A demagogia populista segundo o jornal Correio do Povo Camila de Almeida Silva1 O conceito de populismo, desde meados dos anos 80, vem sendo discutido e rediscutido, compondo um dos temas mais polêmicos da historiografia. Pretende-se discutir aqui, algumas vertentes de populismo a fim de perceber como o jornal Correio do Povo se apropria dos conceitos existentes e simultaneamente cria novos. Na imprensa, o termo populismo pode ser encontrado primordialmente a partir dos anos 40, e neste momento seu entendimento esteve ligado a popularidade que os líderes políticos obtinham frente às massas, ou seja, sua acepção no período era positiva. Somente a partir dos anos 50 e 60, este conceito passaria a ser estudado pela academia, principalmente nas Ciências Sociais, e disputariam por sua melhor definição. O pesquisador Jorge Ferreira em seu livro, O nome e a coisa: O populismo e a política brasileira, contribui para a compreensão das correntes que discutem o populismo. O autor salienta a grande influência dos teóricos Gino Germani e Torcuato di Tella, ambos influenciados pela teoria da modernização, cujas bases consistem em uma “transição de uma “economia tradicional”, de “participação política restrita”, para uma “economia de mercado”, de “participação ampliada”2. Nesse sentido, o cerne do surgimento do populismo para esta corrente, se fixa na figura do camponês, que em seu deslocamento do campo para cidade, com a junção de valores tradicionais aos modernos, abriu campo para que “líderes populistas se projetassem [sic] em sociedades que não consolidaram instituições e ideologias autônomas”3. As ideias de Gino Germani, e Torcuato di Tella, receberam inúmeras críticas no que se refere à dicotomia entre mundo urbano desenvolvido e mundo rural atrasado. No entanto, mesmo com as críticas, a teoria da modernização foi influência para outras formulações a respeito do populismo. Segundo Germani, los grupos “atrasados” contemporáneos no son uma reproducción fiel de sua equivalentes tradicionales, es decir, anteriores al comienzo de la transición hacia estructuras modernas. Um país, um sector, um grupo social o un rasgo 1 Mestranda em História, Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Email – [email protected] FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 65. 3 FERREIRA. Jorge. Ibdem. p. 65. 2 de la cultura de vuelvem “atrasados”, quando otro país, otro sector, otro grupo social u otra instituición sufren una modificación juzgada como „avance‟, “progreso” o “desarrollo” no solamente por los actores de cambio, sino también por aquellos a quienes no afeta o cambio. Uma sociedade tradicional, aislada e fuera de comunicaciones, no es subdesarrollada por sus propios membros; pero lo será cuando estos miembros se hallen em una condición de dependencia – política, económica, cultural – frente al mundo “desarrollado”.4 Sob está perspectiva de uma sociedade atrasada o Grupo Itatiaia, “esforçou-se para formular projetos políticos e estabelecer uma nova visão de mundo. Segundo esta corrente, um dos problemas identificados foi o surgimento do “populismo na política brasileira”5. Nesse sentido, a existência do populismo para essa vertente depende de três fatores, a existência de um proletariado sem consciência de classe, uma classe dirigente em crise de hegemonia e um líder carismático, ou seja, Em primeiro lugar, o populismo é uma política de massas, vale dizer, é um fenômeno vinculado à proletarização dos trabalhadores na sociedade complexa moderna, sendo indicativo de que tais trabalhadores não adquiriram consciência e sentimento de classe: não estão organizados e participando da política como classe. As massas, interpretadas pelo populismo, são originárias do proletariado, mas dele se distinguem por sua inconsciência das relações de espoliação sob as quais vivem. Só a superação desta condição de massificação permitiria a libertação do populismo ou a aquisição da verdadeira consciência de classe. [...]. Em segundo lugar, o populismo está igualmente associado a uma certa conformação da classe dirigente, que perdeu sua representatividade e poder de exemplaridade, deixando de criar os valores e os estilos de vida orientadores de toda a sociedade. Em crise e sem condições de dirigir com segurança o Estado, a classe dominante precisa conquistar o apoio político das massas emergentes. Finalmente satisfeitas estas duas condições mais amplas, é preciso um terceiro elemento para completar o ciclo: o surgimento do líder populista, do homem carregado de carisma, capaz de mobilizar as massas e empolgar o poder (GOMES, 2001, p. 24-25). Nessa mesma linha, o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos em 1961 publica o livro A crise do poder no Brasil, no qual defende o surgimento do populismo a partir do ano de 1945, quando como o fim do Estado Novo, houve um “mínimo de probidade nas eleições e no plano econômico, uma industrialização mais consistente”6. Ou seja, uma ampliação na participação política, porém ainda ausente de uma mentalidade de classe. Portanto, novamente surge o ideal da influência do campo como fator relevante para compreender o fenômeno do populismo. Afirma Guerreiro Ramos, que os líderes 4 IANNI, Octavio. Gino Germani, Torcuato S. di Tella, Octavio Ianni. Populismo e contraciociones de clase em Latinoamérica. Serie popular Era. México, 1973. P. 13. 5 FERREIRA, Jorge. Op. Cit. p. 67. 6 FERREIRA, Jorge. Ibdem. p. 69. carismáticos encontram sua sustentação a partir de “componentes recém-egressos dos campos que ainda não dominam o idioma ideológico”7. A partir das teorias vigentes no período, Guerreiro Ramos tece algumas críticas ao trabalhismo brasileiro, que serão indispensáveis para as análises que se procederão no decorrer. As denomina como doenças infantis, sendo aqui abordadas apenas as mais relevantes, segundo o autor. Primeiramente o varguismo, “um resíduo emocional baseado em impressões e crenças populares na bondade intrínseca de Vargas”. Segundo, o janguismo como a ideia de que Jango é o seguidor político e “continuador da obra de Vargas” e terceiro, o peleguismo, que segundo Ramos, impede a formação real de uma classe que expresse a força política dos trabalhadores brasileiros8. Outro grupo de pesquisadores, a partir da década de 60, vinculados à linha da sociologia e da ciência política, buscou compreender a classe trabalhadora brasileira e o papel desempenhado no cenário político. Entre os pesquisadores estão Francisco Weffort e Octavio Ianni, que no mesmo intuito das propostas anteriores buscam compreender a incorporação dos trabalhadores no sistema político vigente nos pós 1930. Expressam a partir da análise das políticas sindicais de Vargas e das políticas de cunho social, o que podemos chamar de teoria do desvio, segundo os autores, os trabalhadores estariam desviados de seu destino, pois, encontravam-se, privados de autonomia sindical e politicamente, desviado” por suas direções, teriam se tornado, desde a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, um importante apoio social para um estado que buscava acomodar os interesses das frações da classe dominante em um momento de “crise de hegemonia” aberto com a crise do sistema oligárquico agroexportador.9 As visões acima apresentadas, embora tenham recebido inúmeras críticas, principalmente pela presença da teoria da modernização, foram as primeiras reflexões acerca do populismo no Brasil. Nesse sentido nos ajudam a compreender as apropriações realizadas pelo Correio do Povo e como ocorreu a construção de novos sentidos para o conceito. A abordagem dada consiste em perceber na definição de populismo acima destacada, as diversas relações estabelecidas como a realidade da sociedade, bem como evidenciar os novos sentidos atribuídos pelo Correio do Povo. Destacamos que muitas 7 FERREIRA, Jorge. Ibdem. p.69. FERREIRA, Jorge. Ibdem. p.70. 9 DEMIER, Felipe. Populismo e historiografia na atualidade: lutas operárias, cidadania e nostalgia do varguismo. Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012. p. 207. 8 vezes a expressão populismo em si está ausente dos textos apresentados, porém, notamos uma presente associação do conceito com práticas do governo de João Goulart. O Jornal Correio do Povo A empresa jornalística Caldas Júnior, fundada em 1895 por Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior, formou junto a outros, a vanguarda do jornalismo no Rio Grande do Sul. Inaugurou uma postura empresarial, o jornalismo informativo moderno, apresentou-se ao público como “órgão sem nenhuma facção, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna”10. O Correio do Povo, afastou-se do jornalismo político-partidário que esteve sempre vinculado ao processo em que dirigentes políticos fazem da imprensa um “agente orgânico da vida partidária”11. A criação pelos partidos de seus próprios periódicos acabou criando uma concepção de que a natureza do jornalismo é fundamentalmente opinativa, que cabe a ele dirigir a opinião pública. No entanto, esse modelo de jornalismo partidário entra em decadência, juntamente ao processo de transformação da estrutura econômica da sociedade. A partir da Revolução de 30 há uma diversificação das camadas sociais - que anteriormente não existiam-, cada vez mais inseridas na lógica do capitalismo e com a ascensão das camadas médias, possibilitando não apenas uma mudança na estrutura social, mas também novas necessidades culturais que o jornalismo de cunho político-partidário não dava conta de suprir. Paulatinamente, o modelo de jornalismo em questão demonstra que soube se aproveitar do crescimento econômico e a expansão do público leitor. Associando-se a comerciantes, que progressivamente somariam forçar para formar um jornalismo independente como alternativa às novas necessidades da sociedade. Com um campo fértil para a sua atuação, Caldas Junior constrói seu jornal sempre vinculado a laços políticos, porém, essa conexão se dá de uma forma bastante sutil em comparação com a antiga proposta de jornalismo. É importante destacar que o principal fator de sucesso do jornal Correio do Povo se encontrava na postura empresarial assumida, que permitiu que o jornalismo 10 RÜDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1993. p. 64. 11 RÜDIGER, Francisco. Idbem. p. 28 informativo moderno se afastasse das disputas políticas que anteriormente eram o grande financiador dos periódicos. Conforme Speranza, o jornal sempre cultivou uma “imagem de distanciamento das discussões políticas, mas não abria mão de sua influência, expressa ao longo do século XX”12. Destacamos dois episódios em que se envolveu em controvérsias, durante a Revolução de 30 quando apoiou o projeto de desenvolvimento capitalista de Getúlio Vargas, o que gerou uma dissidência com o então governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha. E também com a defesa do golpe civil militar de 1964, em que Breno Caldas13 comentou possuir uma afinidade com tal processo político14. Nesse sentido, lembramos da necessidade de contrapor à percepção liberal de imprensa, bem como na crença em uma imprensa acima dos conflitos sociais. Nesta pesquisa, percebemos a imprensa como um agente partidário. Ela existe a fim de garantir aos grupos dominantes não apenas o domínio a partir do controle repressivo exercido pelo Estado, mas também, fundamentalmente pela hegemonia cultural, exercida pelo conjunto de organismos privados, neste caso os meios de comunicação. A partir de Gramsci surgem discussões no campo político que nos auxiliam a perceber que “tanto nos regimes democráticos, onde existe uma relação equilibrada entre coerção e consenso, até as mais rudimentares ditaduras, nenhum regime político foi capaz de sobreviver sem o estabelecimento de bases sociais e elementos de hegemonia”15. Nesse sentido, hegemonia é “construção de mundo”16, ou seja, são os meios para a elaboração e/ou manutenção de determinada ideologia que historicamente encontram-se em disputa. Sugere também que todo movimento político, que pretenda ser hegemônico, que considere formar uma nova consciência deve estabelecer críticas as ideologias anteriores. Diversas vezes serão apresentadas esta perspectiva nesta pesquisa, por exemplo, nos momentos em que o jornal Correio do Povo no ano de 1964 – ano da 12 SPERANZA, Clarice Gontarski. A greve da oficina de chumbo. O movimento de resistência dos trabalhadores da Empresa Jornalística Caldas Júnior (Porto Alegre, 1983-1984). 245 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2007. p. 57-58. 13 Com a morte de Caldas Júnior em 1913 a empresa foi controlada por sua viúva Dolores Alcaraz Caldas, a partir de 1935 frente a inúmeras dificuldades econômicas a direção para a ser de Breno Caldas. 14 GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995. 15 MELLO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente revista Espaço Plural. Ano, XIII, nº27, p. 39-53. p. 33. 16 BRANDÃO, Nágela Aparecida; DIAS, Edmundo Fernandes. Trabalho & Educação – vol.16, nº 2 – jul / dez – 2007. p. 5. pesquisa – realiza críticas ao populismo, também quando apresenta uma preocupação em estabelecer críticas contundentes a João Goulart, em desconstruir sua imagem e transformar o caráter das Reformas de Base em demagogia. Essa leitura sobre o Correio do Povo entende que os meios de comunicação são “instrumentos de manipulação de interesses e de intervenção na vida social”17. Embora o termo manipulação pareça maniqueísta, ele refere-se à necessidade do bloco hegemônico manter-se dominante frente as outras classes, e esta dominação não ocorre apenas a partir do controle do aparelho repressivo do Estado. É também “um aparelho privado de hegemonia”18, ou seja, a imprensa possui um projeto carregado de valores intelectuais, políticos e culturais que estão aliados à manutenção do status quo. E esses valores que caracterizam a imprensa como um partido, parte de uma classe, isto é, da organização de determinada Classe. Nesse sentido, a questão primordial para esta compreensão é afastar-se das disputas internas de um partido, neste caso o jornal Correio do Povo, para buscar compreender sua “eficiência real”19, ou seja, para aproximar-se daquilo que o partido conseguiu construir. Gramsci, propõe uma baliza metodológica, um meio para que o pesquisador perceba a capacidade do sistema privado de hegemonia (meios de comunicação, educação, religião) de realizar seu programa, de transpor um planejamento em ação política e partidária. Ou seja, uma ideologia política que se apresenta não fria como utopia, nem como raciocínio doutrinário, mas como uma criação da fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar a vontade coletiva”20. A ação política e intelectual Dados os conceitos, agora os textos do jornal já podem receber a atenção necessária. A análise se volta para o jornal que marca o aniversário de 30 dias do golpe civil militar, que depôs o presidente constitucional João Goulart, o jornal Correio do 17 CAPELATTO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino: imprensa e ideologia no jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. p. XIX. 18 SILVA. Carla Luciana. Imprensa e Ditadura no Brasil: Veja e Consenso. In. CONE SUL em tempos de ditadura: reflexões e debates sobre a História recente. Org: PADRÓS, Enrique Serra. Porto Alegre: Evangraf/UFRGS, 2013. p. 147. 19 SANTOS, Igor Gomes. A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos. Revista História & Luta de Classes. Ano 6. Ed. 9. p. 28-32. Junho, 2010. 20 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre Estado e Política. Vol.3. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2000. p. 13-14. Povo publica no editorial “1ºde maio sem demagogia”, cujo cerne da discussão se concentra nos incontestáveis méritos que terão de ser “creditados à Revolução de 31 de março”21. É importante destacar que por natureza os artigos pertencentes a seção de colaborações, são opinativos, que diversas vezes trazem perguntas e respostas bastante contundentes sobre o tema proposto. É um espaço aberto, que representa a variedade de opiniões e portanto, a imparcialidade do jornal. Nesse intuito, a questão exposta neste artigo é: “como vinha se caracterizando as celebrações da grande data mundial do Trabalho em nosso país?”. Reforçando as práticas adotadas antes do golpe, o autor responde, Um luxo revoltante e repulsivo de demagogia. A típica demagogia do comuno-populismo. Do falso trabalhismo. Daquele que, grosseiramente iludia o trabalhador com fantásticos salários mínimos pagos com a moeda falsa da inflação e com as mirabolantes promessas de um “paraíso nacionalista”, no qual até o poder estatal seria generosamente presenteado ao operário e ao camponês, e ao soldado e ao marinheiro.22 É interessante, pois neste único parágrafo é possível tecer inúmeras considerações e retomar discussões que estão bastante presentes na historiografia do tema. A começar por perceber a presença real da ideia de demagogia nas realizações de João Goulart. A criação e reprodução dessa crença não está descolada da linha editorial do jornal Correio do Povo, que no período tinha como editor chefe e diretor presidente, Breno Caldas, um detentor de terras e também defensor dos interesses dos latifundiários. Também Arlindo Pasqualini, braço direito de Breno Caldas, diretor do jornal Folha da Tarde, fundado em 1936, pertencente também à Empresa Jornalística Caldas Júnior23. Pasqualini aparece na pesquisa realizada por Dreifuss como participante do esquema do IPES/IBAD para “produzir uma série de artigos atacando Leonel Brizola e sua crescente influência popular e comando da estrutura do PTB”24. Destacamos também a disseminação frequente do comunismo como barganha para conquistar a opinião dos leitores. Diante da polarização entre capitalistas e comunistas e a crença de que os dois blocos econômicos estavam à beira de um choque bélico real, os editorialistas utilizavam desse medo presente na cultura da época. A ação 21 Correio do Povo, 01 de maio de 1964. Correio do Povo, 01 de maio de 1964. 23 SPERANZA, Clarice. Op. Cit. 24 DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado. Ação Politica. Poder e Golpe de Classe. Petrópolis, Vozes, 1981. p. 233. 22 dos artigos não era única, um grande número de reportagens, muitas vindas de agências internacionais, corroboravam com esta crença. Com isso, a associação de comunismo às práticas populistas presente no governo de Jango estarão nas análises que aqui serão realizadas. Importante salientar, porém, que sendo João Goulart um continuador das políticas de Vargas, não impediu que este último seguidamente fosse lembrado, não necessariamente por seu nome, mas por suas realizações. Portanto, nota-se que existe uma linha muito tênue que aproxima e simultaneamente afasta os dois governantes. Vargas na percepção do jornal conseguiu “doutrinar” as massas de trabalhadores, concedendo uma gama de benefícios que “se haviam legitimamente se transmudado em dia de festa nacional, mercê de progressiva incorporação dos direitos sociais ao constitucionalismo e a legislação contemporânea”25. Enquanto, segundo o Correio do Povo, João Goulart passou a “desvirtuar torpemente, a dignidade de uma universal evolução histórica”26, define que em seu mandato o “cenário era de violências e tropelias, num clima de intolerância e opressão”27. João Goulart, enquanto “discípulo” de Vargas, pretendia dar sequência à política populista de apoio das massas28. Nesse sentido, se enquadraria como um governo populista reformista, no sentido de ser contrário ao imperialismo e ao latifúndio, mas sem romper com o capitalismo; e populista por acenar a favor das Reformas de Base por meio de um programa distributivo que necessitava do apoio dos trabalhadores. O artigo em questão enaltece uma ideia de um falso trabalhismo, e que João Goulart teria se afastado daquilo proposto na fundação do Partido Trabalhista do Brasil. Contudo, podemos contrapor essa opinião, a partir dos discursos de Alberto Pasqualini que colaborou na confecção do programa partidário do PTB, nesse sentido, afirma que objetivo, não é a socialização dos meios de produção, mas a criação de um capitalismo sadio no qual o fim social se sobreponha ao egoísmo, ao interesse e ao proveito exclusivamente individual; de uma capitalismo que compreenda o papel preponderante dos trabalhadores e que, em consequência não lhes recuse a parte dos proveitos que lhes cabe por justiça.29 25 Correio do Povo, 01 de maio de 1964. Correio do Povo, 01 de maio de 1964. 27 Correio do Povo, 01 de maio de 1964. 28 Consiste em uma aliança entre diferentes classes sociais 29 PASQUALINI, apud MOREIRA, Cássio Silva. O projeto de nação do governo João Goulart: O plano trienal e as reformas de base (1961-1964). Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 54 26 Este falso trabalhismo posto em questão pelo autor do artigo, busca desconstruir um dos pilares do PTB. Podemos afirmar, portanto, que o Correio do Povo busca ressignificar o que se entendia de trabalhismo até o presente. Afastá-lo de sua busca de um capitalismo mais humano. Quando afirmam que o dia do trabalho havia se convertido em “demagogia do comuno-populismo e do falso trabalhismo”30 buscam estabelecer que a partir dos “méritos da Revolução de 1964” agora poderá ser “celebrado com dignidade e decoro, com sinceridade e respeito”31. Encerrando o artigo “1º de maio sem demagogia” o autor conclui que dadas as condições denunciadas, não havia como “continuar a haver razões para que se festejasse e festeje o 1º de maio como uma das datas maiores da Pátria e da Humanidade (onde) a sanha da demagogia lhes desnaturava e aviltava as comemorações, por obra do veneno das insinuações e até claros incitamentos à luta de classes”. O artigo do dia 3 de março de 1964, com o título Autoridade Moral de Lucidio Ramos, traz à tona possibilidades de reflexão muito amplas. A primeira delas é questão da Reforma Agrária. Como o título já demostra, o objetivo do texto é deixar evidente a ausência de moral do presidente João Goulart. O autor primeiramente usa da própria História para defender a “evolução social do homem”, afirmando que é inevitável e necessária. Assegura que, “desde Platão até Carl Marx” contraditória ideia tem inspirado pensadores a preconizar mudanças e os rumos da sociedade. Sem expressar preconceitos, cita a Rússia e evidencia sua preocupação com a produção agrícola, frente as dificuldades em oferecer atendimento razoável ao homem. Porém aponta que a Reforma Agrária propalada por Jango não atende as necessidades do Brasil, sendo que suas ações “convenientemente se desgarram pelas veredas da demagogia, pela inépcia e por conceitos e práticas inócuas e vazias”32. Afirma também que, O espirito inescrupuloso de certos reformadores, julga, logo que é muito campo para uma só pessoa, e, em vez de pensarem em razão da maior e melhor produção de carne, arroz, feijão, trigo, milho etc. pensam sempre em maiores possibilidades de emprego aos afilhados, ou no aumento se seu prestigio eleitoral. ... devemos lembrar, no entanto, aos homens de bom senso deste país, que as linguagens dos reformistas, quanto ao “latifúndio”, não visa e nem tende a solucionar problemas básicos, mas representa apenas demagogia. (Correio do Povo, 3-3-1964) 30 Correio do Povo, 01 de maio de 1964. Correio do Povo, 01 de maio de 1964. 32 Correio do Povo, 03 de março de 1964. 31 A fim de acirrar a reflexão, é importante destacar que a ideia de processo, evolução e da necessidade de reformas estruturais na sociedade está presente desde a crise de 1929, quando diversas medidas foram tomadas a fim de alavancar o processo de industrialização. Foi durante o governo de Jango que tais reformas apareceram de forma mais contundente, “algumas das propostas de Reformas de Base tramitavam no Congresso desde 1956”. A tese de Moreira33, é essencial para perceber algo de suma importância para estas análises. O autor apresenta um livro Reformas de Base: estudos e soluções brasileiras para os prementes problemas nacionais. E por que é importante? Pois seu autor é ligado ao Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), órgão que teve grande influência na desestabilização do governo João Goulart, através de publicações, palestras, etc. Nessa obra Paulo da Cruz Mattos defende a necessidade de reformas, [...] temos produzido e ofertado, no espaço e no tempo, às várias autoridades federais, alentados anteprojetos condensadores de meios propícios, medidas seletivas, polarizastes de reais soluções estruturais, reguladoras, essenciais e indispensáveis ao efetivo equacionamento, implantação, corporificação das chamadas Reformas de Base, ora reclamadas e exigidas por toda a Nação. (MATTOS, apud, MOREIRA, 2014, p. 244) Ou seja, setores conservadores também percebiam a necessidade latente de realizarem reformas. Não era necessariamente o comunismo que setores da sociedade queriam expulsar – embora a polarização Oriente/Ocidente estivesse presente na sociedade – a intenção era desestabilizar o projeto trabalhista de João Goulart. Visto que, tal projeto consistiam em superar o abismo social e “emancipar o povo brasileiro das peias institucionais que o aviltam, pois o mantém divididos em dois grupos que se extremam em contraste: um, o reduzido núcleo de privilegiados; outro, a imensa massa de deserdados”34. Os ataques proferidos a Jango como um governante despreparado e inexperiente chocam-se com a realidade e o tempo de amadurecimento em que as Reformas de Base vinha se gestando. Em vista disso, o Correio do Povo, não nega a necessidade de reformas, porém, defende que, “depois de uma Revolução, repetimos, que se fez para libertar o Brasil da anarquia, dos abusos e dos desvarios de um misto de populismo, sindicalismo e peleguismo, estimulado pelo caudilhismo e pelo cunhadismo, há que 33 34 MOREIRA, Cássio. Op. Cit. p. 244 Discurso de João Goulart. Brasil. Presidência da República,1964, p. 59. realizar muitas tarefas de complexidade e responsabilidade consideráveis, mas essenciais à consolidação do movimento saneador.35 É possível perceber o jornal Correio do Povo, como defensor de um projeto de nação desenvolvimentista associado-dependente, nos moldes do governo de Juscelino Kubistchek. Se entendemos as políticas populistas como estimulo a indústria nacional, proteção do trabalhador, nacionalismo e a presença de uma figura carismática, percebemos o Correio do Povo realizando a defesa de tudo que se opõe e esse paradigma. Contudo, os pontos levantados neste artigo não se apresentam no intuito de enquadrar ou julgar as ações do Correio do Povo como propositalmente distorcidas ou manipuladas. Mas sim, afastar a ideia a muito tempo veiculada de que este órgão e a imprensa de uma forma geral, apenas veicula informações livres de disputas ideológicas. Referências Bibliográficas BRANDÃO, Nágela Aparecida; DIAS, Edmundo Fernandes. Trabalho & Educação – vol.16, nº 2 – jul / dez – 2007. CAPELATTO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino: imprensa e ideologia no jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. p. XIX. DEMIER, Felipe. Populismo e historiografia na atualidade: lutas operárias, cidadania e nostalgia do varguismo. Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012. DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado. Ação Politica. Poder e Golpe de Classe. Petrópolis, Vozes, 1981. FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre Estado e Política. Vol.3. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2000. IANNI, Octavio. Gino Germani, Torcuato S. di Tella, Octavio Ianni. Populismo e contraciociones de clase em Latinoamérica. Serie popular Era. México, 1973. 35 Correio do Povo, 5 de maio de 1964. MELLO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente revista Espaço Plural. Ano, XIII, nº27, p. 39-53. MOREIRA, Cássio Silva. O projeto de nação do governo João Goulart: O plano trienal e as reformas de base (1961-1964). Porto Alegre: Sulina, 2014. RÜDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1993. SANTOS, Igor Gomes. A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos. Revista História & Luta de Classes. Ano 6. Ed. 9. p. 28-32. Junho, 2010. SILVA. Carla Luciana. Imprensa e Ditadura no Brasil: Veja e Consenso. In. CONE SUL em tempos de ditadura: reflexões e debates sobre a História recente. Org: PADRÓS, Enrique Serra. Porto Alegre: Evangraf/UFRGS, 2013. SPERANZA, Clarice Gontarski. A greve da oficina de chumbo. O movimento de resistência dos trabalhadores da Empresa Jornalística Caldas Júnior (Porto Alegre, 1983-1984). 245 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2007.