I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 O Papel Financeiro da Santa Casa de Misericórdia na Bahia Setecentista Augusto Fagundes da Silva dos Santos1 Introdução A Irmandade de Nossa Senhora, Mãe de Deus, Virgem Maria da Misericórdia, ou simplesmente Misericórdia, foi fundada em Lisboa em 1498. Logo nos anos seguintes, adquiriu muitos privilégios da Coroa Portuguesa e conseguiu ampliar suas atividades. A importância que esta instituição adquiriu pelo seu papel filantrópico foi rapidamente reconhecida e isso se reverteu em regalias ou privilégios. Nas colônias portuguesas espalhadas pelo vasto império português não foi diferente, as Santas Casas de Misericórdia logo tiveram um crescimento muito grande, tanto em quantidade, quanto em poderio econômico.2 Esta importante instituição da era moderna e contemporânea pode ser caracterizada inicialmente como uma irmandade com fins unicamente caritativos. Seu primeiro compromisso firmado em 1516 mostrou quais eram os principais objetivos da Misericórdia, eram catorze objetivos principais, sete espirituais: ensinar os ignorantes; dar bom conselho; punir os transgressores com compreensão; consolar os infelizes; perdoar as injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; orar a Deus pelos vivos e pelos mortos. E sete objetivos corporais: resgatar cativos e visitar prisioneiros; tratar dos doentes; vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; sepultar os mortos. Este compromisso firmado a partir de Graduado em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. 2 Para aprofundar sobre as instituições do império marítimo português, principalmente as Santas Casas de Misericórdia. Cf. BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português 1415-1825. Tradução de Inês Silva Duarte. Lisboa, Ed. 70,1993. 1 1 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 1516 vai ser mantido ao longo de toda a História da instituição e em todo o império português.3 Em geral as Santas Casas de Misericórdia são criadas simultaneamente à fundação de uma cidade ou logo em seguida, isto é explicado pela necessidade de ter uma organização que cuide de doentes ou de desamparados que é crescente quando há o crescimento ou desenvolvimento urbano e comercial. Esta situação não foi diferente no caso da Bahia, que teve sua Misericórdia fundada entre os anos de 1549 e 1552. Há muitas divergências dos pesquisadores em relação a data exata de fundação por falta de documentação que explique e pelas diferentes interpretações em relação as fontes. O fato é que já nos primeiros anos de fundação da cidade de Salvador, se tinha notícia da instalação de uma filial da Misericórdia na Bahia. 4 Os muitos privilégios adquiridos pela matriz também foram recebidos por sua filial baiana, e o resultado disso juntamente com as doações de particulares possibilitaram com que a Santa Casa de Misericórdia da Bahia se tornasse uma importante instituição financeira do período colonial. Sobre este aspecto vale ressaltar a mentalidade da época, ou seja, a arrecadação da Misericórdia era decorrente de recebimentos por missas e doações de particulares. Muitos, sejam nobres ou não, deixavam em testamento o direito de cobrança de dívidas para com a instituição ou o direito da administração de bens que geravam para a irmandade uma porcentagem pelo serviço. Era muito comum também missas pagas à instituição por irmãos para que esta rezasse pela sua alma e de sua família. Ou simplesmente bens, irmãos deixavam bens para a Misericórdia em seus testamentos. Todas essas formas de doação citadas são apenas algumas das várias formas existentes de recursos que a irmandade recebia. A capitania da Bahia no período em que o presente projeto está inserido, século XVIII, era o maior entreposto comercial da colônia e a Misericórdia figurava enquanto uma instituição além de religiosa, também econômica, na Cf. RUSSEL-WOOD, A.J.R. Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: UnB, 1981. 4 Idem, pp 65. 3 2 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 administração de seus bens e de particulares e na concessão de crédito. O capital adquirido pelas doações já mencionadas era investido em oferta de crédito a particulares, esse era o mecanismo escolhido pela irmandade para investir o capital acumulado ao longo do século XVIII. Antes, a opção era pela compra de imóveis e a utilização destes em forma de arrendamento ou aluguel, porém a partir de meados do século XVII, a opção de emprestar a juros foi considerada pela instituição como a maneira mais segura, pois os custos com manutenção dos imóveis eram altos e havia também muitos atrasos no pagamento dos aluguéis. Essa alternativa foi tão comum no século XVIII que a irmandade quando recebia legados de irmãos deixando bens, como fazendas, imóveis, ou similares, quase que imediatamente desfazia do bem e investia o capital arrecadado emprestando a juros A misericórdia verificou que (...) as despesas de manutenção das propriedades tornavam duvidoso o valor de tais heranças. (...) O rico Jorge Ferreira deixou uma bela propriedade na praça principal à Misericórdia, mas o jesuítas recebiam parte dos aluguéis. A irmandade achou melhor negócio vender sua propriedade por 250$000 e colocar essa soma para empréstimo a juros de 6,25% do que alugar a casa por apenas 12$000 anuais. Heranças em dinheiro que seriam rendosas se emprestadas eram gastas em consertos de imóveis. Até mesmo propriedades fora da cidade traziam prejuízos, pois arrendatários descuidados estragavam a terra e negligenciavam o pagamento de aluguéis. 5 A citação retirada do trabalho de Russel-Wood “Fidalgos e Filantropos” ilustra a opção da irmandade pelo empréstimo a juros ao invés da manutenção de imóveis para aluguéis. Além disso, a taxa de juros que aparece na sua obra é de 6,25% ao ano cobrados pela Misericórdia a seus devedores. Sobre este aspecto podemos afirmar que a taxa de juros anual que o historiador citado trás em seu livro como sendo o valor dos juros cobrados não pode ser verificada em todos os momentos da vida financeira da instituição. Através do trabalho com as fontes, estamos encontrando variações, ou seja, não negamos este valor como sendo o mais utilizado, porém esta taxa varia para mais e para menos, de acordo com cada processo. É o caso, por exemplo, do processo de Jozefa Maria da Cruz que em Sete de Março de 1772, devia a Santa Casa a quantia de 100$000 e por causa deste principal ficou acordado que o 5 RUSSEL-WOOD, A.J.R. Op. Cit. pp 72. 3 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 pagamento dos juros anuais seria de 5$000.6 o que corresponde portanto, a 5% ao ano e não 6,25% anuais como aparece na obra de Russel-Wood. Não queremos com isso discordar totalmente deste valor como sendo o mais cobrado, nós inclusive constatamos que em 91% dos casos a taxa de juros cobrada pela Misericórdia baiana era realmente de 6,25% porém havia casos que esta taxa variava, o que fez com que o valor médio encontrado da taxa de juros cobradas pela Misericórdia da Bahia entre os anos de 1726 e 1790 girasse em torno dos 6,13% ao ano. Um trabalho sobre as Misericórdias que deve ser mencionado é o da historiadora portuguesa Isabel dos Guimarães Sá, que estudou em sua pesquisa a Misericórdia de Lisboa e várias outras espalhadas pelo vasto império português, inclusive a Misericórdia da Bahia 7. A Bahia em meados dos setecentos mesmo sendo o maior entreposto comercial da colônia mantinha resquícios medievais, desta forma seria impossível entender a sociedade baiana deste período sobre o prisma econômico, sem considerar aspectos sociais, políticos e religiosos. Por isso, o conceito que utilizaremos aqui é o de Economia não-capitalista, ou seja, de Formações Econômicas e Sociais que existiram anteriores à consolidação e expansão do capitalismo que se dá a partir do século XIX. Para Marx, o capitalismo em pleno vigor e funcionamento se dão a partir de algumas características e peculiaridades próprias dele. Enquanto que, como vemos, uma sociedade produtora de mercadorias não é necessariamente capitalista, a produção capitalista é absolutamente uma produção de mercadorias, com duas determinações essenciais e específicas: primeiro todos os produtores, incluindo a força de trabalho, apresentam-se no mercado como mercadorias. Sendo a valorização o impulso fundamental do Modo de Produção Capitalista todo bem produzido de forma capitalista converte-se, em virtude disso, não só em mercadoria, mas em capital-mercadoria. Segundo: o comércio de mercadoria assenhoreou-se de todas as esferas, de forma que a produção social destinado ao próprio consumo torna-se ínfima8 Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), pp. 483, doc. 3053. 7 SÁ, Isabel dos Guimarães. História da Expansão Portuguesa: A Formação do Império (1415-1570). In: As Misericórdias. Lisboa: Temas e Debates, 1998, pp. 360-368. 6 4 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 A questão da taxa de juros cobrados pela Misericórdia é o principal elemento que pretendemos abordar aqui. Além desta pretendemos também compreender todo processo de concessão de crédito que a irmandade executava durante o século XVIII. Vale ressaltar que este artigo é parte de um trabalho mais amplo que irá culminar na dissertação de mestrado, que pretende tratar além dos aspectos creditícios da instituição e de todos a estes relacionados, analisar o perfil dos irmãos negociantes e dos devedores da Misericórdia. Portanto, compreender esta característica de concessão de crédito da irmandade no século XVIII é importante, pois se trata de um período com uma escassez monetária bastante acentuada principalmente em regiões que estavam geograficamente distantes da região mineradora e mesmo com o auge da produção aurífera na Capitania das Minas Gerais, a escassez monetária em toda a colônia foi algo bastante comum inclusive na própria região No século XVIII, apesar da abundância de moedas de ouro e secundariamente de prata, o panorama geral não se altera em demasia. De fato, apesar das “torrentes de ouro” descritas por Rocha Pita, a moeda circula num só sentido, ou seja, das áreas mineradoras para o Rio de Janeiro (...) Neste sentido, um dos grandes erros de parte de nossa historiografia é, sem dúvida, o de seguir o senso comum e considerar que sociedades produtoras de metais preciosos encontram-se inundadas do mesmo9 A escassez monetária era algo recorrente em toda a colônia, inclusive na principal área produtora. Não se pode confundir o auge da produção aurífera e a conseqüente resolução parcial do problema do abastecimento deste metal e de outros de maior valor agregado, com a escassez monetária principalmente de moedas de baixo valor, muito utilizadas nas transações diárias e cotidianas Podemos começar falando de uma ausência, bastante clara tanto para o século XVII quanto para o seguinte: a da moeda de cobre. Em MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro Terceiro, vol. V. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1981. 9 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Crédito e Circulação Monetária na Colônia: o caso Fluminense, 1650-1750. V Congresso Brasileiro de História Econômica, Caxambu: ABPHE, 2003. In: Anais – Belo Horizonte: ABPHE. pp.15 8 5 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 outras palavras, da moeda de pequeno valor, destinada às compras do dia-a-dia e aos indivíduos mais pobres da sociedade. Em 1644, quando os oficiais da câmara pedem à coroa a cunhagem de moedas na cidade e a aplicação de seu rendimento na construção da fortaleza da Lage, as moedas cuja produção é solicitada são de prata, patacas e meias patacas. Pouco mais de uma década depois, a decisão da coroa de proibir a circulação de moedas de prata espanholas provoca uma crise na praça carioca, pois estas compunham quase a totalidade do meio circulante local. (...) Curiosamente, é a mesma Câmara, geralmente tão desinteressada das moedas de pequeno valor, que nos dá notícias sobre a carência das mesmas. Em 1654, ela pede à coroa que autorize a cunhagem de moedas com o ouro extraído das minas de São Paulo e a licença para cunhar dois ou três mil cruzados em moedas de cobre que corressem só no Rio de Janeiro e na capitania vicentina.10 A ausência de moedas para as práticas cotidianas é mencionada também por Russel-Wood em sua obra sobre a Misericórdia da Bahia e isso pôde ser constatado por nós na análise preliminar das fontes. Na documentação tivemos a oportunidade de perceber como muitos pagamentos de dívidas à irmandade eram feitos em caixas de açúcar, justamente pela não liquidez da economia baiana no período. Devido à grave escassez de moeda na Bahia durante a parte final do século XVII, os devedores cada vez mais se atrasavam no pagamento dos juros, ou passavam a fazer o pagamento em açúcar em lugar de dinheiro. As vezes a ruína financeira de um fazendeiro ocasionava a perda do capital que pedira emprestado à Misericórdia.11 A questão do fornecimento de crédito para o Brasil Colonial, é algo que tráz muitas discussões entre os estudiosos, é dentro desta perspectiva que pretendemos tratar esta temática. Para o historiador Claudinei Magno Magre Mendes, há uma leitura equivocada de parte da historiografia ao se referir a concessão de crédito no período colonial. Ele acredita que é um erro entender as relações mercantis, de crédito e de produção como sendo usurárias. Isso ocorre segundo o mesmo historiador pelo fato de parte da historiografia utilizar o modelo pré-capitalista, como fundamentação teórica para subsidiar a Idem, pp.7-8. Todo este aspecto de escassez monetária principalmente para moedas de baixo custo analisado por Sampaio para o caso fluminense, consideramos ser a mesma perspectiva para o caso da capitania da Bahia no mesmo período. 11 RUSSEL-WOOD, A.J.R. Op.cit.,pp. 76 10 6 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 discussão.12 Ou seja, para Mendes, é inegável que no período colonial, século XVIII estávamos num momento de transformação em que as práticas mercantis e de crédito atigiam um novo estágio, não do ponto de vista evolutivo, mas com características diferentes, cuja a mentalidade das relações mercantis e de produção se baseava na obtenção do lucro o que portanto oferece subsídios segundo ele, para não considerar as práticas de concessão de crédito como sendo usurárias O esquema teórico de que os historiadores partiram para examinar as relações entre a produção e o comércio, entre os produtores coloniais e os comerciantes, principalmente no que diz respeito ao financiamento da produção, tem por base a afirmação de que a economia colonial não poderia ser compreendida como uma forma capitalista. Evidentemente, não se trata de estabelecer uma relação de igualdade entre as relações estabelecidas na colônia e o capitalismo. Mas, também não se pode valer dessa comparação para provar o contrário.13 Portanto, não se trata de associar a História do Brasil Colônia a um momento de pleno vigor do capitalismo, mas da mesma forma, não se pode considerar o contrário, ou seja, relações pré-capitalistas para basear o discurso das práticas de concessão de crédito como usurárias. Desta forma, para Mendes as práticas de financiamento e de concessão de crédito para o período colonial devem ser entendidas não como usura mas como característica necessária ao financiamento da produção, que por sua vez foi fator gerador de lucro que por conseguinte deu origem ao que atualmente se entende pela historiografia, como burguesia. Furtado também entende o crédito no período colonial não como concessão de capital usurário mas como processo comum e necessário para o desenvolvimento mercantil e dos negócios na colônia. (...) uma vez demonstrada a viabilidade da empresa e comprovada sua alta rentabilidade, a tarefa de financiar-lhe a expansão não haja apresentado maiores dificuldades. Poderosos grupos financeiros holandeses, interessados como estavam na expansão das vendas do produto brasileiro, seguramente terão facilitado os recursos requeridos para a expansão da capacidade produtiva. 14 12 MENDES, Claudinei Magno Magre. Crédito e Usura na época Colonial: Autores Coloniais e Historiografia. Mirandum 18. CEMOrOc Feusp – IJI Univ. do Porto – 2007, pp. 31-48. 13 Idem, pp. 46 7 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 A passagem do trabalho de Furtado mostra bem esse capital mercantil que financia a produção e que consequentemente expande a capacidade produtiva. Outro trabalho de grande relevância para entender as formas de relações econômicas que antecederam o período capitalista, é o livro de Fernando Novais intitulado “Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)”. Neste trabalho o autor faz uma grande discussão acerca da “acumulação primitiva de capital”, ou seja, discute através deste conceito, a crise do sistema colonial a partir do acúmulo primitivo de capital que proporcionou o desenvolvimento do capitalismo. 15 Para alguns historiadores, o capital emprestado no contexto colonial brasileiro, não pode ser entendido sob esse viés dos pesquisadores citados acima. A exemplo desta corrente, está a pesquisadora Maria Bárbara Levy que em seu trabalho intitulado “História Financeira do Brasil Colonial” entende que o capital mercantil que migra da metrópole para a colônia só tem uma função, retirar o máximo da riqueza dos verdadeiros produtores deste capital para o capital comercial que é o mesmo que usurário, para ela. A autora não entende a relação como uma forma moderna, para ela todas essas características significam a prática de execução do capital usurário. É esse deslocamento da área de atuação do capital usurário, ao lado de seu irmão gêmeo, o capital comercial, que permite transformar a empresa de expansão marítima numa das formas mais bem sucedidas da acumulação prévia 16 A partir desta discussão bibliográfica em relação às práticas de concessão de crédito na colônia, podemos perceber a complexidade e profundidade da temática e é por este motivo que pretendemos tratar essas questões com bastante cuidado na pesquisa, trazendo novas respostas sobre o tema trabalhado e cruzando estas com a bibliografia pertinente para colaborar FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 18ª edição. São Paulo: Nacional, 1982. pp. 11. 15 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo, Ed. Hucitece, 1995. 16 LEVY, Maria Bárbara. História Financeira do Brasil Colonial. Rio de janeiro: IBMEC, 1979. 14 8 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 com o crescimento das pesquisas na área de História Econômica para o período colonial. A metodologia que está sendo empregada nesta pesquisa no trabalho com a documentação são os métodos serial e quantitativo. Vejamos esta tabela sobre a movimentação financeira da santa Casa de Misericórdia entre os anos de 1726- 1790 Tabela 1: Movimentação Finançeira da Santa Casa de Misericórdia (1726-1790) Período 1726-1730 1731-1740 1741-1750 1751-1760 1761-1770 1771-1780 1781-1790 Total Volume crédito concedido 6:232$970 114:871$430 40:647$699 33:007$781 25:436$398 5:955$563 257$478 226:409$319 Volume de capital recebido 6:813$720 159:795$039 59:304$203 51:619$318 37:406$968 5:823$190 964$840 374:135$278 “Lucro” 580$750 44:923$609 18:656$504 18:611$537 11:970$570 -132$373 707$362 95:317$959 Fonte: Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790) Esta tabela foi confeccionada a partir da pesquisa feita com uma das fontes primárias que estão sendo utilizadas na pesquisa que é o Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (17261790). Como todo livro de conta corrente, estão presentes todas as informações que dizem respeito à concessão de crédito a juros pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia. As principais informações do documento são: data de concessão do crédito, valor, forma de pagamento, ou seja, de que forma o indivíduo iria quitar a dívida, taxa de juros, data de vencimento do principal e data do vencimento dos juros. No caso deste último, a data do pagamento vencia uma vez por ano, sendo muito comum o atraso e a quitação de vários anos atrasados de uma só vez. Vale ressaltar que os juros eram sempre cobrados na modalidade juros simples, sem cobrança de juros sobre 9 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 juros mesmo com atraso. Uma hipótese é o aspecto filantrópico da Misericórdia, que tinha uma função social bastante relevante na Bahia Colonial, e uma outra hipótese são as características da época de realizar este tipo de transação econômica na modalidade juros simples. São suposições que serão respondidas ao longo da pesquisa. As vezes encontramos na documentação, o pagamento total da dívida, ou seja, incluindo o pagamento do principal e dos juros, mas é muito comum também, encontrar-mos processos em andamento, cuja o devedor não quitou a dívida total, quitando apenas o principal ou apenas os juros. E há casos também que não encontramos no processo nenhum recebimento por parte da Santa Casa, ou seja, quando o indivíduo está com o débito total. O fato portanto de encontrarmos na documentação processos em andamento, a nosso ver ilustra ainda mais o poder financeiro da Santa Casa, haja vista que não podemos considerar na tabela valores que ainda estavam por vir. Portanto a partir deste raciocínio podemos considerar que certamente a receita que a Santa Casa de Misericórdia da Bahia atingiu entre os anos de 1726 e 1790 decorrentes do empréstimo de capital ou do alúguel de imóveis foi bastante superior aos 95:317$959 encontrados na documentação. Outro aspecto que reforça esta idéia, é que esses são valores de uma das fontes pesquisadas, mas já encontramos na documentação mais livros de conta corrente sobre o período em análise. Outro aspecto relevante encontrado na documentação e que está presente na tabela é a década de trinta do século XVIII, esta foi a década dentro do período estudado até o presente momento que a Misericórdia mais concedeu crédito e que mais recebeu pagamento de dívidas. Entre os anos de 1731 e 1740 a Misericórdia da Bahia emprestou à particulares a quantia de 114:871$430 o que corresponde a mais de 50% do valor total emprestado entre os anos gerais da pesquisa. Assim como também nesta mesma década a instituição mais recebeu pagamento de dívidas. A cifra atingida neste mesmo período foi de 159:795$039, o que corresponde a mais de 42% do capital recebido pela Irmandade entre os anos de 1726 e 1790. 10 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 Para explicar tamanho êxito desta década em relação a outras décadas do século XVIII no que se refere a liquidez da instituição tanto na concessão de crédito quanto no recebimento de dívidas, não deve-se prender a uma análise isolada da Santa Casa de Misericórdia da Bahia no século XVIII. Basta observar que não foi o volume de empréstimo unicamente que aumentou, o pagamento de dívidas para com a Irmandade também cresceu, o que mostra um período de maior liquidez da economia baiana na terceira da década do século XVIII. Este fenômeno pode ser explicado pelo crescimento da exploração de metais preciosos na região das Minas, o que gerou aumento da circulação monetária em parte da colônia, principalmente na região mineradora, mas também nas outras regiões que funcionavam como centros abastecedores de produtos de vários tipos para a região mineradora, como Bahia e Rio de Janeiro. Para compreender efetivamente a economia e a sociedade em que a Misericórdia estava inserida, deve-se pensar o papel do açúcar enquanto principal produto da economia baiana nos setecentos. Um dos historiadores que melhor estudaram a sociedade baiana nos primeiros três séculos de colonização foi Stuart Schwartz. Este pesquisador combateu equívocos da historiografia que ilustrava o açúcar em declínio após o aumento da concorrência estrangeira a partir de meados do século XVII. Entretanto a impressão muitas vezes transmitida pela historiografia da economia brasileira é que o açúcar viveu seu apogeu nos primórdios do século XVII e então mergulhou em um longo período de estagnação e declínio(...) Apesar de ser verdade que a concorrência externa reduziu severamente a parcela brasileira no mercado açucareiro internacional (...) a história subsequente não foi simplesmente marcada pelo declínio. (...) Embora o Brasil nunca recuperasse sua posição relativa como fornecedor de açúcar no mercado internacional, a indústria açucareira e a classe dos senhores de engenho permaneceram dominantes em regiões como Bahia e Pernambuco.17 A passagem retirada da obra de Schwartz, mostra a posição do açúcar na economia colonial. E a questão do declínio inexistente também é algo 17 SCHWARTZ, Stuart B. Op. Cit. pp. 144. 11 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 bastante relevante. O açúcar na prática nunca diminuiu seu crescimento tanto em produção quanto em comercialização. Em números reais tanto o primeiro aspecto quanto o segundo só fizeram crescer, e isso se refletiu na pauta de exportações do principais produtos brasileiros. O que aconteceu na prática foi a perda percentual. A tese de doutorado da professora Maria José Rapasi Mascarenhas também trata da conjuntura da economia açucareira baiana no período colonial. Mas para nossa pesquisa, um dos capítulos que não devem ser deixados de mencionar é o capítulo quatro, nele a autora trata em especial com a questão do crédito, uma riqueza que não se vê mas que foi imprescindível para as relações comerciais e financeiras da Bahia colonial. A importância do crédito para as sociedades capitalistas ou em formação é fundamental, mas para a colônia brasileira foi de extrema relevância pois num período de escassez monetária, principalmente após 1750 com a queda da produção aurífera, o crédito vai funcionar como elemento importante para circulação de mercadorias.18 Trazendo o diálogo para a questão do açúcar, pode-se observar que este produto funcionou para o período colonial, não só como principal produto da Bahia mas também como importante moeda de troca. 19 Podemos ilustrar isto por meio da análise das fontes. Em vários casos há realmente o pagamento da dívida em caixas de açúcar. Este mecanismo era muito utilizado quando o devedor queria quitar apenas o débito referente aos juros e não ao prinicipal. A Santa Casa de Misericórdia aceitava o pagamento em açúcar porém o produto sofria uma depreciação. Vejamos um processo, o caso de Dona Maria de Aragão, viúva do capitam José de Brito, que em 11 de Junho de 1741 pagou os juros vencidos em 24 de Julho de 1740, com uma caixa de açúcar no valor real de mercado na época de 48$190, mas que foi aceito pela Santa Casa pelo valor de 35$120. Portanto uma depreciação de aproximadamente 27,2%. Este processo e vários outros encontrados na 18 19 MASCARENHAS, Maria José Rapassi.Op.cit. RUSSEL-WOOD, Op.cit., 12 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 documentação ilustram ao nosso ver para pensar a Misericórdia da Bahia como uma forte instituição financeira para o período colonial. Outro aspecto que chama atenção é o tempo médio que a Misericórdia cedia a seus devedores para o pagamento da dívida. Na maioria dos casos ficava acordado entre as partes que o pagamento iniciaria após o primeiro ano, porém encontramos casos em que a instituição cedeu de prazo, cerca de sessenta, setenta anos, nestes processos em geral quem pagava o débito eram viúvas, filhos ou netos do devedor. Mas, fazendo uma média de todos os processos encontrados dentro do balizamento temporal da pesquisa, a média girou em torno de 12 anos, este foi o prazo médio que a Misericórdia cedia a seus devedores durante grande parte do século XVIII. Mesmo com este prazo bastante significativo para quitação das dívidas, o pagamento era realizado em média 7,3 anos após o vencimento. Sob este aspecto Isabel dos Guimarães Sá afirmou que os irmãos da casa utilizavam de suas regalias para obter crédito para si e para seus próximos sem serem pressionados acerca do pagamento da dívida. Ao nosso ver, os atrasos podem ser vistos como reflexo de privilégios e regalias dos irmãos da Santa Casa, mas o índice de inadimplência não. Haja vista que apesar dos muitos atrasos, o índice de inadimplência era bastante reduzido. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, quase sempre recebia com atraso o pagamento da divida, mas recebia. Dos 288 processos analisados até o momento, 205 tiveram a dívida quitada na sua totalidade, ou seja, cerca de 71% dos devedores pagaram a dívida total à instituição, além disto, ressalto que muitos processos não conseguimos acompanhar até o final. Estes são resultados parciais da pesquisa e por este motivo, acreditamos que esses valores irão oscilar. No entanto, a partir de informações como estas, já conseguimos configurar em parte algumas características da Misericórdia baiana enquando forncedora de crédito nos Setecentos. Bibliografia ALENCASTRO, Luiz Filipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 13 I Encontro de História do CAHL Centro de Artes, Humanidades e Letras, Quarteirão Leite Alves, Cachoeira-BA 18 a 21 de outubro de 2010 ARAÚJO, Luíz Antônio Silva. Contratos e Tributos nas Minas Setecentistas: o estudo de um caso-João de Souza Lisboa (1745-1765). Niterói: UFF/ICHF, 2002 (Dissertação de Mestrado). _____.Em nome do Rei e dos Negócios: Direitos e Tributos Régios Minas Setecentistas (1730-1789). Niterói: UFF/ICHF, 2008. (Tese de Doutorado). BARICKMAM, B.J. A economia de exportação. In: Um Contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1789-1860. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira. BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português 1415-1825. Tradução de Inês Silva Duarte. Lisboa, Ed. 70,1993. _____. A Idade de Ouro do Brasil (dores de crescimento de uma sociedade colonial). Tradução de Nair de Lacerda. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. CARDOSO, F.H. Condições sociais de Industrialização. 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