1 Prémio Luso-Espanhol de Cultura 2014
Este é um momento muito particular. Particular pela natureza
do prémio que me foi atribuído, particular pela circunstância de
modo e de lugar em que simbolicamente o recebo. A minha alegria
é muita, a capacidade de descrevê-la com sobriedade é pouca.
Apenas quero dizer que jamais poderia sonhar vir a partilhar um
momento destes sob a égide de El Greco. O poker
do acaso que
preside às nossas vidas lá saberá por que razão me deu
semelhante alegria.
Quando se atribui um prémio assente num conceito tão
elevado, e com tão vasta amplitude, o primeiro sentimento por parte
de quem o recebe é de incredulidade, o segundo é de
imerecimento. O terceiro corresponde à tentativa de acomodação a
uma nova realidade que passamos a usar como um espelho. Neste
breve espaço de tempo que roubo à apresentação da Mostra
Espanha, apenas direi umas palavras sobre este último sentimento.
O Prémio Luso-Espanhol de Cultura, que quatro distintas figuras
receberam antes de mim, foi sonhado pelos seus criadores e
promotores,
como
um
modo
de
fazer
abater
através
da
aproximação das culturas ibéricas, as fronteiras que nos separam.
Fronteiras políticas, que não são riscos no mapa feitos a lápis, são
2 riscos na terra desenhados ao longo dos séculos a poder de
sangue. Riscos que se transformam nos sulcos que nos definem.
A Cultura, porém, dificilmente se ata a um território e respeita
fronteiras. O que este prémio, no início do Século XXI, vem
celebrar,
oficialmente,
e de forma contemporânea, é o
reconhecimento de que as pátrias da imaginação são bem mais
amplas do que as pátrias políticas e cada vez menos coincidem
com elas. É pensando nesse propósito que me sinto confortável ao
receber este prémio. Confirmo pertencer ao vasto número de
portugueses que, ao mesmo tempo que defendem as bandeiras que
nos distinguem, têm tido a sorte de poderem desvalorizar o
imperativo das fronteiras, ultrapassando-as. Trata-se de um simples
sentimento de pertença alargada, ditado pela própria vida, e com a
naturalidade dela.
No passado, ignorando fronteiras, pessoas da minha família
casaram com pessoas vindas de Espanha. Numa das fotografias
mais antigas, eu estou de criança- dama- de- honor, segurando as
alianças que iriam unir uma das minhas tias a Juan Serrano de
Sevilha. Durante a minha infância, era esse tio quem tocava o órgão
da pequena igrejinha de Boliqueime, e a música sacra, que não
tinha palavras, sob as mãos do meu tio Juan, falava espanhol. A
mesa dos meus tios e seus filhos era naturalmente bilingue, e
ninguém dava por nada. Hoje em dia, a minha única irmã é uma
pessoa de fala espanhola, os meus dois únicos sobrinhos, também.
3 Os ossos do meu pai repousam sob um céspede, na direcção do
Oceano Pacífico, e o seu epitáfio está escrito em espanhol. Talvez
fruto dessas distâncias, gosto de imaginar que o rumor da
existência provém de territórios profundos onde as fronteiras não
existem, e coloco-me ao lado de todos aqueles que aspiram a que
elas, à face da Terra, sejam invisíveis e tenham o menor peso
possível nas nossas vidas cívicas.
Mas reconheço que o verdadeiro abate de fronteiras entre as
culturas ibéricas foi feito por via do mundo académico, e devo-o
sem dúvida à Faculdade de Letras de Lisboa, pela mão das figuras
eminentes de Maria de Lurdes Belchior e Lindley Cintra. Por eles,
aprendi a ver na Península um grande barco, de vários assentos,
diferentes percursos, um só destino. O facto de a iniciação
intelectual que ambos promoviam ter sido feita por comparação
entre as duas Literaturas e as duas Histórias de Arte, por certo que
incitou muitos homens e mulheres da minha geração a não termos
medo de Espanha, a não recearmos que as tais fronteiras se
abatessem, e Portugal se diluísse no país contíguo. Que essa
ponte, na altura, tenha sido feita a partir da aproximação entre
autores e artistas do El Siglo de Oro, em confronto com o
Renascimento e o Barroco portugueses, ajudou a essa iluminação
recíproca, que as culturas permitem, cruzando-se, sem conflito de
espaço. Na minha juventude, aprendi a aproximar, por contraste,
Camões de Cervantes, Gil Vicente de Lope de Vega e Calderón de
4 la Barca. Nos corredores da Faculdade, líamos em voz alta o
Diálogo de Todo o Mundo e Ninguém, e o solilóquio de La Vida es
sueño, como peças de milagre que aproximavam em intensidade
autores que sentíamos como património comum. E creio que foi por
essa altura, a propósito dos primitivos portugueses e dos pintores
espanhóis, como El Greco e Velasquez, que pela primeira vez
compreendi como as raízes da herança nos tornam parceiros no
tempo. Sobre El Greco, precisamente, tive ocasião de me
aperceber da dimensão da sua modernidade. Os céus rasgados
para espaços infinitos, as sombras alongadas, a deformação das
proporções, como se o autor pintasse à luz de um relâmpago,
mostraram-me, pela primeira vez, aquilo que séculos mais tarde,
Adorno viria a ensinar-me sobre a transfiguração da realidade –
Que à luz da Redenção, toda a História surge necessariamente
deformada.
Se não me engano, o melhor que tem sido produzido em Arte,
ao longo dos séculos, até mesmo agora, no início do século XXI, de
ambos os lados, tem sido construído sob o efeito dessa
transfiguração. Quando hoje os autores espanhóis se encontram
com
autores portugueses, é costume valorizar-se este legado
comum. Aliás, se a minha interpretação não é abusiva, talvez nos
distingamos de outras culturas por uma exuberância na expressão
da paixão, que não conheceu a racionalidade de outros espaços
culturais. Talvez nos aproxime também a ideia de que escrever e
criar em espanhol e em português, dando expressão ao que de
5 mais fundo vem atrás destas duas línguas maravilhosas, tão
próximas e tão distintas, constitui, mesmo involuntariamente que
seja, uma barreira erguida em conjunto contra um “globish” cultural
crescente que expressa, sem dúvida, a pele do tempo, mas não a
sua carne.
No que me diz respeito, não posso avaliar o contributo que os
meus livros têm dado para a aproximação das duas culturas que
aqui celebramos. Sei, porém, que me coloco na perspectiva de
quem sabe que a cultura e as artes criam novas pátrias
emergentes. Num momento tão extraordinário como é aquele em
que vivemos, em que a questão das fronteiras se tornou o símbolo
do desentendimento dramático da Humanidade, receber um prémio
que procura abater aduanas e fronteiras entre dois países vizinhos,
a nível dos objetos do espírito, é uma imensa honra, e uma alegria
indizível. Que El Greco estenda um dos seus mantos compridos até
esta cerimónia, e aqui se transforme no símbolo de como o mundo
imaginário é um reino sem limites, resulta numa grande deferência.
Uma deferência que em nada apaga a ideia de que o jogo do acaso
preside às nossas vidas, e eu, neste momento, sou sua beneficiária.
A todos agradeço.
Muito obrigada, LJ.
Museu Nacional de Arte Antiga
Lisboa, 14 de Setembro, 2015.
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