AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DO ALUNO-SUJEITO NA PRODUÇÃO TEXTUAL. Edna Samáira Andrade Freitas1 Nair Ferreira Gurgel do Amaral2 RESUMO: Pretendemos mostrar a subjetividade discursiva do aluno ribeirinho, considerando as marcas que tornam evidentes seu trabalho enquanto sujeito, no texto escrito, uma vez que o ensino tradicional tem se limitado a ensinar a escrita e a leitura ao aluno com a aplicação de atividades descontextualizadas, que o desconsideram enquanto ser social portador de conhecimentos e capacitado, portanto, para dialogar. Observamos que a aplicação dessas atividades impede o exercício das funções sociais do ato do ler e escrever, tornando o desenvolvimento dos mesmos sem sentido lógico e desinteressante tanto para o aluno como para o professor. Buscamos compreender como o aluno, mesmo exposto a atividades descontextualizadas, se relaciona com suas atividades de Letramento e a quais estratégias (recursos) ele usa para expressar sua subjetividade durante a produção textual. Para o alcance de tais objetivos, realizamos uma pesquisa-ação com os alunos da primeira série da Escola Municipal Antonio Augusto Vasconcelos, localizada na comunidade Cachoeira do Teotônio - margem direita do rio Madeira no município de Porto Velho-RO. PALAVRAS-CHAVE: Letramento – Estratégias discursivas – Subjetividade 1 2 Colaboradora do PIBIC/CNPq. 3º Período de Letras/Português. [email protected] Orientadora do Sub-Projeto Letramento: linguagem e história dos sujeitos no discurso das classes populares. Projeto: Alfabetização de ribeirinhos na Amazônia. Líder do Grupo de Estudos Integrados de Aquisição da Escrita. [email protected] 1. INTRODUÇÃO O projeto Alfabetização de ribeirinhos na Amazônia visa a diminuir o receio que o aluno tem de expor suas idéias, principalmente, ao escrever, uma vez que, na maioria das vezes, a valorização da linguagem escrita desconsidera a interação verbal entre sujeitos na escola. Trabalhou-se na Escola Antonio Augusto Vasconcelos (Cachoeira do Teotônio) com alunos da primeira série, perfazendo um total de dezesseis crianças. Esses alunos demonstravam falta de intimidade com a escrita espontânea, mostrando-se inseguros e desconhecedores da produção oral, acostumados que eram a fazer apenas ditados e cópias em sala de aula. Assim, quando solicitados a escrever algum texto, a rejeição era grande, pois afirmavam que não sabiam escrever. Observou-se que esses alunos não conseguiam perceber a função social que a escrita possibilita. Desse modo buscamos instaurar a prática de leitura de textos relacionados à realidade desses alunos, como contos folclóricos, solicitando produções textuais que pudessem favorecer o conhecimentos entre sujeitos. 2. MATERIAL E MÉTODOS Partindo dos pressupostos teóricos de De Certeau (1994) que questiona a suposta passividade dos consumidores, acreditando na criatividade das pessoas ordinárias, compreenderemos a importância de se respeitar a realidade e a individualidade desses alunos para que eles se coloquem como sujeitos no texto. Trata-se de trabalhar a linguagem como um processo constitutivo de e por sujeitos. Por isso realizamos atividades relacionadas à leitura e à produção textual, oral e escrita, que os incentivasse a produzir textos mais espontâneos. Para análise escolheu-se um texto descritivo escrito pelo aluno Geanderson a pedido de sua professora. Após mostrar aos alunos um cartaz com a figura de um coelho (da páscoa), a professora solicitou que eles descrevessem o coelho. A atividade foi aplicada no mês de novembro, portanto, fora do período referente à data específica, sem nenhum tipo de contextualização ou discussão prévia. Percebe-se logo que o aluno segue o molde das cartilhas tradicionais de alfabetização, quase não sendo possível encontrar neste texto o modo como o aluno vê o coelho. Neste caso, o uso de frases curtas e sem conectivos torna o texto um amontoado de frases soltas e desconexas, contribuindo para que o aluno se exponha o mínimo possível no texto, diminuindo, assim, a possibilidade de cometer “erro”. Ao observar o desenho do texto, entretanto, a situação se inverte. É possível perceber, se nos debruçarmos como verdadeiros leitores dos textos dos alunos, algumas marcas de subjetividade. Vejamos no texto abaixo algumas estratégias utilizadas pelo aluno e que demonstram sua subjetividade: Figura 1 – Texto ilustrativo do aluno Geanderson, 1ª série a) No título: o texto traz o nome do autor no lugar do título, o que demonstra que ele não se esconde, pelo contrário, faz questão de deixar clara sua marca, no início e no fim do texto, como que a demarcar território: “esse texto foi escrito por mim e eu o fiz do meu modo”. b) No desenho do coelho: todos sabemos que não existem coelhos azuis na realidade. Acontece que para o aluno este também não é um texto real, com função social, que será lido por outras pessoas. No conflito entre o discurso da escola e a subjetividade, pronta para emergir, talvez na esperança de algum leitor, (a minha presença pode ter dado ao aluno a certeza disso) subverte-se a ordem esperada e desponta a marca que caracteriza o autor. Logo, o coelho pode ter qualquer cor, já que o desenho é livre e não está preso a normas de correção. Vale ressaltar também que o modelo apresentado pela professora era diferente do que desenhou o aluno. O cartaz mostrava um coelho em pé com uma cenoura na mão, bem próxima à boca. c) No contorno que dá às frases do texto: o alunosujeito demarca o texto separando-o do desenho. É como se ele quisesse dizer: aqui eu posso criar, ali não, tenho que seguir as orientações da professora e do livro didático no texto escrito. Escrevendo frases curtas e sem elementos coesivos, as possibilidades de “erro” diminuem e as de ter uma nota alta aumentam. O texto “cercado” é limitado, não permite criar. d) No coração transpassado por uma flecha: o recado dado pelo aluno, quando encerra sua atividade desenhando um coração transpassado por uma flecha e gravado com o seu nome (Geanderson) e o meu (Edna), demonstra uma certa gratidão e reconhecimento pelo nosso trabalho, para não fazer uma leitura freudiana. Para eles, representamos alguém que não faz parte da rotina da escola e que, de alguma forma, trouxe coisas novas para a sala de aula. A Semiótica poderia explicar melhor este quase ícone, símbolo do amor, representado pela flecha de cupido que atinge o coração marcado por dois nomes: Geanderson e Edna. Para o momento, interessa apenas mostrar as pistas deixadas pelo sujeito. e) Na quebra da estrutura sintagmática: das seis frases escritas, apenas uma não começa pelo sintagma nominal [o coelho]. Inesperadamente, o sujeito introduz uma figura estranha ao contexto, um personagem que não fazia parte da história: o lobo. O autor buscou na memória discursiva um fato que faz parte do imaginário social e o colocou, como recurso intertextual, na mesma posição que ocupava nos clássicos da literatura infantil – o vilão que come a vovozinha. Aqui, ele só poderia comer o coelho, aquele que come a cenoura. f) Na escolha vocabular: “comer” é uma palavra polissêmica, pode nos remeter a outros sentidos, dependendo do contexto e da intenção do autor. Usada em dois momentos: para designar uma ação do coelho [comer a cenoura] e para designar uma ação do lobo [comer o coelho], pode também indicar a ação efetiva no texto: o coelho come a cenoura e o lobo come o coelho. Ainda a opção por “belo” no lugar de “bonito” não é casual, mostra um certo cuidado com o vocabulário e, principalmente, o conhecimento da diferença causada pela escolha. Afinal, ser belo não é o mesmo que ser bonito. g) No uso dos tempos verbais: Para as características físicas e para as preferências e gostos, o sujeito optou pelos verbos [ser e gostar], o quem demonstra sua habilidade com os recursos lingüísticos. Além disso, é de se perceber que o único verbo a indicar uma ação está no passado [comeu], todos os outros verbos são usados no presente [é, gosta]. Presente e passado entrecruzam-se, revelando um certo jogo de cumplicidade discursiva. Em relação ao texto escrito, vale a pena ressaltar alguns pontos: a) os traços são firmes e a marcação do início frasal com maiúsculas é perfeito; b) todas as frases obedecem a uma mesma estrutura: SN+SV+SN (sintagma nominal+sintagma vberbal+sintagma nominal): O coelho é belo, o lobo comeu o coelho, o coelho comeu a cenoura, etc. O coelho SN é SV belo SN Tal comportamento é reflexo de uma cultura escolar com bases fortes em cartilhas mal orientadas, tipo “Eva viu a uva”. As ocorrências que ferem as regras ortográficas limitam-se a fenômenos facilmente explicáveis no processo de aquisição da escrita: - troca dos fonemas /d/ por /t/ - mesmo ponto de articulação: lábio-dental; - troca do fonema /e/ por /i/ - marca da oralidade na escrita: é comum pessoas cultas falarem, por exemplo, /leiti/ e não “leite”; - troca do fonema /l/ por u/ - hipercorreção: tentando acertar, o aluno trabalha com a hipótese de que deve corrigir toda vez que a pronúncia for /u/ no final de sílaba, tomando como modelo alguma correção já sofrida, como por exemplo: /aneu/ para /anel/. Toda vez que ele encontrar o som /w/ nesse contexto, irá grafá-lo com /l/. É um “erro” que nasce de uma reflexão. Esperamos ter conseguido expor como, com um pouco de boa vontade, é fácil encontrar a subjetividade discursiva nos textos escolares, mesmo que os métodos utilizados não sejam os melhores. Isso deixa muito claro que precisa muito pouco para que consigamos dar às crianças a oportunidade de se expressarem de forma criativa e prazerosa. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Projeto “Alfabetização de ribeirinhos na Amazônia: uma proposta a ser construída” e o Sub-Projeto “Letramento: linguagem e história do sujeito no discurso das classes populares” pensou a realização de uma pesquisa que pudesse mostrar a realidade de nossas escolas ribeirinhas, clareando o contexto em que se dão o ensino e a aprendizagem. A percepção deste contexto revela dados importantes para quem quer, de fato, dedicar-se à questão do letramento e da inserção do sujeito na sociedade. O que vivenciamos demonstrou muita coragem e atos de verdadeiro heroísmo tanto por parte dos alunos, como dos professores da escola. Não podemos dizer que não vimos sujeitos, no sentido mais específico do termo, agindo a todo momento. As dificuldades foram muitas, inclusive o acesso à escola, que é difícil devido às más condições em que se encontra a estrada de terra que liga a comunidade de Teotônio à BR-364, que piora durante o período chuvoso. Esse é um dos fatores que dificultam a assimilação do conhecimento pelas crianças, que já apresentam dificuldades (como citado anteriormente) uma vez que a professora precisa retroceder no conteúdo para não prejudicar ainda mais os alunos. Esperamos poder ver algum dia todas as crianças entusiasmadas com o fato de poderem estudar, assim como gostaríamos de ter professores mais valorizados pelo poder público, com salários dignos, condições de trabalho e, principalmente, com tempo disponível para a leitura. Pois acreditamos no poder do livro, que incorpora a escrita, que possibilita o letramento. Ainda estou no início da pesquisa, mas já consigo vislumbrar brechas para mudanças: na receptividade e entusiasmo das crianças e na boa vontade e disposição dos professores. O que for possível demonstrar com a realização desta pesquisa deverá servir para tornar as pessoas cada vez mais conscientes de seu papel na sociedade: um sujeito social que é capaz de criar. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 4° ed. São Paulo: Vozes, 1994. GERALDI, João Wanderlei. O texto na sala de aula. São Paulo: Àtica: 2001. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2003. PARMIGIANI, Tânia & AMARAL, Nair. Análise do Discurso: uma leitura e três enfoques. Porto Velho/RO: EDUFRO, 2001 POSSENTI, SÍRO. O “eu” no discurso do “outro” ou a subjetividade mostrada. In: Alfa, São Paulo, vol.39,p.45-55, 1995. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.