A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE Personagens, factos, peripécias e facécias Comunicação apresentada na Academia de Marinha pelo Académico Emérito contraalmirante médico naval Joaquim dos Santos Félix António, em 23 de Março de 2010 Desde que fui eleito membro desta Academia, em 5 de Março de 1992, com honra e orgulho, na sequência da proposta do então respectivo Presidente, almirante Rogério d’Oliveira, que, durante 18 anos, viria a exercer esse cargo, depois de 3 anos como laborioso vice-presidente, com uma inteligência e um dinamismo invulgares, ainda hoje recordados, e pugnando sempre pela sua inalienável autonomia organizacional, cultural e científica, é esta a quarta comunicação que tenho o libente prazer de aqui apresentar. E, se as anteriores podem ter sido consideradas conferências, afigura-se-me que a de hoje não passa de uma simples palestra, sob a forma de um despretensioso aranzel, de marcado cunho saudosista, certamente mais gratificante para mim do que para vossas excelências, que tiveram a amabilidade de me honrarem com a vossa jucunda presença, dignando-se a aturarem e a ouvirem este mero e ignoto contador de histórias e historietas, e pobre e banal escrevedor de coisas e loisas, que, podendo fazer algo, o deve fazer, com franqueza e sem receio de eventuais críticas, reparos, remoques ou recriminações, privilegiando sempre a verdade e o rigor, embora sem a estulta, nefelibata e bacoca pretensão de nunca se enganar e raramente ter dúvidas, e apenas com uma certeza, a de que a dúvida é apanágio de quem já viveu muito, como eu… X-1 Contudo, antes de abordar propriamente o tema que me propus tratar, permitam-me que, à guisa de breve intróito, vos faça uma necessária e senga advertência: nesta minha exposição, irei evocar alguns episódios insólitos e caricatos, quiçá inverosímeis, e eventualmente chocantes, por vezes burlescos, picarescos e até brejeiros, de que, desde já, me penitencio, com um fraseado nem sempre socialmente correcto, que, espero, me desculparão, já que, sendo indubitavelmente vernáculo, respeita escrupulosamente o nosso idioma e é devidamente avalizado pelo tão propalado e apreciado Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, que, diga-se de passagem, pródigo em tudo o que é calão e palavrão, é lamentavelmente omisso em centenas de vocábulos, muitos deles correntes, do léxico português… De resto, para mim, a brejeirice, mais do que uma condenável ordinarice aviltante, é, antes, uma inofensiva brincadeira picante. E, ao contrário dos indecentes, que têm horror à decência, os púdicos saberão tolerar o despudor, quando este não é ultrajante. E, já agora, lembremo-nos do nosso camarada Bocage, que, tantas vezes licencioso nos seus sublimes versos, não deixou, por isso, de ser um dos maiores poetas portugueses de sempre, sentindo-me eu muito honrado por fazer parte da Tertúlia Poética “Ao Encontro de Bocage” e ser colaborador permanente da revista “O Arauto de Bocage”, desde há cerca de 8 anos, tertúlia e revista essas dirigidas pela ilustre poetisa América Miranda, presidente da Assembleia Geral do Círculo Nacional de Arte e Poesia. Depois de uma instrução primária, estudando à luz do petróleo, em inóspita e atrasada aldeola do concelho de Tomar, marcada pela Guerra Civil Espanhola, com odiosos assassínios perpetrados pelas duas facções em confronto, e de um curso liceal no célebre e exigente Colégio Nun’Álvares daquela cidade, afectado pela Segunda Guerra Mundial, em que emergiram, em defesa da democracia e da liberdade, dois dos mais notáveis políticos e patriotas do século passado, um, militar de carreira, e outro, militar de formação, Charles de Gaulle e Winston Churchill, que, com coragem, só prometeu, aos seus compatriotas, trabalho, sangue, suor e lágrimas, e após uns supérfluos e árduos preparatórios de medicina, na Faculdade de Ciências de Lisboa, e um onusto e trabalhoso curso médico, na Faculdade de Medicina da capital, achei-me, no final de 1952, possuidor de um bonito diploma de licenciatura, em pergaminho vegetal, escrito em latim, asseverando que eu estava apto a exercer a profissão de médico. Todavia, considerava que aquilo 2 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE não correspondia à completa verdade, pois que, para tal, seria necessária uma prática clínica capaz e duradoira, que o respectivo curso, de forte cariz teórico e de relativamente curta duração, não poderia de algum modo ter-me incutido. Por isso, tendo presente aquela sábia asserção de Einstein de que “sucesso antes do trabalho só no dicionário”, logo me inscrevi como voluntário para estagiar, sem qualquer remuneração, no Serviço de Patologia Médica do Hospital Escolar de Santa Marta, a fim de praticar e de me aperfeiçoar, sob a superior orientação do respectivo director professor Adelino Padesca. Mas, como era imprescindível pensar na subsistência futura, também logo me matriculei no Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge, para a frequência do Curso de Medicina Sanitária, necessário para um eventual vindouro cargo de subdelegado de saúde, algures na província. Eis senão quando, passados alguns meses e já em pleno verão de 1953, a cumprir o serviço militar obrigatório no Exército, tomo conhecimento, por intermédio do meu ex-colega do colégio de Tomar, segundo-tenente António da Silva Cardoso, de que iria abrir em breve um concurso de provas públicas para o preenchimento de oito vagas no quadro de oficiais médicos da Armada. Com um misto de satisfação e esperança, mas também de apreensão, dado que, como se dizia na altura, Portugal era um país de cunhas, algo que não me era acessível e não se coadunava com os meus princípios, lá me sujeitei, não sem uma certa difidência, juntamente com mais onze candidatos, às difíceis provas, clínica e de técnica operatória em cadáver, realizadas em Dezembro, perante um júri de cinco membros, presidido pelo director do Hospital da Marinha, o temível, mas muito ilustre e prestigiado, capitão-de-fragata médico Telmo Corrêa. A correspondente prestação levou a um resultado satisfatório, tendo-me apercebido então que o empenho ali não tinha guarida, e foi logo aí que comecei a ter o maior respeito pela Saúde Naval em particular e pela Marinha em geral, convicções que se foram arreigando ao longo dos anos, sentindo-me cada vez mais desvanecido por fazer parte desta digna plêiade dos homens, e agora também das mulheres, do botão de âncora, que, espero, hão-de saber resistir, com determinação e nobreza, à avassaladora onda de dissolução de valores e costumes, com que certos auto-intitulados vanguardistas pretendem desestruturar a nossa sociedade, incluindo as Forças Armadas. Cumprido o forçoso ritual da compra dos uniformes, muitos deles já usados, dada a escassa liquidez familiar, como a sobrecasaca, as dragonas, as jaquetas, as calças de galão, o chapéu armado e até a espada, esta na feira da X-3 ladra, pela módica quantia de trezentos escudos, quiçá o prelúdio para as futuras populares lojas dos trezentos, chegou finalmente o dia da apresentação ao serviço, 10 de Março de 1954, o que fiz muito compenetrado e ufano da minha nova condição de marinheiro encartado. Após breves semanas de estágio no Hospital da Marinha, fui destacado para o contratorpedeiro Tejo, onde iria fazer o meu baptismo do mar, numa comissão de embarque deveras aliciante, já que o navio, juntamente com o seu irmão Lima e com o aviso de 1ª classe Afonso de Albuquerque, iria fazer parte da Força Naval que escoltaria o Presidente da República, general Craveiro Lopes, na sua primeira viagem, em Maio e Junho, às colónias portuguesas de África, já então eufemisticamente chamadas províncias ultramarinas, e que seriam, desta feita, S. Tomé e Príncipe, e Angola, acompanhado pelo ministro do Ultramar capitão-de-mar-e-guerra Sarmento Rodrigues, sendo então ministro da Marinha o contra-almirante Américo Thomaz e comandante geral da Armada o vice-almirante Pereira da Fonseca. Os contratorpedeiros de então, em número de cinco, deslocando cerca de 1600 toneladas, eram os navios mais velozes da nossa esquadra, podendo atingir a velocidade máxima de 36 nós, logo seguidos pelos avisos de 1ª classe, em número de dois, com o deslocamento de cerca de 2500 toneladas e cuja velocidade máxima podia chegar aos 22 nós. O general Craveiro Lopes ascendera ao cargo de Presidente da República após as eleições presidenciais de 22 de Julho de 1951, como candidato da União Nacional, na sequência da morte do apelidado venerando Marechal Óscar Carmona, ocorrida em 18 de Abril. Nessas eleições, falseadas, como era timbre do Estado Novo, ainda apareceram dois outros candidatos, que, pelos motivos adiante expostos, não chegariam a ser sufragados: Ruy Luís Gomes, professor de matemática na Universidade do Porto, de que fora demitido por Salazar na célebre purga universitária de 1947, e apoiado pelo Movimento Nacional Democrático, de índole comunista, foi considerado inelegível pelo Conselho de Estado em 17 de Julho, não sem que previamente tivesse sido agredido, com seus colaboradores mais próximos, à saída de uma sessão de campanha em Rio Tinto, por adeptos da União Nacional. Manuel Carlos Quintão Meyrelles, contra-almirante reformado, apoiado pelos sectores moderados da oposição, designadamente por homens da Seara Nova, como Mário de Azevedo Gomes e António Sérgio, e por outros dissidentes do regime, como Mendes Cabeçadas, Cunha Leal, Henrique Galvão, David Neto e Mário Pessoa, e ainda por muita gente da Marinha, retirou a sua candidatura, três 4 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE dias antes do acto eleitoral, por considerar que não estavam reunidas as garantias mínimas de seriedade. Assim, após cerca de três anos como Supremo Magistrado da Nação, Craveiro Lopes iria fazer a sua primeira visita oficial à chamada África Portuguesa, da maior importância, dado o contexto político internacional que então se vivia, com os movimentos anticolonialistas em franca ascensão, depois da independência da Índia, a jóia da coroa do Reino Unido, em 1947, concebida e levada a cabo pelo grande filósofo, asceta e patriota Mohandas Gandhi, com a formação de dois novos estados, a União Indiana, hindu, e o Paquistão, muçulmano. Daí o cuidado a observar nos vários discursos que iria ter que proferir durante a sua estadia de cerca de mês e meio naquelas ainda chamadas nossas terras africanas. De tal modo que, apesar de o general ser considerado um militarão de grande firmeza e pouca maleabilidade, ter tido que se sujeitar, em relação a esses discursos, previamente por si elaborados, à sua meticulosa revisão, feita pelo escrupuloso, prudente e astucioso chefe do Governo, com a colaboração do arguto, perspicaz e esclarecido ministro do Ultramar, discursos que, embora com base na ideia de um Portugal uno e indivisível, do Minho a Timor, como era politicamente correcto dizer nessa altura, acabaram por ser cuidadosamente expurgados de referências porventura inconvenientes e comprometedoras, como império, colónias e pretos. Com a partida de Lisboa em avião Lockheed Constellation e com escala pela ilha do Sal, a comitiva presidencial chegaria a S. Tomé a 23 de Maio e a Luanda a 28 de Maio. Mas voltemos à nossa Força Naval. Para a comandar, com honras de comodoro, foi nomeado um dos então mais distintos oficiais da nossa Corporação, o capitão-de-mar-e-guerra Joaquim de Sousa Uva, interrompendo, para isso e pelo tempo necessário, as suas funções de chefe da 2ª Divisão – Organização – do Estado-Maior Naval, que vinha desempenhando havia cerca de cinco anos. O Afonso de Albuquerque era comandado pelo capitão-de-mare-guerra António Martins de Magalhães, tendo como imediato o capitão-defragata João Nunes Vicente Júnior e como chefe de máquinas o capitão-tenente engenheiro maquinista Mário de Sousa Fonseca; o Tejo era comandado pelo capitão-de-fragata Duarte Abel Rodrigues, tendo como imediato o capitãotenente Afonso Machado de Sousa e como chefe de máquinas o primeirotenente engenheiro maquinista João Soares Félner; e o Lima era comandado X-5 pelo capitão-tenente José de Brito Paiva, tendo como imediato o capitãotenente António de Almeida Brandão e como chefe de máquinas o capitãotenente engenheiro maquinista José Ribeiro Camacho. O chefe do serviço de saúde da Força Naval era o primeiro-tenente médico Tito Simões, embarcado no Afonso de Albuquerque, enquanto eu, segundo-tenente médico marreta embarcado no Tejo, era o responsável directo pela saúde das guarnições dos dois contratorpedeiros. De referir que, das onze personalidades atrás referidas, já nenhuma se encontra fisicamente entre nós, embora continuem saudosamente bem vivas na nossa memória e indelevelmente guardadas no escrínio do nosso coração. Existiam, na época, alguns oficiais da Armada, a que eu chamaria de extravagantes ou castiços, uns de muito valor, outros nem por isso, que, destacando-se pelas suas peculiaridades, quer nominais, quer físicas, quer psíquicas, e atitudes, excentricidades ou bizarrias, eram alvos apetecíveis, por parte dos seus camaradas, para os mais variados, atrevidos e graciosos apodos, que me apraz aqui evocar e de que os mais velhos de hoje ainda se devem recordar, como o fó-pinto, o tristão da cunha, o falso amigo, o paulão das pegas, o tigre da malásia, também conhecido por o gralha branca e o pilhagalinhas, o trrim, o adolfo dias, o nabiças, o satanela, o peru, o zé da bomba, o chitas, o beatas, o severo, o chedas, o olho de goraz, o sete-barrigas, o tanganhão, o vicente das buchas, o luvas, o perna-longa, o jarocas, o soares tinto, o persianas corridas, o lino pau aspas, o riolho, o pichalopes, o índio, o cenoura, o bandeirinhas, o gato-manso, o búzio, o penico, o patachinho, o raminhos, o senhor silva, o tibúrcio, o pá-barros, o zé chato, o facadas, o picapau, também conhecido por o musaranho, o passarinho, o manecas, o margalho comprido, o compositor, o abstrôncio, o espinhas, o cartucheira, o jmibe, o lolita, o fingas, o rolhas 1, o fixe, o vieirinha, o pedro penedo da rocha calhau pedregulho e matacão, e ainda, já que nem sequer os médicos escapavam, o cardeal, o táxi, o senhor cónego, o pencudo, o maravilha fatal, o perfumes, o antiquário, também conhecido por o lava-gaitas, o olá chefe, o pancinhas, o tapioca, o barítono, e aproveito para fazer aqui uma breve interrupção, contando, a propósito deste último, um dos tais episódios facetos que anunciei ao princípio desta minha comunicação: era ele jovem médico dum navio, que tinha por imediato o impagável e implacável então primeiro-tenente Chabi Lara; o nosso visado era frequentemente surpreendido a dar largas aos seus dotes vocais, até que um dia o imediato o interpelou, indagando-lhe qual 6 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE era o seu tipo de voz; “Barítono, senhor imediato”, respondeu, decidido e jactante, o nosso clínico; resposta pronta do imediato: “Tem graça, que eu papava-o muito bem por baixo”, pretendendo com isto mostrar os seus bons conhecimentos dos domínios da musa Euterpe, já que a referida voz era bastante grave. Mas continuemos, com a lista de apodos, que interrompi: o little pig flag, o cabo sardão, o tenente da guarda, o meu prezado amigo, o tomate saloio e o bandalho, a que, mais tarde, se viriam a agregar outros, como o pantera cor-de-rosa, o encarnadão simões, o kadhafi, o napoleão, o papa, o bufo, o lã-branca, o guarda ricardo, o fininho, o chimanó, o cremes, o costinha, o mário flores, o pouca-sombra, o dez para as duas, o comuna, o pinga-amor, o duque da terceira, o rolhas 2, o peles, o ita, o carapau de corrida, o misse rabeiro, o saddam hussein e o afonso costa, e por aqui me fico, que já lá vai a bonita de soma de 101 alcunhas, que, adicionadas às 10 marquesas do célebre curso das ditas, atingem o número mítico de 111. Ora, naquela Força Naval estavam precisamente três dos castiços atrás mencionados: o Beatas, comandante do Afonso, com o seu cigarrinho, feito à mão, ao canto da boca até ao último centímetro. O Luvas, comandante do Tejo, assim chamado porque, quer fardado, quer à paisana, quer fosse verão, quer fosse inverno, exibia sempre ostensivamente o seu inseparável par de luvas. O Vicente das Buchas, imediato do Afonso de Albuquerque, assim conhecido pelas petas que frequentemente lançava ao ar, nomeadamente perante os mais novatos, como aquelas de que, em África, levara, numa ocasião, uma bofetada dum gorila, e, doutra vez, caçara um leôncio, fruto do cruzamento dum leão com uma onça, o que fez com que, certo dia, um oficial mais desinibido arriasse, sobre a mesa da câmara dos oficiais, uma escova previamente dependurada do tecto, quando o imediato atirou mais uma galga das suas, perante o gáudio das circunstantes. Esse oficial era, curiosamente, o primeirotenente Alves Deniz, agora embarcado no Lima, o qual, não tendo qualquer alcunha, constituía, todavia, uma figura incontornável da nossa Marinha. Era uma personalidade de enorme afabilidade e laracha, sendo-lhe atribuída uma sentença, que ficaria célebre, acerca da maneira inábil como os portugueses se governavam: “contratem uma dúzia de ingleses, mesmo bêbados, e verão como isto entra nos eixos…” Outro oficial também muito castiço, embora sem alcunha conhecida, era o capitão-tenente José Ribeiro Camacho, já anteriormente referido, de quem se dizia, na voz da abita, por ser muito rotundo, que já não conseguia descer à casa das máquinas, por incompatibilidade entre o X-7 seu perímetro abdominal e o perímetro da respectiva escotilha. Dele se contavam vários casos jocosos e maliciosos, de que, mea culpa, não resisto a referir três, embora de certo modo inconcessos, passados com varinas, alegadamente no mercado da Ribeira Nova. Um dia, uma dessas peixeiras, ao ver o seu ventre proeminente, não se conteve e disse, “Olha, este parece que está grávido!”; “Estou, estou”, respondeu o nosso engenheiro, levando a mão à zona da braguilha, “e vou parir um elefantezinho, quer ver, quer ver, a trombinha já está de fora…” Doutra vez, não conseguindo reprimir um incomodativo espirro, expelido com grande fragor, ao passar em frente de azougada varina, esta, sem qualquer pejo, disparou, “Espirram os bodes, vai chover”, fazendo jus ao conhecido provérbio “Espirro de bode é sinal de chuva”, ao que o impagável Camacho prontamente ripostou, “Pois é, quando lhes cheira a qualquer coisa de cabra”, explicitada despudoradamente sob a forma de uma palavra vernácula, constante do Dicionário da Academia já aqui referido, que, todavia, por uma questão de decoro, achei por bem não dever usar neste ambiente. Mal imaginava o anafado engenheiro que, com essa sua judiciosa resposta, estava afinal a ser o precursor de uma verdade científica descoberta recentemente, que consiste em o espirro poder ser sinal de excitação sexual, por um curioso e complexo mecanismo neurofisiológico… Da terceira vez, todavia, não foi Camacho quem levou a melhor. Ao passar, acompanhado por sua mulher, junto a frenética peixeira que, de canastra à cabeça e chinelos, um no pé e outro na mão, e com muita ralé, discutia acaloradamente com uma colega, ouviu, da boca daquela, aquele ordinário palavrão com que, em calão, se designa o órgão fálico, e com que certa juventude actual, curiosamente mais elas do que eles, nos mimoseiam frequentemente na rua e nos transportes públicos; e não se conteve, disparando, “Sua ordinária, nem sequer respeita uma senhora!”, ao que a peixeira, lestamente, agitando o chinelo da mão, ripostou, “Porquê? Engasgou-se?” Mas voltemos à parte séria. Logo que fui destacado para o navio, a minha primeira preocupação foi proceder à provisão dos medicamentos e apósitos necessários para missão de tal importância, de modo a que a respectiva botica estivesse devidamente munida, aquando da partida, aprazada para 5 de Maio. Mas, porque havia que experimentar o navio, previamente a essa data e durante um dia, saímos para o mar, navegando para norte ao longo da costa, com vento fresco de se lhe tirar o chapéu, e então é que foi o bom e o bonito… Eu, que nunca tinha entrado em qualquer embarcação, para além dos modestos 8 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE cacilheiros, sentia finalmente o que era o enjoo, que conhecia apenas dos livros de medicina, com o nome pomposo de naupatia; foi de tal modo que, estando na botica a verificar se estava tudo em boas condições, não resisti àquelas terríveis e avassaladoras náuseas, cuja terapêutica de urgência foi deitar-me ali num dos beliches da pequena enfermaria, na presença desconsoladora do enfermeiro e do moça da botica. E qual não foi o meu espanto quando, passados alguns minutos, recebo a visita do comandante, que, com um ar meio cordial, meio gozão, me referia que um dos seus deveres era visitar os doentes, incitando-me, todavia, para que me deslocasse até à câmara dos oficiais, para jantar, aconselhando-me, simpaticamente, uma reconfortante canjinha; como militar obediente assim procedi, mas o pior foi que as náuseas voltaram em força, agora com vómitos incoercíveis, de tal modo que até me saíram bagos de arroz pelo nariz… O remédio foi recolher ao meu camarote e voltar à posição horizontal, e as coisas lá se recompuseram, aprendendo a conviver, desde então, com o enjoo e a dominá-lo, permitindo-me exercer as minhas funções a navegar sem problemas de maior. Vim a saber posteriormente que, na guarnição do navio, havia um oficial da classe de marinha que, quanto a enjoo, ainda era pior do que eu, e que era o primeiro-tenente Luiz Barata Amâncio, de tal modo que, quando estava de quarto na ponte, tinha que ter sempre a seu lado um balde, para os efeitos julgados convenientes. Infelizmente já falecido, guardo dele as mais gratas recordações, já que era um marinheiro de muito mérito e de grande urbanidade, um tipo pachola, como era hábito dizer na nossa tradicional gíria naval, e com elevado sentido de humor. A propósito, não quero deixar de referir aqui mais um episódio picaresco, de que foi protagonista, e que me foi relatado por um zagucho e loquaz camarada: Uma noite, num baile, solteiro e bom rapaz, dançando com apetitosa donzela, esta, muito chegadinha ao seu par, que mirava com olhar concupiscente, dirigiu-se-lhe, em tom muito mavioso, dizendo-lhe, em surdina, “Amâncio, Amâncio”, ao que este, com a voz embargada, respondeu no mesmo tom, em oportuna tirada fonético-metafórica, “É o que estou a tentar fazer, desde que comecei a dançar consigo, mas não consigo, não consigo…” E chegámos finalmente ao almejado dia da partida, que, como dizia Miguel Torga, o que importa é partir, não é chegar, e, acrescento eu, o Tejo é a porta de eleição para conhecer outros mundos, outras civilizações, novas terras, novas gentes. Previamente amarrados a bóias em frente ao cais da Marinha, X-9 como era uso nessa época – em que a marinhagem, fardada, por vezes de negra madeixa ao vento e de boina maruja ao lado, se espalhava, ao princípio da manhã e ao fim da tarde, pelas ruas da baixa lisboeta, emprestando-lhe um aprazível colorido, e os jovens oficiais, antes de regressarem a suas casas, estacionavam na chamada bóia do Rossio, perto do Café Nicola, em amena cavaqueira, só interrompida por uma ou outra olhadela catrapiscadora para as garinas ou flausinas que por ali passavam àquela hora, quem sabe se uma júlia florista, uma rosa enjeitada, uma rosinha dos limões, uma rosita dos caracóis, uma cigana carmencita, uma traidora de franja, uma rita iéié, uma menina das tranças pretas ou uma amélia dos olhos doces –, os navios lá zarparam em direcção ao mar oceano, pelo meio-dia dessa quarta-feira, 5 de Maio de 1954, enquanto nós, alvoroçados e deleitados, admirando, aqui e ali, as graciosas acrobacias de um ou outro golfinho, os voos intermitentes das velozes e ruidosas gaivotas, as fainas pitorescas das típicas canoas, faluas e fragatas do rio e as lentas travessias dos velhos cacilheiros, olhávamos com enlevo para a silhueta da nossa encantada e vetusta Lisboa, cidade das sete colinas, de marinheiros, fadistas, ardinas, rufias, rameiras e varinas, dos arraiais populares e dos pregões matinais, das marchas e procissões, princezinha do Tejo, com os seus monumentos seculares e o seu casario multicor, de velhinhas trapeiras ornadas de craveiros, roseiras e sardinheiras, cada vez mais distantes e esfumados, ao mesmo tempo que nos acudiam à memória as grandíloquas estrofes glorificadoras da epopeia marítima dos portugueses, tão bela e patrioticamente cantadas pelo estro genial de Camões, de Bocage e de Pessoa… Connosco e vivendo a mesma aventura, juntamente com os dedicados e abnegados sargentos e praças da guarnição, nobres e valentes marinheiros dos sete-mares andarilhos, com saudades no coração de namoradas, noivas, esposas e filhos, outros oficiais, além dos já citados, como os primeiros-tenentes Carlos Salgueiro Rêgo e António Estácio dos Reis, o subtenente Melo de Sampaio e o guarda-marinha Alves Vieira, todos felizmente ainda vivos, com o posto de capitães-de-mar-e-guerra reformados, e os já falecidos primeiro-tenente Jorge Antunes, segundo-tenente Virgílio de Carvalho e guardas-marinhas José Baptista dos Santos e José Ribeiro Mautempo. Apraz-me deixar aqui uma nota de saudade relativamente ao Virgílio, que nos deixou há poucos anos, no posto de capitão-de-mar-e-guerra reformado, amargurado pelo facto de a Marinha lhe 10 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE ter recusado, injustamente, a ascensão ao almirantado, o que não o impediu, todavia, de ser uma figura notável nos campos da geopolítica, da estratégica e das relações internacionais, com uma brilhante carreira de professor universitário nessas áreas, altamente dignificante para a corporação que tão iniquamente o tratou … Passados dois dias de viagem, com os navios formando em V, os contratorpedeiros à frente e o aviso atrás, avistámos as Canárias por estibordo, aportando em S. Vicente de Cabo Verde na manhã de 9 de Maio, um domingo, o que me permitiu tomar contacto, pela primeira vez, com as boas gentes daquelas terras, passeando, dançando e cantando alegremente, ao som de mornas e coladeras, no jardim público do Mindelo, com o típico coreto, como era habitual aos domingos ao fim da tarde e ao começo da noite, espectáculo que, um pouco mais de dois anos depois, teria ensejo de reviver por várias vezes, por ocasião de uma outra comissão de serviço, no navio hidrográfico Comandante Almeida Carvalho, comandado pelo saudoso e amigo capitãotenente José Camões Godinho. Mas a nossa chegada a S. Vicente seria ensombrada, por assim dizer, pelo primeiro incidente da viagem, que, por feliz acaso, não redundou no que poderia ter sido uma grave tragédia. O Tejo, por uma manobra intempestiva, avançou sobre o Afonso, que, a tempo e em expedita movimentação, conseguiu safar-se da proa ameaçadora do veloz contratorpedeiro, em que as popas dos navios quase se tocaram, perante a atrapalhação do Luvas, cumprimentando, com uma continência forçada, o comodoro da Força Naval, que, de olhar furibundo assestado para o assarapantado comandante, não conseguiu esconder a sua compreensível indignação. No dia seguinte partiríamos para a colónia britânica da Serra Leoa, tendo aportado em Freetown, a capital, ao fim da tarde do dia 12, onde seríamos recebidos com uma daquelas terríficas trovoadas tropicais, com ininterruptos relâmpagos seguidos de estrepitosos trovões, de tal modo que, quando um deles, de uma violência inaudita, se abateu sobre o nosso navio, me levou a vociferar um tonitruante e obsceno “Porra!”, em vez de um abemolado e apudorado “Valha-nos Santa Bárbara!”, facto que provocou alguma hilaridade nos camaradas presentes, e o qual o bom amigo Virgílio de Carvalho me recordava algumas vezes, quando, mais tarde, se encontrava comigo. O navegar por aquelas calmas águas tropicais permitiu-me também, pela primeira X-11 vez, apreciar o espectáculo maravilhoso dos peixes-voadores, naqueles lestos e fascinantes voos rasantes, planando rente à superfície da água, poucos metros à frente do proa do navio. Quanto a Freetown, impressionou-me a sua característica de cidade tipicamente tropical, com belas vivendas de janelas e portas fortemente gradeadas, no meio de luxuriante vegetação, em que topar com um branco nas ruas era uma autêntica raridade, mas onde pude visitar um moderno centro comercial, abundante e variadamente provido, em que tive a grata surpresa de ver, adequadamente propagandeados, discos de vinil de 33 rotações da nossa então já famosa diva do fado Amália Rodrigues, que, além de exímia cantadeira, era também uma talentosa poetisa, como o demonstrou na letra daquele inolvidável fado “Estranha forma de vida”, musicado por um diligente ex-operário do ex-nosso velho Arsenal do Alfeite, celebrizado como fadista com o nome de Alfredo Marceneiro. Passados dois dias, partiríamos para outra colónia britânica, desta vez a Nigéria, aportando na capital, Lagos, a 17 de Maio, de manhã. Tendo ido a terra logo na tarde do dia da chegada, foi oportunidade para ter sofrido o maior calor de toda a minha vida, com temperatura à sombra acima dos 40º celsius e humidade superior a 95%, apesar do leve traje branco de calção e camisete. E o que não teria sofrido o nosso comandante, de fato preto de fazenda, com colete e gravata, que, ao pôr os pés em terra, logo foi alvo dos risos sarcásticos dos nativos ali presentes, como autêntica avis rara naquelas paragens… Fazendo jus ao nosso salutar espírito de convivência, travámos conhecimento com um casal de ingleses e um seu amigo, o que foi pretexto para uma ida à noite a um dancing da cidade, culminando com uma bebidas, em que não faltou o nosso tradicional vinho do Porto, a bordo do Tejo, que os ‘bifes’ muito apreciaram, como ficou bem patente ao saírem do navio, eufóricos e ziguezagueantes, ou, como diriam os brasileiros, montados na ema… Depois de dois dias em Lagos, com um calor tórrido, lá partimos por fim para o nosso primeiro destino, S. Tomé, aonde chegámos no dia 21, portanto dois dias antes da prevista chegada do Presidente da República. Cada vez mais fascinado por aquela aventura tropical, não foi sem uma certa estranheza que, após termos fundeado, vi, com espanto, a passagem de tubarões a poucos metros do navio, deslizando suavemente sob as quietas águas da baía, espectáculo inédito para mim, que só aos 25 anos de idade saíra pela primeira vez deste rectângulo à beira-mar plantado… A estadia em S. Tomé, de apenas 12 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE cinco dias, com uma ida de um dia à ilha do Príncipe, no final, foi algo de inolvidável, não só pelo fascínio da variegada e exuberante flora tropical e da exótica fauna ornitológica, multicolor e polifónica, das duas ilhas, como pelo bem cuidado programa oficial, desde uma memorável sessão de boas-vindas ao chefe do Estado na cidade de S. Tomé, até um deslumbrante pôr-do-sol nos jardins do palácio do governador, na Trindade, sem esquecer uma visita de Craveiro Lopes a um determinado lugar, em que os nativos, devidamente arregimentados para o receber, foram vigorosamente exortados pela mulher do capitão do porto a aplaudi-lo calorosamente, não se tendo ouvido mais que umas abafadas palmas e uns pífios “Viv’ó sinhó Présidenti!”… Com a chegada a Luanda a 28 de Maio, data também da chegada da comitiva presidencial, e depois da passagem da ‘linha’, lamentavelmente não celebrada a bordo do Tejo de acordo com os tradicionais preceitos navais, iniciar-se-ia um período de 33 dias, que ficariam para sempre gravados na minha lembrança, quase todos agradáveis, que seria fastidioso aqui detalhar, até porque há pormenores que, dado o longo tempo decorrido, já me escaparam. Desde várias viagens por mar entre portos angolanos, incluindo os do enclave de Cabinda, algumas viagens por terra em automóvel, jipe ou automotora, e um baptismo de voo em frágil avioneta, até aparatosas cerimónias militares, magníficas recepções, faustosos bailes, lautas almoçaradas, ambrosíacos banquetes e esplendorosos pores-do-sol, como era apanágio do então florescente império colonial português, por muita coisa passei, mas só de pouco irei em seguida dar conta, como é compreensível, até para não alongar demasiado esta comunicação. Contudo, antes disso e porque de uma viagem presidencial se tratou, afigura-se-me pertinente referir agora alguns dos principais eventos protagonizados pelo chefe do Estado, como o descerramento, em Luanda, de uma placa de homenagem a Diogo Cão, o primeiro navegador português a chegar a Angola, em 1483, erguendo, na foz do Zaire, o primeiro padrão levado de Lisboa, a inauguração da ponte Craveiro Lopes sobre o rio Zambeze, em Cazombo, a inauguração da barragem Salazar, no rio Cunene, visitas às principais cidades e ao colonato de Cela, e uma espectacular cerimónia militar em Massangano, em Quanza Norte, onde, em 1582, Paulo Dias de Novais instalou um presídio, que se tornaria o principal centro de expansão militar e económica para o interior da colónia, bem como a base da resistência portuguesa ao domínio holandês em Angola, entre 1641 e 1648, ano X-13 em que Salvador Correia de Sá e Benevides, comandando uma esquadra de 15 navios procedentes do Brasil, expulsou os holandeses de Luanda, reconquistando assim o território para os portugueses. Nas suas viagens por mar, o Presidente embarcou sempre no Afonso, dado que era o navio que oferecia melhores comodidades. Todavia, a sua visita a Porto Alexandre, ido da baía dos Tigres, foi uma excepção, embarcando, pela única vez, no Tejo, e então é que foi o fim da ‘macacada’, como soe dizer-se. O respectivo imediato, a autêntica dona de casa do navio, sempre muito atento e diligente, achou por bem aprimorar a zona a bombordo, com passadeira e tudo, em detrimento da zona de estibordo, onde foram deixados, inadvertidamente, baldes, vassouras e esfregonas; e quando o Presidente, depois de embarcar, ao deslocar-se no navio, resolveu ir por estibordo, contrariando as indicações do solícito imediato, que a todo o custo o queria encaminhar para bombordo, assistiu-se a um dos episódios mais caricatos da viagem, ao ver-se Craveiro Lopes, de semblante arreganhado, passar por entre aqueles pouco cuidados utensílios de baldeação e limpeza, perante a cara apavorada do surpreso e assarapolhado oficial superior e o riso mal contido do pessoal que, como eu, teve o privilégio de assistir a tão grotesca cena… Já agora, vem a propósito contar outro episódio insólito, passado, se a memória não me atraiçoa, em Pereira d’Eça, hoje Ondjiva, na província de Cunene, no sul do território, aquando de aparatosa cerimónia militar. Estava o chefe de Estado numa tribuna improvisada, a presidir à cerimónia, quando, inesperada e subitamente, surge, do capim em frente, um grupo de nativos armados de arcos e flechas, entoando gritos guerreiros e selvagens, e dirigindose ameaçadoramente para a tribuna. Naturalmente que se tratava de um número do programa previamente elaborado. Só que alguns dos que a ocupavam julgaram, estupidamente, tratar-se de um ataque verdadeiro, pelo que, ‘pernas para que vos quero’, imediatamente ‘deram às de vila-diogo’, deixando o palanque meio deserto, enquanto o Presidente, impávido e sereno, se manteve imperturbável, não fosse ele um militar de boa cepa… Quanto a outros acontecimentos por mim vividos, não posso esquecer: um memorável almoço de peixe ao ar livre, na Baía Farta, em que as moscas eram aos milhares, a sobrevoarem e a pousarem nas mesas do abundante repasto; uma visita às quedas de água do Duque de Bragança, no rio Lucala, um dos espectáculos mais deslumbrantes que me foi dado apreciar até hoje; 14 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE uma caçada, em jipe, durante uma noite inteira, com partida do Lobito para o interior, na companhia de dois colonos brancos e do guarda-marinha Mautempo, sempre bem disposto e prazenteiro, em que, embora munidos de velhas espingardas Mauser, não caçámos nada, a não ser o farnel que levávamos, que não só nos matou a fome, que começou a apertar às tantas da madrugada, como contribuíu, juntamente com as mantas que nos acompanhavam, para mitigar o frio de rachar que a certa altura se abateu sobre nós; por último, o baptismo de voo em Luanda, em pequena avioneta, levado por um camarada do navio, e em que o respectivo piloto, seu amigo, resolveu fazer umas gracinhas, tipo pavorosas piruetas, que só não me provocaram enjoo porque o medo a isso se sobrepôs, designadamente quando a aeronave picou abruptamente sobre o cemitério da cidade, pensando eu então que já dali não sairia… A 30 de Junho terminava a estadia em Angola, cujo governador-geral era um solícito oficial do Exército, o capitão Agapito da Silva Carvalho, a qual eu não conhecera profundamente, mas que, do pouco que vi, ouvi e senti, se me apresentava como uma terra promissora, cheia de potencialidades, que em breve viria a ser dilacerada por guerras injustas, a guerra colonial e, após a independência, a guerra civil, em que, por todas as partes envolvidas, repito, por todas, foram cometidos os mais hediondos crimes, impróprios da natureza humana, fruto de mentalidades retrógradas e mesquinhas, interesseiras e ambiciosas, safadas e perversas, esperando-se que possa vir a ser, futuramente, uma nação democrática em toda a sua verdade e plenitude, já que, por enquanto, ainda não o é, sendo, lamentavelmente, o país da CPLP com o mais elevado índice de desigualdade entre ricos e pobres, com um fosso separativo de dimensões manifestamente obscenas, correndo eu o risco, com esta minha afirmação, de não estar a ser politicamente correcto, o que pouco me importa, já que o que eu pretendo ser é moralmente correcto. A última etapa da comissão foi a viagem de regresso, com escala pela antiga colónia britânica da Costa do Ouro, hoje República do Gana, tendo aportado em Takoradi pela manhã de domingo, 4 de Julho. Nessa mesma tarde, eu, o Estácio dos Reis e o Baptista dos Santos fomos de autocarro até à cidade de Sekondi, relativamente perto do porto, para alugarmos um táxi, que nos levou a Elmina, onde visitámos a nossa antiga fortaleza de S. Jorge da Mina, na Costa da Mina, terra descoberta em 1471 pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pêro Escobar. Vivia-se então, nas colónias inglesas de África, X-15 um espírito eufórico e frenético de pró-independência, ostensivamente manifestado pelo motorista do nosso táxi, que, ao cruzar-se na estrada com outros automóveis, por várias vezes deitou o braço de fora, exclamando, em voz sonante, a palavra “Freedom!”, ao mesmo tempo que deixava transparecer uma certa ira contra os ingleses, em contraste com uma aparente simpatia pelos três brancos que transportava, já que, para ele, os portugueses eram bem diferentes dos britânicos, para melhor, relativamente ao seu estatuto de colonialistas. Todavia, nas dezenas de metros que percorremos a pé, desde a descida do táxi até à entrada na fortaleza, em cuja visita fomos guiados por uma jovem e simpática branca de olhos azuis e cabelo loiro, fomos alvo, por parte dos negros postados na rua, de risos sarcásticos e de dichotes não decifráveis, numa clara manifestação do mais primário dos racismos, aqui no sentido preto–branco. Aliás, para corroborar esse racismo antibranco, nada melhor do que referir ainda um outro episódio, indecoroso, quando os nossos navios zarpavam do porto de Takoradi, se não estou em erro: muitas dezenas de jovens nativos saudaram a nossa saída do porto postados de pé, no cais, meio desnudos, brandindo, com vigor, os seus órgãos genitais, gestos esses acompanhados de gritos selvagens… Coisas para não valorizar, mas para não esquecer… Felizmente que, na luta pelos justos direitos dos negros, houve gente de grande envergadura intelectual, cívica e moral, que me apraz aqui evocar, com destaque para essas duas grandes figuras da humanidade que foram Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela, ambos galardoados com o prémio Nobel da Paz e de quem deixo registados dois pensamentos, que nos devem fazer pensar. Do primeiro: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Do segundo: “Está claro que a planta exótica do comunismo não pode florescer em solo africano”. Finalmente, a saída da Costa do Ouro a 6 de Julho, com escala por S. Vicente de Cabo Verde, onde estivemos de 11 a 12, data em que saímos para Lisboa, aonde chegaríamos a 17 de Julho à tarde. Posteriormente, durante quatro anos, outras comissões de embarque viriam, como uma curta viagem de cadetes do 2º ano da Escola Naval, no Afonso, à Madeira e Porto Santo e a Cádis, uma longa comissão de serviço no aviso de 2ª classe João de Lisboa, na Índia, com passagem final por Macau, uma comissão de cerca de cinco meses no navio hidrográfico Comandante 16 A MINHA PRIMEIRA COMISSÃO DE EMBARQUE Almeida Carvalho, em Cabo Verde, e a regata oceânica Brest–Las Palmas, na velha Sagres, sagrada vencedora na categoria de grandes veleiros. Em 1958, finalmente, entrava definitivamente nas carreiras médicas hospitalares, enfrentando difíceis concursos de provas públicas nos hospitais estatais, com 20 anos de serviço no Hospital da Marinha, 11 nos Hospitais Civis de Lisboa e 26 no Hospital “Cuf”, onde tive a felicidade de conviver e aprender com mestres eminentes da medicina portuguesa, na área da medicina interna, que eu escolhera como especialidade a seguir, concorrendo sobremaneira para a minha completa realização profissional. Por isso muito me apraz evocar saudosamente os seus nomes: o dr. Galvão Rocha, no Hospital da Marinha, um dos mais distintos e notáveis médicos navais do século passado, o prof. dr. Oliveira Machado, no Hospital de S. José, discípulo dilecto do célebre professor Pulido Valente, e, muito especialmente, pelas fortes ligações de amizade também, o dr. D. José de Mello e Castro, modelado pela sábia maestria do insigne mestre da clínica Aníbal de Castro, esse no Hospital de S. José e no Hospital “Cuf”, o qual, sendo um nobre genuíno de linhagem, era sobretudo um fidalgo na sabedoria, na sensatez, no carinho pelos doentes e no respeito por todos, incluindo os mais desfavorecidos e humildes, um democrata a sério, na verdadeira acepção da palavra, hoje tão aviltada no nosso mofinento país por uma praga, eu direi mesmo uma súcia, de alguns reles pseudodemocratas que por aí se pavoneiam, sem princípios, sem regras, sem lisuras, sem valores, ávidos de protagonismo, de influência, de poder e de dinheiro, e tantas vezes prepotentes, arrogantes, corruptos e embusteiros, como os mais salafrários ditadores… Todavia, não percamos a esperança, que, ao longo da história, a verdade, a justiça e o amor quase sempre acabaram por vencer. Mas, porque aquela comissão que tenho vindo a descrever foi a minha primeira comissão de embarque, foi ela que mais me tocou no meu âmago de médico recém-formado e de marinheiro inopinado e incipiente, guardando dela as mais gratas e saudosas recordações, no âmbito da minha velha Marinha, em que a esquadra era limitada, com navios já muito usados, mas havia amor à Armada e marinheiros denodados, e em que gozei tempos felizes, por esses mares d’além mundo, honrando nossas raízes, calando cá muito fundo… Mas deixemo-nos de poesias lamechas… Vou terminar. Bem sei que tudo aquilo que hoje aqui referi não passa de uma sequência de factos menores, protagonizados por meros actores, em X-17 que o que mais releva é a espontaneidade, a autenticidade e a simplicidade. Mas, como afirmava o psicólogo e grande pensador Gustave Le Bon, se só as grandes acções, friamente raciocinadas, figurassem no activo dos povos, os anais da história do mundo pouco teriam que registar e narrar, e eu não teria tido ensejo para este agradável e exultante convívio com vossas excelências. 18