MÁRIO SOUTO MAIOR. UM GARIMPEIRO DA NOVA HISTÓRIA
Renato Phaelante
Quase que diariamente, sempre à tardinha, nos últimos dez anos,
acostumei-me, antes de descer a rampa que dá acesso à Biblioteca
Blanch Knofp, caminhar em direção à sala de Mário Souto Maior para
usufruir de um pouco de sua sabedoria e desfrutar de momentos que depois avaliei como - inesquecíveis instantes de lazer.
Logo às primeiras incursões descobri a importância do meu cotidiano
na Fundação Joaquim Nabuco, a abrangência de minhas pesquisas, tão
simples, tão ampliadas na ótica do querido amigo, o primeiro viés
para motivação das publicações dos trabalhos nelas calcados, que
vieram depois.
Fui, aos poucos, percebendo o Mário Souto que, na busca de saber
sempre mais a verdade antiga, dava-lhes nova roupagem, porque ia
mais fundo, penetrando-a. Nessa busca, ele se transformava. De
repente, era o menino que tudo via por um buraco de fechadura e,
sem temor, destrancava a porta, escancarando-a, aproximando-se
deslumbrado e ansioso de conhecer, tocar, sentir, tal qual o homem
do interior nordestino que procura abelha em pé de imburana, como
já descrevia Luiz Marinho em suas histórias sobre Timbaúba,
A curiosidade, sentimento permanente a guiar os passos de Mário
Souto Maior, levando-o a aprofundar mais e mais os seus
conhecimentos, transformava-se em energia, qual se o tempo não
houvesse passado e o encontrasse, espírito jovem, pleno de
vitalidade, sempre em gesto carinhoso para com quem necessitasse
do seu saber. Um carinho que se refletia na sua disponibilidade
em aconselhar-nos, em apontar-nos novos caminhos para
aprimoramento de qualquer dos nossos trabalhos de pesquisa.
Comentava-se que Mário não se alimentava bem. E era verdade. Mais
das vezes o vi, tomar como almoço, uma simples fatia de bolo ou
torta na lanchonete vizinha ao prédio onde funciona a Fundaj. E
a ingestão de tão simples alimento o deixava saciado até a hora
do jantar ao lado de sua Carmem. Quem o conhecia, entretanto,
sabia muito bem que coisa alguma o alimentava melhor do que o
gosto e o sabor das coisas simples do povo, recolhidas da boca
do povo, na língua errada do povo, na língua certa desse povo,
como já dizia Bandeira.
.,
Sua aparência frágil, encurvado em sua alta estatura pelo peso
da idade, escondia um espirito rijo e forte, profundamente
ligado às suas raízes, semelhante aquele pé de manga rosa,
sempre farto, visto pela janela de sua sala de trabalho, no
Edifício Renato Carneiro Campos.
Certo dia, em uma de minhas costumeiras visitas, encontrei sua
sala vazia. Adoecera - disseram-me. Mas ele nunca mais voltou.
Nem eu retornei à sala vazia, mesmo sabendo-a impregnada de sua
presença. Até mesmo o itinerário que me levava para aquelas
bandas, só o fiz, durante algum tempo, quando obrigado por
contingência do meu trabalho. E foi assim até que a consciência
da imaterialidade de Mário se afirmou em minha mente e, não
digo substituída, mas caminhando par a par com a obra que ele
deixou perpetuada nesta casa de pesquisa Obra que se faz, a cada
dia, mais importante e imprescindível para estudiosos da cultura
brasileira, particularmente, da nordestina.
Certa vez, em um dos seus livros, Mário afirmou: Não tenho formação
acadêmica em folclore, portanto não atuo de forma científica, e sim
prática. Quero guardar as características do povo para que não se
percam nas dobras do tempo. Mário, talvez, não tivesse consciência
disso, mas ele se tornara uma Academia viva desse folclore
nordestino, por onde diversas gerações vieram a se formar,
tomando como base a sua obra, só comparável, nesse caráter, à de
Câmara Cascudo e a de Pereira da Costa, dois outros ilustres homens
do Nordeste.
Mais de 50 livros publicados, fazem desse Humanista, em nossa
região, ao lado de nomes como os de Gilberto Freyre, Valdemar
Valente e Manoel Correia de Andrade, entre outros poucos, um dos
precursores da chamada Nova História, nascida na França e hoje
tão considerada no estudo mais detalhado para conhecimento do
homem como animal social.
Na verdade, Mário não precisava possuir uma formação acadêmica para
que seu trabalho fosse considerado científico e a Nova História se
prende, exatamente, também neste particular, ao estudo do não
tradicional, do não convencional, do não oficial. É a História
contada de baixo para cima.
Bastante pertinente aos estudos de Mário é o comentário do
historiador inglês David Cannadine a respeito desses novos
estudos: Um resultado paradoxal deste período que estudava o
passado era que, cada vez mais, os historiadores acadêmicos
estavam escrevendo uma história acadêmica que cada vez menos
pessoas realmente liam.
Muito embora o próprio Mário negue o caráter científico de sua
obra, acreditamos que ela merece ser aprofundada, especialmente
nesse aspecto, o científico, pois que, atualmente, de tão
importante, ela poderá vir a passar por desdobramentos,
tornando-se cada vez mais necessária aos que buscam encontrar o
verdadeiro homem brasileiro em suas raízes mais profundas.
Desde que se dedicou ao folclore, Mário descobriu o popular e
tratou-o à semelhança do que fez Mikhail Bakhtin, crítico russo,
que segundo o historiador Peter Burke, em seu livro A Escrita da
História, afirmou a respeito de um enfoque de certa pesquisa,
sobre a diferença entre o carnaval e o carnavalesco, definindo
o popular como: o rebelde que existe em todos nós e não a
propriedade de algum grupo social. E, mais adiante, o mesmo
Bakhtin condena, na pesquisa em apreciação, a formulação de
uma divisão entre o que era cultura do povo e cultura das
elites, acreditando que o estudo deveria concentrar-se na
interação e não na divisão das classes sociais.
Foi assim que Mário Souto Maior, além de folclorista, tornou-se
também antropólogo, etnólogo, musicólogo e historiador, cuja
especialidade foi desenvolvida e adquirida na prática, na
provocação de sua curiosidade.
Quando abordamos a Nova História, estamos falando da
interdisciplinaridade utilizada como elemento de entendimento do
objeto estudado, o folclore, no caso, e a cultura popular. Em
Mário isso fluiu naturalmente, através de sua vivência e sua
intelectualidade, que se destaca nacionalmente com o lançamento
do seu O Dicionário do Palavrão, a pedido do sociólogo Gilberto
Freyre, justamente à época do Governo Militar de 1964. Naqueles
tempos, Mário foi censurado e criticado, o que provocou o seguinte
comentário de Gilberto Freyre, em defesa do antropólogo e amigo:
Quem versa a matéria é intelectual, consciente de sua
responsabilidade e cioso de sua dignidade de homem de letras e de
homem de ciência, como é Mário Souto Maior.
O poeta Carlos Drumond de Andrade também acudiu em defesa de Mário
ao se pronunciar a respeito da edição e de sua autoria: Seu autor,
julgado sumariamente, em sigilo de gabinete, seria assim um
pornógrafo, quando na realidade se trata de um dos mais
qualificados estudiosos da cultura.
A descoberta do popular do Folk do povo pelos estudiosos e
intelectuais do mundo, realmente, não é algo atual, embora
o método, a forma, a maneira revolucionária de estudar esses
assuntos, tenha tido em Gilberto Freyre um de seus precursores,
um dos antecipadores dessa Nova História que, no Brasil, ainda
não chegara através das Universidades.
Em trabalho publicado no Anais do Seminário de Tropicologia,
da Fundação Joaquim Nabuco, em 1983, Luiz Felipe Baeta, aborda
o estudo de temáticas nada "nobres" feitas por Gilberto Freyre,
como a referência à casa, aos cheiros às relações cotidianas, ao
clima, ao sexo, ao psiquismo e suas cavernas, às massas, ao
anonimato. Tudo aquilo que a Nova História hoje reafirma com seus
temas atuais, como uma lúcida continuação da escola dos Annales à
qual Freyre também se antecipava em seus primeiros trabalhos.
Mário Souto Maior trazia também do berço essa admiração e esse
gosto pela História vinda de baixo. E, em 1980, ao chegar ao
então Instituto Joaquim Nabuco, encontrou em Gilberto Freyre, a
quem já admirava, como ele próprio afirmou em diversos momentos, o
seu leme, a base metodológica e científica para o desenvolvimento do
seu trabalho de folclorista, onde viria a aplicar uma consciência
interdisciplinar.
O que também se fazia peculiar em Mário, enquanto pesquisador
eclético das coisas do nordestino, era o compromisso diuturno,
inadiável, do resgate da memória de nossa cultura popular e, disso,
ele nunca abriu mão. Ao se debruçar sobre um trabalho era tal a
ansiedade de vê-lo concluído que mais parecia estar a realizar o
último deles. E ao concluí-los, transmitia-nos toda a dedicação,
carinho e amor com que os compusera.
A humildade em relação ao saber, era um dos pontos mais importantes
e invejáveis em Mário. Ele, sem fazer ciência, sem o saber
científico, como ele afirmava, acreditava não merecer críticas
elogiosas à sua obra nem citações de valores incontestáveis da
cultura nacional, como a do folclorista Altimar Pimentel: Cada
livro de Mário revela-nos um pouco do que somos, do que pensamos,
como nos relacionamos com o meio e com as outras pessoas, o
conjunto de sua obra impõe-se ao estudioso das ciências do homem,
ao etnógrafo, etnólogo, ao folclorista com referencial
indispensável a qualquer abordagem no campo de sua especialidade.
E encerra, ainda se referindo à sua obra: É indispensável ao
conhecimento do Nordeste. Nela estão os costumes, o comportamento,
a cultura, a alma do povo nordestino.
Para reconhecimento da importância e da atualidade científica dos
estudos de Mário, poderíamos, ainda, citar, algumas palavras do
professor Armando Souto Maior quando se referiu ao livro dele,
A Mulher e o Homem na Cultura Popular, afirmando que Mário
contribuiu, assim, com um bom material para a História da
Mentalidade latino-americana que, agora está sendo preocupação
científica de uma nova geração de historiadores. Nela, a chamada
"sabedoria popular" é capítulo importante.
Quando o nosso saudoso Mário Souto Maior afirmou querer guardar as
características do povo para que não se perdessem nas dobras do
tempo, ele estava fazendo muito mais, como reconheceu certa vez,
o escritor pernambucano dos Palmares Hermilo Borba Filho, da sua
geração e também folclorista, entre outras coisas: Se em vez de
estarmos cultivando uma música norte americana, nos voltássemos
para as taieiras, os reizados, os frevos, os benditos, as
excelências; se não nos preocupássemos tanto com Brecht e Pinter,
por exemplo, valendo-nos do espírito e da técnica dos espetáculos
dramáticos populares; se pensássemos menos em Solers e
atentássemos para a sabedoria dos folhetos e da literatura oral,
com toda a certeza estaríamos criando (ou recriando, que não
acredito num trabalho de criação puro) um dos mais fantásticos
universos artísticos de que o mundo poderia ter notícia. É este o
caminho que Mário Souto Maior vem nos indicando através dos seus
livros! Comecem por Mário para conhecer a alma popular!
Depois dessas palavras, indiscutivelmente abalizadas de um Hermilo
Borba Filho, pouco há a se acrescentar a Mário, que não se faça
redundante. Ousaria, apenas afirmar que o folclore brasileiro é,
agora, muito mais rico em sua compreensão graças àquele de quem
tive a honra e a felicidade de privar da amizade, o homem Mário
Souto Maior! Obrigado!
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MÁRIO SOUTO MAIOR - Fundação Joaquim Nabuco