1.4 Couro e Calçados Diagnóstico A indústria de calçados tem experimentado um processo de internacionalização da produção desde o final dos anos de 1960. A atividade tem sido caracterizada como “nômade”. Com freqüência desloca-se no espaço geográfico em busca de oferta de mão-de-obra abundante e barata, da qual não se requer qualificações especiais, e menores custos. O processo de fabricação emprega tecnologias que guardam ainda algumas marcas artesanais. Movimento parecido vem se dando em anos recentes com os curtumes. Valendo-se dessas condições de produção, países como Brasil, Coréia do Sul e Taiwan ingressaram no mercado de calçados no fim da década de 60. O mesmo aconteceu com a China nos anos 80. Ao longo do tempo, a indústria transferiu-se, em grande parte, para a região asiática – que, ao término da década de 90, já era responsável por cerca de 2/3 das exportações físicas mundiais. A produção de calçados nos países mais pobres atende a segmentos de consumo de padrões inferiores. As faixas de mercado de maior poder aquisitivo continuam a ser objeto de atenção dos fabricantes de países desenvolvidos, que buscam elevar a qualidade dos artigos produzidos, desenvolver design e marca próprios. Por isso, embora a maior fatia da produção física de calçados esteja localizada em países asiáticos, quando se consideram os valores dos bens constata-se que a maior parcela de mercado está em mãos de calçadistas sediados em países desenvolvidos. Seguindo esse critério, a distribuição de mercado, em 1997, era a seguinte: União Européia (57%), Ásia (24%) e Américas (19%). O principal mercado de consumo de calçados é constituído pelos países desenvolvidos. Entre esses, os principais importadores individuais são Estados Unidos, Japão e Alemanha. Os americanos respondem por um terço das importações globais – foram 1,7 bilhão de pares em 2000. São o principal mercado consumidor mundial, com 16,5% do total – 90% dos calçados que usam vêm do exterior. As importações mundiais encontram-se estacionadas em 5,5 bilhões de pares anuais. Nos últimos anos, o mercado tem exibido modestas taxas de crescimento, por causa, entre outras razões, da recessão econômica e da queda no crescimento demográfico mundiais. O padrão de consumo do calçado, por sua vez, tem sofrido modificações. Além da difusão dos artigos esportivos, vem crescendo o uso de produtos confeccionados com material sintético em substituição ao couro, com reflexos inclusive nos empregos gerados. Exceto Brasil e México, a fabricação de calçados não é expressiva em termos de capacidade de produção em países da América do Norte, América Central, América do Sul e África. A indústria dessas regiões dedica-se a atender mercados locais, com expressão insignificante no comércio internacional. Maiores países produtores de calçados (em milhões de pares) Países 1997 % 1999 % 5.252 47,9 5.930 51,9 Índia 680 6,2 700 6,1 Indonésia 527 4,8 507 4,4 Brasil 520 4,7 499 4,4 Itália 460 4,2 381 3,3 México 260 2,4 275 2,4 Tailândia 276 2,5 258 2,3 Vietnã 206 1,9 241 2,1 Paquistão 205 1,9 240 2,1 Turquia 270 2,5 227 2,0 China Espanha 207 1,9 213 1,9 Demais países 2.092 19,1 1.954 17,1 10.955 100 11.425 100 Total Fonte: Satra/Abicalçados 2 A década de 1990 trouxe uma mudança no ambiente competitivo do setor no país. A abertura da economia brasileira levou a indústria de calçados a enfrentar um período de fechamento de empresas, eliminação de postos de trabalho e demanda por proteção contra a concorrência externa, baseada em calçados baratos, com destaque para os da China. O mesmo ocorreu com os curtumes nacionais. A partir de meados da década, ambos os setores modernizaram-se e buscaram diversificar mercados. A indústria brasileira de calçados produziu perto de 530 milhões de pares de calçados em 2000. A maior parcela − cerca de 70% − é destinada ao mercado interno. O setor era composto, em 2000, por 6.860 estabelecimentos, que empregavam 240 mil trabalhadores. As regiões do Vale do Sinos, no Rio Grande do Sul, e de Franca, no Estado de São Paulo, reúnem cerca de 70% do emprego e 65% dos estabelecimentos do segmento, organizados em arranjos produtivos locais (“clusters”). Nas mesmas áreas se concentram os curtumes brasileiros. A produção mundial de couros foi de 322 milhões de unidades em 2000, distribuída por Índia (12,5%), Estados Unidos (12%), Brasil (10%) e China (11%). A participação dos chineses no total mundial era de apenas 3,2% dez anos antes. A produção de couros no Brasil cresceu 48% na década de 90, para 32,5 milhões de peles em 2000, com taxa média anual de expansão de cerca de 4% no período. Em 2000, o consumo nacional foi de 35,5 milhões de couros, dos quais 3 milhões importados. As aquisições feitas no exterior expandiram-se 4,8% ao ano em média na década passada. Os curtumes brasileiros iniciaram os anos 90 sob um quadro de desaceleração econômica, com ociosidade beirando a metade da capacidade instalada. A crise esteve associada à recessão internacional do início da década e à entrada no mercado internacional de um volume expressivo de couro proveniente da ex-União Soviética. A demanda de couros para móveis e estofamentos está levando a uma mudança na organização industrial do setor de curtumes, com maior concentração da atividade. As unidades de menor porte tendem a direcionar sua atuação a 3 nichos de mercado, como os segmentos de calçados e outros manufaturados de couro e a produção de wet-blue. Embora a qualidade da matéria-prima seja um dos mais importantes atributos para os curtumes, o couro brasileiro ainda deixa a desejar. Segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), apenas 8,6% das peles manufaturadas pelos curtidores nacionais podem ser consideradas de padrão superior, índice que alcança 85% nos Estados Unidos. As perdas anuais em decorrência desse problema atingem US$ 500 milhões, ou seja, tanto quanto o Brasil exporta hoje em couros mais elaborados. Os pontos fracos da cadeia continuam sendo o financiamento de vendas (prazos, juros etc.) e o desenvolvimento de produtos originais. Assim como em outros segmentos do complexo coureiro-calçadista, os italianos tradicionalmente têm se destacado em tecnologia de produção de componentes para a cadeia calçadista. Em 2000, a receita obtida com as vendas de componentes no Brasil atingiu R$ 5,5 bilhões. Desse total, cerca de 92% foram destinados ao mercado interno. O déficit comercial do setor foi de US$ 264 milhões em 2000 e representou 55,7% do montante exportado. Comércio internacional O desempenho das exportações e a auto-suficiência no atendimento do mercado interno propiciaram uma balança comercial favorável ao setor calçadista nacional. A base da competitividade dos calçados brasileiros reside na disponibilidade de mão-de-obra a baixo custo. Em 2001, o país exportou 171 milhões de pares, no valor de US$ 1,6 bilhão. O setor é praticamente auto-suficiente no atendimento ao consumo doméstico. As importações de calçados pelo Brasil são residuais: representaram apenas 1% da produção nacional em 2000. Calçados de couro representaram 85% das exportações brasileiras do setor em 2001. Em sua maior parte, destinam-se ao consumo feminino, a um preço 4 médio próximo a US$ 10 o par. A participação desse tipo de produto nas vendas brasileiras vem diminuindo nos últimos anos, enquanto os artigos fabricados com material plástico tiveram sua participação ampliada, seguindo tendência de uso de matérias-primas mais baratas e que reduzem o desperdício. As vendas do país têm sido dirigidas principalmente para o mercado americano, tradicional importador de calçados brasileiros. Sozinhos, os americanos absorvem cerca de 68% dos embarques do Brasil, seguidos de Argentina, Reino Unido e Canadá. Nos últimos anos, o mercado latino-americano vem ganhando importância para as exportações brasileiras de calçados. O continente apresentou um consumo aparente de 709 milhões de pares entre os anos 1997 e 1999, dos quais 112 milhões de pares originados em importações. O Brasil participou com 38,5 milhões de pares em 2000, ante 27,4 milhões de pares em 1998. O comércio com a União Européia não tem mostrado atratividade para o setor de calçados nacional. Em 2000, do total das vendas do Brasil para o exterior apenas 9,3% foram destinadas a esse mercado – percentual que chegava a 11,5% em 1998. Entre os países europeus, o Reino Unido é o maior importador de calçados brasileiros, embora com valores decrescentes: em 2000 representou 6,5% do total. O restante da região tem participações individuais inferiores a 1%. Ao contrário do que acontece com o setor calçados, a União Européia constitui-se no principal mercado para os curtumes brasileiros. A região absorveu metade das exportações brasileiras de couro em 2001, enquanto para os países que poderão vir a compor a Alca seguiram 19% do total. A maior ou menor oferta de couro no mercado mundial tem como condicionantes o tamanho do rebanho e a extensão do mercado local de carnes. A oferta de peles no mercado internacional é liderada pelos italianos, que, embora não possuam um número expressivo de cabeças de gado, são grandes produtores de couros acabados: foram responsáveis por 41,5% das exportações mundiais em 1999. 5 Os maiores importadores de couro são Hong Kong, China e Itália. Os italianos adquirem peles em sua forma pré-acabada e, após beneficiá-las domesticamente, as reexportam. No comércio internacional, os principais concorrentes dos curtumes brasileiros são Coréia do Sul, Itália e China. Com menor intensidade, aparecem também Índia, Taiwan, Argentina, México, África do Sul e Estados Unidos. Maiores países exportadores de couros (em US$ milhões) Países 1997 % 1999 % Itália 3.168 38,1 2.843 41,5 Coréia do Sul 1.583 19,1 1.161 17 Argentina 920 11,1 738 10,8 Estados Unidos 769 9,3 792 11,6 Brasil 696,5 8,4 578 8,4 Demais países 1.161 14,0 736 10,7 Total mundial 8.316,5 100 6.848 100 Fonte: Elaborado por NEIT-IE-UNICAMP a partir de ONU-PCTAS Durante a década passada as exportações diretas de couro aumentaram sua participação nos negócios do setor, em detrimento dos volumes destinados ao consumo doméstico ou às exportações indiretas em forma de calçados. Esse movimento deve-se, em certa medida, ao crescimento dos embarques de couro na forma de wet-blue e à desaceleração das exportações de calçados que ocorreu na segunda metade dos anos 90. As exportações totais de couros mais que triplicaram entre 1990 e 2001, passando para US$ 863 milhões no fim do período, relativos a 17,2 milhões de couros em 2001. Entretanto, o valor adicionado às peles embarcadas pelo país decresceu. A participação do couro acabado na composição das vendas ao exterior, em valor, caiu de 33% em 1990 para 19% em 2000, enquanto a de wetblue subiu de 35% para 57% no período. Sob as condições atuais, dado que Estados Unidos e Brasil estão entre os cinco maiores produtores mundiais de couros, assim como Argentina e Uruguai, a 6 região da futura Alca poderia configurar-se como uma grande ofertante de couros para todo o mundo. Impacto das negociações com a Alca e a União Européia Nos Estados Unidos as alíquotas de importação de calçados variam de 8,5% a 12% para calçados de couro e chegam a 37,5% para calçados feitos de borracha e de plástico. O mínimo é 6% e a média, 10,4%, embora a maior parte dos artigos exportados pelo Brasil seja taxada em 10%. No México, a tarifa para produtos brasileiros do setor é de 35%. Os países da União Européia adotam uma tarifa de 17% para calçados com cabedais de tecidos, plástico ou borracha e de 8% para calçados confeccionados com cabedal de couro – o principal produto de exportação brasileira. A Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul para o setor situam-se em 21,5%. As características apresentadas pelo setor lhe permitem competir no mercado externo, de modo que a indústria encontra-se preparada para ingressar na Alca e capacitada para praticar tarifa zero para os calçados importados desde o início da vigência do acordo. Não há ameaças à sobrevivência do setor num futuro próximo. A zona americana integrada possibilitaria a expansão do comércio brasileiro de calçados, em decorrência da redução tarifária nos demais países, principalmente nos Estados Unidos. A liberalização reforçaria as condições competitivas dos bens brasileiros frente à China, principal concorrente do país no mercado americano no segmento de calçados femininos de couro na faixa entre US$ 7 e US$ 15 o par. O acordo com a União Européia não apresenta os mesmos atrativos da Alca para o setor calçadista brasileiro. No continente encontram-se os mais tradicionais e sofisticados competidores mundiais, entre eles Itália, Espanha e Reino Unido. Dimensões como design, marca, qualidade, entre outras, estão entre 7 os atributos dominados pela indústria européia, os mesmos que faltam aos calçados produzidos no Brasil. A liberalização comercial propiciada pelo acordo com os países europeus, na medida em que reduz as tarifas praticadas pelo Brasil e seus parceiros comerciais do Mercosul, irá facilitar a entrada de concorrentes da Europa. Os países que formam a União Européia aplicam uma alíquota de imposto de importação de 6,5% sobre os couros crust e acabado. Ao mesmo tempo, isentam de tarifas o ingresso do wet-blue, que, depois de beneficiado, é reexportado em forma de couro acabado, de maior valor agregado, competindo com os curtumes brasileiros no mercado internacional. Os Estados Unidos impõem tarifa de 2,4% ao couro nacional, enquanto a TEC do Mercosul varia de 9,5% a 11%. Os curtumes brasileiros consideram que a constituição da Alca e a adesão à União Européia constituem-se em oportunidades de expansão do setor. A crença nas vantagens provém da existência de condições produtivas favoráveis no mercado doméstico e de fatores adversos em países desenvolvidos. Entre os pontos positivos está o tamanho do rebanho bovino brasileiro, a capacidade de processamento de couros do setor e a disponibilidade de mão-deobra barata, exatamente os fatores que não estão presentes nas economias mais desenvolvidas. A integração comercial também representaria uma oportunidade para o setor de componentes expandir suas atividades, principalmente no âmbito da Alca. Um dos exemplos é o México, que possui uma indústria de calçados de relativo porte e já tem se mostrado um mercado atraente para solas, solados, palmilhas e matrizes feitas no Brasil. Desafios a serem enfrentados A indústria calçadista brasileira já possui uma bem-sucedida experiência em exportações no mercado internacional, com atuação iniciada em fins da década de 60. De lá para cá, o setor expandiu suas atividades mediante a incorporação 8 extensiva de mão-de-obra e recursos produtivos, e vem contribuindo positivamente para o saldo comercial do país. Os segmentos pertencentes à cadeia brasileira de couro e calçados deverão continuar trilhando um caminho de sucesso competitivo na esfera internacional, mantendo e ampliando os mercados em que já atuam, bem como conquistando novos consumidores. Os pólos calçadistas do Nordeste tendem a se consolidar, enquanto empresas localizadas em centros tradicionais de produção devem buscar a redução de custos. A capacitação em design, marca e qualidade, associada a vantagens em custos, pode abrir uma frente de expansão para o setor. Países em desenvolvimento como o Brasil se defrontam com o desafio de ingressar com produção própria nos segmentos de mercado de calçados que atendem os consumidores de maior poder aquisitivo. A dependência excessiva do mercado americano ameaça a expansão do setor calçadista, que pode não conseguir acompanhar o ritmo de crescimento da participação dos produtos asiáticos, com destaque para a China, detentores de condições de custos mais vantajosas que as desfrutadas pelos fabricantes brasileiros. O Brasil tem a oportunidade de ser um dos principais fornecedores mundiais de couro acabado devido ao tamanho de seu rebanho bovino e da disponibilidade de espaço para a criação de gado. O país exibe condição de explorar a demanda de couro para móveis e estofamentos de automóveis, assim como por sapatos de maior valor agregado. Calçadistas, curtumes e fabricantes de componentes devem buscar maior cooperação e parceria no desenvolvimento de produtos que aumentem a competitividade da cadeia. As vendas de calçados com marca própria no exterior é um objetivo cada vez mais presente nas estratégias mercadológicas dos produtores brasileiros de calçados. Para tanto, será necessário desenvolver design e estilos originais, e produzir artigos com mais qualidade e conforto. 9 O setor deve procurar diversificar mercados, expandindo sua atuação para América Latina, União Européia, Oriente Médio e Oceania, por meio da formação de consórcios de empresas. Também precisa reduzir custos de produção e de transação. A cumulatividade dos tributos que oneram as exportações é um dos principais entraves ao crescimento tanto do setor de calçados quanto do segmento de couros. A incidência em cascata penaliza as empresas que fabricam couros de maior valor agregado, pois o ciclo de produção é mais extenso e, portanto, mais onerado. Há, ainda, o problema da taxação do wet-blue, que afeta mais diretamente os curtumes. Desde o fim de 2000, as exportações do produto são sobretaxadas em 9%, com objetivo de induzir as vendas de couros de maior valor agregado. A medida, no entanto, conseguiu apenas estabilizar os embarques do artigo menos valioso, sem estimular os negócios com o bem mais elaborado. A substituição do volume atual de exportações de wet-blue por couros semi-acabados geraria um acréscimo de divisas de US$ 529 milhões por ano. Se a troca fosse por couros acabados, o aumento seria de US$ 615 milhões anuais. Para enfrentar estes desafios será preciso: • Desonerar a produção, acabando com a incidência de tributos em cascata, que retira parte de competição do setor; • Criar uma sistemática de ressarcimento de créditos tributários; • Substituir exportações de couros sob a forma de wet-blue por couros semi-acabados e acabados; • Financiar a formação de estoques reguladores de couro para fazer frente às demandas da indústria da moda, com garantias de oferta e preços para a matéria-prima durante o período de duração das estações; 10 • Estabelecer programas de modernização e de qualificação de profissionais e empresas subcontratadas pela indústria calçadista, mediante cursos e abertura de financiamento de compra de máquinas e equipamentos; • Criar um sistema de classificação do couro, como especificações e padrões de qualidade, atendendo as normas técnicas e as exigências internacionais, com vista a remunerar o pecuarista; • Implantar a gestão ambiental ao longo da cadeia produtiva, atendendo as normas e exigências internacionais; • Diminuir a alíquota de importação incidente sobre máquinas e equipamentos sem similar nacional usados na cadeia produtiva, com vistas à modernização e atualização tecnológica do setor, e estimular a modernização do parque a partir do emprego de bens de capital fabricados no país; • Apoiar a participação das empresas brasileiras de couro e calçados em feiras internacionais e missões comerciais; • Atuar ativamente da revisão das regras de origem; • Uniformizar as regras de etiquetagem, observando as normas técnicas internacionais; • Fortalecer a origem do produto “Marca Brasil” e ampliar o uso da marca própria nas exportações; • Desenvolver produtos diferenciados e com identidade próprias (design). 11