasileiro”. Altmann (2008, p. 108) formulou a proposição como “o testemunho do Evangelho e o serviço solidário a pessoas em necessidade ou que padecem injustiças”. A proposição se evidenciou, de forma contundente, em 1970, com o “Manifesto de Curitiba”,47 que refletiu a relação da Igreja e a realidade do Brasil, que estava sob o regime de governança militar (DECKMANN, 1985, p. 18-9). O manifesto foi em consequência da desistência da FLM de realizar uma assembleia em Porto Alegre devido ao regime militar. Deckmann (1985, p. 19) relata que A partir desse Manifesto a IECLB tem se destacado por protesto pelo sofrimento de colonos afetados por desapropriações governamentais, visando concretização de projetos desenvolvimentistas, protestos pela expulsão de agricultores e indígenas de suas áreas para ceder lugar a construções faraônicas e projetos de exploração mineral, discussão com a FUNAI por causa da situação indígena, exigência de aplicação do Estatuto da Terra e da Reforma Agrária, além de protestos contra a lei de estrangeiros. Apesar da constatação de Deckmann, quanto à inserção social da IECLB no Brasil,48 a pesquisadora não evidencia que as comunidades constituídas pela migração europeia mantêm as características de organização cultural específicas. Ribeiro (1995, p. 437) ressalta as características das comunidades formadas pelos migrantes europeus na região sul do Brasil, citando-as como uma “região com fisionomia própria aglutinada em vilas pela concentração de moradores em torno do comércio, da igreja e da escola”.49 47 Manifesto aprovado no VII Concílio Geral da IECLB, realizado em 22-25 de outubro de 1970, e que foi entregue pelo pastor presidente da IECLB: Karl Gottschald; pelo pastor regional da RE IV (São Leopoldo/RS): Augusto Kunert; e pelo pároco da comunidade luterana em Brasília: Ernesto Schlieper, em audiência, ao presidente do Brasil, Gen. Emílio Garrastazu Médici. O manifesto apresenta teses sobre a relação entre Igreja e Estado, ressaltando que a pregação é pública, podendo “contrariar medidas governamentais". O documento também trata sobre o “ensino cristão e educação moral e cívica” e “direitos humanos”. Sobre direitos humanos ressalta: “nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos”. A audiência de entrega do manifesto ao presidente Médici ocorreu em 06 de novembro de 1970, em Brasília, e ele foi publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, na íntegra, em novembro de 1970, após o pleito eleitoral. A íntegra do documento se encontra em http://www.luteranos.com.br/articles/8191/1/Manifesto-de-Curitiba--1970/1.html, e a reportagem alusiva aos 40 anos do manifesto, em http://www.novolhar.com.br/noticia_edicoes.php?id=5831. 48 Para aprofundamento na questão: GAEDE, Leonídio. Os protestantes e os movimentos populares. In: KOCH, Ingelore Starke (org.). Brasil: Outros 500. Protestantismo e a resistência indígena, negra e popular. São Leopoldo: Sinodal, COMIN, IEPG, 1999. p. 201-11. 49 Ribeiro (1995, p. 433) também considera que essas regiões colonizadas ainda constituem na atualidade “uma vasta ilha nos centros dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que vai se alastrando pelas terras vizinhas, além de pequenos enclaves enquistados em outras regiões, como núcleos do Espírito Santo e São Paulo”. Considera-se que essa proposição, de que as áreas colonizadas constituem “vastas ilhas”, destoa da avaliação quanto à constituição da IECLB e seu propósito na realidade brasileira, sobretudo por ser a 71 Na presente momento, início do século XXI, a IECLB é constituída por aproximadamente 500 paróquias, sendo cerca de 3000 comunidades e pontos de pregação dispersos por todo o país (ALTMANN, 2008, p. 108). Ela não se desvincula de sua trajetória de história e constituição no Brasil, reconhecendo ser uma igreja de migração, ou seja, que em sua maioria os luteranos são descendentes de imigrantes europeus, majoritariamente alemães, sendo que “cerca de 300 mil ingressaram no país ao longo de 120 anos. Sabe-se que 60% desses alemães eram evangélicos” (DREHER, 2005, p. 51). A exortação pela universalização da educação é considerada como uma herança da Reforma Protestante, levada a cabo por Martin Lutero na Alemanha na primeira metade do século XVI (STRECK, 2006, p. 64). Em 1524, Lutero escreve “Aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs” (CIL, 1995, p. 302-325), ressaltando a responsabilidade pública e primordial na educação de homens e mulheres para a condução da sociedade e do estado secular. Também redigiu “Uma prédica para que se mandem os filhos à escola”, em 1530, sobre os resultados da negligência ou promoção da educação humana e cristã, tanto para o Estado como para a Igreja (CIL, 1995, p. 326-363). A escola passa a ser concebida como espaço para “gerir e organizar a vida sobre a terra”, em benefício universal, sendo potencializada pela invenção da imprensa que permitia “ensinar tudo a todos” (STRECK, 2006, p. 64-5). A preocupação de Lutero com a educação se constituiu numa das características do luteranismo, presente na imigração alemã no Brasil com a instituição de escolas comunitárias e confessionais (DREHER, 2008b, p. 42). É em virtude dessa herança e convicção arraigada entre os imigrantes alemães que o historiador Martin Dreher afirma: “o imigrante trouxe em sua bagagem a convicção de que a escola é fundamental para que o povo possa pensar” (2008, p. 24). Assim justifica-se a disposição das famílias imigrantes de confissão de fé luterana em criar e manter escolas, contratar docentes e participar da avaliação de estudantes e docentes “nos mais afastados rincões do Brasil meridional, do Espírito Santo, de São Paulo e mesmo de Minas Gerais” (Idem). A maioria das escolas instituídas nos rincões e picadas eram escolas unidocentes; contudo, houve escolas maiores e mais estruturadas, como em São Leopoldo, Santa Cruz do Sul, Porto Alegre, Caí, Panambi, Montenegro, Ijuí e Novo Hamburgo (DREHER, 2008b, p. IECLB uma igreja resultante da migração e por se constituir sob os reflexos e influência das condições em que se encontravam as famílias migrantes. 72 42). O estabelecimento das escolas pelos imigrantes evangélicos alemães no Rio Grande do Sul contribuiu relativamente à diminuição dos índices de analfabetismo no Estado. Em 1872 havia, no estado, 78,1% de analfabetos, taxa caiu, em 1920, para 61,2%. O Rio Grande do Sul teria em 1931 79,6% de suas crianças na escola. Na década de 1920, Estrela contava com 5,44% de analfabetos, Lajeado 7,23%, São Leopoldo 7,59% e Santa Cruz do Sul 8,76% (DREHER, 2008b, p. 42). Os municípios de Estrela, Lajeado, São Leopoldo e Santa Cruz do Sul foram núcleos de assentamento destinado aos imigrantes alemães evangélicos. Para além dessa contribuição, estipula-se que a proposta de educação aplicada nessas escolas comunitárias ou confessionais, nas cidades e picadas, era imbuída de “valores da vida cristã”, assemelhados aos valorespadrão da cultura germânica, ao tratar temas como liberdade, democracia, responsabilidade e êxito. Esse processo estabeleceu conflitos em relação aos educandários, pois como o ideário educacional era a “liberdade de consciência”, contrariava as pretensões religiosas proselitistas, como propunham grupos originários do protestantismo missionário, oriundo da ação de missionários protestantes da Europa e Estados Unidos da América (DREHER, 2008, p. 28). Como apontado anteriormente, muito das escolas tiveram suas atividades encerradas em decorrência da política integracionista e nacionalista promovida pelo governo de Getúlio Varga nas décadas de 1930 e 1940 (DREHER, 2008, p. 26). Ainda que pese o encerramento das escolas decorrentes da migração, ainda é possível constatar a continuidade da tradição escolar nas antigas picadas, rincões colonizados. Conforme Dreher (2008b, p. 42), “muitos de seus prédios abrigam hoje escolas estaduais ou municipais. Nos centros urbanos persistem escolas ligadas a redes confessionais ou particulares, oriundas da tradição dos imigrantes”. O legado e herança da educação como bagagem da IECLB, uma igreja que se constituiu a partir da imigração alemã evangélica luterana ao Brasil nos séculos XIX e XX, não estiveram restritos aos migrantes e seus descentes. Como se apresentará mais adiante, a proposição de instituir a educação escolar perpassou as fronteiras étnicas e se estabeleceu junto às comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. Nesse cruzar fronteiras, estabeleceu conflitos, como a proposição de usar as escolas como instrumento proselitista religioso e a educação como exercício da livre consciência, da democracia e autodeterminação. 73 2.2 IMIGRANTES, IGREJA E POVOS INDÍGENAS Os imigrantes que desembarcaram no Rio Grande do Sul a partir de 1824, devido à política de imigração do Governo Imperial do Brasil, foram assentados em terras consideradas devolutas, apesar de serem habitadas e dominadas por diferentes grupos kaingang. Conforme indicações de Witt (1999, p. 43), historiador luterano, no período dos assentamentos dos imigrantes, os kaingang dominavam três áreas distintas: “duas áreas ficavam entre os rios Ijuí e Passo Fundo e uma terceira iniciava no rio Passo Fundo, estendendo-se até à serra e os vales do Sinos e Caí”. Conforme Ítala Becker (1976, p. 58), as áreas dos assentamentos dos imigrantes incidiram no território ocupado pelo grupo e comunidades kaingang lideradas por Braga, a leste do rio Passo Fundo até o vale do Sinos e Caí. A ocupação kaingang era de longo tempo e, definitivamente, as terras não poderiam ser consideradas como desocupadas ou devolutas. Ao contrário, para os kaingang o assentamento dos imigrantes pode ser caracterizado como “a ocupação de parte de seu espaço geográfico de sobrevivência” e o estabelecimento de uma história de espoliação aos territórios tradicionais dos kaingang (BECKER, 1976, p. 69; WITT, 1999, p. 43). A realidade que se estabelece a partir de então, com os assentamentos em territórios tradicionalmente dominados pelos kaingang, foi o conflito, pilhagem, assaltos, sequestros e mortes entre os dois grupos, kaingang e imigrantes. Nos ataques, os kaingang, além de defenderem o território, também obtiveram materiais, como metais, fazendas (tecidos), mantimentos e sal, que passaram a utilizar (BECKER, 1976, p. 69). No conflito se evidenciaram as dinâmicas distintas, das duas sociedades, de ocupação, manejo e utilização da terra para a subsistência. Para os kaingang, a necessidade de ocupação e domínio de amplo território se justificava pelo fato de sua economia se basear na coleta e obtenção de fontes nutricionais em diferentes e dispersos nichos (SCHOULTEN, 1990, p. 36). Em contraste, o modelo advindo com a imigração estabeleceu a derrubada da mata e a exploração da terra através da agricultura intensiva. O modelo agrícola implantado pelas famílias imigrantes promoveu a espoliação do espaço geográfico dominado pelos kaingang, rompendo e desestruturando os fundamentos culturais kaingang, uma vez que a mata se constituía na fonte primária nutricional, medicinal e religiosa da cultura kaingang (SCHOULTEN, 1990, p. 38).50 50 Ressalta-se que, ainda que pese o interesse da dissertação sobre a historiografia e situações concernentes à região dos rios Guarita e Turno, os grupos e comunidades kaingang ocupantes da região noroeste do Estado não participaram dos ataques aos assentamentos dos imigrantes, uma vez que “não poderiam chegar às 74 O assentamento das famílias imigrantes em territórios kaingang caracterizou uma estratégia de ocupação e segurança geopolítica do governo imperial. O conflito entre indígenas e imigrantes advindo dessa estratégia afetou ambos os grupos, porém o intento governamental foi “garantir a posse dessas terras, valorizá-las e expulsar o elemento indígena indesejado” (SCHOULTEN, 1990, p. 36). Contudo, ainda que pese o fato de o governo imperial se abster no envolvimento direto no conflito e permitir que os imigrantes estabelecessem estratégias e meios de disputa e defesa das terras concedidas, imputa-se ao governo imperial a concepção da estratégia geopolítica sob a custa da terra e da vida dos povos indígenas. Witt (1999, p. 44) constata que “a possibilidade de tratar os índios como pessoas com igualdade de direitos, respeitando sua cultura e sua língua e o espaço respectivo para a sua existência, nunca foi considerada com sinceridade do ponto de vista da legislação e das respectivas políticas oficiais”. O historiador luterano P. Dr. Martin Dreher (1992, p. 18) pontua que tal fato também constitui a história da IECLB, em virtude de que as famílias imigrantes luteranas também foram usadas pelo império em sua estratégia geopolítica e, por isso, foram envoltas na eliminação física de povos indígenas. Os imigrantes luteranos também foram assentados em “terras devolutas”, que segundo o historiador é sinônimo de terras indígenas, e se envolveram em conflitos e disputas com os grupos indígenas. Os grupos e comunidades kaingang foram alijados e despojados de seu território de ocupação e domínio tradicional, tendo como consequência a redução territorial, a carência alimentar e a impossibilidade de acessar e obter novos bens materiais. Assim se estabelece o inconformismo e os ataques como estratégia de obtenção de bens e víveres e a defesa territorial indígena. Essa estratégia aconteceu de acordo com a emergência e o desespero em suprir suas necessidades, como ressalta Ítala Becker (1976, p. 59), ao afirmar o motivo da insatisfação e dos ataques: “não é também uma simples atitude de cobiça que o faz agir nessa situação, mas sim, a satisfação de necessidades bem primárias”. Por outro lado, os imigrantes afetados consideravam tais ataques como “violentações e injustiças praticadas pelos índios” (BECKER, 1976, p. 69). De forma geral, propõe-se dividir em dois períodos os ataques ou confrontos entre os indígenas e os imigrantes colonizadores. Para tanto, se estabelece a constituição dos colônias antigas dos alemães, porque a distância era grande e, sendo inimigos do grupo de Braga, não conseguiriam passar” (BECKER, 1976, p. 58). Contudo, persistir-se-á na análise e relato dos fatos entre kaingang e imigrantes, por se tratar de tema de interesse na constituição da IECLB e na missão entre índios. 75 aldeamentos pelo governo provincial em meados do século XIX como divisor dos dois períodos. Conforme Becker (1976, p. 58), os confrontos se acentuaram no primeiro período, ou seja, anterior à constituição dos aldeamentos, sobretudo entre 1829 e 1832, no primeiro avanço colonizador. No período posterior à constituição dos aldeamentos ocorreram casos isolados, com justificativas específicas, como, por exemplo, os ataques liderados por Nicué, que, em decorrência de conflitos com outros grupos kaingang, “realiza diversos assaltos, onde se procura abastecer e onde rapta pessoas, possivelmente, para aumentar os braços femininos do seu grupo” (BECKER, 1976, p. 69). Conforme levantamento de Becker (1976, p. 61), os municípios em que mais se intensificaram os conflitos foram São Leopoldo, Caí, Montenegro, Taquara e Nova Petrópolis. Os aldeamentos estabelecidos em meados do século XIX pelo governo provincial do Rio Grande do Sul, no intento de reunir e concentrar as comunidades e grupos indígenas em espaços determinados, não impediram que os kaingang realizassem excursões e acessassem os territórios tradicionais, campos e matas para suprimento nutricional, de que careciam nos toldos provinciais (BECKER, 1976, p. 59). Apesar das reclamações enviadas às autoridades, coube aos próprios imigrantes estabelecer estratégias para evitar ou reprimir os ataques indígenas. A constituição das Companhias de Pedestres51 surge neste contexto, como iniciativa de particulares, no intento de controlar e limpar as matas, postulando o aprisionamento ou o extermínio dos grupos indígenas indesejados (BECKER, 1976, p. 66). As Companhias de Pedestres arregimentaram a participação de indígenas, de grupos dissidentes e adversários, destacando-se Victorino Cundá e Doble (BECKER, 1976, p. 67). Os conflitos entre os imigrantes e indígenas também evidencia a perspectiva colonizadora de que a sociedade indígena e seu modelo sociocultural deveriam ser suprimidos, sob o entendimento de que os imigrantes do século XIX eram portadores da civilização. Essa perspectiva colonizadora dos imigrantes do século XIX insiste, de forma semelhante, na perspectiva colonizadora colonial portuguesa, executada desde o século XVI. Por decorrência, as possíveis iniciativas missionárias evangelizadoras também esbarravam em tal perspectiva preconceituosa ao considerarem as comunidades indígenas carentes da civilização cristã (WITT, 1999, 44-5, 51). 51 Biasi (2010, p. 13), em nota de rodapé, define as Companhias de Pedestre como “forças militares constituídas com a finalidade de manter a segurança dos colonos contra as chamadas ‘correrias’ indígenas. Deviam também proteger os aldeamentos contra possíveis ataques de indígenas não aldeados. Essa força militar saía à procura dos indígenas no caso de algum ataque e rapto de colonos e contavam com auxílio de ‘bugreiros’, força paramilitar de combate aos indígenas; faziam verdadeiras caçadas e chacinas de indígenas que resistiam aos aldeamentos”. 76 O empreendimento de uma missão evangelizadora por parte dos imigrantes luteranos, que foram assentados em terras tradicionais kaingang, foi considerando no processo da constituição eclesial da igreja de confissão luterana. Constata-se o impedimento para as missões entre as comunidades indígenas, além do preconceito colonizador ante as comunidades indígenas, a própria estrutura eclesial, provisória e restrita, mesmo após o período dos conflitos, na segunda metade do século XIX (WITT, 1999, p. 44-5). Outra questão que se estabeleceu no debate interno, na incipiente constituição eclesial e na disposição em estabelecer “frentes missionárias além dos círculos étnicos” dos imigrantes luteranos decorreu do entendimento de que o número de pastores e/ou diáconos estava aquém da própria demanda de atendimento às comunidades eclesiásticas (WITT, 1999, p. 51). Contudo, ainda no século XIX, após a criação do Sínodo Rio- Grandense,52 as comunidades evangélicas são desafiadas a considerar a realidade indígena. Em 1888, foram publicados na revista Der Deustche Ansiedler53 três artigos sobre a situação de comunidades indígenas no Brasil.54 Conforme Witt (1999, p. 45), “diante destas notícias, as comunidades evangélicas no Brasil foram lembradas de que, em relação aos indígenas, elas eram como pessoas ricas frente ao pobre Lázaro que está à porta”. Apesar do desafio colocado às comunidades de imigrantes evangélicos pelos pares da Alemanha, de se estabelecer uma missão entre índios, esbarrou-se na deficiência de recursos financeiros e na eleição local de outras prioridades. O desafio de uma missão entre índios foi retomado e abordado nas assembleias do Sínodo Rio-Grandense, entre 1900 e 1905, ao se debater as primeiras experiências ou tentativas empreendidas pelo P. Bruno Stysinski e pelos diáconos e missionários Otto von Jutrzenka e Curt Haupt no Rio Grande do Sul no início do século XX (WITT, 1999, p. 46-7; 1994, p. 151-4). 52 O Sínodo Rio-Grandense se constituiu pela afiliação majoritária das comunidades evangélicas locais do Rio Grande do Sul, sendo criado em 1886 (WITT, 1999, p. 45). 53 Publicação da Sociedade Evangélica de Barmen/Alemanha, sendo a tradução do título: O Colono Alemão. A Sociedade Evangélica de Barmen também é responsável pelo envio de “muitos pastores e professores para as comunidades evangélicas no Rio Grande do Sul” (WITT, 1999, p. 45). 54 A primeira notícia tratava sobre “a existência de mais de milhão de índios no Brasil que ainda não tinham sido atingidos pela atuação missionária”, em referência a uma matéria publicada por um jornal menonita norteamericano. A segunda notícia, oriunda de jornais teuto-brasileiros, relatava a ação do bugreiro Joaquim Bueno e seu bando, que exterminavam comunidades indígenas de 300 até 5000 indivíduos, através do envenenamento de águas, na divisa entre Paraná e São Paulo, região do Paranapanema. E a terceira tratava da carta de um viajante alemão e sua incursão junto ao povo pareci no Mato Grosso (WITT, 1999, p. 45). 77 A primeira tentativa de estabelecer uma missão entre índios foi realizada pelo P. Stysinski, que se deslocou para conhecer a comunidade kaingang do Toldo Pontal (ou Pontão), em Lagoa Vermelha/RS, na páscoa de 1900. Conforme relato do P. Stysinski, a primeira atitude foi estabelecer contato com o cacique local, conhecido como general Faustino, que, conforme avalia, o recebeu “amigavelmente”. Após se identificar e explanar a Faustino sobre as intenções e pretensões de sua visita, o pastor presenteia o cacique e outros membros da comunidade. Após a entrega dos presentes, o P. Stysinski se empenhou em obter informações sobre o histórico, a situação da comunidade e o uso da língua kaingang. Dialogou com muitos membros da comunidade e realizou visitas às moradias kaingang, concebidas como “choupanas” (WITT, 1999, p. 47). Em seu relatório o pastor conclui que “através da criação de uma escola e um Direktorium (diretório) poderíamos preservar esta estirpe do extermínio e intruí-los [sic] para a honra de Deus e o proveito da nossa pátria” (apud WITT, 1999, p. 48). No período natalino de 1900, o P. Stysinski empreendeu nova viagem, esta à região de Nonoai, conhecendo os toldos de Nonoai e Serrinha, considerados os dois maiores da região. O pastor avaliou que nesses toldos haveria maiores avanços que em Pontal (ou Pontão), devido à maior aplicação, conhecimento da língua portuguesa, produtividade laboral e conhecimento de conceitos religiosos. Apesar das considerações, o pastor constata que os indígenas “de modo geral não são reconhecidos na legislação republicana como cidadãos. Suas matas e seus campos não estão demarcados, sua propriedade não é reconhecida, nem são traçadas linhas de divisas” (apud WITT, 1999, p. 49). Em suas conclusões, apontou para a necessidade do apoio na defesa e garantia de direitos e usufruto da terra, bem como estímulo e ânimo ao trabalho, cultivo e criação de animais, enfatizando que sem tais atitudes não haveria perspectivas de futuros aos “nossos pobres índios” (WITT, 1999, p. 49). Apesar dos relatos e conclusões apontadas pelo P. Stysinski, não se estabeleceu alguma ação missionária entre índios, de imediato, por falta de recursos. Durante a realização da 17ª Assembleia do Sínodo Rio-Grandense, ocorrida em Taquari/RS no mês de março de 1903, retoma-se o debate sobre a missão entre índios. A assembleia dividiu-se entre manifestações desfavoráveis, pois “havia ainda muitas necessidades a serem supridas nas comunidades formadas por descendentes de alemães”, e manifestações que ponderavam que era “momento para começar a missão que se propunha avançar os limites étnicos”. De forma geral, não se obteve consenso na assembleia, mas se 78 propôs criar um Comitê de Missão, a quem se transfeririam recursos financeiros para a missão entre índios (WITT, 1994, p. 153). Em consequência da assembleia, dois diáconos missionários, Curt Haupt e Otto von Jutrzenka55, se prontificaram a novas viagens às comunidades indígenas para averiguar onde iniciar a missão entre índios. A viagem dos diáconos ocorreu a partir de agosto de 1903. Visitaram primeiramente o Toldo Pontão (Lagoa Vermelha/RS), em agosto de 1903, também recebidos pelo cacique general Faustino. Novamente repete-se a prática de oferta de presentes. Os missionários propõem a criação de uma escola, proposta aceita pelo cacique, que afirma que cerca de cem crianças poderiam frequentar o educandário. Faustino apela para que os missionários atendessem a comunidade. O apelo causou comoção aos missionários, pois consideraram que a comunidade se encontrava em situação de penúria (WITT, 1999, p. 49-50). Os missionários deram prosseguimento à viagem, deslocando-se até o toldo do rio Ligeiro, onde se depararam com a situação conflituosa entre os kaingang e famílias agricultoras, inclusive resultando na morte de um índio e duas pessoas não índias (WITT, 1999, p. 50). Haupt e Jutzrenka se deslocaram, em seguida, até o Toldo Serrinha, aonde chegaram em 27 de agosto de 1903. Os missionários foram recebidos pelo cacique capitão Manoel Oliveira, que expôs sua desilusão às constantes promessas de ajuda, que se revelavam ineficazes. Sobre a proposição dos missionários para a construção de uma escola, o cacique afirmou esta já havia sido prometida em outras oportunidades, porém se não concretizara. Diante da relutância de Manoel de Oliveira, os missionários se dispuseram a prolongar a permanência, na tentativa de persuadir o cacique que cumpririam com o propósito, inclusive buscaram um local para instalar uma escola. Após a permanência de quatorze dias no Toldo Serrinha, os missionários visitaram o Toldo Nonoai, concluindo não ser o local para fixar uma missão evangélica luterana entre índios, uma vez que se cogitava de a Igreja Católica implantaria uma escola junto à comunidade indígena. Além dos toldos mencionados, Haupt e Jutrzenka também visitaram famílias indígenas no rio Ligeiro, Costa da Forquilha e em Palmeira durante o percurso (WITT, 1999, p. 50). 55 Os diáconos missionários provinham “da Fundação Evangélica São João de Berlim e, quando de sua chegada no Brasil, permaneceram em Petrópolis/RJ, atuando como professores a fim de melhor dominar o idioma português. Vieram ao Rio Grande do Sul em março de 1903 e participaram, no mês de maio, da 17ª Assembleia Sinodal em Taquari. Nesta oportunidade o tema da missão entre índios estava outra vez na pauta.” Após a assembleia, então os missionários realizam a viagem aos toldos kaingang do Rio Grande do Sul e Paraná (WITT, 1994, p. 153). 79 Em setembro de 1903, em continuidade às visitas aos toldos indígenas, Haupt e Jutzrenka adentram na região dos toldos no rio Chapecozinho. Os missionários ao se reunirem com o cacique major Venâncio ofertaram presentes e propuseram a instalação de uma escola, a que tiveram a recusa aos presentes e à escola. O cacique interpela aos missionários se eram protestantes, estes afirmaram serem protestantes. Apesar da recusa e da interpelação cética do cacique, Haupt e Jutzrenka permaneceram entre os índios para conhecê-los e para uma maior aproximação. Assim, conheceram os toldos Formiga e rio Chapecó Grande. Desconsideram, porém, a possibilidade de fixar uma missão entre índios na região. De acordo com suas avaliações, comparando-se a realidade das comunidades indígenas do Paraná56 às do Rio Grande do Sul, estas apresentavam maiores dificuldades de acesso, miserabilidade e desesperança. Os missionários também consideraram o atendimento prestado por padres católicos (WITT, 1999, p. 50-1). Os missionários apresentam o relatório da viagem na 18ª Assembleia do Sínodo Riograndense, em 1904, realizada em Taquara/RS. A assembleia resolve protelar a decisão. Após a assembleia, os missionários Haupt e Jutzrenka conseguiram iniciar as atividades no Toldo Serrinha, porém, logo que iniciaram a instalação, foram expulsos pelos índios. Segundo os missionários, os índios foram instigados por um padre católico, que não concordava com a presença de missionários protestantes. Então os missionários se estabeleceram em Nonoai/RS, onde implantaram uma escola para crianças brasileiras, mantendo o objetivo de se reaproximarem dos indígenas. Contudo, em janeiro de 1905, foram outra vez expulsos pelos índios, incitados pelo padre Peters, que desejava conduzir a catequese dos kaingang na região (WITT, 1994, p. 153-4). Diante do insucesso na implantação da missão entre índios, empreendida pelos missionários Haupt e Jutzrenka nos anos iniciais do século XX, o Sínodo Rio-Grandense não estabelece novas tentativas (WITT, 1994, p. 153-4). Todavia, as experiências do P. Stysinski e dos missionários Haupt e Jutzrenka trouxeram à evidência o conflito incipiente na estruturação e formação eclesial, iniciada com os imigrantes luteranos. O conflito se constituiu através do debate entre a preservação da identidade germânica das comunidades evangélicas, defendido pelo grupo majoritário, e o desafio e compromisso da Igreja de 56 A região visitada pelos missionários constituía na época território do Estado do Paraná. A constituição atual, como território do Estado de Santa Catarina, ocorreu somente em 1917. 80 extrapolar os laços étnicos, defendido por parcela minoritária, contudo sem negar a própria identidade (WITT, 1994, p. 156).57 O debate entre o germanismo e o romper dos laços étnicos persistiu noutros momentos da constituição da IECLB e seu engajamento com as realidades e grupos sociais no Brasil, como demonstrado no histórico da constituição da IECLB, herdeira da reforma religiosa protestante do século XVI e da imigração de europeus, especialmente alemães evangélicos, ao Brasil. Considera-se relevante o contexto em que se estabeleceu o debate, no início do século XX, durante tentativas de se estabelecer ações missionárias entre indígenas, pois trata-se de uma mudança de postura frente aos índios, quando não são considerados como uma ameaça e um infortúnio a ser superado, para que os imigrantes tomem posse da “terra devoluta”. As tentativas de estabelecer uma ação missionária entre os kaingang, então, promoveram o apoio e a garantia de espaços demarcados, os toldos, como proposto pelo P. Stysinski. Persiste ainda a concepção de que os índios são miseráveis e carentes de benefícios da sociedade civilizada, por isso o objetivo de implantar uma escola. Obviamente que se pode avaliar essa concepção como tentativa de dominar e restringir a circulação dos indígenas, uma vez que persiste a concepção de que as “terras devolutas” passaram à posse e exploração dos imigrantes e seus descendentes. Os diferentes momentos estabelecidos entre os imigrantes europeus evangélicos e as comunidades indígenas, do conflito homicida pela disputa de território e a implantação de missão entre índios, ocorrem num espaço temporal menor que um século. Nesse tempo sobressaíram os períodos de conflitos e tentativas de dominação, expulsão, aculturação e extermínio das comunidades indígenas. Por isso, Dreher (1992, p. 18) sentencia: “na maioria das vezes, os indígenas não nos sentiram como discípulos de Jesus Cristo, mas como adversários e invasores”, concebendo o estabelecimento de um cativeiro aos indígenas. O teólogo e historiador luterano também pondera que ocorreram algumas tentativas no processo histórico, como as do início do século XX, de colocar pequenos sinais da responsabilidade social junto aos povos indígenas, mas ressalta que um engajamento maior se estabelece no período posterior ao abordado. Porém também esse se deve “a invasões de membros luteranos 57 Witt (1994, p. 156) evidencia o fato de que “muitas famílias de ascendência germânica não davam a menor importância à preservação da germanidade, em especial aquelas que viviam longe do alcance do poder de influência do seu grupo étnico. Assim, p. ex., o P. Lechler obrigava-se a pregar em português nas cercanias de Vacaria [em 1901], pois lá, em meio a brasileiros lusos, afros e indígenas, as famílias teuto-brasileiras já tinham abdicado do idioma alemão, e também em Três Forquilhas, pois lá viviam famílias negras [ex-escravas dos alemães e batizadas evangélicas] às quais Lechler não julgava certo fechar as portas do evangelho” (WITT, 1994, P. 156). 81 em áreas indígenas (Tenente Portela/RS; Gleba Arino/MT, Rondônia)” (DREHER, 1992, p. 18) em relação às missões entre índios estabelecidas a partir das décadas de 1960 e 1970 no âmbito da IECLB. Essas missões serão implantadas concomitantemente à estruturação, solidificação e constituição da organização eclesial da IECLB como uma igreja nacional e que se propunha a testemunhar o evangelho de Jesus Cristo no Brasil. Simonian (1995b, p. 80) afirma que foi a partir dessa data que “os missionários protestantes passaram a ter uma inserção mais sistemática entre os mesmos”, a saber, os índios. E, dentre as missões citadas por Dreher, a que se constituirá de atuação constante até a atualidade será a ação missionária indigenista junto às comunidades kaingang e guarani na TI Guarita. 2.3 MISSÃO NA TI GUARITA 2.3.1 Fundação e propósito da Missão Guarita A ação missionária-indigenista da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) na TI Guarita inicia na década de 1960 através da ação do Pastor Noberto Schwantes, que atuava na Paróquia Evangélica de Tenente Portela. Em setembro de 1960, o pastor visita a comunidade kaingang da TI Guarita, uma vez que a divisa da área demarcada era próxima à sua residência. A visita causou-lhe certa perplexidade, como afirma: “Fiquei surpreso. Em toda a reserva não havia uma única escola para os índios (SCHWANTES, 2008, p. 32). Assim, Schwantes convenceu a diretoria de sua Paróquia da necessidade de uma escola, tipo internato, para as crianças dos colonos. A partir dessa escola, começou a pensar em como atender a comunidade indígena. Chegou à conclusão que não seria prudente colocar numa mesma sala crianças de colonos e crianças indígenas. Os membros da diretoria da Paróquia concordaram então, em ceder o professor da escola comunitária para que fosse lecionar, no período da tarde, numa escola só para os índios (ZWETSCH, 1993, p. 232). O pastor, em conjunto com o presbitério da Comunidade Evangélica de Tenente Portela, obteve a aprovação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) para a instalação de uma escola primária na TI Guarita. Para o funcionamento da escola aos kaingang, foi convidado o mesmo professor que atuava na Escola Tobias Barreto, que era vinculada à Comunidade Evangélica de Tenente Portela. Quando começou a funcionar a Escola Tobias Barreto, propusemos ao professor que ele fizesse um segundo turno de trabalho. Ele topou. Conseguimos então, com o chefe do posto, uma velha casa abandonada da reserva, a seis quilômetros da cidade. Para sua condução, compramos uma 82 bicicleta, com dinheiro levantado em uma rifa. Assim foi montada a primeira escola da reserva, atendendo grande parte das famílias indígenas (SCHWANTES, 2008, p. 33). As atividades letivas da escola iniciaram, efetivamente, em março de 1961 (ZWETSCH, 1993, p. 232-3). A instalação da escola junto à comunidade kaingang pode ser considerada como algo inédito por extrapolar as fronteiras étnicas da comunidade evangélica, como experiência efetiva junto à comunidade indígena através da educação escolar. Contudo, conforme aponta Zwetsch, ao analisar as propostas missionárias da IECLB junto aos povos indígenas, ressalta que “a escola foi um meio para ganhar confiança dos índios e acostumar a comunidade evangélico-luterana com as idéias de missão entre índios” (1993, p. 234). Essa avaliação também aponta para outra característica desse processo, a saber, “que a iniciativa da missão cabe exclusivamente ao pastor e não à paróquia, como ele argumentava. Foi sim, uma iniciativa local e não da Igreja, como instituição” (ZWETSCH, 1993, p. 236). Contudo, o P. Schwantes obteve “a adesão da direção da Igreja que, a partir de 1962, assumiu alguns gastos, como o pagamento de um professor, a compra de roupas, principalmente para as crianças da escola, e material escolar” (ZWETSCH, 1993, p. 237). A adesão fora importante para a elaboração da ampliação e encaminhamentos de um novo plano de ação missionária junto à comunidade kaingang na TI Guarita, em virtude dos bons resultados do trabalho da escola. Foi assim que um novo plano começou a se esboçar em 1964. O trabalho da escola estava dando bons resultados. As necessidades gerais da comunidade indígena demandavam respostas concretas. Em maio de 1964, Schwantes já tinha um plano concreto para adentrar a área, com o apoio de parte da comunidade. Suas boas relações com o velho pajé Athanásio facilitaram a escolha do local para instalar um posto missionário, já ampliado, com escola, enfermaria e casa do professor (ZWETSCH, 1993, p. 237). O objetivo dessa nova proposta missionária, elaborada pelo P. Norberto Schwantes, previa a construção da Escola Normal Indígena Clara Camarão, sendo denominada como Missão Indígena. Para tanto, elaborou projeto de solicitação de recursos, argumentando com “a situação em que estavam os índios, vivendo como mendigos, pedindo esmolas no posto do SPI ou de comerciantes de Tenente Portela”. Intermediado pela IECLB e Federação Luterana Mundial, obteve a doação da Lutherhjalpen (Ajuda da Igreja Luterana da Suécia) (SCHWANTES, 2008, p. 38). O P. Schwantes concebia que a situação de miserabilidade seria superada “ajudando os índios a formarem seus professores e líderes, [assim] eles teriam alguma oportunidade de independência e progresso”, como também argumentou junto à direção da IECLB (SCHWANTES, 2008, p. 35). 83 Referente ao diálogo e à argumentação junto à comunidade kaingang, Schwantes (2008, p. 39) aponta que: Os líderes indígenas […] eram sempre nomeados pela chefia do posto, que escolhia os índios mais dóceis e colaboradores. Argumentei que a criação de uma escola normal seria a única oportunidade de romper esta situação de miséria, com a formação de professores índios, que naturalmente seriam os novos líderes. Estes, bem formados e conscientes da situação do seu povo, teriam condições de luta. A instalação do novo posto missionário foi localizada a cerca de 30 quilômetros da primeira escola, agora na área do município de Redentora/RS. A localidade já era ocupada por famílias kaingang e guarani. Conforme evidencia Zwetsch, o “objetivo foi constituir um centro missionário que funcionasse como centro de vida para os índios cristianizados” (1993, p. 239). A inauguração da Missão Indígena Guarita ocorreu em 27 de julho de 1965, sendo que a escola primária ali instalada ficou sob a direção do Prof. Herbert Trennepohl. No entanto, ainda era preciso encaminhar a implantação da escola normal, objetivo principal dessa proposta (ZWETSCH, 1993, p. 241). É durante uma viagem de estudo à Alemanha, em 1966, que o P. Norberto Schwantes consegue o apoio político e financeiro, como também de disposição de pessoal, para atuar junto à missão indígena. É durante essa viagem que o P. Schwantes conheceu Ursula Wiesemann. Mas o contato mais significativo, por sua posterior incidência na vida dos Kaingang, foi com a lingüista Ursula Wiesemann, da Lutherischer Freikirche da Alemanha, colaboradora da Wycliff Bibelübersetzer e do Summer Institute of Linguistics, no Brasil. A dra. Ursula, como era chamada, chegara ao Brasil em setembro de 1958 e se instalara na Reserva de Rio das Cobras, no Paraná, onde se abriu um trabalho da Igreja Evangélica Cristianismo Decidido (ramo pietista saído da Igreja Evangélica Luterana). Desde então, Wiesemann estudava a língua Kaingang com o intuito de criar um alfabeto (concluído em 1963), que permitisse alfabetizar os indígenas na sua língua e depois oportunizasse a tradução do Novo Testamente, concluída em 1976. Schwantes convidou-a para dirigir a escola, mas a pesquisadora aceitou apenas orientá-la (ZWETSCH, 1993, p. 241-2). Cabe ressaltar a distinção entre o pietismo, a que estava vinculada Ursula Wiesemann, e o trabalho que desenvolveu a partir daí, e a presença e instalação de igrejas pentecostais entre os kaingang. Assim também a IECLB não pode ser confundida como igreja pentecostal. A IECLB é classificada entre as igrejas protestantes históricas. Erroneamente, Veiga aponta a ação da IECLB na TI Guarita, bem como da Missão do Cristianismo Decidido, em Rio das Cobras/PR, como a presença e atuação de igrejas pentecostais (2004, p. 180). Apesar do 84 objetivo de Ursula Wiesemann, bem como a instalação da Missão Indígena serem de cunho proselitista, isso não os configura como atuação de igrejas ou movimentos pentecostais, como a Assembleia de Deus e outras denominações eclesiais entre as comunidades kaingang. Destaca-se que a participação de Ursula Wiesemann é considerada como fundamental para o planejamento e a instalação da Escola Normal Clara Camarão.58 Com o apoio lingüístico de Wiesemann, o trabalho em Guarita se firmou de vez. Tanto assim que no ano seguinte, em 1967, vários dos objetivos da nova fase do trabalho começam a se concretizar. […]Tinha apoio da comunidade indígena, conseguira se firmar como uma proposta séria na Igreja e perante outros parceiros na Europa, possuía no final de 1966 uma boa infraestrutura, contava já com bons colaboradores, avançava no que se refere à língua e à tradução do Novo Testamento, com a vinda de Ursula Wiesemann, preparando o momento para dar início ao treinamento de professores bilíngües que deveriam, mais tarde, assumir as escolas das suas comunidades e se tornar lideranças importantes de seu povo (ZWESTCH, 1993, p. 243). Para o P. Norberto Schwantes, a implantação da Escola Normal significou a definição da sua dedicação ao projeto da Missão Indígena e às atividades na Paróquia Evangélica de Tenente Portela e outros projetos por ele desenvolvidos nessa cidade. Quando o projeto da Escola Normal começou a tomar forma, ficou claro para mim que ele iria requerer dedicação integral e que eu teria de optar entre minhas funções na Paróquia e a Missão. A Missão me fascinava. Eu via que através da Escola Normal Indígena – única no País – seria possível um trabalho de resgate da identidade cultural dos índios, e sua integração com a sociedade civil circunvizinha. Eu estava muito inclinado a escolher a Missão como meu campo de trabalho (Apud ZWETSCH, 1993, p. 244). O P. Norberto Schwantes não definiu a Missão Indígena como campo de sua atuação, mas reconheceu e enalteceu o fato de que a implantação ou estruturação da Escola Normal se devesse à participação de Ursula Wiesemann. A Escola Normal só foi mesmo estruturada com a vinda, em 1968, da professora Ursula Wiesemann, do Sommer Instituto of Linguistic [sic], que eu conheci na Alemanha em 1966. [p. 39] […] Cabe à Úrsula o mérito de ter estruturado e dirigido a Escola Normal Bilíngüe Clara Camarão. Esta escola não ficou limitada apenas a teorias e gramáticas. Com o fim da caça, provocado pela crescente e criminosa devastação da reserva, as práticas 58 A pesquisa não obteve a justificativa para a escolha do nome Clara Camarão para a escola. Sabe-se que Clara Camarão foi uma índia potiguar, que nasceu próximo a Natal/RN (Aldeia Velha, atualmente Igapó/RN), provavelmente na segunda metade do século XVII. Casou-se com Antônio Felipe Camarão, índio Poti, da nação potiguar. A partir do casamento, Clara Camarão acompanhou o marido nos combates contra o domínio holandês. Afirma-se que utilizava com habilidade o arco e a flecha, a lança e o tacape. Um dos confrontos em que se destacou foi o de Porto Calvo, em 1637, quando, à frente de índias potiguares, Clara Camarão combateu as tropas holandesas com bravura, sendo vitoriosa (Disponível em <http://www.senado.gov.br/senadores /senador/garibaldi/camarao.asp> Acesso em: 05 jul. 2010). Consta que “por seus feitos corajosos, foi-lhe dado o direito de ser chamada de Dona e de receber o hábito de Cristo, junto com seu marido, concedido pelo rei Felipe IV” (Disponível em: <http://www.bolsademulher.com/estilo/clara-camarao-e-as-indias-isabel558.html>. Acesso em 05 jul. 2010). 85 agrícolas passaram a ser de fundamental importância para a sobrevivência da comunidade indígena (SCHWANTES, 2008, p. 40). Apesar da vinda de Ursula Wiesemann em 1968, com o apoio de docentes vinculados à IECLB, à escola, então denominada como Escola Normal Bilíngue Clara Camarão, as atividades iniciaram dois anos mais tarde. A escola foi inaugurada oficialmente em 19/02/1970, com a presença do Presidente da FUNAI, Queiroz Campos, que trouxe consigo o embaixador da Dinamarca no Brasil, Sr. J.A. W. Paludan e esposa, além de representantes da imprensa européia. Da parte da IECLB, estiveram presentes o Pastor Rodolfo Schneider, 2º Vice-Presidente, e o Pastor Heinrich Güttinger, presidente do Conselho da Obra Missionária (ZWETSCH, 1993, p. 251). A instalação da escola se tornou um marco pioneiro por se constituir o primeiro curso nesta perspectiva. Também tem a sua relevância em virtude do impacto junto às muitas comunidades que enviaram jovens para a formação, bem como àquelas comunidades onde foram atuar. No entanto, o próprio P. Norberto Schwantes se questionou sobre a real intenção da parceria e disposição da FUNAI na implantação e condução da Escola Normal Bilíngue Clara Camarão. Conforme Zwetsch, o P. Norberto Schwantes afirmou: “Ficamos sabendo depois que servimos de palco para demonstrar o quanto o governo brasileiro faz pelos índios e para negar a imagem criada no exterior de que ocorriam verdadeiros genocídios no Brasil” (Apud ZWETSCH, 1993, p. 251). Essa percepção seria uma primeira constatação dos conflitos contraditórios e também das dificuldades na parceria estabelecida entre as instituições parceiras, IECLB, SIL e FUNAI. A primeira – IECLB –, identificada a partir da proposição do P. Noberto Schwantes, objetivava capacitar e potencializar novas lideranças para alterar a realidade das comunidades indígenas. A segunda – SIL – tinha o objetivo da catequização e tradução da Bíblia cristã para o vernáculo kaingang. E a terceira – FUNAI –, com base na proposta integracionista, conforme o exposto, buscava estabelecer uma imagem positiva junto à comunidade nacional, na ação pública junto à comunidade indígena. A seguir abordar-se-á o transcorrer das atividades da Escola Normal Bilíngue Clara Camarão, que teve o nome alterado para Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão (CTPCC).59 59 No presente trabalho, não serão abordados os motivos e intenções implicados na alteração da nomenclatura de Escola Normal para Centro de Treinamento Profissional. 86 2.3.2 O curso de formação de monitores bilíngue O CTPCC foi implantado como atividade principal da Missão Indígena, iniciada pelo P. Norberto Schwantes, em 1961, com a instalação de uma escola para os kaingang na TI Guarita (na abrangência do município de Tenente Portela/RS) e a instalação do Posto da Missão Indígena, inaugurado em 1965 (na abrangência do município de Redentora/RS). Conforme o anteriormente exposto, o CTPCC necessitou de alguns anos, após a inauguração da Missão Indígena, até o início de suas atividades letivas, em 1970. A proposta e o objetivo do CTPCC não estiveram restritos à formação de monitores bilíngues da TI Guarita, pois participaram membros de outras comunidades kaingang, conforme relata Andila Inácio Belforte, nascida na TI Carreteiro (Água Santa/RS), sobre o seu envio para a TI Guarita: […] o servidor da FUNAI responsável pela nossa reserva mandou chamar meu pai, que, chegando lá, recebeu a “ordem” para que me preparasse que em poucos dias a FUNAI me levaria para colégio interno, em outra reserva indígena, chamada Guarita, localizada no município de Tenente Portela-RS. Lá, a FUNAI, em convênio com a IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil),60 tinha criado uma escola para formar monitores bilíngües, em nível de 1º Grau, chamado CTPCC, (Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão), e era para lá que iriam me levar. […] Fiquei tentada a não ir, mas certamente meu pai seria penalizado (BELFORTE, 2002, p. 124). Na época, Andila I. Belforte residia na TI Ligeiro (Charrua/RS) e afirma que mais “dois rapazes que haviam terminado a 5ª série tinha sido ‘convocados’, então já não iria sozinha, agora éramos três Kaingáng [sic] daquela aldeia, fiquei mais encorajada” (2002, p. 125). Conforme o relato, não houve uma preparação dos jovens sobre qual o destino e objetivo da transferência para a TI Guarita, como explicita no relato sobre a aula inaugural: Assim, no começo de 1970, tivemos a nossa aula inaugural, com muitas autoridades presentes e mais ou menos 30 jovens Kaingáng [sic], fardados e perfilados, cantaram o Hino Nacional. Até este momento não sabíamos por que estávamos ali, ninguém nos dava nenhuma explicação (BELFORTE, 2002, p. 125). Esse fato não significou que o programa desenvolvido no CTPCC fosse desprovido de propósito, pois […] a missionária Úrsula Wiesemann formulou as bases de um programa para a utilização do ensino bilíngüe nos postos indígenas do sul do Brasil. Tal programa tem como característica o aproveitamento de índios jovens 60 A autora equivoca-se aos transcrever por extenso a sigla IECLB, sendo a transcrição extensa correta: Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, página oficial: www.luteranos.com.br. 87 para a atuação como professores bilíngües, depois de um período de treinamento sistemático, e se baseia fundamentalmente nos estudos lingüísticos e na literatura criada por antecipação pela Dra. Wiesemann. Apresentado tal programa à FUNAI, em fevereiro de 1970 foi instalado o primeiro curso de treinamento para a preparação dos professores no Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão, em Guarita (RS) (SANTOS, 1975, p. 64). Para o cumprimento desse objetivo geral – a formação de jovens kaingang para atuarem como monitores bilíngues –, estabeleceu-se convênio entre a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e o Summer Institute of Linguistics (SIL),61 ao qual estava vinculada a professora Ursula Wiesemann. A IECLB esteve responsável pela contratação de pessoal e pela infraestrutura. Durante a realização das atividades letivas, o SIL forneceu o material didático, a orientação pedagógica e o treinamento dos docentes não indígenas, que ministrariam o curso (SANTOS, 1975, p 67). O CTPCC caracterizou, provavelmente, o primeiro contrato público da IECLB. Cabe destacar que, a partir de 1971, o CTPCC teve a direção da professora Bárbara Newman, também vinculada ao SIL. Num relatório, datado de 20/10/1971, escrito em papel timbrado da FUNAI e dirigido ao Conselho Administrativo da Missão Guarita, o que demonstra o tipo de relação que se estabeleceu entre as instituições envolvidas no projeto, a Profª Bárbara Newman informa sobre as diversas atividades desenvolvidas com os alunos bem como o curso de alfabetização de adultos que já funcionava regularmente, 3 vezes por semana, à noite. No item esporte, ela anota que as chuteiras novas foram compradas com dinheiro angariado pelos alunos em campanha de venda da bandeiras nacionais (de papel) fornecidas pela Rádio Municipal de Tenente Portela, a rádio criada por Norberto Schwantes (ZWETSCH, 1993, p. 252-3). Apesar da suposta relação interinstitucional favorável, apontada no relato acima, verificou-se que esta não era a realidade durante a realização do curso de monitores bilíngues. Conforme exposto por Zwetsch (1993, p.254), a postura adotada pelos representantes do SIL foi de estabelecer a autonomia institucional da entidade. Os representantes do SIL consideravam prejudicial a dependência interinstitucional da FUNAI, pois avaliavam que esta comprometia o alcance do objetivo do CTPCC. Tampouco os representantes do SIL buscaram uma relação mais estreita com a equipe da IECLB. 61 SIL – Summer Institute of Linguistics / Associação Internacional de Linguística, entidade de “assessoria e treinamento para programas de educação bilíngüe e intercultural nas línguas em que há uma equipe designada”, que iniciou suas atividades no Brasil em 1956, a convite do Serviço de Proteção ao Índio/SPI e da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (Disponível em: <http://www.sil.org/americas/brasil/index.html> Acesso em: 15 ago. 2011). 88 Torna-se relevante destacar que o SIL não apresentava uma postura contrária aos propósitos da FUNAI. Num estudo sobre a atuação da igreja evangélica na região amazônica, faz-se a seguinte observação, apresentando considerações de Ursula Wiesemann e as atividades desenvolvidas no CTPCC: Tendo entrado em território dos cintas-larga, o SIL estava inteiramente afinado com a filosofia da FUNAI – no entanto, colocou o problema para os índios de maneira mais dura: “Vocês têm uma escolha”, disse a dra. Úrsula Wiesemann a 35 índios kaingâng [sic] enviados pelo regime militar para seu centro de treinamento bilíngüe: “Vocês podem escolher entre seu próprio modo de vida ou a vida do civilizado; cada uma tem um preço e uma recompensa. Para o modo de vocês, o preço é falta de progresso, fome e morte.” A recompensa era supostamente ser poupado da dor da mudança. A alternativa, segundo Wiesemann, estava cheia de promessas. “Para o modo civilizado, o preço é trabalho e manter o que vocês conquistaram. A recompensa é que terão mais” (COLBY; DENNETT, 1998, p. 837). Avalia-se, a partir das afirmações de Ursula Wiesemann, que a postura integracionista da política governamental orientava o projeto pedagógico nos projetos e programas implantados pelo SIL, obviamente também no CTPCC (ZWETSCH, 1993, p. 256-7). A afirmação de Wiesemann aos 35 kaingang evidencia o projeto do SIL, a integração, imputados como benefício valores como trabalho, conquista e recompensa. De acordo com a proposição de Wiesemann, manter a cultura e o modo de vida próprio kaingang significaria a pena física da fome e da morte. Conforme o disposto, só haveria uma direção a ser tomada: a integração. Pondera-se, ainda, que “a pedagogia que subjaz ao programa do SIL tem uma forte conotação militar”, enfatizada na repetição do termo “treinamento”, através do qual os monitores indígenas "deveriam começar a sair da cova da devitalização e levantar o seu povo consigo" (ZWETSCH, 1993, p. 263). Tais considerações coadunam com o previsto no Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973), implantado no período do governo militar brasileiro, onde o artigo 50 prevê: A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais. Diante de tais questões e pressupostos, questionou-se se o CTPCC carecia de assessoria pedagógica e antropológica, ao optar, por exemplo, pelo sistema de internato, sistema criticado e abandonado por algumas missões católicas no norte do Brasil na mesma época. Contudo, considerou-se que essas questões pudessem decorrer “da inoperância e má vontade da FUNAI” e que o CTPCC alcançou os seus objetivos devido à “dedicação e seriedade dos que nele trabalharam” (ZWETSCH, 1993, p. 255). 89 Além das diferenças e das contradições nas relações interinstitucionais apontadas, ressaltam-se no relato de Andila I. Belforte, abaixo, as normas disciplinares e o sistema de internato imposto aos jovens kaingang. O relato revela os conflitos oriundos do fato de a proposta ter sido elaborada desconsiderando os valores e o sistema cultural dos jovens internados, visando levar a cabo a dinâmica da integração da comunidade indígena à sociedade não indígena, como exposto anteriormente. As normas disciplinares do colégio eram muito rígidas, tínhamos horário marcado para tudo, nos tornamos escravos do relógio. […] Nos proibiram de falar com os nossos colegas e nos castigavam por qualquer coisa, eu então vivia de castigo, que era limpar e dormir na casa da diretora. Fazia muitas gravações da língua com ela. Não sabia por quê (BELFORTE, 2002, p. 125). O relato evidencia a imposição de um modelo educacional pautado pelas práticas educacionais da sociedade não indígena, como apontado pela expressão escravos do relógio. O relato sobre a proibição de falar com colegas e dos castigos impostos corroboram para a percepção de que os interessados, os jovens kaingang, eram excluídos na definição e participação nas decisões a respeito das práticas e metodologias adotadas no curso e internato. Tal fato se evidencia pela constatação de que, no transcorrer de 1972, ocorreram alterações no currículo da escola, conforme a “reforma educacional que o governo federal imprimiu, na época, a todo o ensino público” (ZWETSCH, 1993, p. 254). O grupo de jovens kaingang do CTPCC, mesmo com as práticas anteriormente expostas, possuía criatividade e disposição para a elaboração de materiais, como a criação de “jornal de circulação interna”, elaborado a partir das aulas de datilografia e do aprendizado da escrita kaingang (BELFORTE, 2002, p. 126). O grupo que iniciou as atividades no CTPCC em 1970 concluiu o curso em 1972, habilitando 19 jovens, dos 35 que ingressaram, outorgando o diploma de “promotores bilingues”. A justificativa para a redução do grupo que concluiu o curso e para o fato de que, posteriormente, tão somente 16 assumiram atividades em unidades escolares administradas pela FUNAI, foi explicitada da seguinte maneira, quando da avaliação do curso: A primeira turma de alunos que o Centro habilitou como professor-monitor, em número de 19, originou-se de um grupo de 35 jovens que foram indicados pelos chefes de postos para freqüentar o curso. Segundo a atual direção do Centro, “a falta inicial de critérios para a seleção provocou vários problemas e a necessidade de eliminar alguns estudantes”. Dos alunos habilitados, três não quiseram ingressar como professores-monitores. Restaram assim 16, que ingressaram na FUNAI (SANTOS, 1975, p. 67). 90 Sobre o impacto da conclusão e da formatura dessa primeira turma de promotores bilíngues, relata-se que houve repercussão nacional e internacional e que o próprio grupo dos jovens formandos não conseguia definir o significado daquele momento. No entanto, o grupo pôde identificar o significado do evento para os não índios envolvidos no processo. Não tínhamos clareza do que isso representava para nós, nem para os brancos, mas para eles era bem claro o que queriam, nos usar enquanto alfabetizadores da língua Kaingáng e que fariam o processo de transição da língua Kaingáng para o Português em pouco tempo e então os professores brancos fariam o resto, abreviar a integração dos Kaingáng à sociedade nacional, usando os índios e sua própria língua para nos descaracterizar enquanto povo, mas não tínhamos clareza disso (BELFORTE, 2002, p. 126). A transição da língua kaingang para o português, evidenciada no relato acima, fazia parte do projeto de integração das comunidades indígenas à sociedade nacional. O projeto para a transição considerava o fato de que a criança não teria familiaridade com o português ao ingressar na escola. Assim, em lugar da criançada ser iniciada nas atividades de alfabetização em língua portuguesa, ela seria colocada sob os cuidados do professor-índio, durante 4 semestres letivos, seguindo em simultâneo com o aprendizado oral do português e depois a sua alfabetização nessa língua (SANTOS, 1975, p. 65). Esse projeto e o programa do CTPCC não se encerraram com a formatura e o envio desse grupo de promotores ou monitores bilíngues. Ainda em 1972, o responsável da IECLB considera a renovação do convênio, inclusive com ampliação de cursos, contudo “sem uma avaliação do curso em andamento nem uma maior discussão da difícil relação institucional com a FUNAI” (ZWETSCH, 1993, p. 255). As definições e o início de um novo curso não foram imediatos. Apesar de considerar a dificuldade da relação institucional com a FUNAI, adota-se uma postura simpática em relação à política indigenista oficial. Através da leitura de relatórios internos da Missão Indígena por parte dos responsáveis pela IECLB, Zwetsch evidencia que os mesmos consideravam que o governo levava a sério todos os assuntos relacionados com o índio. Aproveita para criticar a posição católica (em torno do veto de Médici ao trabalho das Missões) e reafirma a posição da FUNAI, que admitia a assistência, mas vedava terminantemente a catequese e o proselitismo religioso. Sobre o Seminário FUNAI-Missões, realizado em novembro de 1973, Güttinger registra a utilidade do evento para manter "úteis contatos pessoais" e conhecer a estrutura do órgão. Mas revela sua discordância com a ousadia (sic) do Padre Iasi (na época, secretário executivo do CIMI) criticando a FUNAI e sua política indigenista. O campo de alianças preferenciais estava voltado para as missões evangélicas, justamente estas que tinham entre seus pontos prioritários a conversão proselitista das tribos (1993, p. 259). 91 As negociações e trocas de correspondências, visando um novo convênio entre IECLB e FUNAI para a continuidade do curso de monitores bilíngues e a possibilidade de outros, como o de monitor agrícola, ocorreram ainda em 1974, inclusive entre o pastor-presidente da IECLB e o presidente da FUNAI. Nas correspondências, definiram “os termos através dos quais a Igreja [IECLB] concorda com o plano esboçado pelo órgão oficial” (ZWETSCH, 1993, p. 260). Nesse período, o SIL também realizou atividades de treinamento aos docentes dos cursos de ensino bilíngue de todo o país. O objetivo era “melhorar o potencial dos professores civilizados [não índios] responsáveis pela formação dos monitores”. No intuito de estreitar relações e a superação de questões burocráticas, foram convidados técnicos em educação da FUNAI, entre outros. Referente à participação do CTPCC, considerava-se uma oportunidade para solucionar problemas na execução e no cumprimento das partes no convênio e na realização do curso (SANTOS, 1975, p. 70). Paralelo a essas tratativas burocráticas e atividades, o CTPCC manteve um programa de acompanhamento aos professores-monitores, com a participação de avaliadores externos, como exposto pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos, que relata o início de sua participação nesse programa: O Centro mantém contato permanente com os professores-monitores, orientando-os sobre as etapas de conteúdo programático que devem ser cumpridas a cada mês. Em agosto de 1973, tivemos oportunidade de participar do encerramento do primeiro encontro de monitores Kaingang, realizado em Curitiba, com o objetivo de reestimular o trabalho desses docentes e, em paralelo, contribuir para sua permanente atualização (SANTOS, 1975, p. 68). O trabalho desenvolvido por Silvio Coelho dos Santos incluía entrevista às comunidades kaingang para onde foram enviados os monitores formados para realizarem sua nova função. Nessas entrevistas e deslocamentos, em diferentes comunidades se constatou as dificuldades e os percalços enfrentados pelos monitores bilíngues, tanto junto aos postos locais da FUNAI como à própria comunidade kaingang, que por vezes não compreendia os propósitos da educação escolar bilíngue, conforme o relato: Na maioria dos postos visitados, tivemos oportunidade de verificar que o projeto de educação bilíngüe não estava suficientemente compreendido pelos chefes de postos, demais servidores e particularmente os professores civilizados. O entendimento mais comum era o de que o monitor é mais um burocrata no posto, às ordens dos desígnios do seu chefe. […] As populações aldeadas, em muitos casos, também revelaram não concordar com a atividade do monitor bilíngüe, alegando que “nossas crianças precisam aprender português, Kaingang elas já sabem...” (SANTOS, 1975, p. 68-9). 92 As considerações evidenciam a desconexão entre os propósitos constituídos e implantados através do curso de monitores bilíngues e o entendimento e a necessidade da comunidade local. Interpreta-se o desejo expresso em aprender português como o desejo de dominar uma ferramenta para a inter-relação social, da comunidade indígena para com a sociedade não indígena. Compreende-se, ainda, a percepção de que o ensino do kaingang seja algo próprio da comunidade, e à instituição escolar cabe o que ela representa, ou seja, os elementos que não são próprios da comunidade kaingang, mas da sociedade e das instituições não indígenas. Nesta questão também há que se considerar que a proposta da educação bilíngue é uma proposta elaborada e implantada pela sociedade não indígena à comunidade kaingang. As percepções sobre o bilinguismo, no entendimento de que se trata do domínio de duas línguas, não de um processo de transição, serão abordadas posteriormente, no item questões a refletir. Em 1975, firmou-se novo convênio, entre o presidente da FUNAI e o presidente da IECLB, que propiciou a instalação de novo curso junto ao CTPCC para a formação de monitoria agrícola indígena. Para tanto, ressaltou-se que o CTPCC era o primeiro instituto a formar monitores indígenas em educação bilíngue no país, o que respaldou a nova oferta (ZWETSCH, 1993, p. 261). Talvez em consideração às novas atribuições e ao convênio do CTPCC, em 1976 suas instalações foram transferidas para o Setor Gamelinhas, ainda na TI Guarita, porém na área de abrangência do município de Tenente Portela/RS. A transferência não interferiu no propósito do CTPCC de formação de monitores indígenas (ROSA, 2002, p. 55). A divulgação da realização do curso de monitoria agrícola ocorreu em 19 de abril de 1977, porém sua efetivação ocorreu somente em 1979. Ainda em 1977, outro feito, não diretamente ligado ao CTPCC, mas que envolvia o projeto da Missão Indígena na TI Guarita, foi a autorização da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, em 13 de maio, para o funcionamento da Escola de 1º Grau Incompleto Marechal Rondon, sendo considerada a primeira escola indígena reconhecida no país (ZWETSCH, 1993, p. 266). Referente às atividades de formação de monitores bilíngues, após a formatura da segunda turma de monitores bilíngues em 1975, persistem, em 1977, as dificuldades no exercício e funções propostas aos monitores bilíngues. Conforme avaliação de Dulci Matte (ZWETSCH, 1993, p. 264), que fora integrante do corpo docente do CTPCC, são apontadas as seguintes questões como causadoras das dificuldades enfrentas pelos monitores bilíngues: 93 - o ensino ministrado foi sempre distante da realidade objetiva das comunidades aonde os alunos e alunas iriam depois trabalhar; - o ensino se deu num ambiente estranho com hábitos diferentes dos hábitos indígenas (internato, RZ); - ou seja, a escola não respeitou a diferença cultural. As questões apresentadas por Matte evidenciam questões semelhantes às considerações avaliadas na primeira turma para a atuação nas diferentes comunidades kaingang, conforme relatado por Santos (1975). Ao considerar as questões apontadas por Matte, Zwetsch (1993, p. 264) afirma que os monitores bilíngues estavam “desajustados no seu meio”, que a proposta desenvolvida no CTPCC “deculturou os alunos e alunas, quando ‘era necessário fortalecer a sua cultura, a sua identidade índia’. Por outras palavras, a escola foi ‘ocidentalizante’”. Figura 4: Prédio do CTPCC, no Setor Km 10 / Guarita Fonte: ROSA, 2002, p. 93 . Conforme estudo sobre a instalação da Missão Indígena realizado por Carlos da Rosa (2002), a própria estrutura da missão, estendendo a mesma avaliação ao CTPCC, era considerada como invasora e, ao mesmo tempo, atendia parcialmente aos interesses da comunidade kaingang. Conforme essa interpretação, parte da comunidade kaingang não se envolvia com as atividades e outros acontecimentos decorrentes, optando por uma postura de observação e desconfiança (ROSA, 2002, p. 59-60). O CTPCC, como ficou demonstrado até o momento, se constituiu e realizou diferentes propósitos num misto de euforia e contradições. Euforia pelo inusitado, pelo pioneirismo na formação em educação bilíngue; contradições nos diferentes interesses das partes envolvidas. Assim, no decurso de suas atividades, o CTPCC estabeleceu um marco na história dos povos indígenas, do indigenismo e no âmbito das missões religiosas. 94 No início da década de 1980, o CTPCC encerra suas atividades. Entre as diferentes razões, além das diferenças de interesses e propósitos das instituições envolvidas, evidenciouse uma questão de ordem burocrática e econômica. Em junho de 1981, o CTPCC teve suas atividades encerradas com o afastamento expontâneo [sic] da Missão. […] Na verdade, além de discordâncias filosóficas, havia problemas bem concretos. Por exemplo, os do orçamento. Como de praxe, a FUNAI não cumpriu com sua obrigação, deixando a descoberto a maior parte dos Cr$ 15 milhões previstos para 1981 (ZWETSCH, 1993, p. 273-4). Encerrou-se, também, uma fase da ação da IECLB junto às comunidades indígenas. A atuação missionária da IECLB persiste junto às comunidades kaingang, sobretudo na TI Guarita até o presente momento. O encerramento das atividades do CTPCC e as experiências na Missão Indígena estimularam uma nova abordagem e maneira de atuação, pautadas pelo respeito à cultura e ao protagonismo indígena, críticas às propostas de aniquilamento, tutela ou catequização das comunidades indígenas, e pela parceria e diálogo com outras entidades indígenas e indigenistas. O CTPCC foi repassado à administração da FUNAI, sendo mais tarde denominado Escola Indígena de 1º Grau Incompleto Clara Camarão.62 A escola passou a atender “as crianças que moravam na reserva em nível de pré-escola até a 4ª série” (PROFESSORES, 2006, p. 282). 2.3.3 Escola Marechal Rondon e a transição O encerramento das atividades de formação de monitores bilíngues no CTPCC, para além das discordâncias apontadas, também pode ser interpretado como consequência de uma nova postura que visava “proporcionar condições para que o próprio índio promova o seu desenvolvimento dirigindo a sua história”, como definido no Encontro sobre o Índio e a Missão, realizado na Missão Guarita em 1975 (COMIN, 1992, p. 5). A mesma disposição foi reafirmada no segundo encontro, realizado em 1976, enfatizando que era necessário elaborar uma versão da história a partir e pelo prisma das comunidades indígenas para, então, elaborar alternativas à realidade de alienação e marginalização imposta às comunidades indígenas pela sociedade capitalista (COMIN, 1992, p. 8). O período que antecedeu o encerramento do convênio e atividades do CTPCC por vezes apresentava posicionamentos contraditórios, pois, ao mesmo tempo em que os 62 Atualmente a escola é denominada E.E.I.E.F. Gomercindo Jete Tenh Ribeiro. 95 encontros sobre o Índio e a Missão indicavam para uma postura de promoção da autodeterminação e autonomia dos povos indígenas, ainda é perceptível uma postura tradicional e colonialista, como a manifestação do P. Güttinger de que a exploração agrícola constituía a melhor forma de defesa da terra demarcada à comunidade da TI Guarita (DECKMANN, 1985, p. 262). Conforme Zwestch (1993, p. 275-6), o período posterior aos encontros seguiu com reuniões e reflexões na Missão Guarita, que debatia sobre a modalidade da ação missionária indigenista: “assistência ou acompanhamento, integração ou autodeterminação, evangelização ou libertação. Assim, um tanto complexos, procurava-se definir melhor a contribuição que a Missão tinha a oferecer aos Kaingáng”. Tratou-se de um período de indefinições e dúvidas, mas que possibilitou o encaminhamento para “acertar o passo junto à comunidade indígena no sentido de uma ação mais direta e participativa” (GAELZER, 1998, p. 37). Em novembro de 1981, é elaborado um documento em que se apresentaram as “linhas de trabalho”, a saber, que se persistiria na ação missionária indigenista junto à comunidade kaingang da TI Guarita. Para Zwetsch (1993, p. 275), trata-se de um documento importante, pois apresenta a “mudança de orientação da Missão Guarita”; contudo, pondera: “Creio que esta mudança não ocorreu abruptamente nem por acaso. Houve toda uma discussão crítica na IECLB sobre a Missão entre índios que talvez remonte aos dois Encontros de Guarita”. O referido documento é transcrito e analisado por Deckmann (1990, p. 131-6), que conclui: Este Documento registra a intenção teórica e ideológica de missão entre índios e a sua manifestação prática por um setor específico da IECLB, o CEAI63 que consciente de suas limitações tencionava, já em novembro de 1981, ampliar a idéia de missão através de um posicionamento mais claro e ativo do trabalho da IECLB entre os índios (DECKMANN, 1990, p. 136). Pode-se afirmar que o documento contribuiu para a criação do Conselho de Missão entre Índios (COMIN), em 1982, pelo Conselho Diretor da IECLB. 64 Mas, sobretudo, 63 CEAI – Centro Educacional e Assistência Educacional. O CEAI foi criado em 1977 como departamento da Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura (ISAEC), sediado em São Leopoldo/RS, e órgão jurídico vinculado à IECLB. Através do CEAI/ISAEC, a “Missão [Guarita poderia] contratar funcionários, fazer empréstimos, receber doações, elaborar projetos e apresentá-los a órgãos públicos ou privados, além de reduzir custos, pois a ISAEC era uma entidade religiosa sem fins lucrativos, estando isenta de uma série de impostos” (ZWESTCH, 1993, p. 268). Na atualidade, o COMIN também segue vinculado à ISAEC como Departamento de Assuntos Indígenas e estabeleceu um convênio de cooperação com a IECLB em virtude da desvinculação jurídico-administrativa da ISAEC junto à IECLB. 64 O Conselho Diretor da IECLB era a instância superior, inferior somente ao Concílio Geral da IECLB, que determinava as orientações administrativas e confessionais da IECLB. Atualmente é denominado como Conselho da Igreja, devido à reorganização administrativa eclesiástica implantada a partir de 1997, mas mantém as mesmas atribuições. Segundo Souza, (2001, p. 10) “a criação do COMIN é o resultado de um largo processo de maturação intelectual dentro da IECLB”, sendo que “permitiu dar uma unidade administrativa, 96 estabeleceu orientações e percepções que interferiram na ação missionária indigenista na TI Guarita, que se reestruturava na época (GAELZER, 1998, p. 110), e continuava sua ação missionária, entre outras atividades, através da educação escolar. Destacam-se, a seguir, as definições correspondentes à educação escolar que se desenvolveu na Escola Marechal Rondon, que seguiu sob a orientação e administração da Missão Guarita. 1. Procuramos adotar uma pedagogia, didática e planos de curso voltados à realidade indígena; 2. Através do ensino as crianças tomam (entre outros) conhecimento das técnicas aproveitadas pela sociedade envolvente, assim dando força ao índio para a convivência com os não índios; 3. Embora às vezes seja necessário corrigir costumes e tradições que diretamente contradizem a vontade de Deus, o ensino procura estar voltado à educação indígena como acontece nas suas casas para não causar conflitos; 4. O ensino não serve para ajudar na integração do índio, mas educa para a vida dentro duma área indígena, e ao mesmo tempo para a convivência com o resto da sociedade brasileira. 5. Por isso procuramos dentro do possível (a escola é reconhecida pelo Estado e conseqüentemente tem que cumprir exigências quanto ao currículo, etc) tornar a escola mais profissionalizante na forma de cursos agrícolas e cursos de artes domésticas integrados nos dois últimos anos; 6. A alfabetização em língua Kaingang é imprescindível. As orientações apresentam uma postura de rompimento com a proposta de integração da comunidade indígena à sociedade brasileira. Ressalta-se, porém, que a disposição não propõe o isolamento e o afastamento da sociedade indígena. Pelo contrário, enfatiza a proposição da “convivência” com a sociedade não indígena. As proposições também esboçam a preocupação com a valorização da realidade e cultura kaingang ao estabelecer que “o ensino procura estar voltado à educação indígena”, o que demonstra a percepção e a conceituação distinta entre a educação escolar indígena e a educação indígena, esta que ocorre junto às famílias kaingang, e aquela, no âmbito da escola. Agrega-se a essa disposição a afirmação contundente de que “a alfabetização em língua kaingang é imprescindível”. Avalia-se que essa postura demonstre o rompimento com a proposta de eliminar o uso da língua kaingang durante o processo da escolarização. De forma análoga ao processo de transição que ocorria na Missão Guarita, a comunidade kaingang também enfrentava mudanças e conflitos internos, decorrentes dos arrendamentos e exploração madeireira na TI Guarita. Em 1982, ocorreu a divisão administrativa da TI Guarita, com dois postos administrativos e independentes. A divisão política e teológica para as diferentes frentes de atuação indigenista da IECLB, seguindo os princípios da solidariedade, da promessa de vida abundante e de busca da libertação por meio da verdade, que só possuem sentido para os índios com o maior apoio possível da sociedade envolvente”. 97 provocou um primeiro conflito entre dois grupos kaingang em janeiro de 1983. A FUNAI considerou os conflitos como disputa pelo cacicado entre dois grupos, o que justificou a divisão da TI Guarita (DECKMANN, 1990, p. 141), porém a divisão acirrou os ânimos entre os grupos e ocorreu um confronto, que o professor Guilherme Cristão (2001, p. 43) assim relata: Depois que o cacique Domingos Ribeiro fez a divisa da sua própria reserva com a comunidade, o povo do cacique Ivo Ribeiro se rebelou contra o povo do Domingos. E pegaram suas armas e se foram em direção ao povo de Domingos. Chegando na aldeia, disseram: - Faz muito tempo que vocês estão nos provocando, e começaram a se atirar! bam! bam! O povo do cacique Ivo correu de volta, mas o povo do cacique Domingos começo a acertar seus inimigos. O primeiro que foi morto foi Sérgio Bento, o segundo, José Leopoldino (Zezinho), o terceiro, Ramon Bento, o quarto, Sebastião Carvalho e o quinto, Vicente Fongue (Péni). Esses são os cinco índios que morreram defendendo seu cacique e a sua terra. Mesmo com as mortes, ainda continuou tendo dois caciques na reserva do Guarita. Neste conflito, quem perdeu foi o povo de São João do Irapuá, e quem ganhou foi o povo que tinha saído para o CTPCC e botaram o nome daquela aldeia de “Guarita”.65 Esse fato aconteceu no dia 03 de junho de 1982. O ocorrido teve repercussão na imprensa e provocou manifestações de diferentes setores da sociedade, inclusive religiosos, como atestam Deckmann (1990, p. 142-3) e Simonian (1993, p. 35-53). Conforme Zwetsch (1993, p. 284), a equipe da Missão Guarita “já alertara que a raiz do conflito eram os arrendamentos e a extração ilegal da madeira da área, isto é, interesses econômicos muito concretos”. Após os conflitos entre os dois grupos, a própria Missão Guarita também foi pressionada pelo cacique Ivo Ribeiro, do Posto de São João do Irapuá, onde a Missão Guarita estava vinculada a partir da divisão da área. Conforme Deckmann (1990, p. 143), o cacique Ivo Ribeiro ameaçou extinguir a minicooperativa administrada pela Missão da IECLB; contudo, as ameaças não se concretizaram imediatamente. Enquanto isso, os responsáveis pela escola estavam preocupados em “tornar a escola realmente útil e adaptada à realidade indígena”, bem como estavam preocupados com o “aproveitamento escolar dos alunos índios da Escola Marechal Rondon” (DECKMANN, 1990, p. 144-5). No período letivo de 1983, ocorreu um alto índice de reprovação e 65 Atualmente a localidade é denominada como “Sede” ou “Km 10” [por se encontrar à distância de 10 km de Tenente Portela]. É nessa localidade que reside o atual cacique kaingang, Valdonês Joaquim, por isso a localidade também é conhecida como Sede do Cacicado. Guilherme Cristão é professor kaingang, na época em que elaborou o texto era docente na E.E.I.E.F. Rosalino Claudino, Setor Bananeira (Redentora/RS). 98 desistências, que foram justificados como consequência da alteração do plano curricular em 1982 e do longo período de chuva durante o inverno de 1983. Para além das preocupações no âmbito da escola em 1983, a Missão Guarita também teve, nesse ano, alterações significativas no quadro de pessoal, sobretudo pela “carência de recursos humanos preparados” (GAELZER, 1998, p. 39). A saída do P. Ornull Steen, que retornou com a família para a Noruega, simbolizou a “nacionalização” da coordenação do CEAI e da Missão Guarita, que fora conduzida até aquele momento prioritariamente por pastores advindos da Europa. De forma provisória, o engenheiro agrônomo Sighard Hermany assume a direção do CEAI (GAELZER, 1998, p. 40-1). Também na Escola Marechal Rondon há mudança na direção. Na escola estavam matriculadas 108 crianças indígenas, e a professora Dulce L. Grade assume a direção (ZWESTCH, 1993, p. 286). No ano seguinte, a Missão Guarita recebe novos integrantes: 1984 traz muitas novidades para a Missão. O Conselho Diretor da IECLB indicara, em dezembro de 1983, o Pastor colaborador Lúcio Schwingel para assumir a vaga deixada por Steen. Recém formado, Schwingel e a esposa Ingret Kaminski chegam à Missão Guarita em março. Pouco antes, chegara à Guarita a profª catequista Dóris Kieslich, enquanto a enfermaria passou a ser administrada por Luiza Cordelia Soalheiro. A renovação vai ganhando um contorno mais nacional, uma vez que todos os novos contratados são brasileiros. É como se a Igreja estivesse sinalizando que a tão decantada prioridade dada à questão indígena, que vinha desde 1979, ia ser mesmo assumida. (ZWETSCH, 1993, p. 288) A ação missionária indigenista na TI Guarita sofreu, num espaço temporal reduzido, cerca de uma década, alterações substanciais, como evidenciados acima. A ação missionária indigenista, contudo, não se desvinculou da educação escolar e elegeu, em 1984, o trabalho com a Escola Marechal Rondon como prioridade, “pois nela se poderia integrar todas as demais atividades da missão (saúde, agricultura, comunidade eclesiástica)” (ZWETSCH, 1993, p. 291). A eleição dessa prioridade implicava aumentar o número de professores na escola. Concomitantemente, propôs-se aumentar o apoio à comunidade indígena através de ações e atividades junto às paróquias próximas à TI Guarita, bem como possibilitar o estágio de um estudante da Faculdade de Teologia da EST (Idem). As propostas elaboradas demonstraram a importância e a convicção que o processo educativo teve para a ação missionária indigenista, bem como a “preocupação em ampliar a preocupação no que se refere ao índio e sua situação” (GAELZER, 1998, p. 42). Cabe salientar que, apesar das expectativas e renovações que envolveram a Missão Guarita, a equipe era envolta pelo clima de tensão que acometia toda a comunidade kaingang, 99 devido à proposição do término dos arrendamentos das terras indígenas, previsto para 31 de maio de 1984. Associado a essa situação, ainda persistia a intenção de se desestabilizar os trabalhos e trâmites organizados pela cooperativa da Missão Guarita. As ameaças de retirada da equipe da Missão Guarita, deferidas por lideranças kaingang do Posto Indígena São João do Irapuá, ocorreram em duas oportunidades (DECKMANN, 1990, p. 146). E, em decorrência das contestações e posicionamentos contrários às determinações e atos do cacique Ivo Ribeiro, que, auxiliado por funcionários da FUNAI, identificou que os mesmos provinham dos kaingang vinculados à Missão Guarita, ocorreu o rompimento das relações entre a liderança kaingang e a equipe da Missão (DECKMANN, 1990, p. 147). A situação se agravou no final de 1984, quando o cacique Ivo Ribeiro assinou um documento para a construção da rodovia estadual RS 330, cujo traçado impactava a comunidade kaingang, devido à previsão de trechos construídos no interior da TI Guarita. A equipe da Missão Guarita se manifestou contrária à proposta, alegando que o impacto da obra representava prejuízos culturais e econômicos para a comunidade kaingang. Na oportunidade, a equipe da Missão Guarita também denunciou os arrendamentos clandestinos que ocorriam na área. As manifestações desagradaram as lideranças kaingang e, também, políticos, comerciantes e granjeiros da região, que se aliaram ao cacique, “interessados em livrar-se dos missionários e obreiros” (DECKMANN, 1990, p. 147). A retirada da equipe da Missão Guarita, para ‘livra-se dos missionários e obreiros’, ocorreu em 1985, fato que determinou uma transição mais profunda na ação missionária indigenista da IECLB, agora constituída como COMIN. 2.3.4 A retirada da Missão Guarita: 1985 As desavenças entre a equipe da Missão Guarita e a liderança do cacique Ivo Ribeiro culminaram na retenção de toda a equipe em 19 de março de 1985, sendo impedida a comunicação da equipe com outras pessoas. A alegação inicial para a retenção foi de roubo na troca de artesanato indígena por roupas e gêneros alimentícios, conhecido como “brique da Missão”. As lideranças declararam à equipe da Missão Guarita: “Vocês estão presos e os bens embargados”. A situação era tensa, uma vez que os membros da equipe residiam na Missão com seus familiares (ZWETSCH, 1993, p. 292). Numa tentativa de diálogo, o P. Schwingel dirigiu-se ao capitão Raul da Rosa, que afirmou: “A Missão já me deu o que tinha para dar”, 100 propondo que era momento da Missão se retirar dali.66 A detenção persiste até o dia 21 de março, quando ocorre uma reunião entre lideranças kaingang, representantes da FUNAI, equipe da Missão Guarita e representante da IECLB. Cabe salientar que, na madrugada de 19 de março, o P. Schwingel consegue sair do local da retenção e se dirige a Miraguaí e Tenente Portela para estabelecer contatos e solicitar apoio na resolução da situação.67 Na reunião de 21 de março, apresentou-se um documento da liderança kaingang que exigia a retirada imediata da Missão Guarita, sendo informado que a FUNAI assumiria a responsabilidade das atividades e administração das instalações e equipamentos da Missão Guarita. A retirada da equipe da Missão Guarita ocorre no dia seguinte à reunião, 22 de março.68 Sobre a participação da FUNAI no evento, Zwestch (1993, p. 295) afirma que “uma análise isenta do texto não pode deixar de perceber nele a mão de funcionários da FUNAI, haja visto o cuidado com que se preserva a FUNAI de qualquer tipo de ônus por causa da expulsão”. A IECLB também manifestou desconformidade com a atitude da FUNAI no episódio da retirada, quando, em 1986, afirma: A FUNAI (órgão do Ministério do Interior que tem a incumbência de “defender e proteger o silvícola”) lamentavelmente assume atitudes prejudiciais à causa indígena. Um exemplo disso se revelou no contexto da expulsão da missão da IECLB do Toldo Guarita/RS por uma liderança indígena corrupta e aliada aos interesses de produtores agrícolas brancos. A FUNAI, com a qual a IECLB tinha um convênio, se omitiu de assumir a função que lhe competia na defesa do povo indígena prejudicado com a expulsão (COMIN, 1992, p. 37-8). A repercussão da retirada da Missão Guarita foi interpretada por professores kaingang como encerramento do período de atuação missionária indigenista, entendida como ato de expulsão e confisco de bens. O Projeto Missionário na aldeia Missão foi desativado em 1985, com a interferência do cacique Ivo Ribeiro que resolveu expulsar os pastores, funcionários e demais trabalhadores do local e acabar com o trabalho de mais de vinte anos, confiscando as estruturas e bens para si (PROFESSORES, 2006, p. 280). 66 Conforme descrição do relatório sobre a expulsão do Centro Educacional e Assistencial Indígena – CEAI da Área Indígena Guarita – P. I. São João do Irapuá, out. 1985. (Arquivo CPPQI/COMIN: Caixa Aa1/4.2 – Pasta Documentos referentes à expulsão do CEAI). 67 No presente momento, apresentar-se-á de forma reduzida os acontecimentos ocorridos durante a retenção e retirada da Missão Guarita. Para aprofundamento indica-se a leitura do referido “Relatório sobre a expulsão...” e também a coletânea de documentos que consta na publicação “A máscara índia de Deus” (COMIN, 1992), bem como as análises de Zwestch (1993, p. 292-303) e Deckmann (1990, p. 145-164). Destaque para o texto de Deckmann, que transcreve na íntegra ou parcialmente documentos, cartas ou artigos jornalísticos. 68 A retirada da equipe da Missão Guarita repercutiu no meio jornalístico. Inclusive uma equipe de televisão e jornal da RBS Comunicações também foi detida por cinco horas na sede administrativa da FUNAI, tendo “sofrido intimidações e agressões dos indígenas liderados por Ivo Sales” (ZWESTCH, 1993, p. 294). 101 O fato evidenciado posteriormente pelos professores kaingang, demonstra a desaprovação ou a desconformidade da comunidade kaingang para com a atitude de suas lideranças. Segundo Deckmann (1990, p. 163), na época da retirada de equipe da Missão, foi explicitada a desconformidade com a atitude da liderança kaingang, em virtude da impossibilidade de acessar a “assistência médica, educacional e agrícola da Missão”, como publicado em reportagem.69 Decorrente à retirada da equipe da IECLB, a Escola de 1º Grau Incompleto Marechal Rondon, na qual, em março de 1985, estavam matriculadas 108 crianças, sendo atendida por três professoras não índias e dois monitores bilíngues kaingang, foi transferida provisoriamente à gestão da FUNAI. Em 1986, iniciaram-se os trâmites na 21ª Delegacia de Ensino (Três Passos/RS) “para a transição de escola particular para escola pública estadual, sendo que o processo de transição perdurou cerca de três anos; enquanto isso, a escola Mal Rondon era atendida por professor da FUNAI, por professores contratados pelo município de Redentora e uma professora cedida pelo estado do RS” (SCHWINGEL, 2011). A retirada da Missão Guarita foi seguida de diversas reuniões, seminários, planejamentos e debates sobre a continuidade e viabilidade da ação missionária indigenista na TI Guarita.70 Cabe destacar o documento resultante do II Seminário do Conselho de Missão entre Índios (COMIN), realizado na data de 22-25 de junho de 1985, em Panambi/RS. O documento expressa que a retirada não representou a decisão geral da comunidade kaingang, afirmando que “a Missão entre os Kaingang vai continuar, acompanhando os acontecimentos na área, buscando o convívio com famílias indígenas, apoiando-as nos seus problemas” (COMIN, 1992, p. 20). O documento também expressa a disposição em estender a ação missionária indigenista para outras comunidades indígenas da região sul. Avaliações posteriores por agentes externos à ação missionária indigenista indicam a importância do evento da retirada da Missão Guarita no estabelecimento e consolidação de modalidade distante da ação missionária indigenista em diferentes perspectivas. Para Deckmann (1985, p. 250-1), o episódio possibilitou o debate da reestruturação interna da missão entre índios, como organismo próprio, porém ainda vinculado à IECLB. Relacionada com o episódio da expulsão dos obreiros da Missão da reserva em Guarita, está também uma crise estrutural e interna do COMIN. A consciência desse momento de redescoberta, de redefinição de objetivos e de procura por forma de agilização e mobilização dos membros das 69 70 Deckmann cita entrevista do Pe. Guido Taffarel, publicada no jornal Zero Hora em 01 jun. 1985, p. 32. Alguns documentos e registros desses eventos estão reunidos na publicação “A máscara índia de Deus” (COMIN, 1992, p. 17-26). 102 comunidades em torno da causa indígena tem causado confrontos com a Direção da IECLB e com a própria Secretaria Geral, no tocante a propostas de independentização e montagem de estrutura própria, que possibilitariam autonomia de ação sem rompimento com as orientações gerais emanadas da Direção da IECLB. O evento ocorrido em 1985, além da reorganização institucional, também possibilitou a alteração na abrangência geográfica da ação missionária indigenista, como explicita Armani (2001, p. 49): “A expulsão da IECLB da TI Guarita em 1985, foi um dos fatores que levaram ‘a transformação da antiga noção de missão geograficamente localizada, numa diretriz mais itinerante de ação missionária’”. A diretriz itinerante se evidenciou pela promoção de atividades em educação e saúde noutras comunidades indígenas, possibilitando “novos contatos e agregando novos parceiros ao processo” (SOUZA, 2001, p. 19). Ou seja, a ação missionária não se restringiu à ação em uma localidade, sendo que a participação de pessoas de outras comunidades kaingang assistidas ocorria tão somente se essas se deslocassem até o local da prestação de serviço, como ocorrido no CTPCC, onde houve a participação de kaingang e guarani de diversas comunidades da região sul que se reuniram na TI Guarita. A disposição a partir de então é o deslocamento dos obreiros do COMIN às comunidades indígenas. Entende-se que concomitantemente à diretriz itinerante outra se consolidou, a promoção e o acompanhamento à autonomia e autodeterminação das comunidades indígenas na região sul. Para Gaelzer (1998, p. 110), o assumir e promover a autonomia das comunidades indígenas se consolidou a partir da saída dos obreiros da Missão Guarita e das reflexões e reestruturação do COMIN, que se seguiram. 2.4 A AMPLIAÇÃO DAS AÇÕES DA MISSÃO GUARITA/COMIN A partir da saída da equipe da Missão da TI Guarita se estabeleceu um divisor temporal na ação missionária indigenista da IECLB e COMIN junto ao povo kaingang. O primeiro período ocorreu pela ação missionária indigenista concentrada em dois setores da TI Guarita. Com a retirada da equipe da Missão Guarita pelas lideranças kaingang, foram ampliadas as ações, tanto na perspectiva geográfica como na perspectiva institucional. No período anterior, debatia-se sobre a integração das comunidades indígenas à sociedade brasileira; após o evento, o tema foi pautado a partir da autonomia indígena. Assim, quer se tratar a seguir dos diferentes períodos que constituíram a época posterior à retirada da Missão Guarita, então identificada como COMIN, e a ampliação de suas ações a partir da TI Guarita. 103 Concentrar-se-á nas informações relevantes ao foco da dissertação, as questões pertinentes à atuação do COMIN em prol da educação escolar indígena. 2.4.1 Consolidação na ampliação das ações missionárias indigenistas Institucionalmente, a continuidade da ação missionária indigenista na TI Guarita, estendendo-se às outras comunidades kaingang, foi garantida a partir de proposta aprovada no Distrito Eclesiástico Yucumã,71 na modalidade de um pastorado em tempo integral, o qual o P. Lúcio Schwingel assumiria. A proposta também foi encaminhada pelo II Seminário do COMIN (COMIN, 1992, p. 20; ZWETSCH, 1993, p. 298-300). A continuidade da ação missionária indigenista ainda estaria identificada com o antigo modelo de missão, sobretudo junto à comunidade kaingang da TI Guarita. A situação foi contornada com a disposição em estabelecer uma relação de aproximação, diálogo e apoio à unidade da comunidade indígena (ZWETSCH, 1993, p. 301, 303). De forma análoga, a mobilização indígena também se apercebia dos interesses e propósitos que lhes eram incutidos. Neste sentido, é importante constatar a avaliação que a professora Andila Belfort faz sobre a educação escolar destinada às comunidades indígenas para o mesmo período dos acontecimentos na Missão Guarita. Em 1985, a educação escolar ofertada para as nossas crianças, sem dúvida nenhuma, não era a melhor para as nossas crianças, estava incutindo neles valores que desmereciam a nossa cultura, e estava sendo danosa para as nossas comunidades. O nosso trabalho de alfabetizar as crianças e introduzir o português oral estaria facilitando o trabalho de aculturação das nossas crianças pelos professores “fóg”. Foi preciso trabalharmos mais de dez anos para que percebêssemos que estávamos a serviço da desintegração cultural do nosso povo. (BELFORT, 2005, p. 15) O destaque da avaliação sobre a educação escolar pode ser corroborado pela informação de que a realidade enfrentada pela comunidade kaingang da TI Guarita não teve a sua situação alterada com a retirada da Missão Guarita. Deckmann (1985, p. 76) relata que a FUNAI dirige a TI Guarita e “explora a agricultura orientada e mecanizada do trigo e da soja, tendo como agricultores assalariados os índios do Posto. Explora também a madeira da área, através da serraria para beneficiamento das madeiras de lei”. Também, persistia entre as famílias indígenas a prática da confecção de artesanato com cipó-imbé ou outros matérias como alternativa pontual de obtenção de renda. 71 O Distrito Eclesiástico era parte das instâncias organizacionais da IECLB, que foi instituído em 1968 e perdurou até o ano de 1997. O Distrito Eclesiástico Yucumã reunia as paróquias afiliadas à IECLB na região de Três Passos/RS. 104 Assim, a exploração dos recursos naturais na TI Guarita, agregada das fontes precárias de renda das famílias indígenas e a persistência das tensões internas da comunidade, contextualizam o fato de que “o cacique Ivo solicitou o retorno do CEAI à área. Com a saída do CEAI, as tensões na comunidade indígena não diminuíram, e isto desgastou a liderança de Ivo Sales” (ZWETSCH, 1993, p. 303). Porém o cacique Ivo Ribeiro não obteve êxito ao seu pleito, pois a ação missionária indigenista passou a ser pautada por parâmetros distintos após a retirada da Missão Guarita. A tomada de consciência da realidade, por parte da comunidade indígena, na qual estavam inseridos, como demonstrado na análise da professora Andila Belfort, somada à disposição de consolidar a ação missionária indigenista, são evidenciadas em 1987, quando da realização do IV Seminário do COMIN. Nesse seminário, foi enfatizada a aproximação da ação missionária indigenista às propostas do movimento indígena, com a utilização do material produzido pela União das Nações Indígenas (UNI).72 Também foi enfatizada a acolhida e receptividade por parte dos indígenas e a menor ingerência da FUNAI nas atividades como resultantes da nova postura. A construção de uma escola no Setor Portela pelos próprios kaingang foi considerada como sinal da autonomia indígena (ZWETSCH, 1993, p. 303). Na intenção do fortalecimento da mobilização em promoção da autonomia e organização indígenas, investiu-se na participação de indígenas em “encontros regulares das entidades indigenistas do sul e da articulação de uma organização dos indígenas do sul do país” a partir de 1987 (ZWETSCH, 1993, p. 307). No IV Seminário do COMIN, realizado em São Leopoldo/RS, na data de 02-07 jul. de 1987, as ações em favor da autonomia indígena, enfatizadas na continuidade da ação missionária indigenista junto aos kaingang de Guarita e outras áreas, foram consideradas como um “trabalho missionário despojado, consequente e evangélico. […] Tudo isto nos fez ver que, o drama e a morte dos Povos Indígenas nos exigiu um envolvimento novo, através do qual o desafio é andar junto com os Povos Indígenas e não resolver os problemas por eles” (COMIN, 1992, p. 22). Conforme Schwingel (1987, p.2), as comunidades indígenas necessitam de aliados na garantia da organização própria e vida digna, 72 Entidade indígena, de caráter nacional, criada em 1980, que “desempenhou com eficácia o papel de referência simbólica da indianidade genérica na conjuntura de democratização pela qual passou a sociedade brasileira nesse período, até o processo de elaboração da nova Constituição Federal (1986/88)” (Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/iniciativas-indigenas/organizacoes-indigenas/historia> Acesso em: 09 nov. 2011). 105 afirmando que “a partir de manifestações dos próprios índios, somos convidados e aceitos para participar da sua caminhada, lidas, anseios e esperanças”. O IV Seminário também definiu as “Linhas Comuns de Ação” entre os povos indígenas, tanto junto aos kaingang como em outras áreas de atuação missionária indigenista do COMIN, assim apresentadas: Lutar imediatamente pelo direito à vida (dignidade, terra, cultura, saúde, educação) dos Povos Indígenas no sentido de sua autodeterminação. Favorecer a organização autônoma dos Povos Indígenas. Contribuir para a aliança destes povos com os demais setores oprimidos da sociedade brasileira. (COMIN, 1992, p. 23) A ênfase da ação missionária indigenista em prol da autodeterminação e autonomia dos povos indígenas ainda esbarrava na situação e nos conflitos internos da comunidade kaingang, como o ocorrido no segundo semestre de 1988 na TI Guarita, em consequência do arrendamento ilegal das terras e da exploração madeireira. Na oportunidade, o cacique Ivo Ribeiro e outras lideranças foram acusadas de “se apropriarem do dinheiro destes negócios e nunca prestarem constas à comunidade” (ZWETSCH, 1993, p. 307). Concomitante à preocupação com os conflitos e situações análogas, o ano de 1988 também representava os 20 anos da assinatura do convênio entre a IECLB e a FUNAI, que possibilitou a instalação do CTPCC. De forma geral, o convênio caracterizou a participação da ação missionária indigenista da IECLB na política indigenista oficial. Houve, porém, posturas críticas, como destacado por Zwetsch (1993, p. 397): “Chamo a atenção para o papel crítico exercido por outra educadora, Dulci Matte, vinculada à IECLB, que colocou questões fundamentais quanto à proposta educativa levada a cabo pelo Centro Educacional e Assistencial Indígena – CEAI, em Guarita”. Assim, reconhece-se que o período de 1968-1988 da ação missionária indigenista provocou impactos na comunidade kaingang da região sul do Brasil, sobretudo na TI Guarita, onde esteve instalada. É interessante observar que todo este imenso esforço teve um saldo ambíguo passados mais de 20 anos, período suficiente para uma avalição geral. Lúcio Schwingel e Ingret Kaminski, recentemente, escreveram que a Missão Guarita deixou marcas profundas entre os Kaingang, especialmente a formação de três turmas de monitores bilíngues e a criação de uma comunidade eclesial com características confessionais luteranas. Mas tal influência acarretou um problema grave que Schwingel já apresentara em fins de 1988: “o pior de tudo será romper com o tradicional paternalismo que a gente encarnou”. Paternalismo não combina com autonomia. Daí os conflitos que estouraram com frequência na Missão Guarita (ZWETSCH, 1993, p. 398). 106 A avaliação evidencia as contradições experimentadas no pioneirismo da formação de monitores bilíngues, mas também as relações paternalistas estimuladas e promovidas pela sociedade não indígena e pela política indigenista oficial. Recorda-se que, nesse período, a comunidade indígena ainda era tutelada pelo governo federal. A cidadania plena foi alcançada tão somente na promulgação da Constituição Federal em 1988 (CF 88), devido à mobilização dos povos indígenas e setores populares. A ação missionária indigenista do COMIN foi influenciado pelo movimento indígena, que se mobilizou no reconhecimento de sua autonomia e autodeterminação. A ação do COMIN junto aos kaingang também se estabeleceu em prol da autonomia dos povos indígenas, proporcionando “um novo rosto à presença luterana entre os Kaingang, mas mesmo assim uma presença que se sabe aberta às perguntas que a própria prática vai levantando” (ZWETSCH, 1993, p. 311-2). A promulgação da nova Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, dedicou o capítulo VIII, composto pelos artigos 231 e 232, para assegurar o reconhecimento da cidadania das pessoas indígenas, garantindo e reconhecendo o trato diferenciado. 73 Houve, então, a expectativa de mudanças iminentes, como se constata no relato do I Seminário Regional sobre Missão Indígena, realizado em Panambi/RS em maio de 1989: “Apesar da Nova Constituição ter assegurado os direitos indígenas, constatamos que estes direitos não são respeitados”. O relato do seminário também constatou que perdurava o preconceito à cultura e modo de vida das comunidades indígenas. A situação resultante foram pressões sobre a comunidade indígena, que estimulava a divisão interna, estabelecendo uma situação de insegurança e desconfiança, que dificultava a organização autônoma indígena (COMIN, 1992, p. 25). Fato verificado pela denúncia de que na educação escolar indígena “há falta de incentivos aos professores indígenas, professores índios não são contratados e em seu lugar atuam professores não indígenas, sem o preparo necessário para assumirem esta tarefa” (Idem). Ou seja, como garantir os novos direitos constitucionais de educação diferenciada e autônoma sem garantia de atuação dos professores indígenas? 73 Ressalta-se que o P. Norberto Schwantes, idealizador e coordenador da Missão Guarita, se elegeu deputado federal suplente, pelo Mato Grosso, legislatura 1987-1991, e assumiu mandato em 01/ago/1988, tornando-se deputado constituinte, porém faleceu em 17/set/1988, antes da promulgação da nova constituinte (Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada /parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_ bioconstituintes?pk=106970> Acesso em: 01 nov 2011). As condições de sua participação, devido à sua enfermidade – câncer generalizado no abdômen e fígado –, são descritas em sua biografia (SCHWANTES, 2008, p. 206-210). 107 Decorrente, ainda, do disposto na CF 88, as atribuições exclusivas da FUNAI foram realocadas nos respectivos ministérios de competência. Assim, a educação escolar indígena passa a ser responsabilidade do Ministério da Educação. O atendimento em saúde passa a ser gestado pelo Ministério da Saúde; e assim por diante. Contudo, a transferência de responsabilidade teve resistência por parte de funcionários daquele órgão, que pretendiam manter a condução das atividades realizadas junto às comunidades indígenas (SOUZA, 2001, p. 23). Cabe, porém, destacar a ação da Secretaria Estadual da Educação, que, em novembro de 1988, em acordo ao estabelecido pela recém-promulgada Constituição Federal, estabeleceu medidas voltadas às escolas indígenas no Rio Grande do Sul. O Secretário da Educação Ruy Carlos Ostermann, assinou ontem um documento que propõe a educação voltada para a preservação da cultura indígena nas 24 escolas frequentadas por filhos de índios caingangues e guarani no Estado. […] “Faz tempo que estamos perdendo a nossa cultura”, disse o índio caingangue, Natalino Góg Crespo, do posto indígena São João do Irapuá, do município de Redentora, que faz parte da Comissão de Educação Indígena. Sua maior preocupação é com as crianças, que não estão mais aprendendo os idiomas caingangues ou guaranis (sic). Acredita no texto que ajudou elaborar e está satisfeito com a SEC por ter iniciado a regulamentação das 24 escolas indígenas do Estado […]. A Comissão de Educação Indígena faz parte do projeto Pluralismo de Idiomas, da Supervisão Técnica da SEC. É uma comissão interdepartamental e interinstitucional, que conta com representantes de vário departamentos da SEC, inclusive delegacias de educação de todo o Estado, e também a participação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Fundação Nacional do Índio (Funai), três professores índios (monitores bilíngües – um guarani e dois caigangues (sic); Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAI), Universidade Federal de Santa Maria, Universidade de Ijuí e Museu Antropológico do Rio Grande do Sul (ZERO HORA, 1988, p. 33). A Comissão de Educação Indígena estava vinculada à Supervisão Técnica da Secretaria de Educação e Cultura, do Estado do Rio Grande do Sul, que, em 1989, através da Portaria ATO/SE – 09398, de 19 de junho 1989,74 nomeia os integrantes da Comissão de Educação Indígena. Entre as pessoas nomeadas, destacam-se: Natalino Góg Crespo, monitor bilígue da Escola Marechal Rondon, TI Guarita; Dulci Matte, ex-integrante do CTPCC e representante da FIDENE-UNIIJUI; e Lúcio Schwingel, obreiro do COMIN. Avalia-se a nomeação do obreiro do COMIN como reconhecimento das iniciativas e atividades promovidas pela IECLB e COMIN junto às comunidades indígenas na área da educação escolar indígena. 74 Cópias da portaria e da reportagem da Zero Hora encontram-se no Arquivo do CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba1: NEI/RS. 108 Conforme Souza (2001, p. 14), como “o conceito educacional missionário da década de 1960 fosse basicamente catequético, ele foi sendo reelaborado pela IECLB a partir da conquista de maturidade intelectual pelos índios escolarizados”. Dando prosseguimento em sua avaliação, sobre a atuação da IECLB e do COMIN na educação escolar indígena, Souza (2001, p. 18-9) conclui que “é possível reconhecer um papel histórico importante dessas iniciativas junto à TI Guarita, porque delas se seguiram críticas que, incorporadas e atualizadas pelo indigenismo da IECLB, possibilitaram uma melhor estruturação do COMIN”. Constata-se nas afirmações de Souza o estabelecimento de uma correlação entre a “maturidade intelectual dos índios” e a “atualização do indigenismo da IECLB e COMIN”. Ou seja, estabelece-se uma maturidade crescente. Inicia-se com a instalação de uma pequena escola indígena em 1961, até a nomeação da Comissão Estadual de Educação Indígena em 1989. Parte de um espaço reduzido, a sala de aula, e alcança o espaço amplo e público. A maturidade é simultânea à comunidade indígena e à ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN. No entanto, ressalta-se que ela tão somente se consolidou até este momento. Há ainda o convite e o desafio para a continuidade “para participar da caminhada, de lidas, anseios e esperanças”. 2.4.2 O COMIN e a consolidação da EEI A década de 1990 se constitui num período de diversas conquistas e realizações, tanto na organização e autonomia das comunidades kaingang da região sul do Brasil, como na ação missionária indigenista do COMIN. As articulações e encaminhamentos estabelecidos a partir da CF 88 possibilitaram a constituição de organizações indígenas, como ONISUL e APBKG; possibilitaram a realização de cursos de formação de magistério indígena; a constituição do Núcleo de Educação Indígena; ingresso de estudantes kaingang no ensino superior; publicação de material didático para as escolas indígenas. No início da década de 1990, estabelece-se uma nova dinâmica na atuação do COMIN e do movimento indígena. A criação das entidades indígenas, como a Associação de Professores Bilíngues Kaingang e Guarani (APBKG) e a Organização das Nações Indígenas do Sul (ONISUL), somadas à participação em eventos e programas de debate e cidadania, como o Seminário Permanente de Educação Popular,75 constituíram-se em espaços da 75 O seminário era realizado bianualmente, no âmbito da FIDENE-UNIJUÍ, e reunia os diferentes movimentos populares com objetivo de formação e capacitação de “educadores populares, o intercâmbio de experiências, o 109 mobilização indígena e no atendimento de demandas específicas no âmbito da educação escolar. A contribuição da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN foram potencializadores na criação das entidades, como a APBKG. Credita-se ao COMIN a […] mobilização dos professores indígenas do Rio Grande de Sul, que resultou na criação da APBKG, que foi instituída em 1992. A APBKG […] teve função determinante nas discussões e propostas para educação escolar indígena, especialmente na formação de professores” (KAINGANG, M. I. 2009).76 Da mesma forma ocorre com a ONISUL,77 composta por lideranças kaingang e guarani, apoiadas pela equipe do COMIN e por outras entidades (ZWETSCH, 1993, p. 310). Através da participação no Seminário Permanente de Educação Popular, iniciou-se uma articulação entre “os Kaingang, os representantes do COMIN e os docentes e funcionários da FIDENE-UNIJUÍ”, que possibilitou a elaboração de dois programas realizados institucionalmente no âmbito da UNIJUÍ, de formação em nível médio e outro de nível superior (FREITAS, ROSA, 2003, p. 46-7; Boletim Missão Guarita-RE III-IECLB, jul. 199478). A importância dessa articulação se averigua no depoimento de Pedro Sales, jovem kaingang engajado na mobilização indígena, que ingressou no ensino superior na UNIJUÍ em 1992. O motivo que impulsionou a minha vinda para a Universidade foram os conflitos internos entre as comunidades, no sentido assim de que até aquele momento as pessoas estavam vivendo um processo de revolução na busca de constituir uma nova liderança, um novo cacique, colocar por terra o que existia na época. […] Outro fator que foi assim acumulando foi uma assembleia de lideranças indígenas que houve em Chapecó, depois da luta indígena em defesa dos Yanomami, em 1988. Os Kaingang conseguiram pela primeira vez participar desse movimento nacional, em Brasília, para enfim dizer que eles existem. Voltaram com uma vontade de constituir organizações indígenas na época, queriam autonomia, queriam construir, por exemplo, uma estrutura institucional para depor a FUNAI, substituir a FUNAI pela própria organização indígena, então era uma leitura que o pessoal se fazia na época. […] Então conversamos sobre as escolhas [na área do direito, pela demarcação, saúde e meio ambiente, Educação, Biologia, História] […]. Eu lembro que a própria UNIJUÍ, ela tinha um trabalho com os movimentos populares, era uma parcela da UNIJUÍ, que trabalhava com o Seminário Permanente de Educação. Nesse seminário eu sempre procurei me desenvolvimento de pesquisas, a produção e difusão de material de apoio e assessoria aos movimentos sociais e às instituições ligadas à educação popular” (FREITAS, ROSA, 2003, p. 46-7). 76 Segundo Souza (2001, p. 22), número expressivo de monitores formados no CTPCC integraram a APBKG. 77 ONISUL: Organização das Nações Indígenas do Sul, criada em 1992, entidade indígena que coordenou as articulações de ocupação e reivindicação de algumas terras indígenas no Rio Grande do Sul (KAINGANG, M. I. 2009). 78 ARQUIVO CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba 1: Educação; Escola Kaingang. 110 inteirar, me envolver nesse trabalho, aonde eu fui eleito representante das comunidades indígenas, também dos movimentos indígenas. Foi graças a esse movimento que consegui chegar até a Reitoria para discutir com eles já a necessidade de construir, abrir campos de libertação para os índios, para poder militar de forma mais qualificada (FREITAS, ROSA, 2003, p. 36-7). A consciência despertada entre os kaingang envoltos na busca da autonomia e leitura crítica da realidade das comunidades indígenas, sobretudo jovens da TI Guarita, promoveu a eleição da “educação como um elemento que lhes possibilitou debelar tanto o ‘tempo do arrendamento’ quanto o ‘tempo do panelão’, eras da história Kaingang que falam de trabalho escravo e usurpação territorial” [grifos dos autores] (FREITAS, ROSA, 2003, p. 21). Assim, Alguns jovens que discordavam da prática do arrendamento decidiram fazer o curso superior na UNIJUÍ buscando ampliar seu potencial de resistência e reverter a situação instaurada em suas comunidades. Em meados da década de 1980, eles participavam do ‘Seminário de Planejamento Participativo’, evento que reunia movimentos sociais MST, Movimento dos Desalojados por Barragens, indígenas, mulheres, sindicatos rurais e urbanos, diferentes organização não governamentais, como COMIN, IECLB, ANAÍ, MCB, CAMP, FASE – para trocarem experiências sobre educação popular.79 (FREITAS, ROSA, 2003, p. 35) O ingresso dos estudantes indígenas ocorre a partir do primeiro semestre de 1992, sendo os primeiros estudantes indígenas universitários: Andila Inácio Belfort, Ari Ribeiro, Bruno Ferreira, Juvino Sales, Maria Inês Pandolfo, Pedro Sales. Esse evento foi caracterizado como uma nova etapa na história das comunidades kaingang e na história da FIDENEUNIJUÍ (FREITAS, ROSA, 2003, p. 36). Sendo reconhecido o papel da FIDENE-UNIJUÍ de “precursora na inclusão de estudantes indígenas no 3º grau” (MATTE, 2009, p. 105). Contudo, essa conquista do movimento indígena, conforme relato de Andila Belfort (2002, p. 127), se constituía como reflexo da inquietação e luta dos povos indígenas: Contudo, continuamos, eu e meu povo, sendo tratado como quem estava condenado a sempre depender dos outros. Isso começou a me inquietar e, por conseqüência, em 1992, cinco Kaingáng fizeram vestibular na universidade de Ijuí – RS, em cinco áreas estrategicamente escolhidas, Direito, Enfermagem, Pedagogia, Agronomia e História. Não conseguimos para Direito, mas ingressamos nas outras quatro áreas. Eu me lembro que saiu um artigo num jornal que dizia: “Índios Invadem a Universidade”. Nos anos que se seguiram, outros kaingang também ingressaram no ensino superior na UNIJUÍ, sendo reconhecida a participação do COMIN neste processo, como manifesto por Danilo Braga em entrevista a Valsenio Gaelzer, que assim relata: 79 MST: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra; ANAÍ: Associação Nacional de Apoio ao Índio; MCB: Movimento Comunitário de Base; CAMP: Centro de Assessoria ao Movimento Popular; FASE: sigla desconhecida. 111 O Kaingáng Danilo, estudante de história da UNIJUÍ, afirmou a importância do COMIN, […] no que se refere as necessidades básicas aos índios. Na verdade, se reconhece a atuação da missão no âmbito da educação, da saúde, enfim, questões primordiais que fazem com que a organização social se torne possível. Claro, nesse caso devemos respeitar o tempo e espaço em que se dá esse fato missionário, bem como em relação com o avanço tecnológico imposto pela conjuntura nacional e internacional. (GAELZER, 1998, p. 97) A contribuição e participação do COMIN no processo de acesso ao ensino superior se refletiram também na elaboração e implantação do Programa de Bolsas de Manutenção para Estudantes Indígenas na UNIJUÍ. O Programa de Bolsas foi elaborado em 1997, com a participação do COMIN, UNIJUÍ e estudantes indígenas, que o encaminharam a Diakonisches Werk, entidade vinculada à Igreja Evangélica da Alemanha. O programa teve “o propósito de garantir a manutenção dos estudantes indígenas durante seus cursos de graduação, subsidiando custos de transporte, saúde, alimentação, vestuário, bibliografia, etc” (FREITAS, ROSA, 2003, p. 48)80. De acordo com o estudo de Freitas e Rosa (2003, p. 51), o Programa de Bolsas obteve êxito, garantindo a conclusão de curso de estudantes indígenas bolsistas, entendido como retorno social do programa. Os kaingang bolsistas que concluíram o ensino superior até 2002, após uma década do ingresso dos primeiros kaingang na UNIJUÍ, foram: Bruno Ferreira (História), Danilo Braga (História), Juliana Van Kre Inácio (Enfermagem), Júlio César Inácio (Agronomia), Lúcia Fernanda Inácio Belfort (Direito), Luciola Maria Inácio Belfort (Enfermagem), Maria Inês de Freitas Pandolfo (Pedagogia), Pedro Sales (Enfermagem), Sandra Terezinha Tavares (História) e Suzana Andrea Inácio (Direito).81 Salienta-se o engajamento e compromisso do grupo de estudantes com as mobilizações para a garantia de políticas públicas condizentes com a realidade dos povos indígenas. Dulci Matte pesquisou o tema da etnicidade (identidade cultural) com o grupo de universitários kaingang na UNIJUÍ e constatou que Os estudantes como membros de comunidades indígenas, situam-se num contexto de movimento indígena, numa articulação que ganha força pelo sucesso da mobilização na recuperação de territórios por diversas comunidades no Estado, pelo esforço em manter nas suas escolas um ensino 80 O Programa de Bolsa esteve destinado à manutenção dos estudantes indígenas. Para o financiamento dos cursos, firmou-se convênio entre FIDENE-UNIJUÍ e MEC/FUNAI (FREITAS, ROSA, 2003, p. 12-3). 81 A seguir, breve atualização (nov. 2011) da qualificação acadêmica e/ou profissional dos ex-bolsistas: Bruno Ferreira, lotado na E.E.I.E.F. Toldo Campinas (Setor Estiva/TI Guarita), especialista em Educação, Diversidade e Cultura Indígena/COMIN/EST; Danilo Braga, mestrando em História/UFRGS; Júlio César Inácio, mestre em Agronomia/UFRGS; Lúcia Fernanda, mestre em Direito/UnB; Maria Inês de Freitas Pandolfo, especialista em PROEJA/UFRGS e coordenadora do Depto. de Educação Escolar Indígena da ADR/FUNAI-Passo Fundo/RS; Pedro Sales, membro de Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena na TI Caseiros; Suzana Andrea Belfort, mestre MINTER/UFSC; Luciola Maria Inácio Belfort ingressou em 2009 no curso de Medicina/UFRGS. 112 bilíngüe, com currículo, conteúdos e metodologia diferenciados; pela organização em entidades como a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Sul, a Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani, a Associação dos Universitários Indígenas do Sul; pela sua participação em órgãos como o Conselho Estadual dos Povos Indígenas, ligado à Secretaria de Cidadania e Ação Social do governo do estado do RS; participação no Núcleo de Educação Indígena, ligado à Secretaria de Educação do RS, no Núcleo Interinstitucional da Saúde Indígena, ligado à Fundação Nacional da Saúde/Ministério da Saúde (MATTE, 2001, p. 109). O engajamento e articulação através de organizações indígenas ou em organismos públicos de políticas indigenistas (p. ex.: CEPI, NEI) demonstram que a proposição inicial de ingresso no ensino superior foi concretizada. Ou seja, o ensino superior se constitui ferramenta no exercício da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas. Pois, como demonstrado por Matte, o grupo de estudantes não se desvinculou do processo de mobilização em prol das diferentes demandas das comunidades indígenas, atendimento em saúde, educação escolar indígena, demarcação de terras tradicionais, enfim, a definição, constituição e implementação de políticas públicas específicas às comunidades indígenas. Para além da formação superior, também houve a necessidade da formação docente indígena com habilitação para o magistério nas escolas indígenas. Em 1991, decorrente do debate iniciado em 1989, foi criada uma comissão interinstitucional, constituída por representantes da ONISUL, APBKG, UNIJUÍ e COMIN. A comissão organizou o “Curso Supletivo de Magistério para a Formação de Professores Indígenas Bilíngues para o Ensino de 1ª a 4ª Série nas escolas das comunidades Kaingang do sul do Brasil”. O curso foi realizado entre os anos de 1993 e 1996 com o objetivo de formar docentes indígenas com habilitação bilíngue e intercultural (KAINGANG, B. 2002, p. 203; KAINGANG, M. I. 2009; VYJKÁG et. al., 1997, p. 9-10; FREITAS, ROSA, 2003, p. 47). Os participantes do curso foram definidos pelas comunidades e lideranças indígenas, conforme relato de Schwingel, que também justifica a necessidade de um curso de habilitação ao magistério indígena. As comunidades Indígenas e suas lideranças tiveram participação direta na escolha dos candidatos ao Curso e na sua direção. Hoje estão com grande expectativa de ver atendida uma de suas necessidades: ter um professor do seu próprio povo habilitado para Ensino Escolar. Pois os Monitores, formados na Escola Clara Camarão, em Guarita, na década de 70, não estão habilitados para o magistério, e tornaram-se apenas facilitadores para a alfabetização dos indiozinhos pelos professores brancos. Consequentemente, o papel do monitor é mais voltado para a transição do índio à cultura ocidental do que para valorizar, respeitar e recriar os valores e as tradições culturais milenares herdadas de seus antepassados. […] O Curso atual de Professores Bilíngües, portanto, está nesta linha de continuidade das lutas, conquistas e reivindicações dos povos indígenas. Seu objetivo é viabilizar 113 que estes povos índios possam continuar vivendo segundo seu jeito próprio de ser, e ajudar a garantir que toda a assistência necessária neste campo seja provida com a participação dos seus maiores interessados, os próprios índios (Missão Guarita-RE III-IECLB, jul. 1994).82 O propósito do curso estava vinculado às mobilizações indígenas, salientado pela afirmação de que é a “continuidade das lutas, conquistas e reivindicações dos povos indígenas”. O vínculo com as mobilizações oportunizou aos participantes, além da habilitação ao magistério indígena, o engajamento no fazer a história dos povos indígenas. Conforme o testemunho do professor kaingang Dorvalino Refej Cardoso, o curso possibilitou mudança na vida das pessoas e, de modo mais profundo, instigou a ler e entender o mundo, estabelecendo projetos para o futuro. Meu nome é Dorvalino e tenho 47 anos. Sou professor Kaingang e moro em [Comunidade Kaingang Por fi,] São Leopoldo (RS). Participei do curso de formação de professores bilíngues promovido pelo COMIN, em parceria com a Universidade de Ijuí (Unijuí). Esse curso começou a mudar a minha vida nos trabalhos e nas questões culturais e sociais. Passei a entender o contexto planetário e, a partir disso, comecei a trabalhar pelo povo Kaingang, participando de palestras e de muitos projetos para o futuro. O resultado daquele curso foi que hoje estou na faculdade, fazendo pedagogia e me formo no final de 2011. Prometo que vou mais além. (CARDOSO, 2010, p. 58) O professor Dorvalino afirma que, ao “entender o contexto planetário”, foi instigado a trabalhar pelo povo kaingang. Retoma-se a dinâmica da especificidade do curso, em ser de formação de professores bilíngues, para o exercício do magistério nas escolas das comunidades kaingang. Para Matte (2009, p. 108), o curso potencializou a constituição da educação bilíngue e específica das escolas kaingang no Rio Grande do Sul. Destaca-se, ainda, que, ao “entender o contexto planetário”, Dorvalino afirma que passou a participar de palestras. Considera-se o fato como resultado da percepção intercultural inserida no curso. Ou seja, a formação voltada para a interação com a sociedade não indígena. O curso teve o ingresso de 30 kaingang, oriundos de comunidades kaingang do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sendo que 22 professores se formaram “com habilitação bilíngue e intercultural nas escolas Kaingang” (KAINGANG, B., 2002, p. 203). Do grupo que concluiu o curso, três docentes ingressaram em cursos universitários na UNIJUÍ: Armandio Kãnkõr Bento, Gelson Vergueiro Kagrër e Valmir Cipriano Jësi (FREITAS, ROSA, 2003, p. 47). 82 Material disposto no Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba 1: Educação; Escola Kaingang. 114 Após o término do curso, ainda foram publicados livros e cartilhas, organizados por uma Comissão de Publicação, “da qual faziam parte pelo menos um aluno por área indígena”, além de representantes institucionais da comissão de organização do curso (VYJKÁG et. al., 1997, p. 27-30). O material publicado foi elaborado pelos participantes do curso e foi produzido como material didático para as escolas kaingang da região sul do Brasil. Assim, em 1997, foi publicado o livro Ẽg jamẽn kỹ mũ: textos kanhgág, com financiamento do MEC; e, em 1998, foram publicados 2 livros/cartilhas: Kanhgág ag tỹgtỹnh fã (cantos) e Inh kónẽg kãme (literatura e histórias), ambos monolíngue kaingang, com apoio do MEC e NEI/RS. A década de 1990 se caracterizou pela mobilização acentuada na implantação da EEI, sobretudo na formação de professores em nível de ensino médio e no ingresso no ensino superior. Essas mobilizações advieram da mobilização indígena da década de 1980, pautada no reconhecimento da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas, referendada na CF 88. Também foi um período de reestruturação, pois, garantido o reconhecimento à autonomia e autodeterminação, necessitou-se garantir instrumentais específicos à educação escolar para o benefício e interesse da comunidade indígena. Consequentemente, constitui-se como período de reorganização das políticas públicas destinadas aos povos indígenas. A reorganização se fez necessária devida à proposição constitucional de que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (CF 88, art. 231). Desta forma, constituíram-se os Núcleos de Educação Indígena (NEI) no âmbito das Secretarias Estaduais de Educação, conforme determinação da Portaria Interministerial MJ/MEC n º 559, de 16 de abril de 1991.83 O objetivo para a criação do NEI foi proporcionar “um espaço para a participação dos índios e das organizações de apoio na formulação e implementação de políticas públicas diferenciadas” (ARMANI, 2001, p. 17). Cabe salientar, como demonstrado anteriormente, que no Rio Grande do Sul havia sido constituída a Comissão de Educação Indígena ao final da década de 1980, sendo indicado para representar o COMIN Lúcio Schwingel. Em 1990, ocorre outra indicação de Lúcio Schwingel para a composição da Comissão de Educação Indígena, conforme carta expedida pela Secretaria de Missão da IECLB em 15 de agosto de 1990, em resposta ao ofício 83 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/Legisl/capitulo-09.pdf> Acesso em: 01 set. 2011. (p. 523-6 [20-3]) 115 OF.CEI/DEPE-Nº22/90.84 A referida comissão antecedeu a criação do NEI no Rio Grande do Sul. Em 1993, foi elaborada, no âmbito da Comissão de Educação Indígena, a “Proposta pedagógica: ‘Escolarização das crianças e jovens indígenas no RS’”,85 sendo o COMIN citado como colaborador. Na introdução da proposta, afirma-se que a escolarização das crianças e jovens indígenas se incluiria no Plano Global de Governo 1991-1995, no intuito de que O eixo desta questão é a busca incansável e sistemática de ações que resguardem e respeitem os valores étnicos e a cultura construída durante milênios e que teve o solo gaúcho como palco. Esta postura propõe um afastamento do etnocentrismo cristão ocidental, busca nos pressupostos básicos dos indígenas a razão de todas as ações, quer no âmbito da escolarização, quer na defesa da identidade destes grupos. Em 1994 (20-21 de outubro), foi realizado o “Encontro de Professores Bilíngues, Enfermeiros e demais Lideranças Kaingang” em Passo Fundo/RS. O encontro teve 37 participantes, que se reuniram para estudar formas de garantir direitos elementares na educação, saúde e demarcação de terras indígenas. Conforme relato, referente à EEI, tratou-se do reconhecimento e regularização das escolas indígenas; contratação de docente bilíngue pelo Estado; e criação do Núcleo de Educação Indígena (Missão Guarita, Frederico Westphalen, nov. 1994).86 Assim, em 1995, o Núcleo de Educação Indígena foi instituído, sendo Lúcio Schwingel nomeado como representante do COMIN, conforme portaria ATO/SE-01294, de 10 de setembro de 1995, publicada no diário oficial do estado em 15 de setembro de 1995.87 O registro da participação do COMIN no NEI é destacado pelo fato de a entidade ter se inserido no espaço público responsável pela implementação e acompanhamento da EEI nas comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. Destaca-se o fato de que a nomeação ao NEI ocorreu uma década após a retirada da Missão Guarita da TI Guarita e a partir da qual a ação missionária indigenista se definiu por uma metodologia de acompanhamento e assessoria à autonomia dos povos indígenas, mantendo esta postura também na definição de políticas públicas. Também é relevante o destaque por extrapolar a orientação inicial de que a ação missionária indigenista se estenderia a outras comunidades kaingang e guarani da região 84 Material do Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba1: NEI/RS. Material do Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba1: NEI/RS. 86 Cf. Informe nº 09 da Missão Guaria, Frederico Westphalen, nov. 1994. Material disposto no ARQUIVO CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba 1: Educação; Escola Kaingang. 87 No Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba1: NEI/RS, cópia da carta da Secretaria Executiva do COMIN, de 18 de maio de 1995, em resposta ao ofício Of. DEPE/DP/105-95; e cópia da publicação da Portaria no Diário Oficial do Estado. 85 116 noroeste. A participação em espaços públicos, como o NEI, implicou na atuação em um espaço geográfico e político amplo, salientando que, na perspectiva política, a participação no NEI difere do papel de executor de programa governamental, como pode ser interpretado no CTPCC. A diferença se constata também no fato de que o NEI se constituiu de representantes das comunidades indígenas, organizações indígenas e indigenistas e instituições de ensino. Assim, concorda-se com afirmação de Freitas e Rosa (2003, p. 21) de que o COMIN, ao lado de instituições e entidades como a FIDENE-UNIJUÍ, NIT88, UPF89, APBKG e órgãos públicos da educação, “colocam-se enquanto agentes da educação indígena, com responsabilidades diferenciadas” no Rio Grande do Sul. De modo especial, foi citado pelos pesquisadores que as ações e atividades desenvolvidas inicialmente pela IECLB e, posteriormente, pelo COMIN foram decisivas para a implantação da EEI, sobretudo na região noroeste rio-grandense (FREITAS, ROSA, 2003, p. 8). A avaliação quanto ao papel decisivo da atuação da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN pode ser avalizada pela amplitude das atividades realizadas no decorrer da década de 1990. Souza (2001, p. 22), no processo de avaliação das atividades do COMIN, elenca as principais atividades realizadas nessa década, com destaque para: acompanhamento aos professores kaingang; coordenação do curso de Formação de Professores Indígenas Bilíngues; participação no Núcleo de Educação Indígena; incentivo à regularização das escolas indígenas; capacitação de professores sem magistério, publicação e distribuição de livro sobre a religião e a cultura kaingang; acompanhamento de universitários índios. As atividades elencadas atestam a diversidade e amplitude da ação missionária indigenista do COMIN, salientando que as mesmas se constituíram concomitantemente à mobilização indígena, expressão da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas. 2.4.3 A trajetória no século XXI A década de 1990 foi caracterizada pela atuação e mobilização indígena no empenho de construir políticas públicas específicas e diferenciadas na implantação da EEI, sendo destacadas nesta dissertação as atividades de habilitação ao magistério indígena, o acesso ao ensino superior e a instituição do NEI. Conforme demonstrado, a atuação da APBKG foi decisiva, pois estabeleceu convênios e parcerias com o COMIN e FIDENE-UNIJUÍ na realização dos eventos destacados anteriormente. 88 Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIT/UFRGS). 89 Universidade de Passo Fundo. 117 Porém, na transição para a década de 2000, constatam-se alterações nesse cenário. As alterações se constituíram a partir da alteração na equipe do COMIN, responsável pelas ações missionárias indigenistas na região noroeste rio-grandense, e da alteração no foco das ações missionárias indigenistas. Ressalta-se, porém, que persistiu a atuação do COMIN na assessoria e acompanhamento na implantação da EEI. Outra alteração a se constatar no decorrer da nova década é a diversidade de entidades (públicas e privadas), órgãos públicos e políticas públicas com as quais as comunidades indígenas interagem. Esta constatação carece de maior avaliação, sobretudo numa suposta interferência sobre a redução ou diluição da mobilização indígena. Neste sentido, tornou-se perceptível a inatividade da APBKG na década de 2000. Para o momento, cabe apresentar tal percepção, pois se considera que a mesma não ocorreu de forma isolada, mas devido a mudanças no contexto sociopolítico brasileiro no início do presente século. Referente ao período de 1999-2001, o COMIN contribuiu na realização de cursos de complemento ao ensino fundamental, realizados na Escola Estadual de Ensino Médio Américo dos Santos, na Vila São João, distrito de Redentora/RS, próxima ao Setor Missão (TI Guarita). O curso foi realizado em parceria com o NEI, oportunizando a conclusão do Ensino Fundamental a 39 educandos de diversas comunidades indígenas, que atuavam como monitores bilíngues ou professores nas escolas indígenas na modalidade de contratado emergencial (ROSA, 2002, p. 69). Figura 5: Curso complementar ao Ens. Fundamental, E.E.E.M. Américo dos Santos Fonte: ROSA, 2002, p. 70. 90 90 Destaques: 1. Natalino Góg Crespo (em memória); 2. Elton Zencke, membro da equipe COMIN-Guarita; 3. Noeli T. Falcade, membro da equipe COMIN/PNG; 4. Sandro Luckmann, membro da equipe COMIN-Guarita 118 No transcorrer dessa ação ocorre a alteração da equipe do COMIN, com o ingresso do autor na equipe de trabalho. Também ingressou um engenheiro das ciências agrárias, como contrapartida na implantação de programa interinstitucional: Programa de Autossustentabilidade para Guarita, elaborado desde 1997 (ARMANI, 2001, p. 24). Houve, no início da década de 2000, a concentração de esforços na execução de programas e assessorias às comunidades indígenas no noroeste rio-grandense, em questões referentes a território (demarcação de terras tradicionais), saúde (Projeto de Nutrição Guarita), sustentabilidade (etnosustentabilidade) e assistência social (FREITAS, ROSA, 2003, p. 62). Entre esses, destacam-se o Projeto de Nutrição Guarita (PNG), o Projeto de Ação e Qualificação de Agentes e Técnicos junto a Comunidades Indígenas Kaingang e Guarani do RS (PROAQ) e o Projeto de Revitalização de Saberes Tradicionais de Manejo e Uso de Espécies Medicinais e Nutricionais (PPIGRE). O PNG foi realizado entre 2001 e 2003 no controle da desnutrição e mortalidade das crianças na TI Guarita e no exame para a associação entre condições sociais e a estatura das crianças, para o qual o COMIN foi contratado pela Secretaria Estadual da Saúde (MENEGOLLA et al., 2006, p. 396). O PROAQ foi executado nos anos de 2001 e 2002, em convênio com o Departamento de Cidadania e da Assistência Social da Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (STCAS/RS), para desenvolver junto às comunidades kaingang e guarani no Rio Grande do Sul atividades no âmbito das políticas públicas de Assistência Social (PILGER, 2002, p. 41-7). O PPIGRE realizou-se em 2007, financiado pelo programa PPIGRE/MDA, no intuito de estimular que o conhecimento e os saberes tradicionais no uso e manejos de plantas fossem compartilhados, respeitados e divulgados entre a comunidade kaingang da TI Guarita (LUCKMANN, FALCADE, 2008, p. 7). Cabe destacar que a alteração de prioridades na ação missionária indigenista ocorreu simultaneamente à continuidade da implantação da EEI nas comunidades escolares kaingang, concebidas de forma diferenciada do período anterior. Freitas e Rosa (2003, p. 62) afirmam que essa realidade “implica em mudanças nos sentidos que a escola assume na vida kaingang”, fato que pode ser demonstrado no relato dos professores kaingang referente à Escola Estadual Clara Camarão, remanescente do período do curso de monitores bilíngues. e autor desta dissertação. Legenda original: A foto nº 19 registra um dos vários encontros com turmas especiais das diversas Reservas do RS, ex-alunos do Projeto Missionário, que regulamentam o Ensino Fundamental através de estudos à distância. Uma proposta da E. E. de Ens. Médio Américo dos Santos com apoio financeiro e pedagógico da SE e COMIN-DAÍ (Foto: Carlos da Rosa, out. 2001). 119 Em Julho de 2000, foi encaminhada documentação para regulamentação das escolas indígenas. Então, no dia 11 de outubro de 2001 toda a comunidade escolar e lideranças indígenas, reuniram-se com a finalidade de mudar o nome da escola para um mais significativo, onde foi sugerido e aprovado o atual nome de Gomercindo Jèté Tenh Ribeiro, antigo morador da comunidade (PROFESSORES, 2006, p. 282). O fato relatado pela atual E.E.I.E.F. Gomercindo Jèté Tenh Ribeiro é corroborado pela mesma disposição e atitude da comunidade escolar e lideranças kaingang do Setor Missão, onde se instalou a Escola Marechal Rondon, que também em 2000 alterou o nome da escola, na oportunidade do processo de regularização no Conselho Estadual de Educação, para Escola Indígena Fundamental Incompleto Davi Rỹgjo Fernandes. A justificativa para escolha do nome foi de que A comunidade acredita que após a legislação das escolas indígenas, os índios passarão a viver uma nova história. Toda a comunidade escolar está contente com o novo nome escolhido, pois este, tem a ver com a história dos antepassados desta comunidade.91 Outro fato a se destacar nesse processo de regularização das escolas no decorrer da década de 2000 foi a integralização na oferta do Ensino Fundamental. Conforme Freitas e Rosa (2003, p. 10), em 2002, somente dez escolas indígenas, em todo o território estadual, ofertavam o ensino completo. Em 2010, a situação é distinta. Tendo como parâmetro a TI Guarita, das doze escolas de ensino fundamental, somente uma oferta o ensino fundamental incompleto. Em consequência à regularização das escolas indígenas, fez-se necessária a realização de concurso público estadual específico, visando garantir os preceitos legais à EEI. Assim, em “2001 foi realizado o primeiro concurso público da rede estadual de ensino para fins de suprir vagas em escolas indígenas bilíngües. Vinte professores indígenas bilíngües foram aprovados nestes concursos” (FREITAS, ROSA, 2003, p. 10). A realização do concurso visou fazer cumprir o disposto na Resolução 03/99 do Conselho Nacional de Educação, estabelecendo que, apesar do arcabouço legal para EEI ser definido em nível federal, cabe aos estados a efetivação de programas específicos de formação, titulação e contratação de docentes indígenas (ARMANI, 2001, p. 16). 91 Dados extraídos do “Histórico da Escola Indígena de 1º grau Incompleto Marechal Cândido Rondon = Missão Indígena”, apresentada no Encontro de Educadores e Educadoras das Escolas Indígenas – Etnia Kaingang, realizado em Redentora/RS, 25-28 de julho de 2000. (Arquivo COMIN-ESOI, Caixa Educação). A alteração dos nomes das escolas indígenas, bem como a regularização e elaboração do Projeto Político Pedagógico, foram estimulados e debatidos no “Curso de Formação Continuada para Professores Indígenas – Etnia Kaingang”, realizado em 2001-2002, em Marcelino Ramos/RS, organizado pelo NEI e SEE. 120 Na segunda metade da década de 2000, a ação missionária indigenista da equipe do COMIN oportunizou a publicação de livros elaborados por docentes e discentes das escolas indígenas e também por universitários kaingang, visando contribuir na elaboração e produção de material didático específico à EEI na TI Guarita. A modalidade de elaboração e os temas abordados foram distintos e diversos, como o uso tradicional de plantas medicinais e nutricionais, cultura e meio ambiente, apicultura, artesanato, jogos e brincadeiras, saúde e redução de danos por alcoolismo. Os temas evidenciam a interdisciplinaridade da EEI, uma vez que os temas abordados nas publicações se originam no contexto cultural, social e econômico da comunidade indígena. Cabe destacar a preocupação de docentes na publicação de materiais próprios. No livro Gufã ág kajró, a preocupação explicitada foi a produção de material na língua kaingang e em referência à cultura. Os docentes preocupam-se com a educação escolar indígena, com a reflexão dos acontecimentos no passar dos tempos, enriquecida pela vida e pelos saberes tradicionais no contato com a natureza. […] O livro também visa suprir a falta de material didático para a alfabetização e para a leitura de pessoas já alfabetizadas em kaingang. O desejo é que sirva como apoio ao processo de ensino e aprendizagem, tendo boa utilização pelas pessoas leitoras nas suas descobertas, na língua kaingang e na tradição cultural. (LUCKMANN, FALCADE, 2008, p. 8-9) O apoio prestado para suprir a falta de material didático também se estabeleceu no trato de temas e abordagens que perpassaram a dimensão cultural, mas em que a comunidade indígena também esteve envolta e, sobretudo, disposta a contribuir com o debate. Desta forma, o material “Cultura, ambiente e biodiversidade” Foi elaborado com o intuito de fundamentar teoricamente o tema e de promover uma educação diferenciada através da vivência prática de alunos e professores em questões sobre meio ambiente e cultura indígena, numa perspectiva de contribuição para alternativas mais sustentáveis e adequadas para as etnias. (BALLIVIÁN, 2011, p. 12) Outro propósito no apoio e promoção para a publicação de materiais produzidos pelas comunidades escolares indígenas foi o de estimular a interculturalidade a partir da EEI. A revitalização de sentidos e significados presentes no artesanato kaingang e guarani, por exemplo, disposta na publicação do livro “Artesanato Indígena”, serviu na abordagem do tema nas escolas indígenas, no estímulo da prática do artesanato e suas expressões culturais e, também, pôde contribuir para o conhecimento de valores e formas de expressão da cultura indígena. 121 Neste sentido, o livro busca preencher uma demanda para o ensino diferenciado das escolas indígenas e contribuir também para que as escolas não-indígenas possam cumprir a lei federal nº 11.465 de 2008 que torna obrigatória a inclusão da temática "História e Cultura Afro-brasileira e Indígena" nos currículos escolares na rede de ensino pública e privada. (BALLIVIÁN, 2011b) Ressalta-se, contudo, que as contribuições nas publicações foram limitadas. Conforme manifesto por docentes indígenas, a principal carência se constitui na produção de material didático para a alfabetização e leitura kaingang. Conforme Inácio (2010, p. 39), a carência de material didático próprio compromete a EEI como uma educação própria. Atualmente, a carência de material didático apropriado para ministrar o ensino na língua kaingang também tem sido responsável pela falta de qualidade do ensino bilíngue. Tenho certeza que está havendo um equívoco na implementação do ensino diferenciado, que deve priorizar a abertura para se trabalhar a língua e a cultura, como forma de resgate, preservação e fortalecimento da mesma dentro da escola, e não para acontecer de qualquer jeito, sem responsabilidade. A Escola Indígena deve ser Bilíngue, Específica, Diferenciada e de QUALIDADE! [grifo da autora] (INÁCIO, 2010, p. 39) A situação é agravada, ainda conforme Inácio, pela presença de não indígenas no espaço das escolas indígenas. A presença de não indígenas, sobretudo na gestão escolar, impede a autonomia, a elaboração própria da comunidade escolar indígena da EEI. Segundo Inácio (2010, p. 39), “tais profissionais/diretores, embora atuantes em escolas indígenas, ainda permanecem ‘presos’ às normas que regem as escolas não-indígenas, inviabilizando assim, a especificidade da escola indígena, garantida por lei para a criança kaingang”. Para se conseguir lograr o êxito da gestão autônoma da EEI, Inácio reivindica: O Estado precisa assumir a formação dos professores indígenas, em cursos específicos, ensino médio e superior, de maneira que estejam aptos a não só preparar o material didático-pedagógico que as escolas indígenas tanto necessitam, como efetivamente exercer o magistério indígena (INÁCIO, 2010, p. 39). A reivindicação de Inácio é corroborada pela constatação de Matte (2009, p. 108), de que no Rio Grande do Sul ainda não se constituiu um curso específico para a formação universitária indígena, como os propostos pelo MEC, na modalidade do ProLInd. 92 Ambas autoras reconhecem que houve avanços na EEI, porém persistem as carências e inconclusões na implantação da EEI. 92 Programa de Licenciatura Indígena, programa de formação superior de docentes indígenas. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12258:prolind&catid=242:prolin d&Itemid=497> Acesso em: 24 out. 2011. 122 O suprimento parcial na formação superior específica pode ser atendido pelo “Curso de Graduação Licenciaturas dos Povos Indígenas do Sul da Mata Atlântica: Guarani, Kaingáng e Xokleng”, ora em curso. O curso superior está vinculado institucionalmente ao Departamento de História da UFSC e é financiado pelo PROLIND/SECAD/MEC, UFSC e parcerias. Para a coordenação e gestão do curso instituiu-se a “Comissão Interinstitucional para Educação Superior Indígena” (CIESI), da qual participam representantes indígenas guarani, kaingang e xokleng. As instituições membro do CIESI são Comissão de Apoio aos Povos Indígenas (CAPI), Conselho Indigenista Missionário (CIMI-SUL), Conselho de Missão entre Índios (COMIN), Laboratório de História Indígena (LABHIN), Museu Universitário Prof. Osvaldo Rodrigues Cabral (MU), Secretaria de Estado da Educação (SED/SC).93 Conforme Schwingel (2011), O curso foi gestado ao longo de quatro anos pela Comissão Interinstitucional para Educação Superior Indígena (Ciesi), formada por representantes do poder público como a UFSC, a Secretaria de Estado da Educação, e instituições não-governamentais, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin) e a Comissão de Apoio aos Povos Indígenas (Capi), além da presença indígena durante sua formulação. Além de participar institucionalmente do CIESI, a equipe local do COMIN-Guarita presta assessoria e acompanhamento pontual aos discentes das etnias kaingang e guarani, da TI Guarita, sendo esta a comunidade com maior número de estudantes no curso, com dezoito ingressos. Desta forma, busca-se dar seguimento à disposição do COMIN em contribuir no avanço da EEI, que constantemente apresenta desafios e demandas, oriundas das carências ainda existentes na EEI, mas, especialmente, pela autonomia, autodeterminação e protagonismo das comunidades indígenas. Ainda que pese a morosidade na implantação de políticas diferenciadas e adequadas à EEI, a ação missionária indigenista do COMIN estipula que a mesma sucumbirá diante do protagonismo das comunidades indígenas da TI Guarita e das demais comunidades dispersas pelo Rio Grande do Sul e Brasil. 93 Programa Licenciatura Intercultural Indígena do Sul <http://licenciaturaindigena.ufsc.br/> Acesso em: 29 set. 2011. da Mata Atlântica, Disponível em: 3 REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA INDIGENISTA NA EEI O primeiro capítulo expôs características históricas e culturais do povo kaingang, concernentes aos grupos e comunidades fixadas no espaço geográfico que atualmente constitui o território geopolítico do Estado do Rio Grande do Sul, enfatizando as referências de interesse à região dos rios Guarita e Turvo. O capítulo segundo expôs a historiografia da IECLB, uma igreja que confessa os preceitos teológicos da reforma protestante na Alemanha no século XVI e que se estabeleceu e se institui no Brasil a partir da chegada de grupos e famílias de imigrantes europeus no século XIX. A chegada dos imigrantes estabeleceu, num primeiro momento, situações de conflito e disputas pela posse e domínio territorial. Posteriormente, com a organização eclesial, os descendentes dos imigrantes passam a conceber e realizar ações missionárias junto a comunidades indígenas. Somente na segunda metade do século XX estabeleceram-se ações missionárias de maior organização e sistematização. A ação iniciada na década de 1960 se constituiu em uma ação especializada, estimulando a criação, em 1982, de organismo na estrutura eclesial, específico para a missão entre índios, o COMIN. O órgão coordena e gere a ação missionária indigenista da IECLB há três décadas. O presente capítulo apresenta uma abordagem sobre uma característica socioeclesial da constituição da IECLB e a atuação na educação escolar junto aos kaingang na TI Guarita, dito como o eixo fundamental na ação missionária indigenista. Quando os imigrantes europeus de confissão religiosa evangélica luterana desembarcaram no Rio Grande do Sul, trouxeram a preocupação da educação escolar como herança da reforma protestante na bagagem da viagem. Da mesma forma, pode-se afirmar que procederam nas tentativas e no estabelecimento de ações missionárias entre os kaingang. Nas ações empreendidas no início do século XX, e nas ações fundadas na década de 1960 entre os kaingang, a criação de uma escola foi concebida como forma de aproximação e mudança da realidade kaingang. Inicialmente, as pretensões da escolarização foram base para instigar e promover a catequese cristã nas comunidades kaingang. Contudo, as transformações sociais e da organização indígena, nas últimas três décadas, também transformaram a ação missionária indígena da igreja. A ênfase na educação escolar persiste, porém agora pautada em processos e dinâmicas protagonizadas pela comunidade kaingang, visando à autodeterminação, interculturalidade e cidadania. 124 Serão abordadas as questões inseridas na educação escolar na qual a IECLB e COMIN se imbuíram, inicialmente vinculado à proposta de integração indígena à sociedade brasileira, onde se instituiu o bilinguismo como característica da educação escolar. Questiona-se sobre os propósitos e intenções da educação bilíngue, refletindo sobre algumas manifestações e questões oriundas de pensadores e educadores kaingang. Também sobre a proposta da interculturalidade, que estabelece posteriormente o desafio de não servir de nova colonização e tentativa de integrar as comunidades indígenas aos preceitos e valores da sociedade não indígena. 3.1 O BILINGUISMO E A AUTONOMIA NA EEI A instituição da educação escolar entre os kaingang da TI Guarita é recente, sendo instituída pelo SPI, na década de 1940, concomitante à instalação do Posto do SPI na localidade de São João do Irapuá. Conforme Veit (1997, p. 136), a instalação da escola fora uma solicitação da própria comunidade kaingang. O fato de a solicitação ser condizente ao desejo da comunidade kaingang ou não não foi objeto de reflexão, mas caracteriza o fato de que a instituição escolar pode não ser estranha à comunidade indígena. Como demonstrado no primeiro capítulo, anterior à institucionalização do SPI na TI Guarita, os antepassados destes já haviam conhecido ou recebido promessa de instalação de escola na comunidade. Primeiramente, quando da participação de antepassados nas reduções das missões jesuíticas e, posteriormente, nos aldeamentos no século XIX e no período da ocupação colonizadora da região. Ainda que pese a distância temporal entre as gerações que experimentaram tais instituições de educação escolar, concebe-se como recente o histórico da educação escolar entre os povos indígenas. A educação escolar foi e é consequência da frente colonizadora não indígena e a disputa territorial que se estabeleceu desde então. De acordo com uma avaliação geral da implantação da educação escolar entre comunidades indígenas, além da consideração de ser um processo histórico recente, também se estabeleceu o propósito de “desarticular a identidade das etnias, discriminando suas línguas e culturas” (FREIRE, 2004, p. 11). Referente à implantação da educação escolar no atual território geopolítico do Estado do Rio Grande do Sul, considera-se o ano de 1737, através da ação das missões jesuítas, como marco inicial. Conforme o teólogo e historiador Martin Dreher (2008, p. 12-3), uma publicação de Marquês de Pombal em 1757 tornou-se referência e fundamento da educação 125 escolar no Brasil, conseguintemente ao Rio Grande do Sul, também em relação aos povos indígenas. O Directorio estava profundamente preocupado com a “civilidade” dos índios, mas lançou também bases para a compreensão futura da educação no Brasil e, em decorrência, para o Rio Grande do Sul. […] O programa de civilização e cultura dos índios, estabelecido por Pombal, é roteiro de aculturação forçada, que começa proibindo os indígenas de utilizarem a própria língua. Com o concurso da escola, acontecerá a abolição de costumes indígenas, de sua identidade cultural e espiritual. Abolido será seu sistema econômico. Abolida será sua identidade étnica pela mestiçagem forçada com os brancos. A educação escolar tem como propósito a “civilização” da sociedade em formação no Brasil. Tal propósito também foi alçado na instituição da educação escolar aos povos indígenas, onde serviu de instrumento a pretensa aculturação e integração forçada dos povos indígenas à sociedade nacional. Ressalta-se que a primeira legislação sobre a educação escolar no Rio Grande do Sul, no ano de 1777, estabelece a rotina das crianças na Aldeia dos Anjos, atualmente Gravataí, constituída a partir da transferência de grupos de guarani, em decorrência da extinção das reduções jesuíticas, decretada por Marquês de Pombal. A legislação estabeleceu, com veemência, o impedimento do uso da língua guarani entre as crianças, inclusive no diálogo familiar, decretando: “todo menino que em qualquer ocasião falar a língua guarani será castigado e todo o que acusar terá um perdão” (apud DREHER, 2008, p. 14). A imposição no uso do português aos indígenas se constituiu no desmerecimento da identidade étnica desse grupo. A uniformização linguística com o uso da língua portuguesa, implantada por Pombal, estabeleceu o idioma português como veículo integracionista entres os diferentes povos que constituíram a sociedade nacional brasileira. Conforme Dreher (2008, p. 14), a proposição do Marquês de Pombal, no século XVIII, constituiu as “raízes ideológicas” que assolaram as escolas estabelecidas a partir dos assentamentos de imigrantes europeus no Rio Grande do Sul no século XIX e estiveram em crise nas décadas de 1930 e 1940, pois não se admitira a pluralidade cultural e linguística. A instituição da educação escolar junto às comunidades indígenas e, em determinadas situações, noutras comunidades étnicas ocorreu na promoção da extinção da diversidade linguística e da tradição oral, tendo a escola a função de promover a “desaprendizagem” cultural.94 O processo da instalação da educação escolar entre as comunidades indígenas independeu do 94 Freire (2004, p. 23) afirma que “a escola pode ter sido o instrumento de execução de uma política que contribuiu para a extinção de mais de mil línguas” entre os povos indígenas no Brasil. 126 regime governamental. O etnolinguísta e jornalista Bessa Freire (2004, p. 23) afirma que a escola, Tanto no Império como na República, foi a principal instituição executora de uma política educacional, cujo o objetivo principal era eliminar diferenças, despojando os grupos étnicos de suas línguas, de suas culturas, de suas religiões, de suas tradições, de seus saberes, incluindo, entre esses saberes, os métodos próprios de aprendizagem. Constata-se, contudo, que as tentativas de estabelecer a educação escolar através da catequese jesuíta ou nos aldeamentos entre os kaingang no período anterior ao século XX não obtiveram êxito. A educação escolar também teve o propósito de instigar a aprendizagem da leitura e da escrita em português para que alcançassem a “civilidade”. Nonnenmacher (2000, p. 46) justifica o insucesso das escolas entre os kaingang devido aos “métodos rígidos do tipo tradicional da civilização européia”. Gasparetto (2006, p. 21) justifica o insucesso ao fato de que o modelo econômico-social dos kaingang diferia do modelo dos guarani, estes com maior disponibilidade à agricultura e de menor mobilidade espacial. Destaca-se que tais tentativas se estabeleceram concomitantemente às propostas de redução e fixação de aldeamentos, porém ressalta-se que a demarcação do Toldo Guarita, no início do século XX, ocorreu de forma distinta. A demarcação territorial não foi acompanhada da instalação de escola no toldo. Bonotto (2004, p. 96) informa que os indígenas que buscavam a educação escolar se deslocavam até as vilas de São João do Irapuá e São João nas décadas de 1920 e 1930.95 Somente após o governo federal, com SPI, assumir a gestão dos toldos é que ocorre a instalação de escola no Toldo Guarita na década de 1940 (VEIT, 1997, p. 135). A instalação da escola no Posto Indígena Guarita pelo SPI na década de 1940 prosseguiu o propósito da integração das comunidades indígenas à sociedade nacional. Mendoza (2005) demonstrou, em tese de doutoramento, como a participação da escola nas festividades alusivas ao Dia do Índio e em passeatas cívicas cumpriu com o objetivo a que designou como de “corporalização nacional”. Na análise de educandários entre indígenas, analisa a Escola Alípio Bandeira,96 no Posto Indígena Guarita, e a programação alusiva ao Dia 95 Bonotto concentra as informações do Setor Pau Escrito, um dos setores/comunidades kaingang da TI Guarita, situado nas proximidades da sede de Miraguaí/RS (o território da TI Guarita não abrange o município de Miraguaí, os limites da TI Guarita também são os limites entre os municípios de Miraguaí e Redentora). No entanto, as informações podem ser extensivas a todo Toldo Guarita, pois somente após o SPI assumir a administração do toldo é que se instalou uma unidade escolar. 96 A nomenclatura de “Escola Alípio Bandeira” é referente a um dos idealizadores do SPI, em 1910, ao lado de Cândido Rondon e outros, que criaram o órgão de assistência aos indígenas sob o idealismo positivista. 127 Figura 7: Casas, depósitos e escola do Posto Indígena Guarita (1944) Figura 8: Grupo de crianças kaingang, alunas da Escola do Posto Indígena Guarita (1947) Fonte: Acervo digital Museu do Índio (Disponível em: <http://base2.museudoindio.gov.br/>)97 do Índio de 1944.98 Na análise, destaca que “o dia da celebração começava com o hasteamento da bandeira e a entonação do hino nacional e terminava do mesmo jeito. Nos oito dias de duração que teve a festividade, nesse posto indígena, a repetição do ritual do hasteamento e entonação do hino se levou a efeito, pelo menos uma vez ao dia” (2005, p. 801). O propósito do Setor Educacional do SPI,99 com a instalação das escolas nos postos indígenas como do âmbito da “educação rural” e o “ruralismo”, foi o de persuadir as crianças e toda a comunidade às técnicas agrícolas avançadas, na perspectiva da mecanização e desenvolvimentismo das décadas de 1940 e 1950 (MENDOZA, 2005, p. 165-167). O objetivo era “incorporar as comunidades indígenas ao mercado de trabalho, através de métodos, que, para dizer o mínimo, eram de caráter paternalista e clientelar”, na percepção de que a melhor “educação é o trabalho” (Idem, p. 167). O propósito, como em períodos anteriores, se pautou na concepção de ter na escola apoio para alterar o sistema econômico tradicional kaingang, visando à agricultura intensiva, mecanicista e comercial, sendo os indígenas instigados a assumirem o modo de vida de lavradores ou trabalhadores rurais. Pelo que consta, o cenário 97 Acervo do Museu do Índio. Figura 8: Disponível em: <http://base.museudoindio.gov.br/memoteca/srav/ fotografia/unesco_ftp/17d_gua/images/spiir7gua04.jpg> Acesso em: 10 nov. 2010. Figura 8: Disponível em: <http://base2.museudoindio.gov.br/cgi-bin/wxis.exe?IsisScript=phl82.xis&cipar=phl82.cip&lang=por> Acesso em: 10 nov. 2010. 98 Mendoza (2005) analisa relatórios e documentos sobre o tema nos arquivados no Museu do Índio. O Museu do Índio (www.museudoindio.gov.br) é órgão científico-cultural da Fundação Nacional do Índio, criado em 1953 pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Mendoza também demonstra que as ações nos postos indígenas tinham por objetivo transformar a pessoa índia em “trabalhador rural”, sob as características do “desenvolvimentismo”, ressaltando que entre as comunidades kaingang “essa transferência de recursos tecnológicos e de capacitação agrícola teve algum sucesso” (p. 165-6), servindo de referência e instação para programas semelhantes noutros posto indígenas do Brasil. Com base no documento do SPI, datado de 1958, Mendonza constata que as referências no Rio Grande do Sul eram os postos indígenas de Ligeiro e Guarita, citados como modelos à Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, no intuito de se estabelecer lavouras mecanizadas em postos indígenas da Amazônia (p. 221-226). 99 Nas décadas de 1940 e 1950, o SPI era órgão vinculado ao Ministério da Agricultura. 128 persistiu na década de 1960, quando se iniciaram as atividades da Escola Evangélica Indígena em Guarita. A extinção do SPI e a criação da FUNAI (1967) também não representaram alteração no cenário educacional (VEIT, 1997, p. 136-7). A instalação da educação escolar, além da proposição de coadunar esforços em transformar os kaingang em trabalhadores rurais, almejou a integração à sociedade brasileira. O ensino era ministrado em português, pois não havia interesse na preservação linguística pelo órgão indigenista oficial. Contudo, a inserção da missão entre índios promovida pela Comunidade Evangélica de Tenente Portela – IECLB, sob a mentoria do P. Norberto Schwantes, na década de 1960, proporcionou o caráter pioneiro de um projeto oficial de educação escolar indígena bilíngue! (ALBUQUERQUE, 2008, p. 86).100 Quando se firmou convênio entre a IECLB e a FUNAI, em 1968, com o propósito de prestar “formação de monitores bilíngues” para capacitação e instrumentalização de membros da comunidade kaingang para atuarem nas escolas dos postos indígenas (VEIT, 1997, p. 136-7), constituiu-se o CTPCC, no qual o currículo e concepções pedagógicas foram definidos por Ursula Wiesemann, linguista vinculada ao SIL, que mantinha vínculo institucional com a FUNAI, para o estudo e grafia das línguas indígenas no Brasil. Wiesemann (2002, p. 7) afirma que, a partir de 1958, sistematizou e organizou a grafia da língua kaingang, que culminou numa publicação em 1971 sob o título “Dicionário Kaingáng-Português e Português-Kaingáng”. Além de um léxico, a publicação também apresentava os cinco dialetos kaingang, “o alfabeto e as regras ortográficas aprovadas pelos ‘monitores bilingües’ da época, assim como também uma descrição dos tipos de palavras, que constituem a gramática Kaingang”. Estabelecia-se, então, um padrão ortográfico à língua kaingang, com sinais gráficos latinos. Assim, o CTPCC auxiliou na proposição da formação e estímulo ao bilinguismo e contribui decisivamente na fixação da escrita kaingang por sinais latinos. Neste sentido, o pensamento de Claude Lévi-Strauss sobre “A lição da escrita”, referente ao experimento junto aos nambiquaras, descrito em Tristes Trópicos (1993, p. 278-88), serve de paradigma na análise do evento da fixação da escrita kaingang. O relato sobre o evento entre os nambiquaras decorre do episódio em que o cacique estabelece uma comunicação escrita que possibilitou a Lévi-Strauss (1993, p. 280) compreender “a função da escrita”. Ao refletir sobre o episódio, o antropólogo concebe que “a posse da escrita multiplica prodigiosamente a 100 Albuquerque (2008, p. 86) afirma que o projeto oficial da FUNAI também previa ações semelhantes entre os Guajarara (Maranhão); Karaja (Goiás e Mato Grosso); e Xavantes (Goiás e Mato Grosso), também executados a partir de 1972. 129 aptidão dos homens para preservarem os conhecimentos” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 282). Contudo, o antropólogo constata que o período histórico dos maiores feitos da humanidade é o advento do Neolítico; ao dominar a prática da agricultura e a domesticação de animais, a escrita era desconhecida. Especula, então, que a própria escrita caracteriza-se como uma consequência da revolução neolítica. Também pondera que o aparecimento da escrita se caracteriza como fato histórico recente e está relacionado, sobretudo, ao surgimento de sistemas políticos e à hierarquização em castas e classes durante a formação de cidades e impérios (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 283). O antropólogo considera duas exceções nessa proposição: a África indígena e o império Inca no período pré-colombiano. Salvo as exceções, entendidas como exemplos que verificam a hipótese, Lévi-Strauss (1993, p. 284) sentencia: “se a escrita não bastou para consolidar os conhecimentos, talvez tenha sido indispensável para fortalecer as dominações”. Justifica a hipótese ao analisar e ponderar que na ação dos Estados europeus no século XIX ocorre a imposição da instrução concomitante à extensão do serviço militar e à proletarização das massas. A instrução, ou educação escolar, se torna veículo para o domínio dos cidadãos e cidadãs pelo poder instituído. Faz-se necessário ler para que ninguém ignore a lei, conclui Lévi-Strauss. Referente ao CTPCC, a proposição do saber ler ocorreu na grafia latina da própria língua dos monitores em formação, o kaingang. A proposição foi audaciosa, de acordo com a perspectiva de Lévi-Strauss, uma vez que propôs o letramento na dinâmica bilíngue, português e kaingang. A capacitação de monitores bilíngues visou à atuação na instrução das crianças e jovens kaingang. De acordo com a hipótese de Lévi-Strauss, de que a escrita fortalece a dominação, reflete-se que a fixação da língua kaingang em sinais gráficos latinos, portanto, estranhos e oriundos doutra cultura e sociedade, tornou-se uma nova tentativa de dominação. A fixação da língua kaingang em grafia latina pode ser caracterizada como uma nova tentativa de dominação, exemplificada na conclusão de se ter uma só língua escrita, apesar das cinco variantes dialetais kaingang, ou seja, uniformizar a escrita kaingang. Wiesemann (2002, p. 7), na apresentação da terceira edição do “Dicionário Bilíngüe Kaingang – Português” afirma que tal proposição é manifestada pelos próprios kaingang. Contudo, a padronização ou uniformização de uma língua, mesmo que em sua forma escrita, caracteriza a pretensão de um grupo social sobre outro. Obviamente que a padronização ou uniformidade linguística auxilia na produção de material didático às escolas, bem como na massificação da comunicação. O questionamento se estabelece de tal maneira sobre a diversidade 130 sociolinguística, constituinte do povo kaingang, que se constituiu em espaços geográficos determinados, o que potencializou as culturas locais, sem descaracterizar a cultura kaingang como um todo. O intento da dominação na proposta de uniformização de Wiesemann, potencializada na formação de monitores bilíngues pelo CTPCC, difere da disposição manifesta na publicação do livro Ẽg jamẽn kỹ mũ – Textos Kaingangb (1997).101 Na apresentação do livro, reflete-se “sobre os erros de escrita” (p. 24-27), onde se afirma que ainda nesse período a escrita e fala são diversificadas, sem normatização, mas que os “diversos diletos convivem em pé de igualdade” (p. 25). Propõe-se aos docentes a tarefa de realizar as adequações linguísticas de acordo com a variante linguística local. Sobre a normatização linguística, afirma-se que a mesma deve ser resultante de um processo. Com o tempo, se o Kaingáng [sic] se desenvolver com uma língua escrita, e daí emergir algo como uma norma lingüística, isso terá sido resultado de uma intensa atividade de escrita desenvolvida na escola e fora dela, pelos professores, pelas crianças e por outros membros da comunidade (VYJKÁG et al., 1997, p. 26). A manifestação demonstra outra postura frente ao bilinguismo e à fixação da escrita kaingang. A primeira se estabelece na dinâmica processual, ao longo dos tempos, na experimentação e no exercício contínuo. A segunda, que o protagonismo no processo se constitui coletivamente, por diferentes setores sociais das comunidades kaingang. Ou seja, concebe-se o uso da escrita kaingang, com sinais gráficos latinos, e a normatização da escrita e fala kaingang, mas como um processo coletivo, num fluxo de interação e domínio coletivo kaingang. A proposição exposta na publicação em apreço demonstra outra concepção de bilinguismo, em referência ao proposto no convênio da IECLB e FUNAI, coordenado pelo SIL no CTPCC. Naquela oportunidade, o objetivo do bilinguismo era estabelecer uma ponte de transição dos falantes kaingang à incorporação do português como língua de uso coloquial nas comunidades kaingang e, por consequência, a integração da população na sociedade nacional. Essa proposição se evidenciou na publicação de um artigo de Barbara A. Newman (1975, p. 67-75), no Informativo FUNAI, sob o título “Ensino bilíngüe – uma ponte para a integração”. Newman concebe que a educação bilíngue, entendida como uma ponte 101 O livro é resultante da elaboração de textos, sendo os autores e autoras participantes do Curso de Formação de Professores Indígenas Bilíngues para o ensino de 1ª a 4ª série, realizado entre 1993 e 1996. O curso foi coordenado pela APBKG, ONISUL, UNIJUÍ e COMIN. O livro foi publicado pelo MEC/PNUD. 131 linguística, tornar-se-ia um instrumento aculturativo que propõe a possibilidade da integração, mas que permite retornar à própria cultura. Porém, o intento maior se constitui em estabelecer que o mesmo “amor” à própria cultura se transforme em base para “desenvolver o mesmo amor para com sua herança como brasileiro e participante na vida nacional” (1975, p. 69). Para se alcançar o objetivo do ensino bilíngue, define-se estabelecer as escolas no seio das comunidades indígenas, inseridas e vinculadas com a realidade local. Também corrobora a disposição em valorizar a língua e cultura das comunidades indígenas, como estímulo e promoção da estima. Esta disposição, porém, parece ser discrepante em relação à proposição de estabelecer uma ortografia fixa da língua indígena, ou seja, a padronização linguística, para se possibilitar a confecção e publicação de material didático na língua indígena. Questiona-se sobre a possibilidade efetiva de valorizar a realidade e a estima de determinada comunidade indígena, propõe-se a padronização e uniformização linguística. Apesar de tais proposições, de certo respeito e valorização da realidade cultural da comunidade indígena, Newman (1975, p. 72) também afirma que, durante o curso de treinamento de monitores bilíngues, “o uso da língua indígena assume proporções definidas que os seguintes objetivos: […] preparar os educandos para que possam cooperar nas suas comunidades para a integração na sociedade brasileira”. O propósito da integração com a cooperação de monitores bilíngues se evidenciava na apresentação do Programa aplicado pelo monitor bilingüe. O programa apresenta o currículo a ser seguido pelos monitores bilíngues no decorrer dos quatro primeiros semestre da educação escolar. O currículo, como Newman (1975, p. 72) o apresentou, propunha […] uso quase exclusivo da língua indígena no primeiro semestre e gradativamente, vai sendo introduzida a aprendizagem na língua nacional, até o término da 2ª série. Observa-se que somente no último semestre o educando começa a se alfabetizar na língua nacional; até este ponto ele vinha sendo alfabetizado na língua materna, aprendendo oralmente o Português. Evidencia-se que o uso da língua ocorreu como transição ao português. Estas propostas eram gestadas e geridas pela FUNAI, denunciando que os indígenas não participavam de tais processos, como se constata na publicação da Portaria 75/N da Funai, de 07/07/1972, que definiu os critérios na seleção da variante dialetal ou a padronização linguística para a grafia das línguas indígenas a serem ensinadas nos cursos de monitores. A referida portaria propunha que a grafia devia facilitar a produção de material didático e que “deve ser a mais aproximada possível do português”, e atribuía ao Departamento Geral de Assistência da FUNAI a composição de grupo de colaboradores técnicos para “examinar e 132 propor normas para a grafia das publicações em língua indígena” (NETTO, 1994, p. 47-8). Essas resoluções evidenciam que as definições eram estabelecidas de forma alheia à comunidade indígena. O propósito consistia em que os monitores bilíngues apreendessem as técnicas de escrita em sua língua tradicional para transpô-las, posteriormente, ao aprendizado da língua e escrita portuguesa. O português se fazia presente desde o primeiro semestre, mesmo que de forma oral, simultaneamente à aprendizagem da escrita da língua indígena, até suplantar esta. As consequências e resultados do programa desenvolvido no CTPCC foram perceptíveis e evidenciados anos mais tarde pelos próprios monitores bilíngues. Este fato foi relatado pela monitora bilíngue Andila Inácio Belforte (2002, p. 127): “Foi preciso passar 10 anos para percebermos que não era essa escola que precisávamos, estava nos despindo da nossa cultura, e não era isso que queríamos”. A autora também revela qual a realidade que desejava enfrentar e qual o apoio desejado no processo da educação bilíngue. Enquanto queríamos as garantias do ensino diferenciado para conservar a nossa cultura, não tínhamos quem nos ajudasse nas nossas dificuldades do ensino bilíngüe, propriamente dito, o que ainda estava segurando pelo menos a língua, e eu via que os professores indígenas, pelas dificuldades enfrentadas na alfabetização da língua e por falta de orientação e material didático apropriado, estavam deixando a língua e alfabetizando em Português, por ter mais recursos de que lançar mão (BELFORTE, 2002, p. 128). A construção da educação escolar bilíngue esbarrava em questões práticas, como a falta de material didático e orientação pedagógica específica. Mas também esbarrou na contratação efetiva dos monitores bilíngues, quando a responsabilidade da educação escolar indígena foi assumida pelo poder público municipal ou estadual, pois o certificado fornecido pelo CTPCC não teve o reconhecimento outorgado pelo Conselho Estadual de Educação. Para lograr a contratação, necessitavam submeter-se à prova de regularização dos estudos de 1º Grau ou Fundamental (BELFORTE, 2002, p. 127). Dos desejos e anseios dos monitores bilíngues, formados no CTPCC, destaca-se a afirmação de que ainda careciam de um ensino bilíngue propriamente dito. Compreende-se essa afirmação, como já comentado anteriormente sobre o bilinguismo, de que a comunidade indígena, tampouco o grupo de jovens que cursaram no CTPCC, não foram os protagonistas na implantação da educação bilíngue. Cabe destacar a compreensão sobre o que é ser bilíngue: 133 Alguém é bilíngüe enquanto tem razões para ser bilíngüe. […] O bilingüismo nasce do encontro e contato de indivíduos de uma língua com outros de outra língua. Sendo o bilingüismo uma característica do uso de duas línguas, uso que tem uma história e se aplica em circunstâncias particulares, dificilmente é o domínio equânime, equilibrado e completo de duas ou mais línguas. O domínio de duas ou mais línguas nunca tem a mesma extensão e profundidade no mesmo falante. O bilíngüe conhece ativamente uma língua e conhece passivamente as outras (MELIÀ, 1979, p. 66). O exposto evidencia que ser bilíngue implica no domínio ativo de uma língua, na qual a pessoa é educada, e no domínio passivo de outra língua, com a qual estabelece as relações sociais e o diálogo. Desta forma, constata-se o distanciamento conceitual da proposta de bilinguismo desenvolvido no CTPCC, em que se pretendia a transição de uma língua a outra, ou seja, a troca da língua de domínio ativo. Essa troca não foi articulada e nem conduzida pela comunidade indígena para o encontro com a sociedade não indígena. A proposta foi da sociedade não indígena para que o povo indígena substituísse a sua língua de domínio ativo. Desta feita, a expressão “nossas crianças precisam aprender português, Kaingang elas já sabem...”, manifestada na pesquisa de Silvio Coelho dos Santos (1975, p. 68-9) sobre o trabalho dos monitores bilíngues nas escolas kaingang, torna-se, outra vez, relevante. A manifestação evidenciou o anseio da comunidade kaingang em ser protagonista no estabelecimento do bilinguismo kaingang-português. A comunidade kaingang desejava manter a sua autonomia e autodeterminação diante das circunstâncias históricas e particulares no encontro dos falantes kaingang e outras línguas, como o português. A disposição gestada na década de 1970, da mobilização e articulação do movimento indígena na busca da cidadania plena, se pautou como requisito básico na garantia ao protagonismo e autodeterminação dos povos indígenas. Esses preceitos manifestavam-se na década de 1970, como as expressões aqui apresentadas em relação à educação escolar kaingang. O evento da promulgação da Constituição Federal em 1988 (CF 88) assegurou e emancipou a diversidade sociocultural no Brasil. A promulgação da CF 88 é o rompimento da concepção de “uma cidadania genérica e abstrata, artificialmente criada pela elite política, ao mesmo tempo eurodescendente e eurocentrada” (SOUZA, 2002, p. 25). O reconhecimento da cidadania plena aos povos indígenas resultou da mobilização indígena e setores populares ou solidários da sociedade brasileira. As derivações consequentes da declaração de cidadania plena e reconhecimento da diversidade étnica-cultural dos povos indígenas e, também, a outros grupos sociais ou populações tradicionais, na promulgação da CF 88, se estabeleceriam na constituição de políticas públicas distintas e diversificadas. Obviamente, com o 134 reconhecimento da cidadania plena aos indígenas, a existência de órgão oficial de tutela aos indígenas é descaracterizada e inviabilizada. A FUNAI assume a função de órgão assessor da União em relação às políticas públicas em benefício dos povos indígenas, sobretudo com a responsabilidade dos procedimentos demarcatórios de terras indígenas e, por conseguinte, da proteção e gestão territorial dessas. Na década de 1990, ocorrem as regulamentações e a reorganização da política indigenista oficial da República do Brasil, decorrentes da nova disposição da CF 88, sobretudo as questões concernentes à educação escolar e ao atendimento à saúde dos povos indígenas. Referente à educação escolar, ocorre a transferência de responsabilidade da educação escolar indígena ao Ministério da Educação, através da publicação do Decreto Presidencial nº 26/1991.102 A consequência prática dessa transferência de responsabilidade foi assim descrita pelos docentes kaingang (PROFESSORES, 2006, p. 280-1): Até o ano de 1990, a FUNAI era órgão mantenedor das escolas. Os professores pertenciam à FUNAI e os demais cedidos pelo município de Miraguaí e Tenente Portela. Foi a partir da década de 90, em todo o país e em especial na Guarita foram contratados os primeiros professores indígenas para atuar nas escolas e principalmente ensinar a língua Kainkáng. Também em 1990, através de Decreto Presidencial, o Presidente da República transferiu as responsabilidades educacionais para o Estado. O Rio Grande do Sul, através da Secretaria da Educação assumiu todas as escolas, firmando convênio entre a FUNAI e Estado para a ação conjunta referente à educação indígena. Este convênio está amparado no Decreto nº 26 de 04.03.1991 [sic] e portaria Interministerial nº 559 de 16.04.1991.103 A mencionada Portaria Interministerial (Min. Justiça e Min. Educação) nº 559/91 institui os Núcleos de Educação Escolar Indígena (NEI’s), vinculados às Secretarias Estaduais de Educação, em caráter interinstitucional, garantida a participação de entidades e representações indígenas e entidades atuantes na educação escolar indígena. Os NEI’s se propuseram a priorizar a formação e capacitação pedagógica de docentes indígenas e pessoal técnico, visando à equiparação salarial ao magistério estadual. Definiu-se os critérios para a regulamentação das escolas indígenas, bem como os projetos político-pedagógicos, calendário escolar, sistemas de ensino, metodologias e pedagogias concernentes à realidade sociocultural das comunidades indígenas (BONOTTO, 2004, p. 40). 102 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/Legisl/capitulo-09.pdf> Acesso em 01 set. 2011. O arquivo eletrônico (formato ‘pdf’) dispõe de uma coletânea da legislação pertinente à educação escolar indígena. O Decreto nº 26/91 está disponível na p. 20 [523]. 103 Os autores cometeram um equívoco na datação do Decreto nº 26/91, sendo a data correta 04 de fevereiro de 1991; ver nota anterior (Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/113987/decreto-26-91> Acesso em: 01 set. 2011). 135 Tais premissas também se estabeleceram na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394 (20/12/1996), que trata no artigo 79 sobre o “provimento da educação intercultural às comunidades indígenas”. A LDB/96 instituiu o reconhecimento pleno da educação escolar indígena, na perspectiva intercultural, pautada e concebida pela comunidade indígena. A implantação da LDB/96 proporcionou a gestão da educação escolar pela comunidade indígena, garantindo “a articulação dos sistemas de educação para a oferta da Educação Escolar Indígena em forma bilíngüe e intercultural, de modo que garanta a recuperação de sua cultura e sua história étnica” (KAINGANG, 2006, p. 202). A nova legislação educacional rompeu com a realidade exposta de que “os professores pertenciam à FUNAI”. O rompimento evidenciou a possibilidade de a EEI ser concebida pela própria comunidade escolar kaingang; a educação escolar passou “a pertencer à própria comunidade kaingang”. A escola bilíngüe, campo atuação de professores e intelectuais indígenas, é por eles reconhecida enquanto espaço de residência cultural, de resgate das tradições e das ciências originárias e locus de produção de novos saberes. (FREITAS, ROSA, 2003, p. 21) A relevância do destaque se justifica pelo fato de que foram os professores kaingang que assumiram o ensino, “principalmente a língua Kaingáng”. As mudanças ocorridas na década de 1990 potencializaram a compreensão de uma abordagem e concepção própria. Essa compreensão também se destacou nas manifestações apresentadas da educadora kaingang Andila I. Belforte, ao relatar a angústia sobre o bilinguismo aprendido no curso de monitores bilíngues. O NEI no Estado do Rio Grande do Sul foi implantado em 1996, “constituído principalmente por conselheiros indígenas (professores bilíngües), muitos deles formados com o apoio concreto e com o incentivo do COMIN e da IECLB ao longo das últimas quatro décadas” (CATAFESTO, 2001, p. 14). Ainda que pese que na primeira metade das quatro décadas tenha participado da política de integração, o antropólogo José Otávio de Souza Catafesto (2001, p. 18) pondera: Considerando todas as limitações daquela época, é possível reconhecer um papel histórico dessas iniciativas junto à TI Guarita, porque delas se seguiram críticas que, incorporadas e atualizadas pelo indigenismo da IECLB, possibilitaram uma melhor estruturação do COMIN. No processo de avaliação da ação missionária indigenista da IECLB e COMIN, Catafesto (2001, p. 19) indicou o evento da retirada, pelas lideranças kaingang, da equipe da IECLB/COMIN do projeto missionário instalado na TI Guarita, em 1985, como um dos 136 “fatores condicionadores” na transição entre o modelo missionário indigenista localizado nas décadas de 1960 e 1970 para uma “diretriz mais itinerante de ação missionária”. Ou seja, a atuação indigenista do COMIN também nas questões concernentes à educação escolar kaingang da TI Guarita, fato evidenciado na participação do NEI, na década de 1990, quando da participação e contribuições para uma política pública educacional condizente aos preceitos e concepções propostos pelos representantes indígenas. Cabe destacar, também, que o evento da retirada da equipe da TI Guarita em 1985 também estipulou uma mudança da ação indigenista da IECLB/COMIN frente às políticas públicas. Compreende-se que na primeira fase da ação missionária indigenista, anterior a 1985, as ações contribuíram e, por vezes, executaram políticas públicas, como pode ser caracterizado o convênio da IECLB e FUNAI, firmado em 1968, que instituiu o CTPCC e sua atuação na década de 1970. Da mesma forma na instalação das escolas: a primeira, entre 1961 e 1964, próxima a Tenente Portela; e a segunda escola, no Setor Missão, próxima a Vila São João (Redentora/RS). O CTPCC e as escolas foram instituições vinculadas à ação missionária indigenista da IECLB, que executavam políticas públicas no lugar do órgão público responsável, a FUNAI. Contudo, a não renovação do convênio com a FUNAI em 1981 e o repasse da responsabilidade da Escola Marechal Rondon ao poder público configuraram a alteração na ação missionária indígena em relação às políticas públicas em educação. Portanto, a participação do COMIN no NEI-RS configurou uma postura diferenciada da anterior, pois a ação indigenista não foi mais de substituição de órgãos públicos na execução de políticas educacionais, mas de participação dos espaços públicos na definição e debate das políticas públicas a serem instituídas. Conforme evidenciado anteriormente, salienta-se que a participação em espaços públicos da educação escolar indígena também se caracterizou no protagonismo dos kaingang, muitos oriundos das ações missionárias indígenas da IECLB e COMIN. Catafesto (2001, p. 14) ressalta o empenho da entidade, em todo o período, em promover o “reconhecimento dos índios como sujeitos protagonistas de seu próprio destino”. O reconhecimento do protagonismo indígena evidenciou a disposição de se ter os próprios indígenas como agentes dos espaços públicos de implantação e debate das políticas públicas, fato corroborado pela composição do NEI-RS, que contava com a participação de oito indígenas (representantes comunitários e docentes), além de representante da FUNAI, COMIN e representantes do governo estadual: SEC, CEPI, entre outros (RAVAZZOLO, s.d., p. 3). 137 A instituição da educação escolar indígena (inicialmente por obra dos missionários, depois pelo Estado), em si, significou certamente a introdução de elemento estranho à cultura Kaingang; entretanto, o domínio do idioma e de alguns códigos culturais da sociedade envolvente, conforme reconhecem os próprios índios, é fundamental para assegurar-lhes um mínimo de autonomia na sua relação com os brancos. Por outro lado, há um esforço intenso por parte do COMIN e das organizações indígenas para garantir que o ensino das escolas indígenas contribua para a autodeterminação, e não para a aculturação, através da publicação de cartilhas e da exigência de que seja contemplada a cosmovisão, bem como os conhecimentos tradicionais dos Kaingang, no currículo, inclusive o saber relativo à medicina e métodos de cura. (ARMANI, 2001, p. 29-30) O protagonismo na EEI da TI Guarita explicitou-se na afirmação de docentes kaingang quanto ao fortalecimento e desafios enfrentados, mas tendo reconhecido o empenho e o espaço junto à comunidade kaingang ao relatar que Os professores indígenas começam a conquistar seu espaço na comunidade e nas escolas indígenas se fortalecendo através de grupos de estudos para construção de regimentos, elaboração de planos de estudos que contemplem sua realidade indígena (PROFESSORES, 2006, p. 281). A proposição e a disposição dos docentes kaingang no estabelecimento a autodeterminação na organização da educação escolar na TI Guarita foi evidenciada pelo grupo de professores. No prosseguimento das manifestações recentes, também se evidenciam outras manifestações, que extrapolam a dimensão da autodeterminação, estabelecendo a plena autonomia e gestão da EEI na TI Guarita. A manifestação pela autonomia plena na EEI é explicitada por uma professora kaingang, em entrevista a Corrêa e Oliveira (2007, p. 48), em estudo sobre o tema da cidadania e identidade cultural na TI Guarita, que declarou: “temos projetos para que nas escolas só deem aulas professores índios para preservação da língua Kaingáng”. A dimensão da língua kaingang se constituiu, então, como prioridade da EEI. Contudo, reconhece-se a realidade diversificada na TI Guarita, de comunidades em que predomina o uso da língua portuguesa e outras em que predomina o uso da língua kaingang. Esta realidade evidencia a complexidade da EEI, que prima pelo bilinguismo. A proposição evidenciada pelos docentes kaingang, da autodeterminação e da autonomia da EEI, evoca a realidade das comunidades e a identidade cultural como elementos constituintes da EEI na TI Guarita. Para tal autonomia, ainda há carências na formação para a gestão da EEI, sejam administrativas ou pedagógicas. Bruno Kaingang (2002, p. 2004) afirma que, supridas as carências, se “garantiria uma aproximação maior às especificidades de cada comunidade Kaingang, com maior qualidade do ensino e com a prática do bilinguismo em todas as escolas situadas nas comunidades”. 138 Retoma-se a proposição de Mélia (1979, p. 16), de que “alguém é bilíngüe enquanto tem razões para ser bilíngüe. [...] O bilíngüe conhece ativamente uma língua e conhece passivamente as outras”. A razão de ser bilíngue se estabelece pelo contato intercultural. A título de reflexão, questiona-se se a proposição de ser bilíngue pode ser assumida pela sociedade não indígena, que vive e transita dialogicamente com a comunidade kaingang da TI Guarita. Aos kaingang envoltos com a EEI se estabelece o desafio de constituir uma educação escolar bilíngue, de acordo com a manifestação da professora, em que a língua kaingang seja a língua de conhecimento ativo e o português, de conhecimento passivo. A preocupação com a preservação do idioma está presente, portanto, entre a comunidade indígena e parte também daqueles que trabalham diretamente com os índios (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 49). O exercício de magistério bilíngue demanda preparação e qualificação, como explicitado pelos professores que se organizam em grupos de estudos. Contudo, para se alcançar a plena autonomia na EEI, com o magistério nas escolas kaingang exercido somente por docentes kaingang, os mesmos buscam a capacitação constante. Assim é relatada a realização do curso Vãfy, ofertado pelo convênio FUNAI e universidades UNUIJUI e UPF. O curso foi ministrado em período de recesso escolar, capacitou 40 docentes, sendo a formatura da primeira turma em julho de 2005 (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 49). O exercício e concepção atual do magistério bilíngue evidencia o rompimento com a lógica da transição. A disposição de autonomia e condução própria da EEI na TI Guarita assume um elemento estranho à cultura e sociedade kaingang, a educação escolar. Contudo, esta assumir a educação escolar não se constitui em espaço de integração a outra sociedade. A disposição apontada pelos professores enfatiza o assumir a educação escolar coerente com a realidade das comunidades kaingang e de autoafirmação da identidade cultural. A proposta da educação escolar identificada e concebida a partir da realidade e cultura indígena, concebida nas décadas de 1990 e 2000, demonstra a percepção dialógica ou intercultural da EEI. Tal percepção dialógica e intercultural compreende a comunidade indígena como componente da sociedade brasileira, com sua cultura e realidade própria. André Toral, na apresentação do livro Ẽg jamẽn kỹ mũ, já referenciado acima, afirma a respeito que “os Kaingang, mesmo sendo brasileiros, não deixaram de ser índios; sua cultura indígena, continua original e diferente das de outros grupos indígenas e diferente da cultura dos brancos” (VYJKÁG, et al., 1997, p. 21-2). 139 A disposição em insistir no ensino bilíngue também garante “um futuro favorável às línguas indígenas”, pois impede que a escola se estabeleça como espaço aberto para imposição da língua portuguesa como balizadora e constituinte das relações sociais da comunidade. Ressalta-se que a tarefa do bilinguismo não cabe tão somente ao âmbito escolar, pois “a escola, sozinha, não consegue, infelizmente, reverter tendências sociolinguísticas” (SILVA, 2005, p. 106). Nesta perspectiva, o bilinguismo pode ser compreendido como um espaço em que se incorporam novos elementos à própria língua kaingang, sem que isso signifique o abandono ou rompimento da língua. Tal proposição é compreendida na análise da incorporação de palavras do português na língua kaingang, como constatado por Wiesemann (2002, p. 7-8): “quanto mais o povo Kaingang se torna bilíngüe, usando tanto o Português quanto “ẽg vĩ”104, mais palavras do Português são usadas naturalmente no contexto de “ẽg vĩ” e pronunciadas como se fizessem parte dela”. Wiesemann incluiu algumas dessas incorporações na terceira edição do Dicionário Bilíngue (2002). A compreensão estabelecida é a de que na dinâmica da dialogicidade e da interculturalidade os processos não se estabelecem numa forma acabada e definida. A língua kaingang, como apontado anteriormente, é uma língua com um processo recente de padronização sistemática, aos moldes da grafia latina. Ainda que pese a disposição de assumir a educação escolar e incorporar palavras em português no ‘ẽg vĩ’, mesmo na dinâmica dialogal e intercultural, esta se estabelece numa relação desigual entre duas sociedades, kaingang e não indígena, sobretudo no entendimento de que a própria instituição escolar foi instituída entre as comunidades indígenas, de modo particular entre os kaingang, como espaço de dominação e é estranha a estes. Albuquerque (2008, p. 87) destaca que a EEI “está sujeita a um sistema educacional concebido e inspirado por aquela sociedade, portanto, carregado de seus valores ideológicos”. A autonomia e autodeterminação estabelecidas a partir da CF 88 alteram profundamente a estrutura de modelo político, jurídico e social em relação aos povos indígenas, garantido o trato de respeito como sujeitos e protagonistas, como sociedade de organização e cultura diferenciada. Souza (2002, p. 25) afirmou que a tal reconhecimento e proposição constitucional há que se acrescer a “grande dívida histórica da ‘sociedade nacional’ para com as populações indígenas”, e para tanto faz se necessário reverter os processos e realidades “nas mínimas coisas e nas circunstâncias em que for possível”. Isso implica em insistir no questionamento sobre o bilinguismo duplo, tanto na sociedade kaingang como na dos não indígenas. Também 104 Ẽg vĩ – Nossas palavras (tradução do autor). 140 implica em estabelecer um sistema público de EEI, como definido na I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (CONEEI). A I CONEEI, com eventos locais, regionais e nacional, realizou-se a partir de 2008, conforme apresentação no documento final das conferências regionais. As propostas aqui apresentadas resultaram das 18 Conferências Regionais de Educação Escolar Indígena (COREEI) realizadas ao longo de 09 meses, em várias regiões do Brasil com apoio e participação dos Povos Indígenas, Ministério da Educação, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, Fundação Nacional do Índio, associações indígenas e organizações nãogovernamentais. A I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena – CONEEI é resultado da luta e reivindicação histórica do movimento indígena para discutir e avaliar as políticas educacionais voltadas para os Povos Indígenas (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 6). A organização da CONEEI estabeleceu o desafio de oportunizar a participação de todos os povos indígenas do Brasil e suas demandas das comunidades educativas sob o desafio de “definir os rumos que as políticas públicas para educação escolar indígena devem seguir nos próximos anos”, através de conferências locais e regionais (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 6). No tocante à definição de rumos da EEI, apresentam-se a seguir alguns destaques, que coincidem com a proposta do currículo intertranscultural (PADILHA, 2004), como abrangente às postulações e reivindicações das comunidades escolares indígenas no exercício da cidadania ativa e no fazer educacional e cultural.105 As conferências regionais de EEI evidenciaram a recomendação de que os projetos político-pedagógicos das comunidades escolares indígenas fossem pautados pela […] autonomia, participação da comunidade, valorização dos saberes tradicionais, especificidade de acordo com a realidade política e cultural de cada povo. Além disso, chamaram atenção para a relação da Escola Indígena com os projetos de futuro daquele povo e o comprometimento do PPP com os projetos societários da comunidade. As Conferências debateram, também, aspectos mais específicos do PPP, como calendário escolar, diários de classe, avaliação; e itens referentes ao controle exercido pelas Secretarias de Educação sobre as escolas das aldeias e que tem sido motivo de muitas tensões (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 23). O desejo e o anseio das comunidades escolares indígenas se pautam em serem sujeitos e construtores do projeto político-pedagógico. É o se assumirem como autores e autoras da educação cidadã na perspectiva cultural e própria de cada povo ou comunidade indígena. O 105 Para aprofundamento sobre o currículo intranscultural e EEI, indica-se o artigo: LUCKMANN, Sandro. Currículo Intertranscultural e a Educação Escolar Indígena. In: SANTIAGO, Anna Fontella; et al. (orgs.). Cultura, currículo e protagonismo social. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010. p. 67-80 (Coleção trabalhos acadêmicocientíficos. Série Educação nas Ciências, 24). 141 processo específico de construção de ser sujeito também concebe que os processos de avaliação e monitoramento do exercício da EEI devam se pautar por uma avaliação específica e com “a participação da comunidade escolar na definição dos instrumentos e critérios avaliativos” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 26). Aliás, a prerrogativa de ser sujeito e partícipe da EEI se torna referência também nos espaços institucionais e nas diferentes fases da educação escolar indígena, como apontado no documento. As Conferências Regionais chamaram a atenção para a necessidade de se garantir nos espaços institucionais (regional e nacional) uma maior participação das comunidades e representações indígenas em todas as áreas da educação escolar indígena (planejamento, elaboração, execução, monitoramento e avaliação) e dos projetos educacionais para gestão das escolas indígenas (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 27). As reflexões e os debates nas conferências da EEI se aproximaram da proposta da intertransculturalidade. Essa pleiteia que a escola seja inserida na realidade local e até planetária, concebendo que o projeto político-pedagógico e o currículo escolar se constituem na associação da educação escolar à educação comunitária, “aos movimentos sociais, à ‘energia emancipadora’ presente nesses vários espaços sociais e políticos, sem que haja hierarquias sociais, culturais e humanas validadas pela escola” (PADILHA, 2004, p. 297). A concepção é estabelecida na interação entre o mundo escolar e o mundo comunitário em que esta se localiza e se insere. Esta dimensão remonta ao aspecto da vinculação entre educação e cultura. A escola não se estabelece dissociada da realidade ou dos movimentos emancipatórios, mas se nutre desses e os potencializa ao propagar que o fazer educacional e cultural se torna fruto do reconhecimento dos sujeitos históricos e presentes em ambas as dimensões. Da mesma forma, concebe-se que a EEI seja vinculada aos projetos societários e ao protagonismo dos povos ou comunidades indígenas, conforme a reflexão de que o exercício, no dia-a-dia, de professores, lideranças e seus aliados, para a ressignificação da instituição escola, modelada historicamente pela negação da diversidade sociocultural, em um espaço de construção de relações interétnicas orientadas para a manutenção da pluralidade cultural, pelo reconhecimento de diferentes concepções pedagógicas e pela afirmação dos povos indígenas como sujeitos de direitos, sugeriu as diretrizes políticopedagógicas da interculturalidade, do bilingüismo/multilingüismo, da diferenciação, da especificidade e da participação comunitária, formando consensos sobre como seria uma educação escolar protagonizada pelos povos indígenas e associada a seus próprios projetos societários (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2008, p. 13). 142 O protagonismo e o projeto societário indígena preconizam, inclusive, rever a função das escolas junto aos povos ou comunidades indígenas. De modelo de negação cultural a um espaço de relações interétnicas. Poder-se-ia conceber que os povos ou comunidades indígenas almejam o espaço escolar como uma fronteira interétnica. E, nessa fronteira, se estabelece o reconhecimento e o respeito aos povos ou comunidades indígenas como sujeitos de direito ou como cidadãos ativos. Assim, a CONEEI teve como desafio inaugurar a oportunidade de […] espaços em que representantes indígenas e gestores públicos discutam ampla e profundamente políticas e programas para assegurar que os direitos a uma educação básica e superior intercultural, para apoiar os projetos societários de cada comunidade, sejam efetivados, com instrumentos legais e gerenciais compatíveis com o reconhecimento da pluralidade cultural e da auto-determinação dos povos indígenas (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2008, p. 13). As recomendações e os debates no âmbito das conferências da EEI foram concebidos como “propostas em aberto”, pois não se propuseram a estabelecer modelos únicos e uniformes a serem definidos nas diferentes comunidades escolares indígenas. As formulações apresentadas evidenciam a dinâmica de se estabelecer diretrizes, recomendações e reflexões ao exercício da EEI. Esta percepção leva a conceber que a EEI se nutre da dimensão da educação emancipatória, do estar em constante gestação. Ou seja, as comunidades indígenas se aproximam da percepção de que a EEI se constitui em um estar sendo, de acordo com a cultura e realidade locais, sem impedir a inter-relação com as outras culturas ou realidades. 3.2 A INTERCULTURALIDADE NA EEI O espaço da EEI constitui-se a partir das premissas de uma educação específica, intercultural e bilíngue. Estes princípios constituem a EEI e a etnicidade dos povos indígenas, no caso, do povo kaingang, num processo de autonomia e melhoria das condições de vida (MATTE, 2009, p. 113). Neste sentido, a interculturalidade é concebida como um desafio ao contexto de pluralidade cultural, da imposição de cultura filosófica escrita frente a cosmovisões e cosmologias pautadas e concebidas na oralidade, da imposição de um bilinguismo diante de contexto poliglota ou da imposição da concepção de uma nova etnia genérica, o povo brasileiro, subjugando e aniquilando a diversidade cultural. Fornet-Betancourt (2004, p. 25) alerta para o fato de a interculturalidade, no caso na concepção da filosofia intercultural latino-americana, se constituir num continente poliglota. Por isso o estreitamente da compreensão do bilinguismo não responderá o “desafio 143 intercultural que lhe propõe a diversidade cultural de seu contexto”. A reflexão torna-se importante ao se retomar a concepção de que a própria língua kaingang é diversa, com cinco variantes. Ou seja, a dinâmica intercultural bilíngue não pode representar a padronização e nova colonização linguística em uma suposta tentativa de regular e formatar a língua, pois então se rompe com a diversidade interna e constituinte do ser kaingang. A diversidade linguística kaingang também pode estabelecer uma diversidade e modalidades de construções textuais, pois estas são elaboradas a partir da oralidade da língua kaingang. Nascimento (2010, p. 73) ressalta que há “diferentes gêneros de discursos dentro da língua kaingang como, por exemplo, os diferentes tipos de narrativas, cantos, rezas etc.” No artigo intitulado “As artes da Palavra”, Nascimento (2010, p. 73-97) analisa as construções gramaticais que caracterizam os diferentes textos, destacando termos específicos da língua kaingang. Considera-se o desafio de tal análise, pois, conforme Fornet-Betancourt (2004, p. 24) aponta, esta se constitui na interculturalidade de uma cultura escrita diante do “contexto cultural de um mundo em que a oralidade joga um papel de primeira ordem na criação e transmissão da cultura”. Esse fato também é apresentado na elaboração do livro Gufã ág kajró,106 em que “as pessoas leitoras irão encontrar formas distintas da escrita kaingang” devido à não padronização da língua kaingang e, também, pela coexistência das variantes linguísticas kaingang (LUCKMANN, FALCADE, 2008, p. 9). Na apresentação do livro externou-se a preocupação “em preservar os conhecimentos tradicionais da comunidade kaingang sob o seu domínio” e, por isso, “optou-se em elaborar o presente livro quase que na totalidade na língua kaingang” (Idem). O fato evidencia que a EEI, como espaço em que se deseja a interculturalidade, ainda possui obstáculos e barreiras a serem removidas. O fato evidenciado na publicação do livro Gufã ág kajró, com o qual a ação missionária indigenista do COMIN se depara, que a comunidade kaingang da TI Guarita evoca, foi de que a interculturalidade ainda é um desafio para além do espaço e dinâmica da EEI. Ressalta-se, pois, que […] a educação intercultural somente tem sentido se tiver projeção na estrutura social, integrando-se em discursos que vão além do âmbito educacional. E, assim, definimos educação intercultural como a promoção de processos educativos que possibilitem uma interação das culturas em pé de igualdade; partindo do conhecimento do respeito e da valorização mútuos, 106 O livro foi elaborado a partir de entrevistas com pessoas detentoras de saber tradicional kaingang e redigido por docentes kaingang. O livro foi publicado pelo COMIN como produto de projeto de revitalização de saberes, financiamento do PPIGRE/MDA. Tradução do título pelo autor da dissertação: “Saber dos anciões kaingang”. 144 desvendando os condicionantes ideológicos e sócio-econômicos que modulam tais relações (LLUCH, 1998, p. 56). O fato de usar a língua kaingang como forma de proteger os conhecimentos tradicionais kaingang da comunidade kaingang da TI Guarita demonstrou que a relação entre as culturas e sociedades envolvidas na EEI ainda não ocorre em “pé de igualdade”, fato evidenciado pela equipe redatora do livro e lideranças kaingang da TI Guarita, que “manifestaram preocupação com o risco de apropriação indevida de tais conhecimentos, por pessoas com interesses distintos aos do povo kaingang” (LUCKMANN, FALCADE, 2008, p. 9). A publicação do livro, praticamente monolíngue kaingang, também exortou a autonomia e o direito à diferença na elaboração de materiais didáticos. Como define Lluch (1998, p. 54), a educação intercultural preza pela igualdade, pela justiça e pelo direito à diferença, princípios que garantem uma educação autônoma, construída pelos próprios interessados. A construção da EEI na perspectiva da educação intercultural também se evidencia como espaço de fortalecimento da identidade cultural, que se aproxima de outros valores, conhecimentos e práticas, de outros povos e sociedades. Como define Garrafa (2008, p. 124), “el currículo culturalmente pertinente promueve la reflexión tanto acerca de la cultura ancestral como de la occidental. Esta interrelación reflexiva sirve para superar la hegemonía excluyente de la cultura”. A superação da hegemonia excludente a que se refere Garrafa também é evidenciada por um acadêmico kaingang, que afirmou: “Na escola a gente aprende que o português tem que ser a língua, quer dizer, é a língua maior e melhor, a gente concorda hoje que é a maior, mas não a melhor. Nós também temos as nossas (línguas)” (MATTE, 2001, p. 69). Garrafa e o acadêmico kaingang explicitam a necessidade do exposto anteriormente, de que a interculturalidade extrapola o espaço da EEI e interfere na interrelação cultural e social que envolve a educação escolar.107 O desafio para a constituição da EEI como uma educação intercultural se estabelece na transformação do sistema educacional, no qual está inserida a educação escolar indígena, implicando também na reestruturação do enfoque pedagógico, como propõe Garrafa (2008, p. 124). Garrafa estabelece que a educação bilíngue intercultural construa uma educação distinta dos moldes tradicionais, com um currículo diversificado e culturalmente pertinente, ressaltando, a partir da inserção no contexto andino, que La educación debe desterrar toda manifestación de discriminación cultural, étnica o lingüística, es su deber contribuir a la revaloración de nuestra 107 De forma semelhante é exposto à concepção do currículo intertranscultural, referido no item anterior. Para aprofundamento, indica-se o texto de Padilha (2004). 145 cultura andina, el rescate de la tradición oral y la práctica de lenguas vernáculas, principalmente el quechua y el aymara, dentro de una perspectiva bilingüe intercultural (GARRAFA, 2008, p. 126). O proposto por Garrafa também foi evidenciado por Matte (2001)108 ao definir que a educação específica, intercultural e bilíngue, a que se propõe a comunidade escolar kaingang da TI Guarita, constituirá um “novo tempo para a identidade Kaingang”. Escolas em que a língua Kaingang é componente fundamental do currículo, que também direciona os demais conteúdos no sentido de estudar a realidade, história e cultura Kaingang, de enfocar a realidade mais ampla a partir do seu lugar, na sua situação e relações que estabelecem, sinalizam um novo tempo para a identidade Kaingang. Uma identidade que valorada positivamente tem na língua a sua afirmação, que nomeando, designa “Kaingang: pessoa de nossa gente” (MATTE, 2001, p. 56). A constituição dessa “nova identidade” ocorre de forma processual, da qual a educação escolar faz parte, porém se estabelece desde a década de 1970, com o movimento indígena. Nesse movimento se estabelecem A consciência de ser e a vontade de querer ser Kaingang, bem como o esforço de pensar, optar, negociar, reinventar, propor, buscar, exercita-se, especialmente desde então, pelas reivindicações visando espaços de autonomia e convivência multicultural; melhorias das condições gerais de vida, que passam por suas definições sobre as ações que afetam as suas comunidades, por uma educação escolar indígena específica, atenção à saúde, auto-sustentação e, particularmente, pela recuperação de territórios tradicionais (MATTE, 2001, p. 127). O propósito evidenciado à escola kaingang como espaço de ser e querer ser kaingang, como elemento constituinte da interculturalidade, visando fortalecimento da etnicidade e paridade na política pública de educação, torna-se desafio para ação do COMIN, pois “deveria dar maior prioridade e atenção à implantação de uma educação genuinamente indígena”, como disposto por Armani (2001, p. 52). Reconhece-se o COMIN como agente intercultural (SOUZA, 2001, p. 13) e sua trajetória da ação missionária indigenista de contribuição à luta pela autodeterminação e autonomia dos povos indígenas no Brasil (ARMANI, 2001, p. 52). Porém, o disposto sobre EEI e interculturalidade demanda uma ação de inter-relação com a comunidade kaingang, e outros povos, e com as políticas públicas e os sistemas educacionais. Salientando que os agentes e propositores para a interculturalidade na EEI são as comunidades indígenas, o COMIN se dispõe como entidade de acompanhamento solidário 108 Matte tratou da identidade cultural/etnicidade de acadêmicos kaingang na UNIJUÍ em dissertação de mestrado. 146 (SPELLMEIER, 2011, p. 22). Do contrário, romper-se-ia com os princípios de respeito, justiça e paridade, tão caros e fundamentais para a educação bilíngue intercultural. Nesta perspectiva, torna-se relevante a disposição do COMIN, como agente intercultural, de realizar o curso de pós-graduação “Educação, Diversidade e Cultura Indígena” para capacitação ao disposto no Decreto Lei nº 11.645 de 10 de março de 2008,109 que estabelece a obrigatoriedade da inclusão da cultura e história dos povos indígenas no currículo do ensino fundamental e médio. Conforme Bruno Ferreira, 110 o curso demonstra a disposição da entidade “em fomentar discussões e atividades práticas que conduzem ao respeito e a valorização da diversidade de culturas e de etnias” (COMIN, 2009). Seguindo o propósito da interculturalidade, na realização do curso se oportunizou a participação de discentes e docentes das etnias kaingang (TI Guarita/RS), xokleng (TI La Klanõn/SC) e tupiniquim (TI Tupinikin/ES) (BEHS, 2011b; MARKUS, 2009). Conforme Markus (2010), “a participação de docentes e discentes indígenas apresentou um diferencial importante para cada participante do grupo com possibilidades de interação e interlocução direta com estes povos”. Considera-se, desta forma, a disposição da ação indigenista na dinâmica da interculturalidade, constituída a partir da ação em EEI, porém que se estabelece e amplia para demais espaços e interações com a sociedade. A sociedade constituída no plural, ou seja, sociedade plural, que ainda carece do “respeito à diversidade cultural e a vivência intercultural” (TREIN, 2010, p. 31). Para tanto, faz-se necessário contribuir para a redução da discriminação cultural e o respeito à etnicidade das comunidades e povos indígenas. 3.3 A EEI E A TERRITORIALIDADE No primeiro capítulo, constatou-se que a prática do esbulho territorial, sofrida pelas comunidades kaingang, esteve em diversos momentos vinculada com a implantação da educação escolar. Desde a participação nas missões jesuíticas ou reduções jesuíticas, pois concentraram as comunidades indígenas em um determinado espaço geográfico, a educação, na modalidade de catequese, foi imposta aos kaingang. O mesmo ocorreu no intento de aldeamento do Pe. Parés no século XIX e, também, na prática iniciada pelo SPI e continuada pela FUNAI, no século XX, quando o esbulho transcorreu através do arrendamento e exploração madeireira. 109 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> Acesso em: 04 nov. 2011. 110 Bruno Ferreira, professor kaingang na TI Guarita, foi discente e docente no curso de pós-graduação. 147 Contudo, na transição da década de 1970 para a década de 1980, contatou-se a mobilização das comunidades kaingang em prol da recuperação dos espaços territoriais tradicionais e a reafirmação da etnicidade. O espaço escolar foi incluído nessa mobilização, estabelecendo que a escola estivesse “em prol da causa indígena” (FREITAS, ROSA, p. 2003, p. 61). Concebeu-se, a partir de então, o projeto da escola kaingang autônoma. A mobilização de recuperação da terra tradicional se estabeleceu no vínculo da implantação da autonomia na EEI. Para Freitas e Rosa (2003, p. 61), a comunidade kaingang destinou esforços […] para a retomada dos espaços culturais de criação e reprodução do grupo, dedicando-se ao resgate de práticas de saúde, da língua, dos ritos, dos mitos tradicionais, revalorizando os velhos e seus saberes. Paradoxalmente, estes últimos vão eleger a escola como locus do seu trabalho e a formação universitária como o caminho para a consolidação de uma escola autônoma, cujos quadros, na concepção kaingang, idealmente se compõem exclusivamente de índios. Neste sentido a luta por uma escola indígena é, no início dos anos de 1990, apreendida pelos kaingang como um desdobramento da luta pela terra. A autonomia na EEI, entendida como desdobramento da luta pela terra, também se evidenciou no ingresso do primeiro grupo de kaingang na universidade na década de 1990. Nessa década, porém, não se questionou mais a implantação da educação escolar vinculada ao esbulho territorial. Ao contrário, a prática do arrendamento foi um dos motivadores para o ingresso de estudantes kaingang da TI Guarita no ensino superior, como apresentado no segundo capítulo. O desafio foi obter a formação acadêmica para assessorar a comunidade e as lideranças indígenas na redução ou impedimento do esbulho territorial e da exploração imposta pelo agronegócio. Porém, a situação persistiu. No período de duas décadas, contadas a partir do ingresso do primeiro grupo de kaingang na UNIJUÍ, em 1992, contabilizam-se as conquistas de políticas públicas que beneficiaram direta e indiretamente as comunidades indígenas. […] foram implementadas políticas de atenção à saúde do índio, além de experiências de educação específica e diferenciada em língua materna e a obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino pública e privada (BEHS, 2011) Tais conquistas, resultantes do movimento indígena, foram asseguradas a partir da CF 88. No entanto, Fernanda Kaingang,111 que cursou Direito na UNIJUÍ, denuncia que “a questão territorial segue como problemática para a garantia dos direitos fundamentais como 111 Nome completo de Fernanda Kaingang: Lúcia Fernanda Inácio Belfort, sendo a primeira indígena mestre em direito no Brasil, pela UnB. Disponível em: <http://www.unbcds.pro.br/pub/?CODE=01&COD=1&X=1449> Acesso em: 08 nov. 2011. 148 saúde e educação aos 240 povos indígenas que habitam o território brasileiro e que somam hoje 700 mil habitantes, ou seja, menos de 1% da população nacional” (BEHS, 2011). A denúncia de Fernanda Kaingang torna-se evidente e estarrecedora no relato de Laisa Erê Ribeiro (2011). Laisa é membro da comunidade kaingang da TI Guarita, graduada em Biologia pela UNIJUÍ, e cursa, atualmente, duas pós-graduações, na UFRGS e na EST/COMIN.112 A pós-graduanda kaingang relata a sua participação em Audiência Pública, promovida pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal, 113 sobre demarcação de terras às comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas: Deparei-me então com o que há de mais preconceituoso no ser humano, ser esse que se autodenomina civilizado! O assunto em questão era se demarcava algumas terras indígenas ou não, cada um defendendo seu lado, “tentando” entrar num acordo que contemplasse todas as partes. Minha indignação não é nem em relação a se demarca ou não territórios tradicionais indígenas ou se deixa os invasores não indígenas lá, mas em perceber como somos vistos e tratados pelos grandes produtores e políticos que nos representam no cenário nacional ou estadual (RIBEIRO, 2011). O relato aponta a situação de injustiça e de preconceito que é externado no momento de conflito de interesses, recorrente nos processos demarcatórios de terras tradicionais kaingang. Situações análogas também ocorreram em todo o processo de esbulho territorial no passado. Na audiência também estiveram presentes outras lideranças indígenas, que contestaram e manifestaram a importância do território para as comunidades indígenas, como garantido pela CF 88. Laisa Ribeiro (2011) reafirma, então, a mesma disposição que motivou os primeiros estudantes kaingang ao ingresso no ensino superior. Que bom seria se junto com esses líderes, estivem [sic] todos nós guerreiros indígenas que tivemos a chance de sair estudar e conhecer essa sociedade, talvez a gente poderia fazer a diferença naquele momento, não podemos querer ser guerreiros só dentro das nossas aldeias, porque lá não precisamos guerrear com nós mesmos, devemos ter consciência de que nossa luta é aqui fora junto às nossas lideranças tradicionais, mostrando os caminhos para a justiça e vitória , não com flechas, mas com a palavra e o conhecimento das leis criadas pelo homem branco. A afirmação de que na atualidade a luta se faz “com a palavra e o conhecimento das leis criadas pelo homem branco” evidencia a consciência de que tanto a questão da 112 Laisa Erê Sales Ribeiro é bolsista do Curso de Lato Sensu Educação, Diversidade e Cultura Indígena na Faculdades EST/IECLB; realiza o curso em convênio com o COMIN. Laisa colaborou com a publicação “Parentes e amigos unidos pela reconstrução da vida” (COMIN, 2003, p. 18) e também foi professora na E.E.I.E.F. Mũ Kej. 113 Ver relato da reunião, conforme assessoria de comunicação do Senado Federal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/ana-amelia-busca-solucao-para-conflito-entre-produtores-ruraisquilombolas-e-indigenas-no-sul-do-pais.aspx> Acesso em: 07 nov. 2011. 149 territorialidade como a da interculturalidade, do bilinguismo e da autonomia estão dependentes da relação desigual que se estabeleceu e se estabelece entre a sociedade indígena e a não indígena. Remonta-se ao fato das conquistas e garantias obtidas a partir da CF 88, que ainda carecem de tratamento digno e respeitoso. De nada adianta passarmos na universidade, de nada adianta conviver nessa sociedade injusta se não sabemos o que queremos, para que queremos e o que faremos com nosso conhecimento adquiridos em anos de estudos, pois só assim provaremos a todos que não somos e não admitimos sermos tratados como palhaços, como fomos nesse dia triste (RIBEIRO, 2011). O desafio da busca de ferramentas para a superação das situações de injustiça, preconceito, desigualdade e conflito, como evidenciado no relato de Laisa Erê Ribeiro, se constitui no desafio permanente da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN, como reafirmado em documento comemorativo ao jubileu do cinquentenário da ação missionaria indigenista da IECLB e do COMIN. O referido documento reafirma a disposição da ação missionária indigenista de contribuir junto aos povos indígenas, a promoção do diálogo, o respeito intercultural e o estabelecimento de relações de justiça e paz (FRIEDRICH, TREIN, 2011). O documento não explicita a questão fundiária, da demarcação de terras tradicionais, porém se considera o tratamento do tema ao se referir aos conflitos de interesses e de direitos. Contudo, na publicação comemorativa, o tema foi tratado por Spellmeier (2010, p. 22), que afirmou Com a inclusão do direito dos povos indígenas à sua cultura e organização social, às terras de ocupação tradicional, à cidadania plena e diferenciada na Constituição Federal de 1988, esta passou a ser necessariamente a norma legal e jurídica de todo o trabalho do COMIN. A disposição se constitui como “norma pedagógica e metodológica” da ação missionária indigenista, enfatizando que os agentes de mudança são as comunidades indígenas (SPELLMEIER, 2011, p. 22), através de seus agentes, lideranças tradicionais ou com formação acadêmica. A autoridade de refletir, questionar e contestar não se estabelece com palavras de outras pessoas, mas com a própria voz. Assim, torna-se relevante a conclusão de Laisa Erê Ribeiro no texto “A realidade nua e crua”, referente à audiência assistida e sua formação acadêmica: Penso que momentos como esse devem ser divulgados, pois podemos sim fazer a diferença, lutar, acreditar, se expor, chorar e podemos até perder, mas nunca deixar de ter orgulho de levantar a bandeira e gritar, mesmo que seja um grito silencioso e que ninguém naquele momento nos ouvisse, mas que se grite e diga com orgulho que a casa é nossa e não damos autorização para ninguém entrar sem ser convidado. Nossa casa é nossa terra e não podemos 150 deixar nossos filhos crescerem sem saber de onde vieram e para onde voltarão (RIBEIRO, 2011). A insistência em defender o espaço territorial se constitui como elemento-chave entre a EEI e a garantia da territorialidade kaingang. Assim, como a EEI esteve vinculada ao esbulho territorial no passado, transmuta-se agora como ferramenta de garantia e debate nas situações de conflitos de direito e interesses. Suspeita-se que a insistência em garantir o espaço territorial às comunidades indígenas signifique uma estratégia para que a sociedade não indígena se defronte com a presença das comunidades indígenas, evidenciada em afirmações contundentes, como: “nossa casa é nossa terra”; ou “antes mesmo de vocês chegarem”. E se conclui que é nesta “casa” que a comunidade indígena quer estabelecer a EEI autônoma e específica, que assumiram depois da chegada dos não índios. A relação entre EEI e territorialidade é intrínseca para as comunidades indígenas, porém num sentido contrário ao daquele que foi proposto pela sociedade não indígena. PARA CONTINUAR REFLETINDO, APOIANDO, ... As reflexões dispostas nesta dissertação demonstraram a proximidade e o fazer da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN no envolvimento e contribuição da instituição da EEI na TI Guarita. A trajetória da EEI se estabeleceu a partir de propostas por vezes antagônicas, mas que se constituíram em um envolvimento que evocou mudanças no próprio fazer-se como órgão ou grupo social de apoio e parceria à comunidade kaingang. Assim, o bilinguismo, entendido inicialmente como um elemento de dominação e subjugação, constitui-se posteriormente como elemento que visa à autonomia e autodeterminação dos kaingang, almejada para a EEI, amparada na educação diferenciada, bilíngue e intercultural. De modo semelhante, também a trajetória da IECLB e do COMIN não pode ser considerada como encerrada e acabada. Pelo contrário, constitui-se como um processo inacabado, pois os próprios sujeitos são inacabados. A própria realidade em que está inserida se transforma e apresenta novos desafios e temas constantemente. No transcorrer da dissertação, evidenciou-se que, no processo histórico, a questão da língua e da implantação da educação escolar se fizeram presentes nos contatos e confrontos interétnicos, kaingang e sociedade não indígena. Inicialmente, com a redução territorial e empenho na catequização das comunidades, mesmo com o propósito da instalação de escolas ou catequese, o projeto esbarrou na questão linguística e na imposição de noções culturais distintas às das comunidades indígenas como a noção de trabalho. A questão de conflito e disputa territorial também se estabeleceu no assentamento das famílias de imigrantes europeus, de profissão de fé evangélica luterana, que posteriormente constituíram a IECLB. Essas famílias trouxeram na bagagem a herança luterana do incentivo e promoção da educação escolar, inclusive com alguns intentos no início do século XX, como o de estabelecer uma missão entre índios, juntamente com a implantação de escolas no norte riograndense e meio-oeste catarinense. A proposição de uma missão entre índios por parte dos descendentes das famílias de imigrantes europeus evangélico-luteranos se efetiva a partir da Paróquia Evangélica de Tenente Portela, instigada pelo P. Norberto Schwantes, iniciada em 1961 através da implantação da Escola Evangélica Indígena na TI Guarita. A partir de então até o presente momento, estabeleceu-se uma trajetória de meio século, trajetória marcada por ações consideradas como pioneiras em nível de Brasil ou, quiçá algumas, de América Latina, como a formação de monitores bilíngues. Mas, uma trajetória com mudanças no perfil da ação 152 missionária indigenista, iniciada com a implantação de uma pequena escola para os índios, que se constitui no tempo presente em ações e dinâmicas em prol do protagonismo da comunidade kaingang e constituição da autonomia, bilinguismo, interculturalidade e territorialidade, concebidos a partir ou no espaço da EEI. Eventos marcantes nesse processo constituem-se a partir do convênio da IECLB e FUNAI/SIL para a formação de monitores bilíngues, que potencializou a grafia da língua kaingang através de sinais gráficos latinos, questionados inicialmente, devido à proposta de um bilinguismo de transição, mas que se consolida mais tarde como ponto essencial na EEI para a constituição de uma educação diferenciada, específica e intercultural. Parte de um modelo de ação missionária indigenista elaborado aquém da participação indígena para uma ação solidária e em prol do protagonismo indígena, em que a própria comunidade indígena define os parâmetros da EEI, como a proposição de elaborar materiais didáticos na língua kaingang como forma de proteção de conhecimentos tradicionais e também para a constituição da autonomia no magistério e gestão das escolas indígenas, sem interferência de agentes não indígenas. Esta dimensão ainda é um desafio tanto para a mobilização das comunidades indígenas como para a ação missionária indigenista, pois a EEI se estabelece na dimensão da fronteira intercultural, como propõe Tassinari (2001, 47-50). A EEI concebida a partir da dinâmica da fronteira intercultural estabelece a reflexão de seus ajustes e interações entre as sociedades envolvidas, kaingang e não indígena. O evidenciado com a questão da fronteira intercultural revela que a presente dissertação não esgota o debate, o estudo, a análise e outros olhares sobre a trajetória da EEI kaingang e a participação da IECLB e do COMIN nesse processo. Tampouco se desejou que o envolvimento do autor, como partícipe da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN há uma década, esgotasse o tema. Pelo contrário, são evidentes a ausência da análise e/ou o aprofundamento da temática, bem como a citação e o tratamento de outras ações da trajetória missionária indigenista. Está-se ciente de que não foram abordados temas como: a articulação do movimento indígena com outros movimentos sociais, sobretudo na década de 1980 e início de 1990; os trâmites da passagem de responsabilidade da gestão das escolas indígenas da FUNAI para a alçada da Secretaria do Estado de Educação, suas implicações e entraves; o processo de regularização das escolas e a elaboração dos regimentos internos e projetos político-pedagógicos; o Curso de Formação Continuada para Professores Indígenas/Etnia Kaingang, coordenado pelo NEI/SEE; o debate sobre EEI no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI); a articulação das comunidades indígenas com 153 Instituições de Ensino Superior (IES; p.ex.: UNIJUÍ, URI, UPF, UNOCHAPECO) para a realização de cursos de habilitação ao magistério indígena bilíngue (p. ex.: Vãfỹ; Miraguaí), em convênio com Coordenadorias Regionais de Educação/SEE; o debate para acesso e instalação de políticas afirmativas no acompanhamento ao ensino superior para indígenas nas IES (UNIJUÍ, URI, IPA, UFSM, UFRGS, UFRG). Sobre a trajetória da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN também se está ciente da necessidade da análise e aprofundamento da temática, com outros olhares, sobre o abordado nesta dissertação, mas também sobre as ações não abordadas neste momento, como: a formação de docentes e monitores guarani, ou seja, a trajetória da EEI guarani e a participação da IECLB e do COMIN; o acompanhamento à participação de representante kaingang na Comissão de Educação Indígena, vinculada à Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação; aprofundar a participação dos kaingang e guarani no NEI, bem como no COMIN; da mesma forma no CEPI; a participação missionária indigenista no processo de regularização das escolas indígenas; a articulação dos agentes da IECLB e do COMIN, como grupo GTME-Sul,114 na década de 1980, pelo qual se veicularam as reflexões da transição após a retirada da Missão Guarita; a abordagem de outras iniciativas no âmbito da IECLB e do COMIN, como o Distrito Eclesiástico Uruguai em 1985, que propôs a criação de uma ação missionária junto à comunidade kaingang em Iraí/RS, com a implantação de uma escola. Da mesma forma, está-se ciente de que não se abordou a constituição da Comunidade Evangélica Kaingang; o Curso de Monitores Agrícolas, realizado simultaneamente ao curso de monitores bilíngues, no final da década de 1970, no CTPCC.115 Também a promoção de cursos para habilitação de agentes para atendimento em saúde, ou atividades de educação em saúde, carece da continuidade da reflexão, estudo, debate e trajetória da IECLB e do COMIN junto aos povos kaingang e guarani na TI Guarita, ou além desta, junto às demais comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. A proposição da interdisciplinaridade, proposta na introdução desta dissertação, também implica a proposição de elaboração de análise, aprofundamento e debate dos próprios participantes da trajetória, docentes, universitários, lideranças e outros agentes das 114 GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico. Entidade que agregou as pastorais protestantes indigenistas das igrejas: evangélico-luterana, metodista, presbiterianas e anglicanas. Criada em 1979 e dissolvida em 2009. Disponível em: <http://www.portalecumenico.net/instituicoes-detalhe.asp?cod=64> Acesso em: 09 nov. 2011. 115 Consta que o líder kaingang Ângelo Kretã, da TI Mangueirinha/PR, foi membro da comissão de acompanhamento deste curso. Ângelo Kretã foi assassinado em 1981, como retratado no filme documentário “Mato Eles?” (Dir. Sergio Bianchi, 1983, 35 min). 154 comunidades kaingang e guarani, para que apresentem a sua perspectiva, o seu olhar sobre a trajetória missionária indigenista da IECLB e d COMIN. No decorrer da dissertação, apresentaram-se algumas considerações, encontradas dispersas na bibliografia e em outros materiais consultados para a presente elaboração, sobretudo referentes ao curso de monitores bilíngues e ao CTPCC. Porém, considera-se relevante na dinâmica da fronteira intercultural, anteriormente esboçada, a elaboração de estudo e pesquisa semelhante a partir de outra realidade, de outra ciência, elaborada a partir de outros conhecimentos e outra cultura. O respeito pela autonomia e interculturalidade também implica a consideração de olhares e avaliações das comunidades indígenas sobre a trajetória da sociedade não indígena, assim como proposto na questão do bilinguismo. Diante desta disposição, quiçá a temática da territorialidade indígena será entendida e considerada a partir de outros parâmetros, que não uma questão problemática, ainda presente na implantação da Educação Escolar Indígena. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Francisco Edviges. A situação sociolingüística dos Apinayé de Mariazinha. In: CADERNOS de Letras da UFF – Dossiê: Preconceito lingüístico e cânone literário, nº 36, p. 75-94, 1. sem. 2008. [Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ] ALTMANN, Walter. 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