A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
Personagens, factos, peripécias e facécias
Comunicação apresentada na Academia de
Marinha pelo Académico Emérito contraalmirante médico naval Joaquim dos Santos
Félix António, em 23 de Março de 2010
Desde que fui eleito membro desta Academia, em 5 de Março de 1992,
com honra e orgulho, na sequência da proposta do então respectivo Presidente,
almirante Rogério d’Oliveira, que, durante 18 anos, viria a exercer esse cargo,
depois de 3 anos como laborioso vice-presidente, com uma inteligência e um
dinamismo invulgares, ainda hoje recordados, e pugnando sempre pela sua
inalienável autonomia organizacional, cultural e científica, é esta a quarta
comunicação que tenho o libente prazer de aqui apresentar. E, se as anteriores
podem ter sido consideradas conferências, afigura-se-me que a de hoje não
passa de uma simples palestra, sob a forma de um despretensioso aranzel, de
marcado cunho saudosista, certamente mais gratificante para mim do que para
vossas excelências, que tiveram a amabilidade de me honrarem com a vossa
jucunda presença, dignando-se a aturarem e a ouvirem este mero e ignoto
contador de histórias e historietas, e pobre e banal escrevedor de coisas e loisas,
que, podendo fazer algo, o deve fazer, com franqueza e sem receio de eventuais
críticas, reparos, remoques ou recriminações, privilegiando sempre a verdade e
o rigor, embora sem a estulta, nefelibata e bacoca pretensão de nunca se
enganar e raramente ter dúvidas, e apenas com uma certeza, a de que a dúvida é
apanágio de quem já viveu muito, como eu…
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Contudo, antes de abordar propriamente o tema que me propus tratar,
permitam-me que, à guisa de breve intróito, vos faça uma necessária e senga
advertência: nesta minha exposição, irei evocar alguns episódios insólitos e
caricatos, quiçá inverosímeis, e eventualmente chocantes, por vezes burlescos,
picarescos e até brejeiros, de que, desde já, me penitencio, com um fraseado
nem sempre socialmente correcto, que, espero, me desculparão, já que, sendo
indubitavelmente vernáculo, respeita escrupulosamente o nosso idioma e é
devidamente avalizado pelo tão propalado e apreciado Dicionário da Língua
Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, que, diga-se
de passagem, pródigo em tudo o que é calão e palavrão, é lamentavelmente
omisso em centenas de vocábulos, muitos deles correntes, do léxico
português… De resto, para mim, a brejeirice, mais do que uma condenável
ordinarice aviltante, é, antes, uma inofensiva brincadeira picante. E, ao
contrário dos indecentes, que têm horror à decência, os púdicos saberão tolerar
o despudor, quando este não é ultrajante. E, já agora, lembremo-nos do nosso
camarada Bocage, que, tantas vezes licencioso nos seus sublimes versos, não
deixou, por isso, de ser um dos maiores poetas portugueses de sempre,
sentindo-me eu muito honrado por fazer parte da Tertúlia Poética “Ao
Encontro de Bocage” e ser colaborador permanente da revista “O Arauto de
Bocage”, desde há cerca de 8 anos, tertúlia e revista essas dirigidas pela ilustre
poetisa América Miranda, presidente da Assembleia Geral do Círculo Nacional
de Arte e Poesia.
Depois de uma instrução primária, estudando à luz do petróleo, em
inóspita e atrasada aldeola do concelho de Tomar, marcada pela Guerra Civil
Espanhola, com odiosos assassínios perpetrados pelas duas facções em
confronto, e de um curso liceal no célebre e exigente Colégio Nun’Álvares
daquela cidade, afectado pela Segunda Guerra Mundial, em que emergiram, em
defesa da democracia e da liberdade, dois dos mais notáveis políticos e
patriotas do século passado, um, militar de carreira, e outro, militar de
formação, Charles de Gaulle e Winston Churchill, que, com coragem, só
prometeu, aos seus compatriotas, trabalho, sangue, suor e lágrimas, e após uns
supérfluos e árduos preparatórios de medicina, na Faculdade de Ciências de
Lisboa, e um onusto e trabalhoso curso médico, na Faculdade de Medicina da
capital, achei-me, no final de 1952, possuidor de um bonito diploma de
licenciatura, em pergaminho vegetal, escrito em latim, asseverando que eu
estava apto a exercer a profissão de médico. Todavia, considerava que aquilo
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
não correspondia à completa verdade, pois que, para tal, seria necessária uma
prática clínica capaz e duradoira, que o respectivo curso, de forte cariz teórico e
de relativamente curta duração, não poderia de algum modo ter-me incutido.
Por isso, tendo presente aquela sábia asserção de Einstein de que “sucesso
antes do trabalho só no dicionário”, logo me inscrevi como voluntário para
estagiar, sem qualquer remuneração, no Serviço de Patologia Médica do
Hospital Escolar de Santa Marta, a fim de praticar e de me aperfeiçoar, sob a
superior orientação do respectivo director professor Adelino Padesca. Mas,
como era imprescindível pensar na subsistência futura, também logo me
matriculei no Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge, para a
frequência do Curso de Medicina Sanitária, necessário para um eventual
vindouro cargo de subdelegado de saúde, algures na província.
Eis senão quando, passados alguns meses e já em pleno verão de 1953,
a cumprir o serviço militar obrigatório no Exército, tomo conhecimento, por
intermédio do meu ex-colega do colégio de Tomar, segundo-tenente António
da Silva Cardoso, de que iria abrir em breve um concurso de provas públicas
para o preenchimento de oito vagas no quadro de oficiais médicos da Armada.
Com um misto de satisfação e esperança, mas também de apreensão, dado que,
como se dizia na altura, Portugal era um país de cunhas, algo que não me era
acessível e não se coadunava com os meus princípios, lá me sujeitei, não sem
uma certa difidência, juntamente com mais onze candidatos, às difíceis provas,
clínica e de técnica operatória em cadáver, realizadas em Dezembro, perante
um júri de cinco membros, presidido pelo director do Hospital da Marinha, o
temível, mas muito ilustre e prestigiado, capitão-de-fragata médico Telmo
Corrêa. A correspondente prestação levou a um resultado satisfatório, tendo-me
apercebido então que o empenho ali não tinha guarida, e foi logo aí que
comecei a ter o maior respeito pela Saúde Naval em particular e pela Marinha
em geral, convicções que se foram arreigando ao longo dos anos, sentindo-me
cada vez mais desvanecido por fazer parte desta digna plêiade dos homens, e
agora também das mulheres, do botão de âncora, que, espero, hão-de saber
resistir, com determinação e nobreza, à avassaladora onda de dissolução de
valores e costumes, com que certos auto-intitulados vanguardistas pretendem
desestruturar a nossa sociedade, incluindo as Forças Armadas.
Cumprido o forçoso ritual da compra dos uniformes, muitos deles já
usados, dada a escassa liquidez familiar, como a sobrecasaca, as dragonas, as
jaquetas, as calças de galão, o chapéu armado e até a espada, esta na feira da
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ladra, pela módica quantia de trezentos escudos, quiçá o prelúdio para as
futuras populares lojas dos trezentos, chegou finalmente o dia da apresentação
ao serviço, 10 de Março de 1954, o que fiz muito compenetrado e ufano da
minha nova condição de marinheiro encartado. Após breves semanas de estágio
no Hospital da Marinha, fui destacado para o contratorpedeiro Tejo, onde iria
fazer o meu baptismo do mar, numa comissão de embarque deveras aliciante,
já que o navio, juntamente com o seu irmão Lima e com o aviso de 1ª classe
Afonso de Albuquerque, iria fazer parte da Força Naval que escoltaria o
Presidente da República, general Craveiro Lopes, na sua primeira viagem, em
Maio e Junho, às colónias portuguesas de África, já então eufemisticamente
chamadas províncias ultramarinas, e que seriam, desta feita, S. Tomé e Príncipe,
e Angola, acompanhado pelo ministro do Ultramar capitão-de-mar-e-guerra
Sarmento Rodrigues, sendo então ministro da Marinha o contra-almirante
Américo Thomaz e comandante geral da Armada o vice-almirante Pereira da
Fonseca. Os contratorpedeiros de então, em número de cinco, deslocando cerca
de 1600 toneladas, eram os navios mais velozes da nossa esquadra, podendo
atingir a velocidade máxima de 36 nós, logo seguidos pelos avisos de 1ª classe,
em número de dois, com o deslocamento de cerca de 2500 toneladas e cuja
velocidade máxima podia chegar aos 22 nós.
O general Craveiro Lopes ascendera ao cargo de Presidente da
República após as eleições presidenciais de 22 de Julho de 1951, como
candidato da União Nacional, na sequência da morte do apelidado venerando
Marechal Óscar Carmona, ocorrida em 18 de Abril. Nessas eleições, falseadas,
como era timbre do Estado Novo, ainda apareceram dois outros candidatos, que,
pelos motivos adiante expostos, não chegariam a ser sufragados:
Ruy Luís Gomes, professor de matemática na Universidade do Porto, de que
fora demitido por Salazar na célebre purga universitária de 1947, e apoiado
pelo Movimento Nacional Democrático, de índole comunista, foi considerado
inelegível pelo Conselho de Estado em 17 de Julho, não sem que previamente
tivesse sido agredido, com seus colaboradores mais próximos, à saída de uma
sessão de campanha em Rio Tinto, por adeptos da União Nacional. Manuel
Carlos Quintão Meyrelles, contra-almirante reformado, apoiado pelos sectores
moderados da oposição, designadamente por homens da Seara Nova, como
Mário de Azevedo Gomes e António Sérgio, e por outros dissidentes do regime,
como Mendes Cabeçadas, Cunha Leal, Henrique Galvão, David Neto e Mário
Pessoa, e ainda por muita gente da Marinha, retirou a sua candidatura, três
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
dias antes do acto eleitoral, por considerar que não estavam reunidas as
garantias mínimas de seriedade.
Assim, após cerca de três anos como Supremo Magistrado da Nação,
Craveiro Lopes iria fazer a sua primeira visita oficial à chamada África
Portuguesa, da maior importância, dado o contexto político internacional que
então se vivia, com os movimentos anticolonialistas em franca ascensão,
depois da independência da Índia, a jóia da coroa do Reino Unido, em 1947,
concebida e levada a cabo pelo grande filósofo, asceta e patriota Mohandas
Gandhi, com a formação de dois novos estados, a União Indiana, hindu, e o
Paquistão, muçulmano. Daí o cuidado a observar nos vários discursos que iria
ter que proferir durante a sua estadia de cerca de mês e meio naquelas ainda
chamadas nossas terras africanas. De tal modo que, apesar de o general ser
considerado um militarão de grande firmeza e pouca maleabilidade, ter tido
que se sujeitar, em relação a esses discursos, previamente por si elaborados, à
sua meticulosa revisão, feita pelo escrupuloso, prudente e astucioso chefe do
Governo, com a colaboração do arguto, perspicaz e esclarecido ministro do
Ultramar, discursos que, embora com base na ideia de um Portugal uno e
indivisível, do Minho a Timor, como era politicamente correcto dizer nessa
altura, acabaram por ser cuidadosamente expurgados de referências porventura
inconvenientes e comprometedoras, como império, colónias e pretos. Com a
partida de Lisboa em avião Lockheed Constellation e com escala pela ilha do
Sal, a comitiva presidencial chegaria a S. Tomé a 23 de Maio e a Luanda a 28
de Maio.
Mas voltemos à nossa Força Naval. Para a comandar, com honras de
comodoro, foi nomeado um dos então mais distintos oficiais da nossa
Corporação, o capitão-de-mar-e-guerra Joaquim de Sousa Uva, interrompendo,
para isso e pelo tempo necessário, as suas funções de chefe da 2ª Divisão –
Organização – do Estado-Maior Naval, que vinha desempenhando havia cerca
de cinco anos. O Afonso de Albuquerque era comandado pelo capitão-de-mare-guerra António Martins de Magalhães, tendo como imediato o capitão-defragata João Nunes Vicente Júnior e como chefe de máquinas o capitão-tenente
engenheiro maquinista Mário de Sousa Fonseca; o Tejo era comandado pelo
capitão-de-fragata Duarte Abel Rodrigues, tendo como imediato o capitãotenente Afonso Machado de Sousa e como chefe de máquinas o primeirotenente engenheiro maquinista João Soares Félner; e o Lima era comandado
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pelo capitão-tenente José de Brito Paiva, tendo como imediato o capitãotenente António de Almeida Brandão e como chefe de máquinas o capitãotenente engenheiro maquinista José Ribeiro Camacho. O chefe do serviço de
saúde da Força Naval era o primeiro-tenente médico Tito Simões, embarcado
no Afonso de Albuquerque, enquanto eu, segundo-tenente médico marreta
embarcado no Tejo, era o responsável directo pela saúde das guarnições dos
dois contratorpedeiros. De referir que, das onze personalidades atrás referidas,
já nenhuma se encontra fisicamente entre nós, embora continuem
saudosamente bem vivas na nossa memória e indelevelmente guardadas no
escrínio do nosso coração.
Existiam, na época, alguns oficiais da Armada, a que eu chamaria de
extravagantes ou castiços, uns de muito valor, outros nem por isso, que,
destacando-se pelas suas peculiaridades, quer nominais, quer físicas, quer
psíquicas, e atitudes, excentricidades ou bizarrias, eram alvos apetecíveis, por
parte dos seus camaradas, para os mais variados, atrevidos e graciosos apodos,
que me apraz aqui evocar e de que os mais velhos de hoje ainda se devem
recordar, como o fó-pinto, o tristão da cunha, o falso amigo, o paulão das
pegas, o tigre da malásia, também conhecido por o gralha branca e o pilhagalinhas, o trrim, o adolfo dias, o nabiças, o satanela, o peru, o zé da bomba, o
chitas, o beatas, o severo, o chedas, o olho de goraz, o sete-barrigas, o
tanganhão, o vicente das buchas, o luvas, o perna-longa, o jarocas, o soares
tinto, o persianas corridas, o lino pau aspas, o riolho, o pichalopes, o índio, o
cenoura, o bandeirinhas, o gato-manso, o búzio, o penico, o patachinho, o
raminhos, o senhor silva, o tibúrcio, o pá-barros, o zé chato, o facadas, o picapau, também conhecido por o musaranho, o passarinho, o manecas, o
margalho comprido, o compositor, o abstrôncio, o espinhas, o cartucheira, o
jmibe, o lolita, o fingas, o rolhas 1, o fixe, o vieirinha, o pedro penedo da
rocha calhau pedregulho e matacão, e ainda, já que nem sequer os médicos
escapavam, o cardeal, o táxi, o senhor cónego, o pencudo, o maravilha fatal, o
perfumes, o antiquário, também conhecido por o lava-gaitas, o olá chefe, o
pancinhas, o tapioca, o barítono, e aproveito para fazer aqui uma breve
interrupção, contando, a propósito deste último, um dos tais episódios facetos
que anunciei ao princípio desta minha comunicação: era ele jovem médico dum
navio, que tinha por imediato o impagável e implacável então primeiro-tenente
Chabi Lara; o nosso visado era frequentemente surpreendido a dar largas aos
seus dotes vocais, até que um dia o imediato o interpelou, indagando-lhe qual
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
era o seu tipo de voz; “Barítono, senhor imediato”, respondeu, decidido e
jactante, o nosso clínico; resposta pronta do imediato: “Tem graça, que eu
papava-o muito bem por baixo”, pretendendo com isto mostrar os seus bons
conhecimentos dos domínios da musa Euterpe, já que a referida voz era
bastante grave. Mas continuemos, com a lista de apodos, que interrompi: o
little pig flag, o cabo sardão, o tenente da guarda, o meu prezado amigo, o
tomate saloio e o bandalho, a que, mais tarde, se viriam a agregar outros, como
o pantera cor-de-rosa, o encarnadão simões, o kadhafi, o napoleão, o papa, o
bufo, o lã-branca, o guarda ricardo, o fininho, o chimanó, o cremes, o costinha,
o mário flores, o pouca-sombra, o dez para as duas, o comuna, o pinga-amor,
o duque da terceira, o rolhas 2, o peles, o ita, o carapau de corrida, o misse
rabeiro, o saddam hussein e o afonso costa, e por aqui me fico, que já lá vai a
bonita de soma de 101 alcunhas, que, adicionadas às 10 marquesas do célebre
curso das ditas, atingem o número mítico de 111.
Ora, naquela Força Naval estavam precisamente três dos castiços atrás
mencionados: o Beatas, comandante do Afonso, com o seu cigarrinho, feito à
mão, ao canto da boca até ao último centímetro. O Luvas, comandante do Tejo,
assim chamado porque, quer fardado, quer à paisana, quer fosse verão, quer
fosse inverno, exibia sempre ostensivamente o seu inseparável par de luvas. O
Vicente das Buchas, imediato do Afonso de Albuquerque, assim conhecido
pelas petas que frequentemente lançava ao ar, nomeadamente perante os mais
novatos, como aquelas de que, em África, levara, numa ocasião, uma bofetada
dum gorila, e, doutra vez, caçara um leôncio, fruto do cruzamento dum leão
com uma onça, o que fez com que, certo dia, um oficial mais desinibido
arriasse, sobre a mesa da câmara dos oficiais, uma escova previamente
dependurada do tecto, quando o imediato atirou mais uma galga das suas,
perante o gáudio das circunstantes. Esse oficial era, curiosamente, o primeirotenente Alves Deniz, agora embarcado no Lima, o qual, não tendo qualquer
alcunha, constituía, todavia, uma figura incontornável da nossa Marinha. Era
uma personalidade de enorme afabilidade e laracha, sendo-lhe atribuída uma
sentença, que ficaria célebre, acerca da maneira inábil como os portugueses se
governavam: “contratem uma dúzia de ingleses, mesmo bêbados, e verão como
isto entra nos eixos…” Outro oficial também muito castiço, embora sem
alcunha conhecida, era o capitão-tenente José Ribeiro Camacho, já
anteriormente referido, de quem se dizia, na voz da abita, por ser muito rotundo,
que já não conseguia descer à casa das máquinas, por incompatibilidade entre o
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seu perímetro abdominal e o perímetro da respectiva escotilha. Dele se
contavam vários casos jocosos e maliciosos, de que, mea culpa, não resisto a
referir três, embora de certo modo inconcessos, passados com varinas,
alegadamente no mercado da Ribeira Nova. Um dia, uma dessas peixeiras, ao
ver o seu ventre proeminente, não se conteve e disse, “Olha, este parece que
está grávido!”; “Estou, estou”, respondeu o nosso engenheiro, levando a mão à
zona da braguilha, “e vou parir um elefantezinho, quer ver, quer ver, a
trombinha já está de fora…” Doutra vez, não conseguindo reprimir um
incomodativo espirro, expelido com grande fragor, ao passar em frente de
azougada varina, esta, sem qualquer pejo, disparou, “Espirram os bodes, vai
chover”, fazendo jus ao conhecido provérbio “Espirro de bode é sinal de
chuva”, ao que o impagável Camacho prontamente ripostou, “Pois é, quando
lhes cheira a qualquer coisa de cabra”, explicitada despudoradamente sob a
forma de uma palavra vernácula, constante do Dicionário da Academia já aqui
referido, que, todavia, por uma questão de decoro, achei por bem não dever
usar neste ambiente. Mal imaginava o anafado engenheiro que, com essa sua
judiciosa resposta, estava afinal a ser o precursor de uma verdade científica
descoberta recentemente, que consiste em o espirro poder ser sinal de excitação
sexual, por um curioso e complexo mecanismo neurofisiológico… Da terceira
vez, todavia, não foi Camacho quem levou a melhor. Ao passar, acompanhado
por sua mulher, junto a frenética peixeira que, de canastra à cabeça e chinelos,
um no pé e outro na mão, e com muita ralé, discutia acaloradamente com uma
colega, ouviu, da boca daquela, aquele ordinário palavrão com que, em calão,
se designa o órgão fálico, e com que certa juventude actual, curiosamente mais
elas do que eles, nos mimoseiam frequentemente na rua e nos transportes
públicos; e não se conteve, disparando, “Sua ordinária, nem sequer respeita
uma senhora!”, ao que a peixeira, lestamente, agitando o chinelo da mão,
ripostou, “Porquê? Engasgou-se?”
Mas voltemos à parte séria. Logo que fui destacado para o navio, a
minha primeira preocupação foi proceder à provisão dos medicamentos e
apósitos necessários para missão de tal importância, de modo a que a respectiva
botica estivesse devidamente munida, aquando da partida, aprazada para 5 de
Maio. Mas, porque havia que experimentar o navio, previamente a essa data e
durante um dia, saímos para o mar, navegando para norte ao longo da costa,
com vento fresco de se lhe tirar o chapéu, e então é que foi o bom e o bonito…
Eu, que nunca tinha entrado em qualquer embarcação, para além dos modestos
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
cacilheiros, sentia finalmente o que era o enjoo, que conhecia apenas dos livros
de medicina, com o nome pomposo de naupatia; foi de tal modo que, estando
na botica a verificar se estava tudo em boas condições, não resisti àquelas
terríveis e avassaladoras náuseas, cuja terapêutica de urgência foi deitar-me ali
num dos beliches da pequena enfermaria, na presença desconsoladora do
enfermeiro e do moça da botica. E qual não foi o meu espanto quando,
passados alguns minutos, recebo a visita do comandante, que, com um ar meio
cordial, meio gozão, me referia que um dos seus deveres era visitar os doentes,
incitando-me, todavia, para que me deslocasse até à câmara dos oficiais, para
jantar, aconselhando-me, simpaticamente, uma reconfortante canjinha; como
militar obediente assim procedi, mas o pior foi que as náuseas voltaram em
força, agora com vómitos incoercíveis, de tal modo que até me saíram bagos de
arroz pelo nariz… O remédio foi recolher ao meu camarote e voltar à posição
horizontal, e as coisas lá se recompuseram, aprendendo a conviver, desde então,
com o enjoo e a dominá-lo, permitindo-me exercer as minhas funções a
navegar sem problemas de maior.
Vim a saber posteriormente que, na guarnição do navio, havia um
oficial da classe de marinha que, quanto a enjoo, ainda era pior do que eu, e
que era o primeiro-tenente Luiz Barata Amâncio, de tal modo que, quando
estava de quarto na ponte, tinha que ter sempre a seu lado um balde, para os
efeitos julgados convenientes. Infelizmente já falecido, guardo dele as mais
gratas recordações, já que era um marinheiro de muito mérito e de grande
urbanidade, um tipo pachola, como era hábito dizer na nossa tradicional gíria
naval, e com elevado sentido de humor. A propósito, não quero deixar de
referir aqui mais um episódio picaresco, de que foi protagonista, e que me foi
relatado por um zagucho e loquaz camarada: Uma noite, num baile, solteiro e
bom rapaz, dançando com apetitosa donzela, esta, muito chegadinha ao seu par,
que mirava com olhar concupiscente, dirigiu-se-lhe, em tom muito mavioso,
dizendo-lhe, em surdina, “Amâncio, Amâncio”, ao que este, com a voz
embargada, respondeu no mesmo tom, em oportuna tirada fonético-metafórica,
“É o que estou a tentar fazer, desde que comecei a dançar consigo, mas não
consigo, não consigo…”
E chegámos finalmente ao almejado dia da partida, que, como dizia
Miguel Torga, o que importa é partir, não é chegar, e, acrescento eu, o Tejo é a
porta de eleição para conhecer outros mundos, outras civilizações, novas terras,
novas gentes. Previamente amarrados a bóias em frente ao cais da Marinha,
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como era uso nessa época – em que a marinhagem, fardada, por vezes de negra
madeixa ao vento e de boina maruja ao lado, se espalhava, ao princípio da
manhã e ao fim da tarde, pelas ruas da baixa lisboeta, emprestando-lhe um
aprazível colorido, e os jovens oficiais, antes de regressarem a suas casas,
estacionavam na chamada bóia do Rossio, perto do Café Nicola, em amena
cavaqueira, só interrompida por uma ou outra olhadela catrapiscadora para as
garinas ou flausinas que por ali passavam àquela hora, quem sabe se uma júlia
florista, uma rosa enjeitada, uma rosinha dos limões, uma rosita dos caracóis,
uma cigana carmencita, uma traidora de franja, uma rita iéié, uma menina das
tranças pretas ou uma amélia dos olhos doces –, os navios lá zarparam em
direcção ao mar oceano, pelo meio-dia dessa quarta-feira, 5 de Maio de 1954,
enquanto nós, alvoroçados e deleitados, admirando, aqui e ali, as graciosas
acrobacias de um ou outro golfinho, os voos intermitentes das velozes e
ruidosas gaivotas, as fainas pitorescas das típicas canoas, faluas e fragatas do
rio e as lentas travessias dos velhos cacilheiros, olhávamos com enlevo para a
silhueta da nossa encantada e vetusta Lisboa, cidade das sete colinas, de
marinheiros, fadistas, ardinas, rufias, rameiras e varinas, dos arraiais populares
e dos pregões matinais, das marchas e procissões, princezinha do Tejo, com os
seus monumentos seculares e o seu casario multicor, de velhinhas trapeiras
ornadas de craveiros, roseiras e sardinheiras, cada vez mais distantes e
esfumados, ao mesmo tempo que nos acudiam à memória as grandíloquas
estrofes glorificadoras da epopeia marítima dos portugueses, tão bela e
patrioticamente cantadas pelo estro genial de Camões, de Bocage e de
Pessoa…
Connosco e vivendo a mesma aventura, juntamente com os dedicados e
abnegados sargentos e praças da guarnição, nobres e valentes marinheiros dos
sete-mares andarilhos, com saudades no coração de namoradas, noivas, esposas
e filhos, outros oficiais, além dos já citados, como os primeiros-tenentes Carlos
Salgueiro Rêgo e António Estácio dos Reis, o subtenente Melo de Sampaio e o
guarda-marinha Alves Vieira, todos felizmente ainda vivos, com o posto de
capitães-de-mar-e-guerra reformados, e os já falecidos primeiro-tenente Jorge
Antunes, segundo-tenente Virgílio de Carvalho e guardas-marinhas José
Baptista dos Santos e José Ribeiro Mautempo. Apraz-me deixar aqui uma nota
de saudade relativamente ao Virgílio, que nos deixou há poucos anos, no posto
de capitão-de-mar-e-guerra reformado, amargurado pelo facto de a Marinha lhe
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
ter recusado, injustamente, a ascensão ao almirantado, o que não o impediu,
todavia, de ser uma figura notável nos campos da geopolítica, da estratégica e
das relações internacionais, com uma brilhante carreira de professor
universitário nessas áreas, altamente dignificante para a corporação que tão
iniquamente o tratou …
Passados dois dias de viagem, com os navios formando em V, os
contratorpedeiros à frente e o aviso atrás, avistámos as Canárias por estibordo,
aportando em S. Vicente de Cabo Verde na manhã de 9 de Maio, um domingo,
o que me permitiu tomar contacto, pela primeira vez, com as boas gentes
daquelas terras, passeando, dançando e cantando alegremente, ao som de
mornas e coladeras, no jardim público do Mindelo, com o típico coreto, como
era habitual aos domingos ao fim da tarde e ao começo da noite, espectáculo
que, um pouco mais de dois anos depois, teria ensejo de reviver por várias
vezes, por ocasião de uma outra comissão de serviço, no navio hidrográfico
Comandante Almeida Carvalho, comandado pelo saudoso e amigo capitãotenente José Camões Godinho.
Mas a nossa chegada a S. Vicente seria ensombrada, por assim dizer,
pelo primeiro incidente da viagem, que, por feliz acaso, não redundou no que
poderia ter sido uma grave tragédia. O Tejo, por uma manobra intempestiva,
avançou sobre o Afonso, que, a tempo e em expedita movimentação, conseguiu
safar-se da proa ameaçadora do veloz contratorpedeiro, em que as popas dos
navios quase se tocaram, perante a atrapalhação do Luvas, cumprimentando,
com uma continência forçada, o comodoro da Força Naval, que, de olhar
furibundo assestado para o assarapantado comandante, não conseguiu esconder
a sua compreensível indignação.
No dia seguinte partiríamos para a colónia britânica da Serra Leoa,
tendo aportado em Freetown, a capital, ao fim da tarde do dia 12, onde
seríamos recebidos com uma daquelas terríficas trovoadas tropicais, com
ininterruptos relâmpagos seguidos de estrepitosos trovões, de tal modo que,
quando um deles, de uma violência inaudita, se abateu sobre o nosso navio, me
levou a vociferar um tonitruante e obsceno “Porra!”, em vez de um abemolado
e apudorado “Valha-nos Santa Bárbara!”, facto que provocou alguma
hilaridade nos camaradas presentes, e o qual o bom amigo Virgílio de Carvalho
me recordava algumas vezes, quando, mais tarde, se encontrava comigo. O
navegar por aquelas calmas águas tropicais permitiu-me também, pela primeira
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vez, apreciar o espectáculo maravilhoso dos peixes-voadores, naqueles lestos e
fascinantes voos rasantes, planando rente à superfície da água, poucos metros à
frente do proa do navio. Quanto a Freetown, impressionou-me a sua
característica de cidade tipicamente tropical, com belas vivendas de janelas e
portas fortemente gradeadas, no meio de luxuriante vegetação, em que topar
com um branco nas ruas era uma autêntica raridade, mas onde pude visitar um
moderno centro comercial, abundante e variadamente provido, em que tive a
grata surpresa de ver, adequadamente propagandeados, discos de vinil de 33
rotações da nossa então já famosa diva do fado Amália Rodrigues, que, além de
exímia cantadeira, era também uma talentosa poetisa, como o demonstrou na
letra daquele inolvidável fado “Estranha forma de vida”, musicado por um
diligente ex-operário do ex-nosso velho Arsenal do Alfeite, celebrizado como
fadista com o nome de Alfredo Marceneiro.
Passados dois dias, partiríamos para outra colónia britânica, desta vez a
Nigéria, aportando na capital, Lagos, a 17 de Maio, de manhã. Tendo ido a
terra logo na tarde do dia da chegada, foi oportunidade para ter sofrido o maior
calor de toda a minha vida, com temperatura à sombra acima dos 40º celsius e
humidade superior a 95%, apesar do leve traje branco de calção e camisete. E o
que não teria sofrido o nosso comandante, de fato preto de fazenda, com colete
e gravata, que, ao pôr os pés em terra, logo foi alvo dos risos sarcásticos dos
nativos ali presentes, como autêntica avis rara naquelas paragens… Fazendo
jus ao nosso salutar espírito de convivência, travámos conhecimento com um
casal de ingleses e um seu amigo, o que foi pretexto para uma ida à noite a um
dancing da cidade, culminando com uma bebidas, em que não faltou o nosso
tradicional vinho do Porto, a bordo do Tejo, que os ‘bifes’ muito apreciaram,
como ficou bem patente ao saírem do navio, eufóricos e ziguezagueantes, ou,
como diriam os brasileiros, montados na ema…
Depois de dois dias em Lagos, com um calor tórrido, lá partimos por
fim para o nosso primeiro destino, S. Tomé, aonde chegámos no dia 21,
portanto dois dias antes da prevista chegada do Presidente da República. Cada
vez mais fascinado por aquela aventura tropical, não foi sem uma certa
estranheza que, após termos fundeado, vi, com espanto, a passagem de tubarões
a poucos metros do navio, deslizando suavemente sob as quietas águas da baía,
espectáculo inédito para mim, que só aos 25 anos de idade saíra pela primeira
vez deste rectângulo à beira-mar plantado… A estadia em S. Tomé, de apenas
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
cinco dias, com uma ida de um dia à ilha do Príncipe, no final, foi algo de
inolvidável, não só pelo fascínio da variegada e exuberante flora tropical e da
exótica fauna ornitológica, multicolor e polifónica, das duas ilhas, como pelo
bem cuidado programa oficial, desde uma memorável sessão de boas-vindas ao
chefe do Estado na cidade de S. Tomé, até um deslumbrante pôr-do-sol nos
jardins do palácio do governador, na Trindade, sem esquecer uma visita de
Craveiro Lopes a um determinado lugar, em que os nativos, devidamente
arregimentados para o receber, foram vigorosamente exortados pela mulher do
capitão do porto a aplaudi-lo calorosamente, não se tendo ouvido mais que
umas abafadas palmas e uns pífios “Viv’ó sinhó Présidenti!”…
Com a chegada a Luanda a 28 de Maio, data também da chegada da
comitiva presidencial, e depois da passagem da ‘linha’, lamentavelmente não
celebrada a bordo do Tejo de acordo com os tradicionais preceitos navais,
iniciar-se-ia um período de 33 dias, que ficariam para sempre gravados na
minha lembrança, quase todos agradáveis, que seria fastidioso aqui detalhar,
até porque há pormenores que, dado o longo tempo decorrido, já me escaparam.
Desde várias viagens por mar entre portos angolanos, incluindo os do enclave
de Cabinda, algumas viagens por terra em automóvel, jipe ou automotora, e um
baptismo de voo em frágil avioneta, até aparatosas cerimónias militares,
magníficas recepções, faustosos bailes, lautas almoçaradas, ambrosíacos
banquetes e esplendorosos pores-do-sol, como era apanágio do então
florescente império colonial português, por muita coisa passei, mas só de pouco
irei em seguida dar conta, como é compreensível, até para não alongar
demasiado esta comunicação. Contudo, antes disso e porque de uma viagem
presidencial se tratou, afigura-se-me pertinente referir agora alguns dos
principais eventos protagonizados pelo chefe do Estado, como o descerramento,
em Luanda, de uma placa de homenagem a Diogo Cão, o primeiro navegador
português a chegar a Angola, em 1483, erguendo, na foz do Zaire, o primeiro
padrão levado de Lisboa, a inauguração da ponte Craveiro Lopes sobre o rio
Zambeze, em Cazombo, a inauguração da barragem Salazar, no rio Cunene,
visitas às principais cidades e ao colonato de Cela, e uma espectacular
cerimónia militar em Massangano, em Quanza Norte, onde, em 1582, Paulo
Dias de Novais instalou um presídio, que se tornaria o principal centro de
expansão militar e económica para o interior da colónia, bem como a base da
resistência portuguesa ao domínio holandês em Angola, entre 1641 e 1648, ano
X-13
em que Salvador Correia de Sá e Benevides, comandando uma esquadra de 15
navios procedentes do Brasil, expulsou os holandeses de Luanda,
reconquistando assim o território para os portugueses.
Nas suas viagens por mar, o Presidente embarcou sempre no Afonso,
dado que era o navio que oferecia melhores comodidades. Todavia, a sua visita
a Porto Alexandre, ido da baía dos Tigres, foi uma excepção, embarcando, pela
única vez, no Tejo, e então é que foi o fim da ‘macacada’, como soe dizer-se. O
respectivo imediato, a autêntica dona de casa do navio, sempre muito atento e
diligente, achou por bem aprimorar a zona a bombordo, com passadeira e tudo,
em detrimento da zona de estibordo, onde foram deixados, inadvertidamente,
baldes, vassouras e esfregonas; e quando o Presidente, depois de embarcar, ao
deslocar-se no navio, resolveu ir por estibordo, contrariando as indicações do
solícito imediato, que a todo o custo o queria encaminhar para bombordo,
assistiu-se a um dos episódios mais caricatos da viagem, ao ver-se Craveiro
Lopes, de semblante arreganhado, passar por entre aqueles pouco cuidados
utensílios de baldeação e limpeza, perante a cara apavorada do surpreso e
assarapolhado oficial superior e o riso mal contido do pessoal que, como eu,
teve o privilégio de assistir a tão grotesca cena…
Já agora, vem a propósito contar outro episódio insólito, passado, se a
memória não me atraiçoa, em Pereira d’Eça, hoje Ondjiva, na província de
Cunene, no sul do território, aquando de aparatosa cerimónia militar. Estava o
chefe de Estado numa tribuna improvisada, a presidir à cerimónia, quando,
inesperada e subitamente, surge, do capim em frente, um grupo de nativos
armados de arcos e flechas, entoando gritos guerreiros e selvagens, e dirigindose ameaçadoramente para a tribuna. Naturalmente que se tratava de um número
do programa previamente elaborado. Só que alguns dos que a ocupavam
julgaram, estupidamente, tratar-se de um ataque verdadeiro, pelo que, ‘pernas
para que vos quero’, imediatamente ‘deram às de vila-diogo’, deixando o
palanque meio deserto, enquanto o Presidente, impávido e sereno, se manteve
imperturbável, não fosse ele um militar de boa cepa…
Quanto a outros acontecimentos por mim vividos, não posso esquecer:
um memorável almoço de peixe ao ar livre, na Baía Farta, em que as moscas
eram aos milhares, a sobrevoarem e a pousarem nas mesas do abundante
repasto; uma visita às quedas de água do Duque de Bragança, no rio Lucala,
um dos espectáculos mais deslumbrantes que me foi dado apreciar até hoje;
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
uma caçada, em jipe, durante uma noite inteira, com partida do Lobito para o
interior, na companhia de dois colonos brancos e do guarda-marinha
Mautempo, sempre bem disposto e prazenteiro, em que, embora munidos de
velhas espingardas Mauser, não caçámos nada, a não ser o farnel que
levávamos, que não só nos matou a fome, que começou a apertar às tantas da
madrugada, como contribuíu, juntamente com as mantas que nos
acompanhavam, para mitigar o frio de rachar que a certa altura se abateu sobre
nós; por último, o baptismo de voo em Luanda, em pequena avioneta, levado
por um camarada do navio, e em que o respectivo piloto, seu amigo, resolveu
fazer umas gracinhas, tipo pavorosas piruetas, que só não me provocaram enjoo
porque o medo a isso se sobrepôs, designadamente quando a aeronave picou
abruptamente sobre o cemitério da cidade, pensando eu então que já dali não
sairia…
A 30 de Junho terminava a estadia em Angola, cujo governador-geral
era um solícito oficial do Exército, o capitão Agapito da Silva Carvalho, a qual
eu não conhecera profundamente, mas que, do pouco que vi, ouvi e senti, se me
apresentava como uma terra promissora, cheia de potencialidades, que em
breve viria a ser dilacerada por guerras injustas, a guerra colonial e, após a
independência, a guerra civil, em que, por todas as partes envolvidas, repito,
por todas, foram cometidos os mais hediondos crimes, impróprios da natureza
humana, fruto de mentalidades retrógradas e mesquinhas, interesseiras e
ambiciosas, safadas e perversas, esperando-se que possa vir a ser, futuramente,
uma nação democrática em toda a sua verdade e plenitude, já que, por enquanto,
ainda não o é, sendo, lamentavelmente, o país da CPLP com o mais elevado
índice de desigualdade entre ricos e pobres, com um fosso separativo de
dimensões manifestamente obscenas, correndo eu o risco, com esta minha
afirmação, de não estar a ser politicamente correcto, o que pouco me importa,
já que o que eu pretendo ser é moralmente correcto.
A última etapa da comissão foi a viagem de regresso, com escala pela
antiga colónia britânica da Costa do Ouro, hoje República do Gana, tendo
aportado em Takoradi pela manhã de domingo, 4 de Julho. Nessa mesma tarde,
eu, o Estácio dos Reis e o Baptista dos Santos fomos de autocarro até à cidade
de Sekondi, relativamente perto do porto, para alugarmos um táxi, que nos
levou a Elmina, onde visitámos a nossa antiga fortaleza de S. Jorge da Mina, na
Costa da Mina, terra descoberta em 1471 pelos navegadores portugueses João
de Santarém e Pêro Escobar. Vivia-se então, nas colónias inglesas de África,
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um espírito eufórico e frenético de pró-independência, ostensivamente
manifestado pelo motorista do nosso táxi, que, ao cruzar-se na estrada com
outros automóveis, por várias vezes deitou o braço de fora, exclamando, em
voz sonante, a palavra “Freedom!”, ao mesmo tempo que deixava transparecer
uma certa ira contra os ingleses, em contraste com uma aparente simpatia pelos
três brancos que transportava, já que, para ele, os portugueses eram bem
diferentes dos britânicos, para melhor, relativamente ao seu estatuto de
colonialistas. Todavia, nas dezenas de metros que percorremos a pé, desde a
descida do táxi até à entrada na fortaleza, em cuja visita fomos guiados por
uma jovem e simpática branca de olhos azuis e cabelo loiro, fomos alvo, por
parte dos negros postados na rua, de risos sarcásticos e de dichotes não
decifráveis, numa clara manifestação do mais primário dos racismos, aqui no
sentido preto–branco. Aliás, para corroborar esse racismo antibranco, nada
melhor do que referir ainda um outro episódio, indecoroso, quando os nossos
navios zarpavam do porto de Takoradi, se não estou em erro: muitas dezenas
de jovens nativos saudaram a nossa saída do porto postados de pé, no cais,
meio desnudos, brandindo, com vigor, os seus órgãos genitais, gestos esses
acompanhados de gritos selvagens… Coisas para não valorizar, mas para não
esquecer…
Felizmente que, na luta pelos justos direitos dos negros, houve gente de
grande envergadura intelectual, cívica e moral, que me apraz aqui evocar, com
destaque para essas duas grandes figuras da humanidade que foram Martin
Luther King Jr. e Nelson Mandela, ambos galardoados com o prémio Nobel da
Paz e de quem deixo registados dois pensamentos, que nos devem fazer pensar.
Do primeiro: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos
bons”. Do segundo: “Está claro que a planta exótica do comunismo não pode
florescer em solo africano”.
Finalmente, a saída da Costa do Ouro a 6 de Julho, com escala por S.
Vicente de Cabo Verde, onde estivemos de 11 a 12, data em que saímos para
Lisboa, aonde chegaríamos a 17 de Julho à tarde.
Posteriormente, durante quatro anos, outras comissões de embarque
viriam, como uma curta viagem de cadetes do 2º ano da Escola Naval, no
Afonso, à Madeira e Porto Santo e a Cádis, uma longa comissão de serviço no
aviso de 2ª classe João de Lisboa, na Índia, com passagem final por Macau,
uma comissão de cerca de cinco meses no navio hidrográfico Comandante
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A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE
Almeida Carvalho, em Cabo Verde, e a regata oceânica Brest–Las Palmas, na
velha Sagres, sagrada vencedora na categoria de grandes veleiros.
Em 1958, finalmente, entrava definitivamente nas carreiras médicas
hospitalares, enfrentando difíceis concursos de provas públicas nos hospitais
estatais, com 20 anos de serviço no Hospital da Marinha, 11 nos Hospitais
Civis de Lisboa e 26 no Hospital “Cuf”, onde tive a felicidade de conviver e
aprender com mestres eminentes da medicina portuguesa, na área da medicina
interna, que eu escolhera como especialidade a seguir, concorrendo
sobremaneira para a minha completa realização profissional. Por isso muito me
apraz evocar saudosamente os seus nomes: o dr. Galvão Rocha, no Hospital da
Marinha, um dos mais distintos e notáveis médicos navais do século passado, o
prof. dr. Oliveira Machado, no Hospital de S. José, discípulo dilecto do célebre
professor Pulido Valente, e, muito especialmente, pelas fortes ligações de
amizade também, o dr. D. José de Mello e Castro, modelado pela sábia
maestria do insigne mestre da clínica Aníbal de Castro, esse no Hospital de S.
José e no Hospital “Cuf”, o qual, sendo um nobre genuíno de linhagem, era
sobretudo um fidalgo na sabedoria, na sensatez, no carinho pelos doentes e no
respeito por todos, incluindo os mais desfavorecidos e humildes, um democrata
a sério, na verdadeira acepção da palavra, hoje tão aviltada no nosso mofinento
país por uma praga, eu direi mesmo uma súcia, de alguns reles pseudodemocratas que por aí se pavoneiam, sem princípios, sem regras, sem lisuras,
sem valores, ávidos de protagonismo, de influência, de poder e de dinheiro, e
tantas vezes prepotentes, arrogantes, corruptos e embusteiros, como os mais
salafrários ditadores… Todavia, não percamos a esperança, que, ao longo da
história, a verdade, a justiça e o amor quase sempre acabaram por vencer.
Mas, porque aquela comissão que tenho vindo a descrever foi a minha
primeira comissão de embarque, foi ela que mais me tocou no meu âmago de
médico recém-formado e de marinheiro inopinado e incipiente, guardando dela
as mais gratas e saudosas recordações, no âmbito da minha velha Marinha, em
que a esquadra era limitada, com navios já muito usados, mas havia amor à
Armada e marinheiros denodados, e em que gozei tempos felizes, por esses
mares d’além mundo, honrando nossas raízes, calando cá muito fundo… Mas
deixemo-nos de poesias lamechas…
Vou terminar. Bem sei que tudo aquilo que hoje aqui referi não passa
de uma sequência de factos menores, protagonizados por meros actores, em
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que o que mais releva é a espontaneidade, a autenticidade e a simplicidade.
Mas, como afirmava o psicólogo e grande pensador Gustave Le Bon, se só as
grandes acções, friamente raciocinadas, figurassem no activo dos povos, os
anais da história do mundo pouco teriam que registar e narrar, e eu não teria
tido ensejo para este agradável e exultante convívio com vossas excelências.
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A minha primeira comissão de embarque