CIÊNCIA HOJE - ASPECTOS DA PRODUÇÃO TEXTUAL Fabiane Gonçalves Cavalcanti & Isaltina Mello Gomes UFPE RESUMO -Neste trabalho, analisamos as estratégias empregadas na produção de textos de divulgação científica publicados em Ciência Hoje. A natureza híbrida dessa revista nos deu condições de verificar em que medida os textos redigidos por jornalistas diferem dos escritos por cientistas colaboradores. Verificamos, por exemplo, que essas diferenças não residem apenas no léxico utilizado, mas também nos mecanismos de coesão textual. Introdução O processo de compreensão de textos é uma atividade interacional que exige a participação tanto do escritor/locutor como do leitor/ouvinte. Nesta relação, "o ouvinte/leitor não é absolutamente um `receptor' passivo, já que lhe cabe atuar sobre o material lingüístico de que dispõe, e deste modo, construir um sentido, criar uma leitura" (KOCH, 1995: 25). Para que isso ocorra, no entanto, o produtor do texto deve realizar atividades lingüístico-cognitivas que permitam ao leitor atingir uma interpretação mais próxima possível da pretendida. Ou seja, facilitar o estabelecimento da coerência textual. Segundo Van Dijk (1992: 160), "se os usuários da linguagem forem capazes de construir (ou recuperar) um modelo satisfatório de um discurso, então diremos que 'entenderam' o texto, e somente então podemos dizer que - para este usuário da língua o texto é coerente". Para o autor, a compreensão (estabelecimento da coerência) pode ser subjetiva e portanto variável. Em relação às atividades lingüístico-cognitivas, que devem ser realizadas pelo produtor para auxiliar a compreensão do texto, Koch (1995) menciona a repetição, a paráfrase, o resumo, a ênfase, entre outras. Para realizar essas atividades, o produtor organiza o material lingüístico na superfície textual, lançando mão de mecanismos coesivos e da seleção lexical e levando em consideração o conhecimento do leitor/ouvinte e o contexto comunicativo. Neste trabalho, nossa preocupação será analisar as estratégias empregadas na produção de textos de divulgação científica publicados na revista Ciência Hoje (CH).1 A natureza híbrida desta revista - publica textos escritos por jornalistas e por cientistas nos dará condições de verificar em que medida os textos redigidos por jornalistas diferem dos escritos por cientistas colaboradores. Para tanto, selecionamos quatro textos (dois de jornalistas e dois de cientistas) em duas áreas do conhecimento: saúde e biotecnologia, conforme mostra a tabela 1, onde pretendemos observar os mecanismos coesivos e o léxico empregado. Tabela 1 Área Saúde Biotecnologia Título Contra a doença de Chagas Os riscos da doença da vaca louca Em busca do eucalipto de proveta Erva-mate & chimarrão Edição CH 111 abril/1995 (I) CH 119 abril/1995 (III) CH 119 julho/1996 (II) CH 111 julho/1996 (IV) Produtor Jornalista Cientista Jornalista Cientista Ciência Hoje e a questão lexical Sabe-se que a compreensão de textos não se dá apenas pela decodificação do léxico, entretanto a seleção lexical exerce um papel fundamental no estabelecimento da coerência. Quanto mais o léxico utilizado for familiar ao leitor, maior será a possibilidade de que ele compreenda o texto. Nos quatro textos analisados, observamos que o uso de termos do jargão científico é generalizado. O fato, no entanto, é natural por se tratar de textos extraídos de uma publicação especializada. Nas matérias escritas por jornalistas o percentual de itens lexicais específicos da área tratada e de termos eruditos foi de 15,5% no texto I (“Contra a doença de Chagas”) e 10,8% no texto II (“Em busca do eucalipto de proveta”). Já nos escritos pelos cientistas, observamos uma média de 18,6% no texto III (“Os riscos da doença da vaca louca”) e surpreendentes 4,4% no texto IV (“Erva-mate & Chimarrão”). 1Esta análise segue parte da metodologia adotada por Gomes (1996) no desenvolvimento de sua tese de doutoramento. Tabela 2 Total de palavras2 Total absoluto de termos especializados/eruditos Percentual de termos especializados/eruditos Produtor Texto I Doença de Chagas 540 84 Texto II Eucalipto 471 51 Texto III Vaca louca 645 120 Texto IV Erva-mate 1525 68 15,5% 10,8% 18,6% 4,4% Jornalista Jornalista Cientista Cientista Acreditamos que a utilização de termos especializados só se torna um problema quando eles não são seguidos de uma explicação clara, seja por meio do uso de sinônimos ou pela conceituação da palavra ou expressão. Em nossa análise, observamos que há tentativas de explicar os termos especializados nos dois grupos de textos. No entanto, este comportamento é mais freqüente nos textos escritos por jornalistas. Vejamos no quadro 1 exemplos de termos com explicações satisfatórias, extraídos de nosso corpus. Quadro 1 Texto I Texto III “...cadeia glicolítica, processo em que a glicose (um açúcar) é quebrada por meio de uma série de reações.” "...a quebra da glicose, também chamada glicólise" Texto II "...etiopatogenia (causa)..." “...lignina - carboidrato responsável pela dureza dos tecidos vegetais, principalmente o tronco...” “...regeneração (clonagem)...” "...novas plantas - clones ..." “...cancro, doença que ataca o tronco” “...plantas estaminadas (masculinas) e plantas pistiladas (femininas)” "...cancheamento, isto é, a secagem das folhas dentro de um cilindro..." "...cura (evolução mais lenta da alteração das substâncias químicas que irão dar paladar ao mate)" Texto IV A utilização de recursos como a colocação do termo mais simples antes do seu equivalente científico é uma forma de tornar a leitura mais agradável, amenizando o impacto do termo científico, como ocorre no texto II ("...regeneração (clonagem)..."). Outra maneira é explicar o termo antes de citá-lo, conforme observado no texto I ("...a quebra da glicose, também chamada glicólise"). Já no texto II, a explicação para "lignina", apesar de satisfatória, poderia ficar ainda mais clara se o termo "carboidrato" fosse substituído por "substância". 2Para chegar a esses resultados, consideramos todas as palavras dos textos, incluindo artigos, preposições, nomes, pronomes etc. Também é possível encontrar exemplos de uso de termos especializados com explicações pouco claras ou sem explicação nos dois grupos de textos. Do material analisado, o único que não apresentou problemas dessa ordem foi o texto II, como mostramos no quadro 2. Quadro 2 Texto I “citoplasma" “organela” “enzimas” “cristalografia de raios X” “modelagem molecular” Texto II Texto III Texto IV “encefalopatia espongiforme (em forma de esponja)” "epidemiologia “endosperma” “doenças fúngicas” "...soques - verdadeiras pás de corte, na forma de grandes soquetes de 'mão-de-pilão'..." "formas pupares” “genótipos” “fractais” " “transgene” “Moléculas conformacionais alteradas (prions infecciosos)” "estrutura insolúvel (empilhamento protéico)” No texto I, não encontramos casos de termos mal explicados, mas de falta de explicação. Já com os textos III e IV, há casos de explicações pouco esclarecedoras. No texto III, por exemplo, o autor se preocupou em dar o significado de "espongiforme" (linha 1), sem, no entanto, esclarecer o que é "encefalopatia". Mais adiante, "estrutura insolúvel" é definida como "empilhamento protéico". Julgamos que esta definição nada esclarece ao leitor não-especializado. O mesmo acontece com "...soques - verdadeiras pás de corte, na forma de grandes soquetes de 'mão-de-pilão'..." (texto IV). A nosso ver, os cientistas desprezam, com mais freqüência, o critério da situacionalidade que, segundo Beaugrande e Dressler (1981), se configura na adequação do texto à situação comunicativa. Em seus textos, verificamos não apenas a utilização de termos específicos de sua área de conhecimento, como também a concentração de jargão especializado em determinados trechos, sem levar em consideração que CH é uma revista direcionada a um público constituído por um certo número de leitores especializados e outro tanto de leitores não-especializados. Observe. TEXTO III As pesquisas sobre os prions apontaram que estes são geneticamente codificados e permitiram isolar e caracterizar o gene correspondente em humanos e em roedores: Animas sadios apresentam a proteína priônica normal que está localizada na membrana celular, cuja função ainda é desconhecida. Curiosamente, não há diferenças de seqüência de aminoácidos entre a forma infecciosa e a forma celular normal da proteína, em uma mesma espécie animal. A única diferença encontrada entre as duas formas é uma alteração conformacional: a proteína normal é rica em certo tipo de estrutura (chamada de alfa-hélice), enquanto a forma infecciosa é rica em outro tipo (estrutura beta-pregueada). É interessante notar, ainda, que no texto III, a denominação popular para “encefalopatia espongiforme bovina” - doença da vaca louca - só é utilizada no título, na primeira linha e na última frase. A preferência pelo uso da nomenclatura científica da enfermidade (que ficou conhecida recentemente em todo o mundo pelo seu nome popular) revela a característica do rigor na escolha dos itens lexicais pelos cientistas. Isto pode dificultar a compreensão do texto pelos não-especialistas na área. Por outro lado, a utilização da denominação popular no título e na primeira frase demonstra que o cientista tem consciência de que, para atrair a atenção do leitor, é necessário usar o nome popular. Em suma, é praticamente impossível redigir textos de divulgação científica sem a utilização de termos especializados. O desafio, neste caso, consiste em apresentá-los acompanhados de explicações precisas e claras, accessíveis ao leitor não-especializado. Mecanismos coesivos em textos de divulgação científica De acordo com Koch (1996:19), “[...] o conceito de coesão textual diz respeito a todos os processos de seqüencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação lingüística significativa entre os elementos que ocorrem na superfície textual”. Estes processos de seqüenciação são operados por meio de elementos que estabelecem relações textuais, chamados de recursos de coesão textual. Mesmo não sendo a coesão condição necessária nem suficiente para a criação de um texto, pois há textos destituídos de recursos coesivos, mas cuja continuidade se dá ao nível do sentido (cf. Marcuschi,1983), o uso destes mecanismos é altamente desejável em vários tipos de texto, sejam eles científicos, didáticos, jornalísticos, opinativos ou expositivos (cf. Koch,1996). Os recursos de coesão, se utilizados corretamente, podem atuar na tentativa de assegurar a tessitura do texto e auxiliar na elaboração da coerência por parte do leitor. Tomando por base esta concepção, buscamos observar de que maneira se forma a coesão no corpus analisado. Nos textos I e II, matérias jornalísticas, notamos uma menor utilização de recursos coesivos em relação aos textos III e IV, escritos por cientistas. Nos dois primeiros textos, a coesão é construída muito mais pelo sentido, o que parece ser uma característica inerente aos textos jornalísticos, onde a preocupação com a economia de palavras e com a concisão é maior. Nestes textos, o leitor é levado, com maior freqüência, a recorrer a inferências. Mesmo assim, os riscos de interpretações inadequadas nos parecem menores. Vejamos trechos do texto I, onde ocorre tal fenômeno. TEXTO I Substância capaz de interferir no ciclo vital do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, poderá impedir que ele afete o homem ainda na fase inicial da infecção. O trabalho está sendo realizado por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo, juntamente com diversas instituições. [...] O desafio, no entanto, é conseguir drogas que bloqueiem as enzimas glicolíticas do parasita sem afetar as equivalentes humanas. “Como somos relacionados evolucionariamente ao T. cruzi de uma forma distante, as enzimas do parasita são parecidas com as nossas, mas não idênticas”, afirma Glaucius Oliva, coordenador do trabalho. O contexto e o co-texto juntamente com o conhecimento enciclopédico do leitor contribuem para que ele possa realizar determinadas inferências. Logo no início, por exemplo, a autora conceitua o Trypanosoma cruzi, como "causador da doença de Chagas". Só mais adiante se refere a ele como "parasita", mas o leitor consegue, sem muita dificuldade, recuperar este referente. De igual modo, não é difícil inferir que "o trabalho" se refere a uma pesquisa sobre a substância mencionada no período anterior. O contexto, o co-texto e o conhecimento enciclopédico também permitem inferir que "o desafio" se refere ao objetivo da pesquisa. É interessante observar que a progressão temática do texto I se dá muito mais por justaposição de parágrafos do que pelo uso de elos entre os mesmos, i.e., é comum a introdução de novos tópicos sem a utilização de conectores, ao contrário do que acontece, por exemplo, no texto IV, conforme veremos mais adiante. Mas é importante salientar que internamente, ou seja, dentro de cada parágrafo, percebe-se que existe a preocupação com a coesão, conforme pode ser visto no trecho a seguir. TEXTO I Em geral, a quebra da glicose, também chamada glicólise, ocorre no citoplasma da célula. Já no T. brucei (causador da doença do sono) e no T. cruzi, ela é feita no glicossomo, uma organela dentro da célula que tem concentrações altas das enzimas responsáveis pela glicólise, aumentando a eficiência do processo. Outro aspecto que pode ser detectado no texto I é a utilização de um termo catafórico para iniciar a matéria "Substância capaz de interferir no ciclo vital do Trypanosoma cruzi". O leitor só será informado que esta substância é uma droga que tem por efeito inibir "as enzimas glicolíticas do parasita" no quinto parágrafo. Conforme mencionamos anteriormente, também no texto II o leitor é levado a realizar várias inferências para conseguir apreender o seu sentido. É o caso da palavra "tecido" utilizada no segundo parágrafo. Este termo pode ter vários significados, mas neste texto, a delimitação do seu sentido é facilmente estabelecida. Com a ajuda do contexto, do co-texto e do conhecimento enciclopédico, o leitor é levado a inferir que se trata de tecido vegetal e não tecido de roupa ou tecido humano, por exemplo, o que tornaria o enunciado incoerente. TEXTO II O Centro Nacional de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), em Brasília, trabalha há mais de um ano na regeneração (clonagem) e transformação das plantas. Os técnicos da área de tecidos, coordenados por Pedro Barrueto, já conseguiram sucesso na primeira fase, produzindo novas plantas - clones - a partir de pequenos pedaços de tecido, embora a regeneração de plantas lenhosas seja um processo extremamente complexo. É curioso notar que o título do texto II ("Em busca do eucalipto de proveta") sintetiza a macroestrutura textual, embora a expressão "eucalipto de proveta" não seja mencionada em nenhum momento do texto. A nosso ver, este título leva o leitor a mais uma inferência porque o termo proveta remete a experiências de laboratório para fecundação do ser humano, que por sua vez têm relação com genética. Como a matéria trata das experiências de manipulação genética de eucaliptos em laboratório, mesmo sendo metafórico, o título encerra perfeitamente o sentido do texto. No que diz respeito à progressão temática, o texto II apresenta uma diferença básica em relação ao anterior. Percebemos que a introdução de novos tópicos não se dá pela justaposição de parágrafos, mas pela formação de elos temáticos. Por outra parte, há uma preocupação com a coesão interna dos parágrafos, como também foi verificado no texto I. Observe-se o trecho a seguir. TEXTO II O Centro Nacional de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), em Brasília, trabalha há mais de um ano na regeneração (clonagem) e transformação das plantas. Os técnicos da área de tecidos, coordenados por Pedro Barrueto, já conseguiram sucesso na primeira fase, produzindo novas plantas - clones - a partir de pequenos pedaços de tecido, embora a regeneração de plantas lenhosas seja um processo extremamente complexo. Os resultados da área de transformação genética, sob a responsabilidade de Ana Cristina Brasileiro, também são animadores. Duas técnicas estão sendo utilizadas para a introdução na planta do gene responsável pela redução do teor lignina: o vetor pode ser uma bactéria ou um acelerador de partículas. Depois de introduzido o gene, será preciso induzir no tecido transformado a formação de um calo - uma massa de células que cresce como um tumor -, a partir do qual serão obtidas, por clonagem, as plantas transgênicas. As variedades geneticamente modificadas ainda terão que passar por testes de campo, previstos para 1998, antes que possam substituir as árvores convencionais nas plantações. Há que se destacar ainda que o jornalista se permite primeiro afirmar para depois modalizar a informação dada, fato inadmissível, no caso do texto científico, onde o rigor em relação à precisão não abre espaço para o uso de tal recurso estilístico, cujo objetivo é cativar a atenção do leitor. No corpus analisado, verificamos a presença desse recurso no texto II. No primeiro parágrafo, a autora afirma que, no futuro, as árvores modificadas geneticamente substituirão a plantações atuais. No terceiro parágrafo, entretanto, afirma que "As variedades geneticamente modificadas ainda terão que passar por testes de campo, previstos para 1998, antes que possam substituir as árvores convencionais nas plantações". No último parágrafo, acrescenta: "[...] essa variedade terá que apresentar boa performance, quanto à rapidez de crescimento, e resistência ao cancro [...]". Ou seja, as árvores modificadas geneticamente poderão substituir as atuais se (e somente se) atenderem a uma série de requisitos, e não como foi colocado no primeiro parágrafo, onde se cria a expectativa de que a substituição das plantas é um fato garantido. O mesmo acontece ao afirmar que "As novas plantas beneficiarão a indústria de duas maneiras: baixando o custo de produção da pasta de celulose e reduzindo a poluição ambiental". Isto é retomado de forma atenuada no último parágrafo, quando é informado que as espécies modificadas "poderão" baratear e reduzir a poluição da produção de celulose. Vejamos. TEXTO II Eucaliptos desenvolvidos em laboratório serão no futuro a alternativa para a indústria brasileira de celulose e papel. Árvores modificadas geneticamente, com baixo teor de lignina carboidrato responsável pela dureza dos tecidos vegetais, principalmente troncos - substituirão as extensas plantações atuais da espécie, uma das principais matérias-primas para a produção de celulose. As novas plantas beneficiarão a indústria de duas maneiras: baixando o custo de produção da pasta de celulose e reduzindo a poluição ambiental. [...] [...] As variedades geneticamente modificadas ainda terão que passar por testes de campo, previstos para 1998, antes que possam substituir as árvores convencionais nas plantações. [...] O projeto Cenargen/ Aracruz pretende obter, a partir do cruzamento das espécies de Eucalyptus grandis e Eucalyptus urophylla, uma variedade cujo teor de lignina seja 30% menor que o das plantas hoje usadas na indústria. Além disso, essa variedade terá que apresentar boa performance, quanto à rapidez de crescimento, e resistência ao cancro, doença que ataca o tronco. Como o atual processo industrial exige grande quantidade de insumos químicos (como hidróxido de sódio e sulfeto de sódio) e altas temperaturas para a remoção da lignina, além do reprocessamento do rejeito antes de sua liberação, as plantas transgênicas poderão baratear e tornar menos poluente a produção da celulose. Também verificamos que o esquema deste texto parte do geral para o particular, ou seja, começa, no primeiro parágrafo, informando que eucaliptos desenvolvidos em laboratório (geral) poderão substituir as plantações atuais. Somente no último parágrafo informa quais as espécies de eucalipto que estão sendo utilizadas nesta experiência genética (particular). Observe: TEXTO II Eucaliptos desenvolvidos em laboratório serão no futuro a alternativa para a indústria brasileira de celulose e papel. [...] O projeto Cenargen/ Aracruz pretende obter, a partir do cruzamento das espécies de Eucalyptus grandis e Eucalyptus urophylla, uma variedade cujo teor de lignina seja 30% menor que o das plantas hoje usadas na indústria. Apesar de serem utilizados mecanismos coesivos, a tessitura do texto III é problemática. Isto porque sua construção e a concentração de termos científicos em determinados trechos dificultam a recuperação dos referentes, podendo prejudicar a compreensão pelo leitor não-especializado. O trecho que reproduzimos a seguir é um exemplo do problema. TEXTO III O emprego de animais knock-out (camundongos sem o gene responsável pela produção do prion) permitiu esclarecer a etiopatogenia (causa) da doença. Verificou-se que tais camundongos são absolutamente resistentes à infecção por prions infecciosos. A introdução nesses animais de um transgene de prion proveniente de hamster os torna suscetíveis à infecção por prions infecciosos de hamster. Portanto, as moléculas conformacionais alteradas (prions infecciosos) interagem com as sintetizadas pela célula-alvo após a introdução do transgene, provocando a mudança de sua forma e levando à formação de uma estrutura insolúvel (empilhamento protéico) e à morte dos neurônios. A experiência confirmou também a especificidade da infecção por prions: o tempo de latência da doença em camundongos é diferente, se a infecção for causada por prions dessa espécie ou de hamster (75 e 500 dias, respectivamente). Dessa forma, a barreira interespécie tem-se mostrado bastante importante na apresentação da doença. A infecção de animais com prions infecciosos de outra espécie é sempre muito menos eficiente que a produzida com agentes da mesma espécie. Provavelmente, não será lendo uma única vez o trecho acima que o leitor nãoespecializado na área poderá compreender que o autor está querendo mostrar que prions de uma determinada espécie só provocam infecção grave em animais dessa mesma espécie. As informações desse trecho servem para sustentar a opinião do autor, exposta no último parágrafo do texto, de que é pouco provável que a encefalopatia espongiforme bovina cause a doença equivalente nos seres humanos. A dificuldade em se identificar o referente neste texto pode ser observada logo no primeiro parágrafo: TEXTO III A doença da vaca louca, como é conhecida a encefalopatia espongiforme (em forma de esponja) bovina, é transmitida por estranho agente infeccioso, o prion, também envolvido na doença de caprinos chamada scrapie e em outra encefalopatia, que ataca alces. A estranheza decorre do fato de os prions serem partículas de natureza puramente protéica, e não organismos vivos: não foi possível, até o momento, demonstrar a presença nessas partículas de ácidos nucléicos, constituintes básicos da vida. A que estranheza o autor está se referindo? No período anterior, ele qualifica de "estranho agente infeccioso" o prion, mas é difícil estabelecer de imediato a conexão com "estranheza". Isto porque era de se esperar que essa estranheza fosse referente ao sentido do período anterior como um todo, e não ao adjetivo que qualifica o prion. Dessa forma, a informação que segue a "estranheza" se choca com a hipótese formulada pelo leitor. Já no texto IV, o principal mecanismo de coesão utilizado é exatamente o encadeamento entre o final e o início dos períodos e, sobretudo, dos parágrafos. Ou seja, há uma progressão temática linear - "[...] quando o rema de um enunciado passa a tema do enunciado seguinte, o rema deste a tema do seguinte, e assim sucessivamente" (Koch, 1996:58). Assim, o autor constrói o seu texto criando elos entre cada assunto abordado, como pode ser observado no trecho a seguir: TEXTO IV Embora Ilex paraguariensis seja chamada de erva-mate, ela é uma árvore, que em estado nativo, na mata, pode atingir até 15m. A espécie é dióica, ou seja, há plantas estaminadas (masculinas) e plantas pistiladas (femininas). Suas floradas são abundantes, ocorrendo em setembro e outubro, produzindo um grande número de frutos que estarão maduros de fins de janeiro a meados de março. À medida que amadurecem, os frutos vão se tornando, sucessivamente, brancos, róseos, vermelhos e preto-vináceos (figura 1). A parte interna do fruto é dura, envolvendo a semente. O fruto carnoso, tem um caroço, em geral, dividido em quatro unidades (pirenos) bastante duras, cada uma contendo uma semente com endosperma rico em lipídios e proteínas, e um embrião comumente rudimentar, isto é, ainda não desenvolvido de modo completo quando o fruto atinge a maturação. A natureza rudimentar do embrião dificulta a obtenção de mudas, e por isso é preciso plantar grandes quantidades de sementes para que algumas, cujo embrião já esteja maduro, tenham chance de brotar. Em viveiros, as plantas são mantidas em canteiros sombreados até apresentar 10 a 12 folhas. São então transplantadas para o local definido, geralmente de junho a agosto. A muda recém-transplantada deve ficar ao abrigo de sol direto. Quando a terra é fértil, em dois anos a árvore estará apta à primeira poda de formação, mas em geral ela começa a ser podada aos três ou quatro anos. Além dessa cadeia tópica, o texto é marcado pelo exaustivo detalhamento de informações, todas relacionadas a um tema central que é a erva-mate. Para chegar ao dado mais importante do texto - a seleção genética para auxiliar no controle da qualidade da erva-mate industrializada - o autor fala praticamente sobre todas as características da planta, só mencionando a existência de um projeto de seleção genética no último parágrafo. Até então, o texto assemelha-se a uma exposição didática sobre a erva-mate. O excesso de detalhes pode ser observado no trecho que transcrevemos a seguir. TEXTO IV O terreno em volta da erveira é forrado por uma lona, para evitar perdas e sujidades na erva. Tão logo seja possível esse material é transportado para indústrias, onde é beneficiado em duas etapas. A primeira consiste no cancheamento, isto é, a secagem das folhas dentro de um cilindro provido de pás rotatórias que continuamente revolvem a erva. Através do cilindro circula ar quente, proveniente de fornalhas, em geral alimentadas com lenha. O material, assim desidratado, é separado em folhas e palitos (pedaços de galhos, partes mais lenhosas) e poderá ser armazenado para cura (evolução mais lenta da alteração das substâncias químicas que irão dar paladar ao mate). No Brasil, esse procedimento tem sido abolido, mas na Argentina é obrigatória a cura de três a seis meses, ou mais. Isso dá à erva argentina um gosto mais acentuado. Depois de cancheada, a erva passa pela segunda etapa, quando é triturada em soques verdadeiras pás de corte, na forma de grandes soquetes de `mão-de-pilão’ -, onde os palitos são esmagados ou quebrados em fragmentos de no máximo um centímetro. Em seguida, as folhas são juntadas e rapidamente trituradas. Instruções do IBDF (atual Ibama) prescrevem 15 padrões de erva-mate. O mais comum é com 30 a 40% de palitos, outro tanto de folhas e o restante de pó (denominado cola). Nas ervas argentinas, a proporção é maior. Um dos fatores que garantem a coesão do texto é a repetição de itens lexicais idênticos ou pertencentes ao mesmo campo lexical, como sinônimos, hiperônimos etc, denominada coesão lexical. Neste texto, por exemplo, a erva-mate é tratada como "árvore-símbolo do estado do Rio Grande do Sul", "planta", "Ilex paraguaiensis", "erveira", "caa" e "erva". Ressalte-se que este tipo de reiteração costuma ser mais observada em textos produzidos por jornalistas, tendo por objetivo evitar a repetição lexical. No corpus deste trabalho, tal fenômeno também foi verificado no texto II (redigido por jornalista), onde o termo "eucalipto" é substituído por "plantas", "espécie" e "árvores". Os conectores são recursos que atuam na construção da coesão textual. Muitos deles também funcionam como operadores argumentativos. Já dissemos que nos textos I e II a ocorrência de conectores é menos freqüente. Acrescentamos que esta freqüência é ainda mais reduzida em relação aos operadores argumentativos. Ressalte-se que entre os textos analisados, o III é onde o uso destes operadores fica mais evidente. O autor se vale destes recursos apresentando idéias, criticando-as, confrontando-as com outros dados e, assim, construindo a argumentação necessária em favor do seu ponto de vista, como pode ser verificado nos dois últimos parágrafos do texto. TEXTO III Estudos epidemiológicos sugerem que o aparecimento da doença em bovinos deveu-se à inclusão, em sua alimentação, de suprimentos protéicos derivados de ovelhas contaminadas (scrapie). Entretanto, não há dados experimentais que provem essa teoria. A proibição do uso desses produtos na ração do gado, na Inglaterra, deve contribuir para o esclarecimento dessa hipótese. Por outro lado, estudos mostraram que camundongos que produzem a proteína priônica humana normal apresentam resistência à infecção pelo agente infeccioso da encefalopatia espongiforme bovina. Essa resistência existia mesmo quando o agente infeccioso era inoculado diretamente no cérebro, normalmente 100 mil vezes mais eficiente que a inoculação por via oral. Portanto, a detecção de alguns casos de Creutzfeld-Jacob em pessoas mais jovens do que os pacientes geralmente afetados não permite associação direta e exclusiva entre a doença e o consumo de carne bovina. Dessa forma, os riscos decorrentes da doença da vaca louca devem ser analisados criteriosamente para que não sejam grosseiramente superestimados. Nestes trechos, encontramos operadores que contrapõem argumentos ("entretanto" e "por outro lado"), que assinalam o argumento mais forte ("mesmo quando"), que estabelecem comparações entre elementos ("mais ... que"), que introduzem a conclusão de enunciados anteriores ("portanto" e "dessa forma"), e indicadores modais ("sugerem", "devem contribuir", "devem ser"). Conclusão A interpretação de um determinado texto depende de muitos fatores, entre os quais o conhecimento de mundo do usuário. Julgamos que este tipo de conhecimento também interfere, e muito, no processo inverso, i.e., na produção de textos. Foi isso que pudemos observar na análise de quatro textos publicados na revista Ciência Hoje, dois redigidos por cientistas e dois por jornalistas. Isto pôde ser verificado nos aspectos por nós observados - no léxico e nos mecanismos coesivos. Em nossa análise constatamos que, apesar de cientistas e jornalistas lançarem mão de termos especializados em textos que têm por função divulgar a ciência, há entre os últimos uma maior preocupação com a intelegibilidade do texto em si. No que diz respeito aos mecanismos coesivos, verificamos que a utilização dos conectores é mais frequente nos textos escritos por cientistas e, em sua maioria, exercem funções argumentativas. No caso dos textos de jornalistas, a coesão se dá muito mais por meio do sentido. Fontes de Referência BEAUGRANDE, Robert-Alain & Wolfgang Ulrich DRESLER. (1981) Introduction to Text Linguistics. London, Longman. GOMES, Isaltina M. (1995) A Divulgação Científica na Revista Ciência Hoje - Uma abordagem discursivo textual. Projeto de Pesquisa, (mimeo), 23 p. KOCH, Ingedore V. (1995) A Interação pela Linguagem. São Paulo, Contexto. KOCH, Ingedore V. (1996) A Coesão Textual. São Paulo, Contexto. MARCUSCHI, Luiz A. (1983) Lingüística de Texto: O que é e como se faz. Recife, UFPE/ Mestrado em Letras e Lingüística. VAN DIJK, Teun A. (1992) Cognição, Discurso e Interação. São Paulo, Contexto.