UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL “POR QUE RAZÃO NÃO LIBERTARAM ESTA MENINA?”: DISCURSO EMANCIPACIONISTA E PERFIL DO LIBERTO IDEAL NO ROMANCE A ESCRAVA ISAURA KLEBERSON DA SILVA ALVES Santo Antônio de Jesus, Bahia Setembro/2010 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL “POR QUE RAZÃO NÃO LIBERTARAM ESTA MENINA?”: DISCURSO EMANCIPACIONISTA E PERFIL DO LIBERTO IDEAL NO ROMANCE A ESCRAVA ISAURA KLEBERSON DA SILVA ALVES Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (PPGHIS/UNEB) como requisito obrigatório para a obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Wellington Castellucci Junior. Santo Antônio de Jesus, Bahia Setembro/2010 A474 Alves, Kleberson da Silva. “Por que razão não libertaram esta menina?”: discurso emancipacionista e perfil do liberto ideal no romance A Escrava Isaura. / Kleberson da Silva Alves - 2010. 147 f. Orientador: Prof. Dr. Wellington Castellucci Junior. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2010. 1. Literatura - História. 2. A Escrava Isaura - Romance. 3. Bernardo Guimarães I. Castellucci Junior, Wellington. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local. CDD: 801.9 Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396. ―POR QUE RAZÃO NÃO LIBERTARAM ESTA MENINA?‖: DISCURSO EMANCIPACIONISTA E PERFIL DO LIBERTO IDEAL NO ROMANCE A ESCRAVA ISAURA Autor: Kleberson da Silva Alves Orientador: Prof. Dr. Wellington Castelluci Junior Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia como requisito necessário a obtenção do título de Mestre em História. Banca Examinadora: _______________________________________________ Prof. Dr. Wellington Castellucci Junior (Orientador) Universidade do Estado da Bahia/ Universidade Federal do Recôncavo da Bahia _______________________________________________ Profª. Drª. Gabriela dos Reis Sampaio Universidade Federal da Bahia _______________________________________________ Prof. Dr. Paulo Santos Silva Universidade do Estado da Bahia Santo Antônio de Jesus, 24 de Setembro de 2010. AGRADECIMENTOS O trabalho de pesquisa é um processo de intensos diálogos. Especialmente no caso da pesquisa histórica, de dialogo virtual com os sujeitos históricos e sociais cujos nomes, memórias, histórias, ações e pensamentos, são intensivamente mencionados, analisados e discutidos. Mas, também, de diálogos reais com pessoas e instituições sem as quais a pesquisa não se concretizaria. É importante destacarmos que muitas dessas pessoas ficam incógnitas. Talvez, possam ter, em algum momento, suas histórias e vivências nas instituições de pesquisa (Bibliotecas e Arquivos) investigada por algum historiador e/ou sociólogo curioso e perspicaz. Julgo que seria uma interessante pesquisa. Agradeço a esses indivíduos que muito contribuem para a concretização de muitas pesquisas. Agradeço também a alguns que serão aqui nomeados. Tarso Tavares e Girlene Neri da Divisão de Informação Documental da Biblioteca Nacional (DINF/BN); Fábio do Centro de Digitalização da Universidade Federal da Bahia (CEDIG/UFBA), que realizou a digitalização dos microfilmes remetidos pela Biblioteca Nacional; Angélica de Cássia Barbosa, estudante de graduação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que realizou a digitalização dos microfilmes dos periódicos Ensaios Litterarios (São Paulo, 1847-1850) e A actualidade (Rio de Janeiro, 1859-1860) no acervo do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/CECULT) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Foram pessoas muito importantes no processo de coleta e digitalização da documentação utilizada na presente pesquisa. Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro, através de bolsa de estudos, que possibilitou a aquisição de alguns exemplares de obras literárias que, fora do mercado editorial contemporâneo, somente podiam ser encontrados em Livrarias-Sebo. Ademais, a presente pesquisa deve muito aos diálogos e experiências vivenciadas, no período de 2004 a 2006, com as professoras Iacy Maia Mata e Ana Rita Santiago da Silva acerca das relações entre História e Literatura, quando eu ainda cursava a graduação. Diálogos estes fundamentais para a elaboração do projeto de pesquisa que também contou com sugestões de Luiz Alberto Couceiro. Agradeço também aos professores Paulo Santos Silva e Gabriela dos Reis Sampaio pelas valiosas contribuições durante a realização do exame de qualificação. 6 No âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local (PPGHIS/UNEB), além dos colegas e professores, agradeço à Ane Vieira Nunes e Consuello L. Pereira da Silva, que sempre atenderam solicitamente às minhas solicitações, bem como nunca me deixaram permanecer com dúvidas. Agradeço especialmente ao professor Wellington Castellucci Junior que orientou, durante dois anos de pesquisa, a confecção deste trabalho. Ainda referente ao Programa, agradeço também a algumas colegas com os quais vivenciei também momentos de amizade na cidade de Santo Antônio de Jesus. São elas: Soanne Cristino Almeida dos Santos e Camila Barreto Santos Avelino. Neste último parágrafo de agradecimentos, não poderia esquecer alguns pessoas que há muito convivem comigo: meus pais (Maria Magali de Silva Alves e Mario Jorge dos Santos Alves), meus irmãos (Uenderson e Jeferson da Silva Alves) e meu sobrinho Kaique (este de convívio um pouco mais recente, há apenas três anos e meio, desde o seu nascimento). Agradeço também aos bons amigos e colegas – também estudantes de história – Jéssica dos Santos Oliveira, Álvaro Leal Santos, Caroline Lima Santos e Humberto Manoel. RESUMO Este trabalho consiste na análise do romance A escrava Isaura de autoria do bacharel mineiro Bernardo Guimarães. Escrito em 1874, numa conjuntura de debate em torno da emancipação dos escravos, a obra apresenta uma proposta de emancipação que se opunha à iniciativa do Estado em regular o processo de transição do trabalho escravo ao livre, que era então representada na lei do Ventre-livre promulgada em 1871. Através das caracterizações de senhores, escravos e capitães-do-mato pudemos compreender o discurso antiescravista do literato que buscava convencer a classe senhorial de que era prudente que eles próprios efetivassem o processo de transição. Ademais, foi possível perceber que o narrador do romance bernardino defendia um processo lento e gradual que preparasse o escravo para a vida em liberdade como se advogava na época, indicando o que ele considerava como adequado para o comportamento do futuro liberto. Nessa perspectiva, temos em A escrava Isaura um discurso no qual as personagens/indivíduos que atuaram na tentativa de perpetuar a escravidão foram caracterizados pejorativamente. Palavras-chave: A escrava Isaura; Bernardo Guimarães; Discurso antiescravista; Literatura e História; Século XIX. ABSTRACT Title: ―Why this girl was not set free?‖: emancipationist discourse and the ideal profile of the former slave in the novel Isaura, the slave girl We have analyzed the novel Isaura, the slave girl by Bernardo Guimarães. Written in 1874, in a debate conjuncture concerning the emancipation of slaves, the work presents a proposal for emancipation which contested the State initiative in regulate the transition process from slave work to free work, represented by the Law of Free Womb promulgated in 1871. Through the characterization of the masters, slaves and slave hunters we could comprehend the anti-slavery discourse of the writer which tried to convince the master class that it was prudent if they did the transition process by themselves. In addition to that, it was possible to perceive that the narrator of Bernardo Guimarães novel defended a slow and gradual process which could prepare the slave to the free life as claimed in those times, indicating what he considered adequate for the future free man behavior. In this perspective, we have in Isaura, the slave girl a discourse in which the characters/individuals who acted trying to perpetuate the slavery were negatively characterized. Key-words: Isaura, the slave girl; Bernardo Guimarães; Anti-slavery discourse; Literature and History; XIX Century. SUMÁRIO Introdução........................................................................................................................ 10 A escrava Isaura e o embate entre escravistas e emancipacionistas: as representações senhoriais no romance bernardino .................................................................................... 27 Literatura e estratégias emancipacionistas .................................................................... 27 Escravistas versus emancipacionistas no enredo romântico bernardino ......................... 40 Os motivos do embate: amor e caridade versus perversão senhorial .............................. 52 Ruína escravista, vitória emancipacionista: A escrava Isaura e o ensinamento do literato sobre a emancipação ........................................................................................................ 56 Concluindo o capítulo anterior: a solução vitoriosa....................................................... 56 Emancipar, um desígnio senhorial ................................................................................ 65 Emancipação e manutenção da ordem senhorial ........................................................... 71 Bernardo Guimarães e a lei do ventre-livre ...................................................................79 Anselmo, um capitão-do-mato emancipacionista: repressão e alforria na literatura romântica bernardina........................................................................................................ 84 Para além de A escrava Isaura ..................................................................................... 84 Os capturadores ficcionais da obra de Bernardo Guimarães .......................................... 89 Os escravos fugidos e suas características .................................................................... 97 Libertos ideais em enredos românticos bernardinos .................................................... 112 Senhores, feitores e capitães-do-mato emancipacionistas ............................................ 123 Considerações finais ...................................................................................................... 129 Registros históricos ........................................................................................................ 139 Referências .................................................................................................................... 143 INTRODUÇÃO Em primeiro de outubro de 1859, o bacharel mineiro Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (Bernardo Guimarães, como ficou conhecido no mundo das letras), que, além de poeta e romancista,1 também atuou como crítico literário, publicou, no periódico A actualidade (Rio de Janeiro), um texto em que indicou o potencial da literatura como meio para se compreender uma época. Elemento que nos serviremos para analisar suas próprias obras e seu potencial de fornecer informações sobre uma dada maneira de pensar a sociedade brasileira do contexto de discussões em torno da extinção do ―elemento servil‖ que esteve presente nos meios literário, jornalístico, político-parlamentar e das ruas. Não é o Bernardo crítico que interessa aqui analisar, todavia, não podemos desprezar que o crítico oferece elementos para compreendermos o literato. Em suas palavras, A cultura das letras é sem duvida um agente poderoso de civilisação, como tambem um syimptoma, que revela de um modo brilhante a existencia della. É sobretudo nos monumentos litterarios, que vão legando ás gerações futuras, que se reflete clara e fielmente a phyisionomia das diversas épochas e das diversas nacionalidades. 2 A utilização da literatura enquanto registro histórico não constitui novidade historiográfica, tendo já sido publicados interessantes estudos tanto no âmbito nacional quanto internacional. 3 Todavia, a despeito das considerações de nosso literato, publicadas ainda em 1859, pensar na literatura como meio para se compreender a História não foi algo 1 O autor ficou célebre mesmo por suas poesias, que, a despeito do sucesso de A escrava Isaura (1875) ainda eram publicadas e elogiadas mesmo após a publicação de seu conhecido romance. Cf. GUIMARÃES, Bernardo. Novas poesias, 1876 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959). 2 GUIMARÃES, Bernardo. ―Revista Litteraria‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 54, 01/10/1859, p. 2. Arquivo Edgar Leuenroth/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura da Universidade Estadual de Campinas, doravante AEL/CECULT. 3 Entre as produções brasileiras destaque os historiadores Sidney Chalhoub e Nicolau Sevcenko, este último, pioneiro na ampla utilização da literatura no Brasil. Internacionalmente podemos destacar os estudos do historiador estadunidense Robert Darnton, da também estadunidense Natalie Zemon Davis. Cf. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986; DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 11 unanimemente aceito, provocando intensos debates, alguns dos quais, inclusive, reivindicavam mesclar a história com a literatura.4 Provavelmente, em 1981, Nicolau Sevcenko foi o primeiro historiador brasileiro a aventurar-se na ampla utilização da literatura enquanto registro de uma época, documento histórico.5 Por isso, julgou necessário justificar incisivamente sua pesquisa e opção documental: a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar e a comover; mas como se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade dos frutos não depender das características do solo, da natureza, do clima e das condições ambientais? 6 Robert Darnton, em 1984, que também lançou mão de narrativas literárias – assim como Sevcenko – também julgou necessário justificar sua pesquisa e opção documental, indicando que a História Cultural e seu vasto repertório de fontes ainda não ocupava um lugar efetivo no cânone historiográfico. Em suas palavras, Percebo que existem riscos, quando alguém se afasta dos métodos estabelecidos da História. Alguns argumentarão que os dados são demasiado vagos para permitir que se chegue, algum dia, a penetrar nas mentes de camponeses desaparecidos há dois séculos. Outros se ofenderão com a idéia de que se interprete um massacre de gatos com a mesma linha de pensamento com que se interpreta o Discours préliminaire da Encyclopédie, ou mesmo com o fato de se chegar a interpretá-lo. E um número ainda maior de leitores reagirá contra a arbitrariedade de se selecionar alguns poucos documentos estranhos como vias de acesso ao pensamento do século XVIII, em vez de proceder de maneira sistemática, através do cânone dos textos clássicos. 7 Quebrada as barreiras iniciais, não temos dúvidas quanto ao valor da literatura, e outras produções culturais, enquanto registro histórico; compreendemos que, assim como as leis, a produção jornalística, etc., a obra literária – a arte de modo geral – esta informada por questões de sua época, seus embates, dilemas, expectativas. Enfim, são registros históricos que, quando devidamente indagados, oferecem importantes informações a respeitos dos conflitos e expectativas de seu autor (de uma parcela da sociedade) num 4 REVEL, Jacques. ―Microanálise e construção do social‖. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 35. 5 SEVCENKO, Literatura como missão. Tal publicação foi antes, em 1981, a tese de doutoramento do historiador. 6 Ibidem, p. 29. 7 DARNTON, O grande massacre de gatos, p. 18. 12 contexto historicamente determinado. A questão (ou problema, como se considerou em outros tempos) da literatura como documento histórico ocorreu em termos muito parecidos para os jornais e outras publicações periódicas. Conforme Tânia Regina de Luca, a tradição do século XIX e início do XX de busca da verdade fez com que os historiadores hierarquizassem suas fontes. Assim, os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que essas ―enciclopédias do cotidiano‖ continham registros fragmentários do presente, realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez [de] permitirem captar o ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.8 Situação que, ainda conforme Luca, se transformou com a busca por parte dos historiadores por novas temáticas como as mentalidades, os mitos, o cotidiano, o inconsciente. Temáticas que requereram do historiador uma reavaliação do seu repertório de fontes e incorporação de materiais jamais tidos como tal. 9 Os periódicos, então, não eram mais questionados por sua ―falta de objetividade‖ e assim como a literatura e outras formas de narrativa, foram ganhando espaço no trabalho do historiador. No entanto, as preocupações dos pesquisadores, quanto à utilização dos periódicos enquanto ―receptáculos de informações‖, fez com que poucos se aventurassem na utilização deste registro histórico. Segundo Luca, ―alguns só se dispuseram a correr tantos riscos quando premidos pela falta absoluta de fontes‖; outros continuaram a ignorar a imprensa, pois, julgavam tais produções como ―mera caixa de ressonância de valores, interesses e discursos ideológicos‖,10 elemento que não retira o valor destes registros, ao contrário, possibilita novas e interessantes temáticas. Aliás, cada vez mais, os historiadores se preocupam com a maneira de pensar dos indivíduos, sendo a literatura e a produção periódica uma importante fonte de informações. É importante destacarmos que a literatura não esteve por muito tempo dissociada da produção periódica; segundo Antonio Candido, com a invenção do folhetim romanesco por Gustave Planche na França, no decênio de 1820, houve uma alteração não só nos personagens, mas no estilo e técnica narrativa. É o clássico ―romance folhetim‖, com 8 LUCA, Tânia Regina de. ―História dos, nos e por meio dos periódicos‖. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 112. 9 Ibidem, p. 113. 10 Ibidem, pp. 116-117. 13 linguagem acessível, temas vibrantes, suspensões para nutrir a expectativa, diálogo abundante com réplicas breves. 11 Ademais, na sociedade brasileira do século XIX, muitos literatos também atuaram na produção periódica, evidenciando uma grande aproximação entre criação literária e atividade jornalística inclusive quanto ao conteúdo exposto e discutido. A título de breve apresentação, podemos citar ao menos dois jornais que contaram com a colaboração de Bernardo Guimarães: Ensaios Litterários, periódico editado por acadêmicos do curso de Ciências Sociais e Jurídicas de São Paulo, e A actualidade, periódico liberal publicado na capital do Império que contou com nosso literato em seu quadro de redatores. 12 Isso para ficarmos apenas naqueles que circularão em nossas páginas. Periódicos que, como conhecemos, apresentavam mais explicitamente – em comparação à literatura – as idéias e valores divulgados e defendidos por seus redatores/editores. Conforme Sevcenko, a literatura pode, se for um discurso extremo dos desajustes, focar o ideal, aquilo que se considera deveria ser, ao invés das estruturas sociais vigentes. Assim, a produção literária exprime perspectivas e anseios, de certa parcela da sociedade, mas, sobretudo de seu autor.13 Tendo em mente as considerações postas acima, em nossa pesquisa, procuramos compreender como e com que objetivo Bernardo Guimarães representou os escravos fugidos, os senhores e os capitães-do-mato, especialmente no romance A escrava Isaura (1875) e em ―Uma história de quilombolas‖ (1871). A literatura é aqui considerada um importante registro histórico, a partir do qual podemos compreender o projeto de sociedade defendido pelo sujeito/literato. Como menciona Natalie Zemon Davis, a respeito das fontes utilizadas em seu O retorno de Martin Guerre, Examinamos as fontes literárias – peças teatrais, poemas líricos e contos – que, quaisquer que sejam suas relações com a vida real dos indivíduos, 11 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000, p. 33. 12 A partir do exemplar do dia sete de setembro de 1859, logo abaixo do subtítulo do A actualidade (Jornal Politico, Litterario e Noticioso), é mencionado o nome dos redatores. São eles: Otavio Farnése, Lafayette Rodrigues Pereira e Bernardo Joaquim da Silva Guimarães. Ademais, no exemplar de 19 de dezembro de 1860, nosso literato escreveu as seguintes palavras: ―é me forçoso abandonar as lides da imprensa, retirar-me do lado dos meus dous illustres collegas, com os quaes tive a honra de collaborar por espaço de dous annos na redação da Actualiade. Cf. GUIMARÃES, Bernardo. ―[Carta de despedida aos amigos, editores e leitores do A actualidade]‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 110, 19/12/1860, p. 1. 13 SEVCENKO, Literatura como missão, pp. 27-33. 14 mostram-nos os sentimentos e reações que os autores consideravam plausíveis num determinado período. 14 A literatura, de acordo com Davis, é uma das formas de conhecermos as esperanças e os sentimentos.15 Tais questões implicam encararmos tal registro histórico para além das referências a episódios históricos neles contidos, a esse respeito Sevcenko, em sua obra pioneira, advertiu: a criação literária revela todo o seu potencial como documento, não apenas pela análise das referências esporádicas a episódios históricos ou do estudo profundo dos seus processos de construção formal, mas como uma instância complexa, repleta das mais variadas significações e que incorpora a história em todos os seus aspectos, específicos ou gerais, formais ou temático, reprodutivos ou criativos, de consumo ou produção.16 Também para Darnton, a literatura (em seu caso contos populares, provenientes da tradição oral) constitui-se como fonte histórica para além das referências a eventos e personalidades históricas: ―o significado histórico dos versos está mais em seu tom que em suas alusões‖.17 Para além de registro histórico, devemos considerar que a literatura legou contribuições para a produção do conhecimento histórico. A preocupação com os aspectos mais cotidianos da vida, por exemplo, antes ocupação dos literatos, também adentrou o universo do historiador. Conforme Ginzburg, a relação com o romance histórico provocou transformações historiográficas que buscaram novos documentos para conhecer a vida privada e cotidiana.18 Foi sob influência da literatura que também temos nos ocupado dos mais variados sujeitos/personagens como os capturadores de escravos fugidos e não somente das principais personagens de A escrava Isaura. A literatura também sofreu influência da produção historiográfica. Carlo Ginzburg ressaltou que, no século XIX, alguns autores de romance reivindicaram o título de ―História‖ para suas produções devido ao maior prestígio deste tipo de narrativa. Tais romancistas, para além do título, serviam-se do estilo narrativo da historiografia e dos elementos relacionados à veracidade de suas personagens. Todavia, ―com o aumento de 14 DAVIS, O retorno de Martin Guerre, pp. 17-18. Ibidem, p. 17. 16 SEVCENKO, Literatura como missão, p. 299. 17 DARNTON, O grande massacre de gatos, p. 60. 18 GINZBURG, Carlo. ―Provas e possibilidades à margem de ‗Il ritorno de Martin Guerre‘, de Natalie Zemon Davis‖. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico & PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: DIFEL, 1991, pp. 188-191. 15 15 prestígio do romance, a situação muda. Continuando embora a equiparar-se aos historiadores, os romancistas desligaram-se pouco a pouco de sua situação de inferioridade‖. Os historiadores profissionais permaneceram com suas narrativas sobre os ―grandes personagens‖, enquanto os romancistas adotaram ―a gente do povo, as mulheres, as crianças‖ e – podemos acrescentar – para as sociedades escravistas como a brasileira, os escravos.19 Sobre a questão das personagens da produção literária, em 1847, num periódico acadêmico, que contou com a contribuição de Bernardo Guimarães, ao tratar dos elementos que o romancista utilizava para suas descrições, elencou-se: o infeliz escravo das Antilhas regando a terra com o suor de seo rosto, bronco e miseravel como a escravidão; o mendingo crusando os portaes do rico e poderoso, que lança com despreso esmola escassa induzindo mais pela ostentação do que pela dó e compaixão que sente ao ver este que é seo irmão e que a miséria desnaturou os foros humanos; o espúrio atirado á roda da caridade por mãos estranhas, que o acharão abandonado na fria lage desprendendo o vagido expressivo da innocencia, planta isolada sem mãos que reguem, sem um coração que abrigue-a em seu seio, o véo mysterioso que encobre seo nascimento, e que o tempo vem finalmente rasgar e manifestar á luz do dia; os usos de um povo, de uma classe na sociedade são factos de que senhorea-se o romancista para suas descripções.20 Buscando compreender o discurso emancipacionista de nosso literato, analisamos duas histórias românticas publicadas na década de 1870. A primeira delas intitulada ―Uma história de quilombolas‖, foi, provavelmente, escrita em 1870 e publicada em 1871 na Capital do Império. Ao que tudo indica, foi esta a primeira iniciativa do literato, em formato de prosa, a referir-se à escravidão.21 Em forma de poesia, foi em 1852, que Bernardo Guimarães publicou em seus Cantos da solidão, um texto cujo cantor se comove ante a sepultura de um ―fiel‖ escravo, todavia sem questionar ou analisar o regime servil. 22 Conforme José Armelim Bernardo Guimarães, neto de nosso literato, a referida poesia – intitulada ―À sepultura de um escravo‖ – foi uma homenagem ao ―fiel‖ e ―dedicado‖ 19 Ibidem. ―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos, 1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, p. 6. AEL/CECULT. 21 Cf. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: das origens ao romantismo, v. 1. São Paulo: Editora Cultrix, 2001, p. 484. 22 GUIMARÃES, Bernardo. Cantos da solidão, 1852 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959), pp. 53-54. 20 16 escravo Ambrósio (então falecido), que pertenceu ao literato.23 Tal poesia (parte integrante dos Cantos da solidão), destacou o próprio autor, foi publicada em São Paulo, por amigos da Academia de Ciências Jurídicas e Sociais: Quando, ao terminar meus estudos acadêmicos, me dispunha a retirar-me de S. Paulo, grande número de amigos e colegas mostraram desejos de possuir impressas aquelas poesias; existiam elas pela maior parte em seu primeiro esbôço tais quais me tinham saído da pena no primeiro jacto, e os manuscritos se achavam em deplorável desordem; o tempo de que dispunha era muito limitado para eu poder coligi-las, e limá-las convenientemente; com a tal ou qual ordem e correção que a pressa me permitiu dar-lhes, deixei-as em S. Paulo em poder daqueles amigos, a fim de dá-las ao prelo; deixei-as mais como um franco penhor de amizade e gratidão, como um eco de meu coração, que eu queria deixar ressoando entre aquêles bons amigos, de muitos dos quais eu me ia separar talvez para sempre, do que como um título com que me apresentasse ao público para conquistar o glorioso nome de poeta.24 A partir da citação acima, saída da própria pena do literato, fica explícito que Bernardo Guimarães viveu um ambiente extracurricular na paulicéia quando de sua vida de estudante, o que incluía escrever poesia – a exemplo das publicadas em 1852. Examinando o periódico Ensaios Litterarios publicado por acadêmicos de São Paulo durante quase toda a estada de Bernardo Guimarães na cidade, todavia, não encontramos referências a escravidão e a extinção do tráfico,25 que então já era discutida por estadistas. Em finais da década de 1850 e inicio da década seguinte, Bernardo Guimarães viveu na Corte, sendo um dos redatores do periódico liberal A actualidade onde publicou algumas de suas composições poéticas, todavia novamente não encontramos texto que possamos atribuir ao literato que trate da questão da escravidão,26 de maneira semelhante ao seu repertório de prosa e poesias publicadas até o ano de 1871. Enfim, a questão da escravidão não parece ter preocupado o literato em muitos momentos de sua vida, sendo significativo que ―Uma história de quilombolas‖ (1871) e A escrava Isaura (1875) tenham sido publicadas justamente no momento em que a ―questão servil‖ era pauta dos debates políticos em virtude das discussões em torno da proposta de Lei emancipacionista – libertação do ventre – e sua efetivação depois da lei aprovada. 23 GUIMARÃES, José Armelim Bernardo. E assim nasceu A escrava Isaura: a vida boêmia de Bernardo Guimarães. Brasília: Senado Federal, 1985. 24 GUIMARÃES, Cantos da solidão, p. 11. 25 Ensaios Litterarios (São Paulo, 1847-1850). AEL/CECULT. 26 A actualidade (Rio de Janeiro, 1859-1860). AEL/CECULT. 17 Ao analisarmos as obras de Bernardo Guimarães, não podemos ignorar que se tratam da produção de um bacharel em direito, um indivíduo formado para pensar e dirigir a sociedade brasileira.27 Concepção, aliás, explicitada em periódico dos acadêmicos paulistas da geração de Bernardo Guimarães, cujos acadêmicos acreditavam que era na academia que ―se amoldão os corações, e se preparão os espíritos; é delles, que dependem os costumes, a legislação política – a sociedade emfim!… Em todos os tempos, nos paizes bem organisados, são estes estabelecimentos os deffensores da moral, e da politica‖. Enfim, os bacharelandos tinha consciência de sua posição na sociedade e acreditavam num futuro em que eles seriam seus dirigentes: ―com effeito, é daqui destes bancos que sahem os legisladores profundos, os deffensores de nossos princípios na tribuna parlamentar‖. 28 Como mencionou o narrador bernardino, em 1883, ao tratar dos estudantes da academia paulista de meados da década de 1840 – período no qual lá estudou Bernardo Guimarães – ―uma mocidade brilhante e esperançosa freqüentava a Academia; uns ricos, outros fidalgos de sangue azul, outros com a aristocracia do talento tinhão suspensa sobre a fronte a aureola de um esplendido futuro‖; era dentre os estudantes que ―sahião os deputados, senadores, ministros, barões, condes e marquezes‖. 29 Nessa perspectiva, consideramos a existência de um projeto político implícito nos enredos de nosso literato cuja condição de bacharel é indicativa de sua posição de classe semelhante à de muitos outros literatos: a sociedade brasileira contou, para a formação da sua inteligência, com os filhos de famílias abastadas do campo, que iam receber instrução jurídica (raramente, médica) em São Paulo, Recife e Rio (Macedo, Alencar, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Bernardo Guimarães, Franklim Távora, Pedro Luís), ou com filhos de comerciantes luso-brasileiros e de profissionais liberais que definiam, grosso modo, a alta classe média do país (Pereira da Silva, Gonçalves Dias, Joaquim Norberto, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Sílvio Romero). Raros os casos de extração humilde na fase romântica, como Teixeira e Sousa e Manuel Antônio de Almeida, o primeiro narrador de folhetim, o segundo picaresco; ou do trovador semipopular Laurindo Rabelo. 30 27 ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder: o Bacharelismo Liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 28 ―Solemnidade do dia 11 de agosto de 1849‖. Ensaios Litterarios: jornal academico, s.n., São Paulo, 1850, pp. 27 e 28. AEL/CECULT. 29 GUIMARÃES, Bernardo. Rozaura, a engeitada. vol. 1. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1914 [1883], p. 126. 30 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 92. 18 Enfim, além de sua condição de bacharel, o projeto político implícito na obra do literato esteve relacionado à sua posição social. Sem estabelecer qualquer tipo de determinismo, não podemos ignorar, como mencionou Candido, que ―a posição social é um aspecto da estrutura da sociedade‖ que influencia no processo de criação da arte. 31 Bernardo Guimarães, a saber, era filho de João Joaquim da Silva Guimarães, um capitão da Guarda Nacional – também ele poeta –,32 que foi um dos eleitos para a primeira Assembléia Geral Legislativa do Império; tendo exercido posteriormente ―altos cargos de nomeação do Governo e de eleição popular, tendo sido deputado nas legislaturas [mineiras] de 1848-1849, 1850-1851 e de 1854-1855‖. Sua mãe, sobre a qual são escassas as informações, foi ―D. Constança Beatriz de Oliveira, filha de abastados lusitanos de Bragança. Senhora culta e de rígidos princípios morais‖. 33 Ademais, conforme Antonio Candido, numa análise literária devemos considerar que a literatura possui funções ―total‖, ―social‖ e ―ideológica‖. A ―função total deriva da elaboração de um sistema simbólico, que transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos expressivos adequados‖; a ―função social‖, refere-se à função da obra nas relações sociais, ―na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade‖; e, por fim, a ―função ideológica‖, que é mais evidente nos objetos políticos, religiosos e filosóficos. Na ―função ideológica‖, temos a finalidade do autor ao produzir sua obra. É a consideração das três funções que, conforme Candido, permite compreender a literatura. 34 Elementos que, sem dúvida, também perpassam pela filiação de classe do literato. Observará, no entanto, nosso leitor, que, sem ignorar as demais ―funções‖, priorizaremos nossa analise na ―função ideológica‖, pois tratamos essencialmente do projeto políticoantiescravista de nosso literato. Eventualmente recorreremos às posições adotadas por outros seus pares de pena. Questão que não se trata de uma estratégia original. Roberto Schwarz, estudioso da obra machadiana, em certa medida, toma o romance Senhora de José de Alencar, uma narrativa que versa sobre o paternalismo, como referencial para melhor compreender o romance machadiano. Em alguns trechos, o autor analisa a obra de Machado de Assis através de 31 CANDIDO, Literatura e sociedade, p. 24. Em 1883, no volume Folhas de outono, Bernardo Guimarães deu publicidade a algumas composições de seu falecido pai. 33 GUIMARÃES, Bernardo. ―Á memoria de João Joaquim da Silva Guimarães, no anniversario de sua morte (24 de junho)‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 35, 09/07/1859, pp. 3-4. AEL/CECULT; GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 15-16, 22, 24, 28 e 29. 34 GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 45-47. 32 19 seus contrastes com o romance alencariano. 35 Assim também procedeu Gilda de Mello e Souza. Em artigo, cujo objetivo foi ―expor […] como reagiram em face da vestimenta de seus personagens três dos mais significativos romancistas do século XIX‖ (Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis), a estudiosa da literatura destacou: ―espero que o confronto auxilie o leitor a penetrar mais intimamente a personalidade de cada um‖.36 Trataremos os escritos de outros literatos numa dupla perspectiva: como fontes históricas, produções capazes de fornecer informações sobre o contexto literário-emancipacionista; e, ao mesmo tempo, como referencial que facilitará nossa compreensão da obra e perspectiva de Bernardo Guimarães. Em nossa análise, levaremos em consideração a importância das personagens, suas caracterizações e ações para se compreender um enredo cujas personagens estão relacionadas. Enfim, temos em conta que a personagem ―é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna‖. 37 Conforme Antonio Candido, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos nestas, pensamos simultâneamente nas personagens na vida que vivem, nos problemas em que enredam, na linha do seu destino – traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente. O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.38 Compreendendo as personagens, suas ações e os significados de suas caracterizações, julgamos possível melhor compreender a mensagem e a visão de mundo explícitas num romance. No mundo fictício, as personagens ―são mais nítidas, mais conscientes, em contorno definido, – ao contrário do caos da vida – pois há nelas uma lógica preestabelecida pelo autor, que as torna paradigmas e eficazes‖. Conforme Antonio Candido, esse efeito decorre do fato de que, diferente das pessoas reais (sempre percebidas de maneira fragmentária), a personagem é exposta por completo ―ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura 35 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. 36 SOUZA, Gilda de Mello e. A idéia e o figurado. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2005, p. 73. 37 CANDIDO, Antonio. ―A personagem do romance‖. In: CANDIDO, Antonio et alii. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 53-54 38 Ibidem, pp. 53-54. Grifo nosso. 20 elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro‖. A personagem é um ser formado por fragmentos, elementos essenciais que possibilitam conhecê-la, no entanto o contexto de sua vida fictícia também é restrito, sendo assim, temos uma idéia por completo desses seres que habitam o mundo da ficção:39 as personagens, ao falarem, revelam-se de um modo bem mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou procuram disfarçar a sua opinião verdadeira. O próprio disfarce costuma patentear o seu cunho de disfarce. Esta ―franqueza‖ quase total da fala e essa transparência do próprio disfarce (pense-se no aparte teatral) são índices evidentes da onisciência ficcional.40 Conforme Anatol Rosenfeld, a limitação da obra ficcional é a sua maior conquista. Precisamente porque o número das orações é necessariamente limitado (enquanto as zonas indeterminadas passam quase despercebidas), as personagens adquirem um cunho definido e definitivo que a observação das pessoas reais, e mesmo o convívio com elas, dificilmente nos pode proporcionar a tal ponto. Precisamente porque se trata de orações e não de realidades, o autor pode realçar aspectos essenciais pela seleção dos aspectos que apresenta, dando às personagens um caráter mais nítido do que a observação da realidade costuma sugerir, levando-as, ademais, através de situações mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida. Precisamente pela limitação das orações, as personagens têm maior coerência do que as pessoas reais. 41 Enfim, na acepção de Rosenfeld – como também de Candido –, ―a ficção é o único lugar […] em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão‖. 42 Diante de tal consideração, fica implícito a importância da personagem na obra literária, ao que tudo indica o elemento mais importante da produção fictícia. Assim, julgamos que a análise destas é o meio mais eficaz para se compreender o contexto em que foi escrita, as expectativas, dilemas, anseios e projetos do literato, ou seja, explorar o vasto potencial que a obra literária pode oferecer à História Cultural. Ademais, tendo em conta a importância da personagem na obra romântica – e conseguintemente em nossa análise sobre o discurso antiescravista expresso em romances –, optamos por estruturar este estudo em três 39 Ibidem, pp. 58 e 67; ROSENFELD, Anatol. ―Literatura e personagem‖. In: CANDIDO, Antonio et alii. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 32 e 34. 40 ROSENFELD, ―Literatura e personagem‖, p. 29. 41 Ibidem, pp. 34-35. 42 Ibidem, p. 35. 21 capítulos, devido à tipologia social das personagens que serão foco de nossa análise, bem como aos conflitos em que estas personagens estiveram envolvidas. Mesmo sendo questões intimamente imbricadas, nos dois primeiros capítulos apreciaremos ainda o discurso emancipacionista do literato; no terceiro, contemplaremos também o perfil de liberto que ele julgava ideal para a sociedade. Apresentaremos, ainda, um epílogo no qual, tendo em conta os elementos expostos no terceiro capítulo, discutiremos as possíveis motivações para a caracterização de Isaura como escrava ―branca‖. Nos dois primeiros capítulos veremos como Bernardo Guimarães caracterizou personagens pertencentes à classe senhorial – a sociedade eminentemente branca. Apreciaremos como o literato expôs indivíduos que estiveram apegados à escravidão e aqueles que atuaram como emancipacionistas. Ao representar, em A escrava Isaura, duas personagens com pensamentos divergentes em torno da escravidão, nosso literato projetou um conflito no qual o senhor emancipacionista (o herói romântico) era o protagonista, aquele que dava as características do desfecho da trama, e o escravista como antagonista (vilão). Conflito que no romance é vencido pelo emancipacionista que, ao contrário do escravista, é o ser racional (ao passo que movido também por nobres sentimentos). Ademais, atentamos para o fato de que no referido romance, a extinção da escravidão é tida como uma tarefa a ser exercida pela classe senhorial, a despeito de três anos antes de o autor escrever o romance (o que ocorreu no ano de 1874) já vigorar no Brasil uma lei que visava regular o processo de extinção da escravidão. Sugerimos que Bernardo Guimarães foi contrário à aplicação do dispositivo legal conhecido como Lei do Ventre-Livre. No último capítulo veremos, através dos conflitos entre escravos fugidos e capitães-do-mato, a sociedade eminentemente negra, mesmo que na caracterização do literato essas personagens sejam em sua maioria embranquecidas a exemplo de Isaura, um perfil de liberto defendido pelo literato. Neste conflito, ao contrário do que se pode imaginar, não existiu uma posição a priori para mocinhos e vilões. Em 1875, no romance A escrava Isaura, o literato depreciou a personagem que atuou na tentativa de capturar Isaura, uma escrava dócil e submissa. Em 1871, no entanto, o literato havia reivindicado ação enérgica contra escravos insurretos e quilombolas, caracterizando positivamente a personagem que atuou enquanto capitão-do-mato. Consideramos que, em suas obras, o literato apresentou o tipo de comportamento considerado adequado para o escravo ser digno da liberdade. Comportamento que estava relacionado ao reconhecimento da 22 autoridade senhorial. Enfim, o literato propõe o fim da escravidão com a devida manutenção da ordem e autoridade senhorial. As preocupações expressas na obra do literato estão muito relacionadas ao discurso antiescravista que não se configurava como homogêneo. No dizer de Sylvio Roméro, contemporâneo dos debates em torno da extinção da escravidão, existiam diferenças quanto ao ―methodo a empregar‖. 43 Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo, o discurso antiescravista foi manifestado de três formas no Brasil: emancipacionismo, imigracionismo e abolicionismo. Os partidários do emancipacionimo pregavam um processo lento e gradual para se extinguir a escravidão; ressalvavam a necessidade de ―preparar‖ o escravo para a vida em liberdade, visando essencialmente mantê-lo no trabalho agrícola. O discurso imigrantista projetava que o futuro do país deveria se dá através da formação de um mercado de trabalho livre composto por imigrantes europeus em substituição ao trabalhador africano, tido como social e biologicamente inferior. E, por fim, os abolicionistas que, conforme a autora, ocorreu no Brasil especialmente após a decretação do Ventre-Livre (1871), cujo restrito séquito de militantes pregavam a delimitação de um prazo para ocorrer a extinção da escravidão. 44 A escrava Isaura é uma obra freqüentemente rotulada como abolicionista, a despeito do teor de sua trama não propor uma extinção nacional – e datada – para o fim da escravidão. Ao contrário, no romance é defendida uma solução senhorial – através da concessão de alforrias – para se extinguir o regime servil. Tal rótulo, talvez, esteja relacionado a pouca diferenciação – tanto da época, quanto do discurso historiográfico – entre emancipacionistas e abolicionistas. De fato, em muitos casos, as diferenças eram bastante sutis. Conforme Azevedo, ―não se pode dizer que os abolicionistas se distinguissem essencialmente dos emancipacionistas, a não ser que, enquanto para estes bastava a lenta extinção do cativeiro, mediante a libertação do ventre escravo, aqueles pretendiam ainda um prazo fatal para este término‖. 45 Por vezes, a diferenciação no discurso contra a escravidão era marcado pelas adjetivações de ―intransigentes‖ e/ou 43 ROMÉRO, Sylvio. ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖. Revista Brazileira, ano 2, tomo 7, janeiro de 1881. Rio de Janeiro: N. Midosi, Editor, 1881, p. 192. Biblioteca Pública do Estado da Bahia (doravante BPEB), Periódicos Raros. 44 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2004, pp. 27-90; também sobre a diferenciação entre abolicionismo e emancipacionismo ver: PEREIRA, Josenildo de Jesus. ―As representações da escravidão na imprensa jornalística do Maranhão da década de 1880‖. Tese de Doutorado: FFLCH/USP, 2006, pp. 136-137, 142 e 150-151. 45 Ibidem, p. 76. 23 ―moderados‖. Nas considerações de Sylvio Roméro, quando ainda vivenciava debates em torno da questão da ―emancipação dos escravos‖, Trez são as feições mais pronunciadas destes varios matizes da opinião [antiescravista]: abolicionistas intransigentes e imediatos; sectários do statu quo creado pela lei de 28 de setembro, e abolicionistas moderados, que desejavam medidas que debellem mais ou menos lentamente o mal, ou marcam um prazo fixo para a sua extirpação. 46 Eventualmente ao nos referirmos as considerações de outros pesquisadores, trataremos o discurso emancipacionista como ―abolicionista‖, buscando preservar a análise por outros realizadas. O trecho, de autoria de Sylvio Roméro, mencionado acima, é um exemplo da pouca diferenciação, ocorrida na época entre os matizes do discurso antiescravista. Mesmo compreendendo que existiam ―grupos que se degladiam‖ em torno da extinção da escravidão, Roméro rotulou dois dos três matizes por ele mencionados como abolicionistas diferenciando-as apenas pela adjetivação de intransigentes e imediatos – que compreendemos propriamente como abolicionistas – e abolicionistas moderados, aqui tratados como emancipacionistas. 47 Aliás, houve quem, participando dos debates em torno da emancipação, fez questão de destacar sua opção antiescravista: ―não sou o que alguem pensa, um abolicionista a todo transe‖; ―não quero […] a abolição, a manumissão inoportuna e não refletida; ―sou abolicionista, mas moderado‖, destacou, no dia cinco de julho de 1869, o deputado Perdigão Malheiro, em sessão que discutia um projeto de Lei que visava proibir a venda de escravos em leilão.48 De todo modo, o discurso antiescravista era essencialmente dirigido à classe senhorial. Sejam os discursos políticos apresentados na tribuna parlamentar, nos panfletos ou na obra literária o alvo era um só, sensibilizar a classe senhorial para a necessidade da extinção da escravidão. O que diferenciava esses três suportes do discurso era o caráter mais explícito que, por sua própria natureza, os dois primeiros apresentavam em relação à literatura. De modo geral, de maneira direta ou indireta, os interlocutores do discurso antiescravista eram os senhores. O discurso emancipacionista, conforme Pereira, tinha o objetivo de ―chamar atenção das classes dominantes para a necessidade de sua adequação 46 ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 194. Grifo do original. Ibidem, p. 194. 48 Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: primeiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1869. Tomo 3. Rio de Janeiro: Typografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1869, pp. 52, 56 e 57. BPEB, Periódicos Raros 47 24 às exigências estabelecidas pelas lutas dos escravos, pelo abolicionismo e o movimento do capital Industrial em sua expansão‖.49 É importante destacarmos ainda, que o discurso emancipacionista muitas vezes foi posto em oposição ao abolicionista, tido, em alguns casos, como perturbador da ordem e prejudicial à segurança da família e da moral senhorial: ―uma propaganda imprudente, por todos os lados ataca a nossa propriedade, e o que é mais – a nossa vida‖. Assim, no discurso emancipacionista procurava-se ―dispertar a lavoura [os senhores] á consciência do perigo que a ameça‖. Implícita ou explicitamente, reivindicava que ―a lavoura seja vigilante e unida, oppondo aos projectos dos seus inimigos [abolicionistas] uma contrapropaganda activa e vigorosa‖, buscando evitar a ocorrência dos ―perniciosos fructos‖ da propaganda abolicionista.50 Não sendo o discurso antiescravista homogêneo, tampouco era a sua vertente emancipacionista. A observar na literatura, era diverso tanto em estratégias de convencimento (como veremos no início do primeiro capítulo) quanto em sua proposição. Houve literatos-emancipacionistas que defenderam o controle do Estado (através da lei do Ventre-Livre) na realização da emancipação; e outros como Bernardo Guimarães, que reivindicavam uma emancipação conduzida pela classe senhorial. Empreendimento que seria realizado pela iniciativa senhorial em conceder alforrias. Enfim, o discurso emancipacionista que apresentaremos ao nosso leitor é apenas uma parte do discurso antiescravista, não podendo ser generalizado, mesmo existindo muitos indivíduos que pensaram e propuseram o mesmo que nosso literato. Outros elementos, para além da eventual pouca diferenciação entre abolicionismo e emancipacionismo, podem ter influenciado na criação de uma imagem ou memória do romance A escrava Isaura como obra abolicionista. Em primeiro lugar, Bernardo Guimarães é ainda muito pouco conhecido na historiografia e na crítica literária. Conforme Irineu Eduardo Jones Corrêa, Os estudos sobre a obra bernardina permanecem relativamente raros. Num catálogo editado por ocasião do centenário de sua morte, em 1984, estão arrolados apenas 25 títulos de ensaios e trabalhos sobre o escritor e 49 PEREIRA, ―As representações da escravidão‖, p. 140. Tal proposição foi exposta em periódicos da corte e de São Paulo e copiadas num jornal emancipacionista da cidade de Santo Amaro, na província da Bahia. Cf. ―Scenas do abolicionistmo‖. Echo Sant’amarense, ano 2, n. 154, Santo Amaro, BA, 11/01/1883, p. 1; ―A propaganda abolicionista‖. Echo Sant’amarense, ano 2, n. 161, Santo Amaro, BA, 19/01/1883, p. 1. BPEB, Periódicos Raros. 50 25 sua obra. Na biografia do escritor, preparada por Basílio de Magalhães, estão indicadas 60 obras de referência direta a ele. À guisa de comparação, um catálogo comemorativo dos 150 anos do nascimento de Castro Alves relaciona mais de 300 trabalhos sobre o poeta baiano. 51 Em segundo lugar, temos que considerar ainda o caráter político da caracterização do referido romance como abolicionista e os exageros quanto à sua contribuição para a extinção do regime servil. Questões que indicam que a abolição foi tarefa de indivíduos ―brancos‖, ―cultos‖ e liberais em detrimento dos escravizados que de diversas maneiras manifestaram seus descontentamento com a escravidão. Mesmo de forma não intencional, alguns – poucos – pesquisadores contribuem (ou contribuíram) para perpetuar tal concepção. José Armelim Bernardo Guimarães, neto e biografo do literato, por exemplo, exagerou quase afirmando que houve certa coragem ao criticar a escravidão em 1875, indicando implicitamente que seu avô foi um pioneiro em plena vigência do regime servil. 52 Na análise de Corrêa, Bernardo Guimarães foi um indivíduo que, desde quando estudante em São Paulo, atuou em ―favor dos menos favorecidos e das causas impossíveis‖. Índole do literato que, para ele, são ―confirmadas no repúdio ao escravismo‖, citando como exemplo obras como A escrava Isaura, Rozaura, a engeitada e o poema ―À sepultura de um escravo‖.53 Tipos de exposições que colocam o literato como alguém que escreveu e atou contra o poder estabelecido, notadamente o dos senhores de escravos. Finalizando estas palavras iniciais, ao analisarmos a obra de nosso literato, não podemos desconsiderar seus aprendizados com a crítica literária como a questão das descrições das paisagens e contextos. Em sua nota ―ao leitor‖ do romance O indio Affonso, datada de 28 de fevereiro de 1873, sugeriu que suas histórias tinham por base narrativas que ouvia nos lugares por que passava. 54 Ademais, indicou que buscava retratar fielmente os lugares onde passavam suas narrativas. Conforme o próprio nos descreveu, A descripção dos logares tambem é feita ao natural, pois os percorri e observei mais de uma vez. Com o judicioso e illustrado crítico o Sr. Dr. J. C. Fernandes Pinheiro, entende que a pintura exacta, viva e bem traçada dos logares deve constituir um dos mais importantes empenhos do 51 CORRÊA, Irineu Eduardo Jones. ―Ficções do humor e a idéia de ironia em Bernardo Guimarães‖. Terceira Margem, Rio de Janeiro, ano VIII, n. 9, 2003, p. 35. 52 GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura. 53 CORRÊA, Irineu Eduardo Jones. ―Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno: a floresta enfeitiçada e os corpos da luxúria no romantismo‖. Tese de Doutorado: FL/UFRJ, 2006, pp. 69-70. 54 GUIMARÃES, Bernardo. O indio Affonso. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro Editor, 1873, p. 8. 26 romancista brasileiro, que assim prestará um importante serviço tornando mais conhecida a tão ignorada topografia dêste vasto e bello paiz. 55 Foi compreendendo ―seu‖ compromisso para tornar mais conhecida a topografia do Brasil que o literato contava histórias dos locais nos quais viveu ou tomou notícia: Por isso faço sempre passar a acção dos meus romances em logares que me são conhecidos, ou pelo menos de que tenho as mais exactas e minuciosas informações, e me esforço por dar ás descripções locaes um traçado e colorido o mais exacto e preciso, o menos vago que me é possível. 56 Enfim, o literato julgava conhecer o contexto dos locais descritos em suas histórias. Com feito, elas ocorrem na maioria dos casos nas províncias de Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, nas quais o literato viveu em algum momento de sua ―vida errante, inquieta e agitada…‖.57 Tais ensinamentos da crítica literária, mesmo que não tenham se configurado como realidade efetiva na obra do literato, devem ser encarados como elementos que podem auxiliar na interpretação de sua obra enquanto objetivo explicitamente declarado por ele. 55 Ibidem, p. 8. Ibidem, p. 9. 57 GUIMARÃES, Bernardo. Poesias, 1865 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959), p. 3. As palavras são do próprio literato no prólogo do referido volume. 56 A ESCRAVA ISAURA E O EMBATE ENTRE ESCRAVISTAS E EMANCIPACIONISTAS: AS REPRESENTAÇÕES SENHORIAIS NO ROMANCE BERNARDINO Literatura e estratégias emancipacionistas No restrito círculo do cânone literário das décadas de 1860 a 1880, os emancipacionistas buscaram convencer o público leitor – considerado restrito por muitos homens de letras diante dos esforços que eles julgavam empregar – para a ―necessidade‖ da emancipação servindo-se de diferentes estratégias. Apelava-se para a caridade quanto aos sofrimentos dos cativos e/ou quanto à possibilidade destes agirem violentamente, como recurso para justificar a necessidade da extinção da escravidão.1 Bernardo Guimarães, no romance A escrava Isaura, no entanto, serviu-se de outra estratégia, a saber, ressaltar a inviabilidade econômica da escravidão, destacando também que a condução da emancipação era favorável à permanência da autoridade moral da classe senhorial. Não ignorou, no entanto as agruras da escravidão representadas na vida da escrava Isaura. Enfatizar os sofrimentos do escravo pode ter sido um recurso direcionado às mulheres – brancas e de elite – que eram consideradas detentoras do amor e da caridade: ―a caridade pede a vós, que sois a caridade‖. 2 Concepção que foi exposta não somente na literatura. Na edição de 14 de março de 1868, o cronista da revista A vida fluminense ao mencionar o aniversário da Imperatriz, destacou: ―E‘ hoje um dia de verdadeira festa nacional!/ E‘ anniversario natalicio de Sua Magestade a Imperatriz, o anjo da guarda dos 1 Entre os literatos que apelaram para os sofrimentos do escravo podemos citar Castro Alves. Cf. ALVES, Castro. A cachoeira de Paulo Afonso, 1876 (In: Obra completa. Org. Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997); Idem. Os escravos. Ed. De centenário, fac-similar da príncipe. São Paulo: GRD, 1983. Para os autores que buscaram convencer seus leitores para a necessidade da extinção da escravidão apelando para a rememoração da violência o principal expoente foi Joaquim Manuel de Macedo. MACEDO, Joaquim Manuel de. As vítimas-algozes: quadros da escravidão. 2ª Ed. São Paulo: Zouk, 2005 [1869]. Interessante artigo sobre as representações do escravo na obra de Macedo foi produzido por Sharyse Amaral. Cf. AMARAL, Sharyse. ―Emancipacionismo e as representações do escravo na obra de Joaquim Manuel de Macedo‖. Afro-Ásia, 35, 2007, pp. 199-236. Castro Alves também recorreu a um discurso que enfatizava a violência escrava também em A cachoeira de Paulo Afonso. José de Alencar também se serviu de tal estratégia para defender a extinção da escravidão, em 1857, na comédia intitulada O demônio familiar. Cf. ALENCAR, José de. O demônio familiar: comédia em 4 atos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003 [1857]. Conforme Josenildo de Jesus Pereira, a resistência escrava ficou marcada na memória de muitas gerações das classes dominantes sendo relembradas no contexto emancipacionista. Cf. PEREIRA, ―As representações da escravidão‖, p. 81. 2 Tal questão é explicitada, em abril de 1871, por Castro Alves que explicita a idéia de que sua luta antiescravista era direcionada às mulheres. ALVES, Castro. ―Carta às senhoras baianas‖, abr., 1871. In: Obra completa. Org. Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Editora Nova Ag uilar, 1997, pp. 771-772. 28 que soffrem, o symbolo da caridade e da virtude‖.3 Os senhores, por não ―encarnarem‖ a caridade cristã, talvez não fossem afeitos a compreender tal apelo. 4 Talvez outras estratégias fossem mais hábeis a convencer este público. Os senhores, para muitos literatos, talvez fossem como os feitores e os capitães-do-mato – a exemplo da personagem Martinho que atuou na tentativa de capturar Isaura – que nenhum sentimento lhes tocava quanto à sorte dos escravos de maneira semelhante à exposta por Castro Alves: Pois não vês que [nós, os escravos] morremos todo dia, Debaixo do chicote, que não cansa? Enquanto do assassino a fronte calma Não revela um remorso de sua alma?5 Tendo publicado seu romance em 1875, momento no qual os literatos ampliavam suas preocupações a respeito do público leitor, Bernardo Guimarães – ao utilizar de duas estratégias para convencer seus leitores (apelou para a sensibilidade ―feminina‖ e os interesses senhoriais) – tentou ampliar a base dos leitores que poderiam ser convencidos através de sua obra. Conforme Hélio de Seixas Guimarães, a partir da década de 1870 – especialmente após a divulgação dos dados do censo – houve uma maior preocupação com o público leitor por parte dos literatos.6 Os dados do censo de 1872, certamente um elemento que auxiliou na formação da visão dos literatos, indicou certa predominância de indivíduos não alfabetizados no império. 7 A despeito de uma ampliação no mercado de livros na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, 8 tais considerações sobre o pouco potencial de leitura no império foi explicitado por críticos e literatos de finais do século XIX e inicio do século seguinte. Machado de Assis, em 1866, exercendo a função de crítico, destacou: ―quando aparece entre nós […] o editor não pode oferecer vantagens aos poetas, pela simples razão de que a venda do livro é problemática e difícil‖; ―há um circulo limitado de leitores‖, 3 ―A vida fluminense‖. A vida fluminense, ano 1, n. 11, Rio de Janeiro, 14/03/1868, p. 124. Grifo nosso. Biblioteca Nacional (doravante BN), Periódicos Digitalizados. 4 Questão, como a anterior, também exposta por Castro Alves em sua ―Carta às senhoras baianas‖. 5 ALVES, A cachoeira de Paulo Afonso, p. 347. 6 GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial; Editora da Universidade de São Paulo, 2004. 7 PUNTONI, Pedro (coord.). Os recenseamentos gerais do Brasil no século XIX: 1872 e 1890. São Paulo: CEBRAP, 2004 (CD-ROM). 8 EL FAR, Alessandra. ―Livros para todos os bolsos e gostos‖. In: ABREU, Márcia & SCHAPOCHNIK, Nelson (orgs.). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas, SP: Mercado das Letras, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: FAPESP, 2005, p. 329. 29 comentou afirmando que havia uma ―regra geral‖: ―os livros aparecem e morrem nas livrarias‖.9 Em 1903, o historiador da literatura José Veríssimo observou, a mulher brasileira, mesmo aqui no Rio de Janeiro, que se presume a mais adeantada e culta cidade do paiz, salvo excepções, nada lê. E o homem brasileiro, o burocrata, o capitalista, o negociante, o indrustrial, o político, o mundano, e até o ―doutor‖, accompanham-n‘a de perto.10 Pelo menos desde 1865, Bernardo Guimarães explicitou sua preocupação com o público leitor fosse dos periódicos ou da literatura. Em ―Prólogo‖ ao seu volume de Poesias escreveu o seguinte sobre o destino de muitos de seus escritos, que se perderam: ―ora são artigos de periódicos, literários, que se imprimem depois de muitas fadigas e despesas, e depois se distribuem alguns raros exemplares, indo o resto para as tavernas servir de embrulho‖. 11 Logo no primeiro parágrafo do referido prólogo, o literato menciona a saga de Camões, que tendo naufragado, ―salvara os seus Lusíadas, trazendo-os em uma das mãos em cima das ondas‖. Todavia ironicamente, destacou que, de sua parte, nenhum empenho faria para salvar sua obra, pois, ―na época que atravessamos o papel está sujeito a tôda sorte de avarias‖: Eu não arriscaria nem um fio de cabelo de minha cabeça, – a não ser algum desses que começam a branquejar-me, – para salvar êsse potpourri que aí vai, nem das ondas, nem mesmo das traças e dos ratos, nem de outros mil perigos a que estão sujeitos todos os papeis dêste mundo. 12 Talvez, o literato, diante da imagem que fez sobre a realidade da leitura no Brasil, do empenho em ―promover pelos meios á nosso alcance a cultura das letras em nosso paiz‖, 13 e dos dados reais da instrução no Império, tenha traçado uma interpretação que o guiou na forma de se dirigir ao público leitor. Neste período, conforme Alessandra El Far, notava-se um crescente mercado de ―livros populares‖ – direcionados à crescente camada urbana alfabetizada e assalariada – que existia para além dos círculos da rua do Ouvidor – 9 ASSIS, Machado de. ―Propósito‖, 09/01/1866. In: O ideal do crítico. Org. Miguel Sanches Neto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 48. 10 VERISSIMO, J. ―Leitura de livros‖. Almanaque Brasileiro Garnier para o anno de 1904. Rio de Janeiro, ano II, 1903, p. 202. 11 GUIMARÃES, Poesias, p. 5. 12 Ibidem, p. 3. 13 GUIMARÃES, Bernardo. ―Revista Litteraria‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 54, 01/10/1859, p. 2. AEL/CECULT. 30 onde, certamente, circulavam as publicações de nosso literato – e suas publicações melhor encadernadas e conseguintemente de maior valor monetário de produção e venda: Tanto a Garnier quanto a Laemmert situavam-se no mesmo quarteirão da Rua do Ouvidor. Quem por elas passasse, veria fileiras do chão ao alto de exemplares cuidadosamente encadernados e, dependendo do horário, entusiasmadas confrarias literárias que reuniam conhecidos homens de letras. Apesar do burburinho, o comércio livreiro da segunda metade do século XIX estava longe de concentrar-se em uma das ruas mais famosas da cidade. Nas suas adjacências, vários outros estabelecimentos do mesmo teor divulgavam, cada um a seu modo, suas ofertas, especialidades e raridades bibliográficas. Localizadas nas ruas da Quitanda, Uruguaiana, Sete de Setembro, S. José, da Assembléia, do Carmo, do Rosário e do Ourives, esses comerciantes, sabendo que os volumes de acabamento requintado tinham endereço certo, apostavam em um novo tipo de negócio, o livro barato, que ganhava um número cada vez maior de adeptos. 14 Este crescente mercado de livros e conseqüentemente do público leitor não incidia sobre os leitores de Bernardo Guimarães cujas obras eram publicadas por Baptiste Louis Garnier, editor francês estabelecido no Brasil (na rua do Ouvidor na capital do Império), que geralmente imprimia seus livros em Paris direcionando seu catálogo a um público leitor pretensamente mais exigente. Nesse sentido, é significativo o empenho do literato emancipacionista para aumentar a base de pessoas – essencialmente ligadas aos grupos senhoriais – que poderiam ser convencidas através da leitura de sua obra de teor antiescravista. Veremos que ao mesmo passo em que buscava sensibilizar o leitor para a situação de Isaura, produziu um discurso em que enfatizava a manutenção da escravidão como um manancial de problemas para a família senhorial, questão que também esteve no cerne da preocupação de outros literatos. José de Alencar, por exemplo, em 1857, numa comédia intitulada O demônio familiar, apresentou ao público os perigos – principalmente morais – em manter o escravo próximo à classe senhorial. Trata-se da história de Pedro, um jovem escravo – ―O demônio familiar‖ – que, buscando atingir o objetivo de se tornar cocheiro, mente e inventa artimanhas que poderiam corromper a família senhorial. A solução apresentada ao final da comédia: libertar os escravos – como uma iniciativa senhorial –, evitando a continuação dos perigos. 15 Joaquim Manuel de Macedo, em 1869, em seus ―quadros da escravidão‖, procurou mostrar aos senhores 14 15 EL FAR, ―Livros para todos os bolsos e gostos‖, pp. 329-330. ALENCAR, O demônio familiar. 31 os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravo, inimigo natural e rancoroso do seu senhor, os miasmas, deixem-nos dizer assim, a sífilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, e a sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra dos seus incônscios opressores. É o quadro do mal que o escravo faz de assentado propósito ou às vezes involuntária e irrefletidamente ao senhor.16 Houve literatos que foram explícitos em afirmar que iriam recorrer a um discurso que enfatizava a escravidão como problema para a família senhorial, a despeito de entender que poderia existir outros caminhos na empreitada antiescravista. Na concepção de Macedo, existiam dois caminhos para convencer seus leitores – pertencentes à classe senhorial – a respeito da necessidade da extinção da escravidão: Um desses caminhos se estende por entre as misérias tristíssimas, e os incalculáveis sofrimentos do escravo, por essa vida de amarguras sem termo, de árido deserto sem um oásis, de inferno perpétuo no mundo negro da escravidão. É o quadro do mal que o senhor, ainda sem querer, faz ao escravo. 17 É significativo, no entanto, que o caminho adotado por Joaquim Manuel de Macedo – ―é o que mais convém ao nosso empenho‖ – tenha sido aquele que destacava a escravidão como um elemento prejudicial à classe senhorial, afinal era este o público leitor que ele almejava convencer. Nem mesmo Castro Alves, que na maioria de suas composições apelava para a ―sensibilidade‖ feminina da família senhorial, foi indiferente a este expediente para convencer seu público, a exemplo do exposto na poesia ―Amante‖, publicada em A cachoeira de Paulo Afonso: ―Por que volves os olhos desvairados? Por que tremmes assim, frágil criança? Est‘alma é o braço, o braço é ferro, E o ferro sabe o trilho da vingança. ―Se a justiça da terra te abandona, Se a justiça do céu de ti sés esquece, A justiça do escravo está na força… E quem tem um punhal nada carece!… 16 17 MACEDO, As vítimas-algozes, p. 10. Ibidem, p. 10. 32 Ou em ―Sangue de africano‖, Aqui sombrio, fero, delirante Lucas ergueu-se como o tigre bravo… Era a estátua terrível da vingança… O selvagem surgiu… sumiu-se o escravo. 18 Enfim, diante dos quadros da literatura antiescravista, fica patente que a escravidão deveria ser extinta em proveito da própria classe senhorial, evitando os problemas que sua perpetuação continuaria a provocar. Questão explicitada ainda em 1859, no período A actualidade que, ao apresentar a notícia da tentativa de suicídio de um escravo que estava para ser capturado, mencionou sua história buscando convencer os escravistas para o perigo do regime. Segundo noticiaram, chamava-se Marcelinho, era originário das províncias do norte e se encontrava fugido ―ha cerca de um anno, depois de ter assassinado seu senhor […] receiando horrivel vingança, em consequencia de um inqualificavel abuso praticado por elle réo na pessoa de uma sua senhora moça ainda menor‖. Ao comunicar a notícia, não se esqueceram de transmitir um ensinamento que tinha um interlocutor declarado: ―mirem-se neste espelho os apologistas da escravidão‖. 19 Bernardo Guimarães não foi indiferente a este empenho, tendo optado por destacar especialmente as vantagens econômicas da emancipação. É provável que nosso literato tenha se servido dos argumentos jurídicos da ―Economia Política‖, disciplina que, como outros bacharéis, cursou no quinto ano do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Academia Paulista de meados do século XIX.20 Provavelmente Bernardo Guimarães julgou ser este o melhor meio para convencer a classe senhorial. Sabemos, no entanto, que os senhores não agiam essencialmente movidos por interesses econômicos; por isso mesmo, é significativo seu empenho e o de outros indivíduos que buscaram extinguir a escravidão com o argumento da ―razão‖. Conforme Antonio Penalves Rocha, a questão da inviabilidade econômica da escravidão foi abordada desde os primeiros escritos antiescravistas publicados no Brasil da primeira metade do século XIX, cujos autores recorriam a economistas europeus como fundamentação. Rocha, ao tratar dos autores tidos por pioneiros na crítica a escravidão 18 ALVES, A cachoeira de Paulo Afonso, pp. 343 e 344. ―Noticias diversas‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 58, 31/10/1859, p. 2. AEL/CECULT. 20 ADORNO, Os Aprendizes do Poder, p. 96. 19 33 (João Severiano Maciel da Costa, Antonio José Gonçalves Chaves, José Bonifácio de Andrada e Silva e José da Silva Lisboa), destacou um elemento que podemos aplicar a Bernardo Guimarães e outros de sua geração que, como os pioneiros, serviram-se dos princípios da Economia Política: ―a adesão dos brasileiros à crítica econômica da escravidão liga-se ao fato de que ela era reconhecida como única condenação propriamente cientifica desta instituição‖.21 Não obstante, a Economia Política não foi unanimidade. Sylvio Roméro, em texto datado de 20 de setembro de 1873, julgou não ter motivos para acreditar no caráter científico das considerações dos economistas, todavia em sua própria observação fica implícito que existiram aqueles que assim julgavam; o próprio Roméro, em 1881, quase oito anos depois de suas criticas, escreveu que ―a economia política, a sciencia do trabalho, é que deve procurar a solução do debate‖ sobre a emancipação dos escravos; nesta ocasião, considerou que ―só a sciencia econômica poderá fornecer os materiaes para a solução almejada‖.22 Em 1873, no entanto, aos moldes da propalada neutralidade científica positiva, Roméro rejeitava a possibilidade de uma ―ciência‖ cujo resultado fosse um conselho visando uma transformação da realidade. Para ele, ―o economista é um astrônomo que pretende fazer os astros de seu firmamento. Não se contenta com a descripção, a analyse e o estudo; como os cegos da alchimia, elle intenta fazer o ouro‖. O economista agia de forma contrária à do ―positivista‖ – termo utilizado por Roméro – que ―como o philosopho não pretendem crear o objecto que estudam‖. 23 No ápice da crítica de Roméro à Economia Política encontramos o objetivo daqueles que buscaram convencer a classe senhorial utilizando o argumento econômico, a saber, ―gerar e multiplicar a riqueza‖ que, na concepção dos emancipacionistas, só seria possível com a extinção do trabalho escravo e a adoção do trabalho livre. Nesse sentido, os objetivos da Economia Política caíram ―como uma luva‖ no discurso de alguns emancipacionistas. Tal ciência, na interpretação de um contemporâneo dos debates em torno da emancipação, tinha um ―ponto de vista‖ que considerava ―o homem como 21 ROCHA, Antonio Penalves. ―Idéias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira‖. Revista Brasileira de História, v. 20, n. 39, 2000, pp. 43-79. 22 ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, pp. 196 e 199. Segundo Lilia Moritz Schwarcz, em 1875, Romero defendeu tese de doutoramento sobre a Economia Política. Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1871-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 148. 23 ROMERO, Sylvio. ―Se a economia politica é uma sciencia‖, 20/09/1873. Estudos de Litteratura Contemporanea: paginas de critica. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert & C., 1885, pp. 911. 34 instrumento de producção‖, que ―só faz-se cabedal da sua intelligencia e das suas faculdades moraes e sentimentos individuaes ou sociaes, subordinando sempre essas considerações ao ponto de vista economico‖. 24 Nesse tipo de interpretação, não obstante, inclusive os aspectos morais relacionavam-se ao bom proveito da economia, como indicou o panfletista Luis Barbosa da Silva, em sua considerações sobre as vantagens da extinção do ―elemento servil‖. Para ele, O economista abstrae-se da apreciação puramente moral do homem e só encherga-lhe nas qualidades ou defeitos da alma a influencia que possam ter nas relações economicas da sociedade, e este é o único nexo de relação que têm os estudos moraes com os economicos. Mas como a verdade é uma e indivisivel, as observações dos economistas, quando bem encaminhadas, são sempre a prova material das verdades moraes, a affirmação tangível e visivel do direito e da rasão. 25 Provavelmente, na concepção de Bernardo Guimarães, somente apresentar o sofrimento do escravo não despertasse a preocupação e o interesse da classe senhorial. Possivelmente, por isso, ao lado dos sofrimentos da escrava Isaura, o literato destacou as vantagens sociais, morais e econômicas da emancipação, da adoção do trabalho livre, para a classe senhorial, ao contrário de outros que expuseram que o grande benefício da emancipação era livrar o senhor dos perigos da vingança escrava. Joaquim Manuel de Macedo foi explícito em afirmar que iria recorrer a este expediente para despertar o interesse e a preocupação de senhores e seus familiares, por isso optou por destacar a vingança escrava que somente cessaria com a extinção da escravidão. Em sua mensagem introdutória aos leitores de As vítimas-algozes, destacou: o escravo que vamos expor a vossos olhos é o escravo de nossas casas e de nossas fazendas, o homem que nasceu homem, e que a escravidão tornou peste ou fera. Contar-vos-emos, pois, em pequenos e resumidos romances as histórias que vós sabeis, porque tendes sido testemunhas. Se [senhor] pensardes bem nestas histórias, devereis banir a escravidão, para que elas não se reproduzam. Porque estas histórias veracíssimas foram de ontem, são de hoje, e serão de [a]manhã, e infinitamente, enquanto tiverdes escravos. 26 24 PARKER, Theodoro (pseudônimo). Elemento servil. Rio de Janeiro: Typ. da Rua da Ajuda, 1871, p. 19. Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo, doravante BB/USP. 25 Ibidem, pp. 19-20. 26 MACEDO, As vítimas-algozes, pp. 7-10. 35 A questão da ―vingança‖ escrava, esteve na mente de muitos indivíduos que estiveram envolvidos nos debates em torno da emancipação. Nesse período, entre os crimes mais notáveis ―contra a segurança individual‖, citados por autoridades, houve exemplos de ―assassinatos e scenas horrorosas contra senhores [que] se tem dado em toda a parte‖; sendo que ―a causa é commum, a escravidão‖, como destacou o jurista Perdigão Malheiro.27 Ou seja, a resistência ou ―vingança‖ escrava – para citarmos a linguagem macediana – chamava a atenção. Não sem razão, não poucos literatos colocaram a questão da vingança escrava em suas narrativas, e não as agruras da vida do escravo. Para muitos emancipacionistas, era preferível ressaltar a vingança escrava a destacar os ―pretensos‖ sofrimentos que viviam o escravo no Brasil. Americo Marques S. Rosa, em texto sobre ―A influência da escravatura sobre o desenvolvimento social e moral do Brasil‖, publicado em 1853 na província da Bahia, julgou não ser o melhor caminho apelar para a questão dos sofrimentos dos escravos. Sobre tal questão, enfatizou: Não copiaremos a historia da triste vida de um escravo, nem pintaremos o quadro hediondo das privações e injurias que padecem elles no Brasil, são cousas que ninguém ignora, fora inútil avival-as. E, demais, julgamos infructiferos os esforços d‘aquelles, que tentam propagar a abolição da escravatura, apresentando em relevos os horrores da escravidão. 28 Para ele tal atitude equivalia a ―despender em vão palavras e tempo‖, ao apelar para a ―generosidade de um povo affeito a escutar a sangue frio os gemidos de dor arrancados do coração do escravo, que se estoce sob os golpes do latego‖. Julgava que o ideal era ―fallar outra linguagem mais enérgica e convincente‖: ―mostrar com argumentos solidos e incontestáveis, que o atraso do Brasil procede do vergonhoso trafico de escravos‖.29 É provável que muitos indivíduos pró-emancipação tenham compreendido o tempo em que viveram de maneira semelhante a Luis Barbosa da Silva, político que foi filiado a Liga Progressista, uma agremiação composta por dissidentes liberais e 27 MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio historico-juridico-social (Parte 3ª: Africanos). Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1867, p. 135. 28 ROSA, Americo Marques S. ―A influência da escravatura sobre o desenvolvimento social e moral do Brasil‖. O Academico, n. 4, Bahia, ago., 1853, pp. 79-81. Centro de Digitalização da Universidade Federal da Bahia (doravante CEDIG), Jornais Diversos, R128 (1855-1870). 29 Ibidem, pp. 79-81. Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo, para os abolicionistas brasileiros a África era uma terra de vícios, miséria e ignorância que contaminava o Brasil através do tráfico de escravos. Cf. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, pp. 136-139. 36 conservadores, em oposição ao domínio do Partido Conservador. Para ele (sob o pseudônimo de Theodoro Parker), Perante a rasão a escravidão não se tem ainda revellado tão pouco em toda a sua hediondez. A sociedade brazilera ainda não tem a consciência clara do mal, que lhe vem da influencia deletéria da escravidão. 30 Provavelmente, por isso, os literatos tenham buscado demonstrar aos leitores as influências negativas da escravidão para a ―sociedade‖ – ―iluminar‖ a mente dos proprietários de escravos. Questão que provavelmente nosso literato entrou em contato em finais da década de 1850. Na edição de 31 de agosto de 1859 do jornal A actualidade, periódico que contou com Bernardo Guimarães em seu quadro de redatores, foram apresentados os ―Apontamentos sobre a necessidade de uma escola de agricultura theorica e pratica‖, nos quais o engenheiro agrônomo Caetano da Rocha Pacova destacou que um caminho que levaria à substituição do trabalho escravo pelo livre era demonstrar as vantagens deste último. Segundo ele, Logo que for resolvida a questão do trabalho livre, e que for praticamente demostrada sua superioridade ao forçado, perderá este sua razão de existencia. Uma ferramenta má é abandonada, quando dispomos de uma perfeita, e sabemos empregal-a.31 Julgamos provável que nosso literato tenha lido esta e outras considerações publicadas no referido periódico. Ao apelar para argumentos ―científicos‖ para convencer a classe senhorial, os emancipacionistas buscaram incutir na mente destes uma ―razão‖ – que não se encontrava suficientemente consagrada como gostariam. A respeito de um discurso em que se dizia que ―a causa da emancipação está ganha perante a philosophia e no mundo do sentimento‖, Luis Barbosa da Silva considerou ser coisa de ―observadores superficiaes‖: ―si estivessemos bem convencidos de que a escravidão é uma iniquidade barbara, mais degradante, como de facto é, para o senhor do que pra o proprio escravo, qual o homem de brio que, por um instante, possuisse um seu semelhante?‖.32 Por isso, ele, 30 PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 11. ―Apontamentos sobre a necessidade de uma escola de agricultura theorica e pratica, apresentados ao Exm. Sr. ministro do império por C. da R. Pacova‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 48, 31/08/1859, p. 2. AEL/CECULT. 32 PARKER (pseudônimo), Elemento servil, pp. 3-4. 31 37 como outros emancipacionistas, se empenharam em demonstrar as degradações de ordem moral e econômica provenientes do regime escravista. Na década de 1880, no entanto, mesmo com a existência de considerações ―científicas‖ sobre as desvantagens da escravidão, o discurso emancipacionista que apelava para o sentimento cristão quanto aos sofrimentos do escravo ainda possuía apelo. Em 1883, foi publicado o volume Os escravos de composições produzidas por Castro Alves, 33 poeta antiescravista – falecido em 1871 – que apelava para situação do escravo. Em 16 de novembro de 1883, estando em Londres, Joaquim Nabuco escrevia carta, na qual julgava importante a publicação de obras antiescravista, entre elas a de Castro Alves a quem ele teria conhecido e admirado.34 Nabuco compreendia a importância da propaganda para a causa que atuava e, para além, os elementos que lhe poderiam ser úteis – como os ―sofrimentos‖ dos escravos.35 Mucio Teixeira, em sua ―Biographia de Castro Alves‖, texto de abertura da primeira edição de Os escravos indicou que o apelo para a situação do escravizado tenha influenciado na iniciativa de publicar a obra do poeta baiano. Sobre a questão, seguindo os caminhos do biografado, escreveu: Foi então que Castro Alves lembrou-se de escrever um poema. O Assumpto preferido dá a medida exacta da sua personalidade. Os Escravos, essa raça, atada por seculos ao pôtro das maiores torturas, arrastando-se agrilhoada ao sol da nossa pátria; esses infelizes que gemem á sombra das nossas florestas, regando de lagrimas de sangue o sólo onde espalham as sementes productoras do ouro. 36 Enfim, aos menos para Joaquim Nabuco e um dos responsáveis pela publicação em 1883, a obra de Castro Alves ainda tinha razões para ser dada à publicidade. Assim como no mundo da ―razão‖ a escravidão também não estava condenada ―no mundo do sentimento‖, como asseverou, em 1871, Luis Barbosa da Silva. 37 Era então preciso auxiliar na condenação da escravidão através destes dois vieses. Questão que, em finais da década de 1860 e início da seguinte, esteve muito relacionada às discussões em torno da libertação 33 ALVES, Castro. Os escravos. Ed. de centenário, fac-similar da príncipe. São Paulo: GRD, 1983 [1883]. TEIXEIXA, Mucio. ―Biographia de Castro Alves‖, 07/09/1883. In: ALVES, Castro. Os escravos. Ed. de centenário, fac-similar da príncipe. São Paulo: GRD, 1983, p. XXXV. 35 Carta de Joaquim Nabuco a Domingos José Nogueira Jaguaribe, Londres, 16/11/1882. BN, Manuscritos, I-5,01,073. 36 TEIXEIRA, ―Biographia de Castro Alves‖, p. XXII. 37 PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 6. 34 38 do ventre que então era discutida no parlamento e, provavelmente, em muitos encontros de jovens da sociedade imperial. Conforme Emília Viotti da Costa, Para muitos jovens, que iniciavam sua carreira política e literária nesse período, a discussão em torno da Lei do Ventre Livre foi um batismo de fogo. Eles se identificaram com a causa da emancipação e das reformas e nos anos que se seguiram continuaram a lutar por elas.38 Bernardo Guimarães, que já contava com um pouco mais de quatro décadas e meia de vida, não foi indiferente ao debate que se agitou no parlamento ainda na década de 1860,39 período no qual o jovem Castro Alves produziu muitas de suas composições e quando Bernardo Guimarães atuou como jornalista no senado representando o Jornal do Comércio (1864-1865),40 quando o deputado mineiro Perdigão Malheiro já havia proposto o ―nascimento livre‖.41 O debate em torno da condição dos escravos esteve em pauta para muitos indivíduos pró-emancipação e, provavelmente, ainda possuía apelo. Não sem razão, esse foi também um recurso adotado por Bernardo Guimarães, em 1875, no romance A escrava Isaura.42 Deixemos, no entanto, este debate e passemos ao foco deste capítulo: as representações dos senhores no romance A escrava Isaura. Foco que se liga ao do próximo capítulo: a ―linguagem mais enérgica e convincente‖ direcionada aos senhores, que, nas palavras de Joaquim Nabuco, não eram afeitos a sensibilizarem-se com as condições em que viviam os escravos; para ele, ―a virtude perde-se ao contato dessa instituição: ela é a escola do crime, envenena o coração do senhor e do escravo, muda a caridade em palavra vã, desnatura a lei do mérito: é a sentina de todos os vícios‖. 43 Veremos como o narrador bernardino caracterizou como irracionais os indivíduos mais apegados ao regime escravista, pondo como exemplo uma personagem senhorial. 38 COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8ª Ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora UNESP. 2008, p. 57. Sobre os debates sobre a emancipação Cf. CHALHOUB, Machado de Assis, historiador, pp. 139-155; COSTA, A abolição, pp. 39 e 139-140. 40 Cf. ASSIS, Machado de. ―O velho senado‖, jun., 1898. In: Contos de Machado de Assis, v. 5 (política e escravidão). Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 153-155. 41 Conforme informações do próprio deputado, ao declarar-se contrário à aprovação do ―ventre livre‖, em 1871, ele já havia proposto tal medida em 1863. Cf. MALHEIRO, Perdigão. Discurso proferido na sessão da Camara Temporaria de 12 de Julho de 1871 sobre a proposta do governo para a reforma do Estado Servil. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C., 1871, p. 65. 42 GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. Biografia, introdução e notas por: M. Cavalcanti Proença. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Edições de Ouro), 1967 [1875]. 43 NABUCO, Joaquim. A escravidão, Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988 [1870], p. 31. 39 39 Diante da concepção que tinham sobre os senhores e dos meios que julgavam hábeis a convencê-los, muitos emancipacionistas serviram se de um discurso no qual buscavam destacar as vantagens que eles teriam com o fim da escravidão; no caso de Bernardo Guimarães, um discurso pautado nos termos ecléticos da ―Economia Política‖ que, conforme destacou, em 1867, o jurista Perdigão Malheiro, tem demonstrado que a escravidão obsta profundamente ao desenvolvimento da industria, á producção da riqueza publica e privada. Desde Adam Smith, J. B. Say e outros, até Rénouard, Chevalier, e demais distinctos pensadores, a sciencia econômica tem consagrado como axioma essa proposição. 44 Nesse tipo de discurso emancipacionista, a escravidão era um regime moralmente e economicamente prejudicial. Assim, destacava-se as vantagens monetárias do trabalho livre e, ainda, as falhas do regime servil neste aspecto. Questão que é implicitamente apresentada no artigo intitulado ―Greve de escravisados‖ de autoria de Raul do Valle, publicado na Revista Illustrada, em 22 de outubro de 1887. O autor apresentou um caso de fuga em massa destacando: ―esses homens, a que chamamos escravosi [sic] devem, na verdade, estar cançados [sic] de perseguições e violências‖, assim apelou para a caridade senhorial quanto ao tratamento dispensado ao escravo; e, posteriormente, destacou: ―a continuarem as coisas como vão, será preciso ter um soldado por detraz de cada escravo‖.45 Implicitamente, discutiu os custos morais e econômicos da manutenção do regime escravista, tônica já abordada por Bernardo Guimarães doze anos antes no romance A escrava Isaura;46 e, ainda antes, em 1871, por um panfletista que escreveu as seguintes palavras: ―a sociedade fica estacionaria, e a producção geral é quasi nulla a despeito da oppressão desenvolvida em immensa escala de uma parte da nação [brancos] contra a outra [negros]‖;47 ou, ainda, como observou outro contemporâneo do processo de discussão da libertação do ventre, para o qual a escravidão estava condenada ―pela economia politica, 44 MALHEIRO, A escravidão no Brasil (Parte 3ª: Africanos), pp. 135-136. VALLE, Raul do. ―Greve de escravisados‖. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 12, n. 468, 22/10/1887, p. 3. Grifo nosso. 46 Ao que tudo indica, tal concepção é pautada num raciocínio de base iluminista. Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, não considerou que alguns instrumentos de controle social fossem eficazes: ―tomai tudo, usurpai tudo e depois gastai o dinheiro a mancheias; erguei baterias de canhões; montai cadafalsos e rodas; promulgai leis e éditos; multiplicai os espiões, os soldados, os carrascos, as prisões, as cadeias; pobres homenzinhos, de que vos serve tudo isso? Não sereis mais bem servidos, nem menos roubados, nem menos enganados, nem mais absolutos‖. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 80. 47 PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 15. 45 40 qua[l] demonstra como o braço livre produz mais e é mais efficaz e industria [sic] do que o braço escravo‖.48 Tendo em mente a questão da inviabilidade econômica da escravidão, dado explicitado por muitos antiescravistas da época e tido como argumento científico, para Bernardo Guimarães o apego à escravidão somente poderia ocorrer com indivíduos que não gozavam de elevados dotes morais e intelectuais. Elemento que pode ser observado nas caracterizações que o narrador bernardino fez a respeito da classe senhorial. Escravistas versus emancipacionistas no enredo romântico bernardino No romance de Bernardo Guimarães, temos um embate – aparentemente secundário – entre senhores escravistas versus senhores emancipacionistas. Embate protagonizado pelas personagens Leôncio e Álvaro, provavelmente direcionado – de forma indireta,49 através das mulheres – aos senhores das regiões que ainda eram os bastiões da escravidão no império (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia) naquela década de crítica ao regime escravista, ou seja, àqueles que estiveram ―até a véspera‖ apegados à escravidão.50 Tal romance, foi inclusive – ao menos parcialmente – publicado em periódico baiano.51 Para além, ―apesar de o Rio de Janeiro ser a principal referência editorial do país, os livros ali impressos chegavam aos demais estados [províncias] por meio de encomendas‖. 52 Poderiam também chegar a outras províncias por iniciativa do próprio 48 MENEZES, Adolfo Bezerra de. A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a sem damno para a nação. Rio de Janeirro: Typ. Progresso, 1869, p. 5. BB/USP. 49 Daniela Magalhães da Silveira, em sua dissertação de mestrado, utilizando de discussões (cartas) publicadas em periódicos, destaca que os homens liam os periódicos literários e de moda – como o Jornal das Famílias – com o objetivo de vigiar a moralidade das leituras a qual aquelas eram expostas. Queixas houve de quem julgou algumas histórias (contos) imorais. Em anúncio à publicação de uma coletânea de poesias publicadas pela Livraria Garnier percebemos indícios da possibilidade de uma avaliação das leituras antes de ser entregue aos jovens e as moças: ―podemos asseverar que as mais a mais estremosa póde dar este livro a sua filha sem temer pela sua innocencia; os homens encarregados da educação da mocidade podem ter certeza de encontrar nesta collecção as poesias mais proprias para formar o coração, ornar o espirito e apurar o gosto de seus discípulos‖. Cf. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 51, 14/09/1859, p. 4. AEL/CECULT; SILVEIRA, Daniela Magalhães da. ―Contos de Machado de Assis: leituras e leitores do Jornal das Famílias‖. Dissertação de Mestrado: IFCH/UNICAMP, 2005. 50 Azevedo menciona que províncias como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais foram fortes bastiões da escravidão em seu contexto nacional de crise. Aqui podemos incluir a Bahia, onde especialmente no Recôncavo, os senhores ligados à produção açucareira estiveram ―até a véspera‖ apegados à escravidão. Cf. AZEVEDO, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, p. 184; BARICKMAN, B. J. ―Até a véspera: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo baiano (1850-1881)‖. Afro-Ásia, 21-22, 19981999, pp. 177-238. 51 Encontramos na edição do dia 23 de junho de 1881 da Gazeta da Tarde o capítulo XIX do romance. Cf. ―Folhetim: A Escrava Isaura por Bernardo Guimarães – XIX‖. Gazeta da Tarde, ano 2, n. 134, Bahia, 23/06/1881, p. 1. CEDIG, Vários Periódicos, R0046 (1870-1892). 52 EL FAR, Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 33. 41 editor que, por exemplo, em finais de 1874, havia enviado uma ―remessa de diversas obras por elle editadas‖ à Ouro Preto para os responsáveis pelo Diário de Minas.53 Vejamos uma das personagens rivais. Leôncio – senhor de Isaura –, ―era filho único do rico e magnífico comendador Almeida‖, proprietário de uma ―bela e suntuosa fazenda‖ na província fluminense (um dos conhecidos bastiões da escravidão). Era o único herdeiro de uma rica herança. 54 Desde a infância, já demonstrava algumas características de sua personalidade acentuadas com a (má) educação que sofreu: Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidades de seus pais amplos meios de corromper o coração e extraviar a inteligência. Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de colégio em colégio, e passou como gato por brasas por cima de todos os preparatórios, cujos exames todavia sempre salvara à sombra do patronato. Os mestres não se atreviam a dar ao nobre e munífico comendador o desgôsto de ver seu filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no primeiro ano enjoou-se daquela disciplina, e como seus pais não sabiam contrariá-lo, foi-se para Olinda a fim de freqüentar o curso jurídico. Ali depois de ter dissipado não pequena porção de fortuna paterna na satisfação de todos os seus vícios e loucas fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos, e ficou entendendo que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua inteligência, e saciar a sua sede de saber, em puros e abundantes mananciais. Assim escreveu ao pai, que deu-lhe crédito e o enviou a Paris.55 É provável que, seguindo uma concepção iluminista rousseauniana, Bernardo Guimarães tenha argumentado ter sido o processo de educação dado à personagem inadequado. Conforme Maria José de Queiros, nosso literato foi leitor de Rousseau, Chateubriand, Lamartine, Victor Hugo e Byron; 56 autores que, possivelmente, Bernardo Guimarães tenha entrado em contato na cidade de São Paulo; autores que entre 1847 e 1850 eram citados nas páginas dos Ensaios Litterarios, periódico editado por uma ―Associação de Acadêmicos‖ do curso de Ciências Sociais e Jurídicas, entre os quais Bernardo Guimarães.57 Em muitos aspectos de sua obra, o literato apresentou uma concepção pautada numa base de raciocínio iluminista filtrada pela realidade brasileira, 53 São mencionadas as seguintes obras de Jules Verne: Viagem e aventuras do capitão Hatteras, Uma cidade flutuante e Os forçadores de bloqueio. Cf. ―Imprensa‖. Diario de Minas, ano 2, n. 392, Ouro Preto, MG, 02/01/1875, p. 4. Arquivo Público Mineiro (doravante APM), Jornais Mineiros. 54 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 29. 55 Ibidem, pp. 29-30. 56 QUEIROZ, Maria José de. ―Convite à leitura de Bernardo Guimarães‖. Revista Colóquio/Letras, n. 83, Lisboa, jan./1985, p. 23. 57 Ensaios Litterarios (São Paulo, 1847-1850). AEL/CECULT. 42 tendo o suíço Jean-Jacques Rousseau como referencial. Filósofo que acreditou que o excesso de facilidades proporcionadas pelos pais à criança era a melhor forma para se estragar um indivíduo, questão presente na educação de Leôncio. Eis as palavras do filósofo setecentista: Sabeis qual é o meio mais seguro de tornar miserável vosso filho? É acostumá-lo a obter tudo, pois crescendo seus desejos sem cessar pela facilidade de satisfazê-los, mais cedo ou mais tarde a impotência vos forçará, ainda que contra a vontade, a usar da recusa. E essa recusa inabitual dar-lhe-á um tormento maior do que a própria privação do que deseja.58 Verá nosso leitor que muito da consideração do filósofo foram também apresentadas por Bernardo Guimarães ao descrever o processo de educação de Lêoncio. A esta questão inclui-se uma artimanha – que veremos abaixo – criada pelo pai de nossa personagem que, sem recursos para manter a vida desregrada de seu filho na capital francesa, precisava trazê-lo de volta à sua fazenda. Instalado em Paris, Leôncio prosseguiu numa trajetória ―acadêmica‖ semelhante à experimentada no Brasil, naquele vasto pandemônio do luxo e dos prazeres, Leôncio raras vezes, e só por desfastio, ia ouvir as eloqüentes preleções dos exímios professores da época, e nem tampouco era visto nos museus, institutos e bibliotecas. Em compensação era assíduo freqüentador do Jardim Mabile, assim como de todos os cafés e teatros mais em voga, e tornara-se um dos mais afamados e elegantes leões dos bulevares. 59 Tal opção de vida produziu um incômodo prejuízo financeiro em seu pai, que precisou utilizar-se de uma artimanha para trazê-lo de volta ao Brasil sem contrariá-lo. Artimanha que indica que aquela personagem senhorial fora criada para ser obedecida em todos os seus desejos. Elemento que se acentua em seu obstinado e irracional desejo de possuir Isaura. Necessitando trazê-lo de volta ao Brasil, seu pai buscou convencê-lo que o interesse em retornar era da personagem Leôncio para evitar contrariá-lo: No fim de alguns anos, ora de residência em Paris, ora de giros pelas principais capitais da Europa, tinha ele [Leôncio] tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsa paterna, que o comendador a despeito 58 ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, p. 86. Em Emílio encontramos a maior apresentação rousseaniana sobre a educação. 59 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 30. 43 de toda a sua condescendência e ternura para com seu único e querido filho, viu-se na necessidade de revocá-lo à sombra dos pátrios lares a fim de evitar uma completa ruína. Mas, mesmo assim, para não magoá-lo colhendo-lhe súbita e rudemente as rédeas na carreira dos desvarios e dissipações, assentou de atraí-lo suavemente acenando-lhe com a perspectiva de um rico e vantajosíssimo casamento. 60 Tais problemas em sua educação foram marcantes para a formação desta personagem. Em outro romance Bernardo Guimarães já havia mencionado os perigos de uma má educação, mesmo apresentando a possibilidade de uma regeneração. Gonçalo, personagem principal do romance O ermitão de Muquém (publicado em 1858, em forma de folhetim), apresentava, para além de algumas características negativas, algumas – dignas de um ―herói‖ – que poderiam facilmente ser elogiadas, todavia ao invés de utilizálas ―ao serviço da pátria e da liberdade‖, ―atirou-se em corpo e alma na carreira da devassidão e tornou-se um completo vadio, um famoso desordeiro‖. Para o narrador, ―entretanto esse moço não era mau por natureza; tinha no fundo excelente qualidade e generosos instintos de coração, que teriam feito dele um homem precioso, se não fosse a sua má educação e a diabólica mania de querer passar pelo maior valentão do mundo‖. Era necessário uma educação ―adequada‖ para tolher as características consideradas negativas da personagem. 61 Talvez nosso literato tenha concordado com Jean-Jacques Rousseau para quem precisamos ter nossas cabeças modeladas ―por dentro pelos filósofos‖: para ele, moldava-se o homem pela educação.62 Talvez, a má educação de Leôncio explique o seu apego à escravidão quando muitos já julgavam o regime como economicamente irracional: ―a sciencia ensina, e os factos demonstrão: que o trabalho feito por braço escravo, não pode competir com o que é feito por braço livre‖, comentou, em 1869, o Dr. Adolfo Bezerra de Menezes. 63 Leôncio era um senhor que não apresentava elevados dotes intelectuais, considerando a sua biografia escolar. Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo, em estudo comparativo sobre o abolicionismo nos Estados Unidos e no Brasil, no Império os abolicionistas utilizaram o tema da ―irracionalidade e não lucratividade da escravidão‖. Elemento relacionado à base do abolicionismo que era pautado por ―um modo de raciocínio secular e 60 Ibidem, p. 30. GUIMARÃES, Bernardo. O ermitão de Muquém, 1858 (In: Quatro romances. São Paulo: Livraria Martins, 1944), pp. 17-18. Grifo nosso. 62 ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, pp. 8 e 17. 63 MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 8. 61 44 iluminista‖, ao contrário do abolicionismo estadunidense, cuja religião era um elemento central.64 Conforme Emília Viotti da Costa, No pensamento revolucionário do século XVIII encontram-se as origens teóricas do abolicionismo. Até então, a escravidão fora vista como fruto dos desígnios divinos; agora ela passaria a ser vista como criação de vontade dos homens, portanto transitória e revogável. Enquanto no passado considerava-se a escravidão um corretivo para os vícios e a ignorância dos negros, via-se agora, na escravidão, sua causa. Invertiamse, assim, os termos da equação. Passou-se a criticar a escravidão em nome da moral, da religião e da racionalidade econômica. Descobriu-se que o cristianismo era incompatível com a escravidão; o trabalho escravo, menos produtivo do que o livre; e a escravidão uma instituição corruptora da moral e dos costumes.65 O próprio Bernardo Guimarães, nos romances O garimpeiro (1872) e Rozaura, a engeitada (1883), citou um dos mais conhecidos representantes do iluminismo, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau,66 que, em seu O contrato social (1762), considerou a escravidão como ilegítima: ―o direito de escravizar é nulo, não somente porque ilegítimo, mas porque absurdo e sem significação‖. No capítulo IV, que trata ―Da escravidão‖, do ―Livro I‖, o filósofo escreveu: ―já que nenhum homem tem autoridade natural sobre seu semelhante, e uma vez que a força não produz direito algum, restam então as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens‖. 67 É importante destacarmos que nosso literato entre 1847 e 1851, viveu o ambiente da Faculdade de Direito de São Paulo, um dos importantes centros de formação da intelectualidade brasileira (―núcleo de um grande movimento intellectual‖,68 como descreveu o narrador bernardino ao tratar de meados do século XIX) que se aproximava à sua maneira das idéias liberais de matriz francesa. Fundada em 1827, juntamente com a faculdade do Recife, foi um dos ―mais importantes centros de recepção, elaboração e difusão de idéias à época‖. Conforme Santos e Madeira, Na Academia Paulista foi gestada a modalidade brasileira de Liberalismo, o que representou um tour de force de adaptação do modelo europeu, 64 AZEVEDO, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, pp. 47 e 50. COSTA, A abolição, p. 14. 66 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 100; GUIMARÃES, Bernardo. O garimpeiro, 1872 (In: Quatro romances. São Paulo: Livraria Martins, 1944), capítulo III. 67 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, ―Livro I‖. 68 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 7. 65 45 tendo em vista a conjuntura sócio-política brasileira, marcada por uma realidade escravocrata, por um Estado monárquico e patrimonial e, ainda, pela dependência econômica das nações centrais.69 Livros franceses, conforme Marisa Midori Deaecto, ―aguçaram os espíritos das gentes de letras e habitavam as estantes de homens ilustres‖ no Brasil; 70 como destacou, em 1847, o acadêmico Bernardo Guimarães, ―livros europeos rolão por todas as mãos, nós folheamos quotidianamente, conhecemos o que se passa e se pensa na Europa‖. 71 Certamente, em tal ambiente cultural que si ―inspirava‖ na ilustração francesa, nossos intelectuais ao refletir sobre a realidade brasileira, uma realidade social escravista, empreenderam esforços para adaptar tais formas de pensamento. Joaquim Nabuco – quando cursava o quinto ano do curso jurídico da Faculdade do Recife, após passagem pela Faculdade de São Paulo – ao destacar a ilegalidade da escravidão, citou justamente Rousseau e Charles de Montesquieu,72 dois conhecidos iluministas. O jovem Nabuco serviu-se justamente da máxima rousseauniana na qual a propriedade – da terra –remonta ao ―primeiro ocupante pelo trabalho‖. 73 Nabuco considerou a impossibilidade disto acontecer na propriedade de escravos, que, portanto, considerou ilegítima: ―ocupação e trabalho são dois fatos que não se podem encontrar na espoliação da liberdade humana. Ocupam-se coisas, não pessoas‖, destacou o jovem brasileiro.74 Na perspectiva, de base iluminista, de Bernardo Guimarães, a representação a respeito do senhor demasiadamente apegado à escravidão foi a de um ser irracional, que ignorava ―a divisa do philosopho de Genebra – liberdade, egualdade, fraternidade‖. 75 É importante, no entanto, destacarmos que ao servir-se de concepções de base iluminista, ele produziu um discurso favorável à perspectiva senhorial, um discurso essencialmente conservador, como de muitos outros adeptos da ―idéia liberal‖ do século XIX. Conforme Santos e Madeira, 69 SANTOS, Mariza Veloso Motta & MADEIRA, Maria Angélica. Leituras brasileiras: itinerários no pensamento social e na literatura. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 70. 70 DEAECTO, Marisa Midori. ―B. L. Garnier e A. L. Garraux: destinos individuais e movimentos de conjunto nas relações editoriais entre a França e o Brasil no século XIX‖. In: VIDAL, Laurent & LUCA, Tania Regina de (orgs.). Franceses no Brasil: séculos XIX-XX. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 421422 e 425. 71 GUIMARÃES, Bernardo. ―Reflexões sobre a Poesia Brasileira‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos, 1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, p. 18. AEL/CECULT. 72 NABUCO, A escravidão, p. 73. 73 ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, p. 107. 74 NABUCO, A escravidão, p. 34. 75 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 100. 46 A introdução do Liberalismo na cultura política brasileira apresentou a particularidade de – desvinculando a liberdade da igualdade – implantar um regime que garantisse as liberdades econômicas e mantivesse as desigualdades em uma sociedade escravista. 76 Sérgio Adorno, em seu estudo sociológico sobre a formação do bacharel no Brasil imperial, que não raro ocuparam cargos importantes na constituição do Estado, destacou a tendência conservadora destes profissionais formados sob a égide do liberalismo: Os construtores do Estado Nacional viveram, por sucessivas gerações e durante quase cem anos, acreditando que era preciso primeiro ser livre para poder ser democrático. Insistiram na questão da liberdade que lhes pareceu a ante-sala da soberania nacional. […] atropelaram a herança revolucionária que os viu nascer no final do século XVIII para se transformarem em homens seguramente de seu tempo e apegados ao progresso: repudiaram o radicalismo ―ultra-passado de 89‖, em favor das ―modernas‖ posturas conservadoras, tão em moda na virada do século.77 Enfim, nada de ―idéias fora do lugar‖, como sugeriu o crítico literário Roberto Schwarz ao tratar da presença da ideologia liberal no Brasil do século XIX, um país cuja base produtiva era pautada no regime servil. Para ele, o império brasileiro vivia a contradição de ser um país escravista ao mesmo passo que a escravidão não seria o nexo ideológico da sociedade: ―por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das idéias liberais; o que entretanto é menos que orientar-lhes o movimento. Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica‖. 78 Ao contrário, nosso liberalismo não esteve dissociado da escravidão, tendo ele sido muito bem adaptado pelos intelectuais que com ele entraram em contato. Voltemos à caracterização da personagem Leôncio, que era um ―digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador‖, ―um senhor perverso e brutal‖. Para o narrador, esta personagem era um ―homem de sombria catadura, que se lhe apresentava aos olhos [de seu rival] implacável e sinistro como Lúcifer, prestes a empolgar a vítima que desejava arrastar aos infernos‖ a ponto de provocar sensações desagradáveis: ―suor frio porejou-lhe pela testa, e a mais pungente angústia apertou-lhe o coração‖, eis as sensações de Álvaro ao conhecer Leôncio. 79 O escravista é demonizado aumentando ainda 76 SANTOS & MADEIRA, Leituras brasileiras, p. 68. ADORNO, Os Aprendizes do Poder, p. 75. 78 SCHWARZ, Ao vencedor as batatas, p. 15. 79 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 39, 64 e 186. 77 47 mais o contraste com outras personagens, como Álvaro e Isaura, que são exemplos de virtude. Tais características, presentes em Leôncio, então senhor de Isaura, certamente acentuaram os sofrimentos da dócil e ―educada‖ escrava cujo ―tom velado e melancólico da cantiga parecia gemido sufocado de uma alma solitária e sofredora‖, cujo canto melancólico dizia: Desd‘o berço respirando Os ares da escravidão, Como semente lançada Em terra de maldição, A vida passo chorando Minha triste condição. Os meus braços estão presos, A ninguém posso abraçar. Nem meus lábios, nem meus olhos Não podem de amor falar; Deu-me Deus um coração Sòmente para penar. Ao ar livre das campinas Seu perfume exala a flor; Canta a aura em liberdade Do bosque o alado cantor; Só para a pobre cativa Não há canções, nem amor. Cala-te, pobre cativa; Teus queixumes crimes são; É uma afronta êsse canto, Que exprime tua aflição. A vida não te pertence Não é teu teu coração.80 Sofrimentos que foram acirrados pelas características de Leôncio que com a morte de seus pais herdou, entre outros bens, a dócil escrava: estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão. Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia crescendo na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava por superar. Mas nem por isso desistia de sua tresloucada empresa, por que em fim de contas, – pensava ele, – Isaura 80 Ibidem, p. 23. 48 era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restavalhe o emprego da violência.81 Enfim, Leôncio é o típico antagonista do romance romântico, aquele para o qual é repelida a possibilidade de uma identificação com o leitor imaginado. Suas características são exageradas; além de um perverso e irracional escravista, esta personagem era – apesar das oportunidades que teve – um indivíduo inculto. Certamente, com tais características seria detestado numa sociedade que se imaginava – ou almejava ser – culta e ilustrada aos moldes europeus. Sem dúvidas, as idéias européias (aqui incluída as liberais) foram um importante meio que conferia relevo social, todavia, não consideramos que a apropriação de tais idéias tenha sido um simples engodo com o fim de efetivar o referido objetivo como já se chegou a sugerir.82 Talvez, nos traços de personalidade do senhor escravista esteja um elemento mais explicitado por Joaquim Nabuco, que argumentou que ―a escravidão degrada a alma do escravo e do senhor‖: A escravidão é como um desses venenos que se infiltram pelo perfumes: ela se infiltra pelo egoísmo. Depois de se haver introduzido na sociedade e de ter alimentado uma raça à custa da outra ela corrompe a ambas. Duas palavras únicas temos a dizer a respeito: que vícios não deve ter uma alma que obedece, que está sempre curva e humilhada, que rasteja diante de um homem? que às vezes é a encarnação de todos os crimes? Que vícios por outro lado não deve ter aquele que está habituado a mandar e não ser mandada, a castigar a homens como a animais, a contemplar a máxima degradação da nossa natureza, a satisfazer brutalmente a todos os seus caprichos? Nada há mais parecido com a alma de um senhor do que a de um escravo.83 Questão, aliás, também explicitada por Joaquim Caetano da Silva Guimarães, irmão de nosso literato, em finais da década de 1850. Para ele, ―o senhor e o escravo são victimas mutuamente, e é o senhor sem duvida quem mais sensivelmente carece com as consequencias das coisas‖.84 Joaquim Caetano, também um bacharel, em seu artigo sobre a ―Agricultura em Minas‖, publicado no jornal A actualidade, provavelmente levado à redação pelo seu irmão que lá trabalhava, criticou aqueles que ao tratar da escravidão 81 Ibidem, pp. 38-39. Grifo nosso. Cf. SCHWARZ, Ao vencedor as batatas, pp. 18-19. 83 NABUCO, A escravidão, pp. 41-42. Grifo nosso. 84 ―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 33, 02/07/1859, pp. 2-3. AEL/CECULT. 82 49 depreciavam o senhor sem refletir sobre o regime escravista; implicitamente, criticou também uma utilização não refletida das concepções filosóficas de Rousseau. Para ele, A imaginação de nossos philantropos pinta sempre o senhor armado de azorrague, e o escravo como mera vitima, que consome sua existencia em trabalhos exorbitantes, entregue a fome e a nudez. O escravo nasce livre das mãos da natureza, segundo o contracto social de Rousseau, e medita dia e noite na reivindicação de sua liberdade. Eis o thema favorito de tantas declamações exageradas, e estereis, que diariamente estamos ouvindo. E, com effeito que assumpto inexgotavel para os que gostão de dissertar sobre lugares communs e questões de nome!85 Também para Bernardo Guimarães, a escravidão foi considerada como prejudicial à classe senhorial, à ―sociedade‖. Mas, seus efeitos não eram considerados irreversíveis. Sendo instruídos e em contato com concepções políticas e filosóficas como o liberalismo (de matriz conservadora), os próprios senhores poderiam resolver o ―problema‖ da escravidão. Exemplo disto é a personagem que apreciaremos a seguir. Ademais, sendo o narrador bernardino um divulgador da ―Economia Política‖, como sugerimos, o que estava em questão não era a ausência de bons sentimentos na referida personagem; mas, sim os efeitos econômicos que esta bondade (ou sua ausência) poderia ter (efeitos que, como veremos no capítulo posterior, foram apresentados no romance bernardino). Pois, ―no ponto de vista da economia social‖ apresentada por Luis Barbosa da Silva, em 1871, ―nenhuma importancia tem em si mesma a intelligencia ou a bondade de um individuo qualquer, sinão em relação ao effeito que possa ter essa bondade e intelligencia na producção, consumo e distribuição da riqueza‖. 86 Álvaro – personagem que se opõe a Leôncio –, por outro lado, é o generoso redentor de Isaura que enfrentava uma vida de sofrimentos sob o domínio de seu rival. É o protagonista, herói, da história romântica. Com este sim, o leitor deveria se identificar e as leitoras brancas, caridosas e civilizadas, almejá-lo enquanto tipo ideal para seu futuro marido. Era ―filho único de uma distinta e opulenta família‖ do Recife, ―na idade de vinte e cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dois mil contos‖ que herdou.87 Diferentemente de Leôncio, 85 ―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 33, 02/07/1859, p. 3. AEL/CECULT. 86 PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 19. 87 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 113. 50 Tendo concluído os preparatórios, como era filósofo, que pesava gravemente as coisas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto não pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos acadêmicos; mas quando teve de embrenhar-se no intricado labirinto dessa árida e enfadonha casuística do direito positivo, seu espírito eminentemente sintético recuou enfastiado, e não teve ânimo de prosseguir na senda encetada.88 Assim como seu rival, abandonou os estudos, todavia por motivações distintas. Álvaro era filosoficamente contra o direito que era praticado. Era ele, Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas questões políticas e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar a interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião, só tinham por base erros e preconceitos os mais absurdos.89 Álvaro ―tinha ódio a todos o privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista‖. É uma personagem ―avançada‖, conhecedor da filosofia, liberal e ―quase socialista‖. 90 Talvez, ao destacar a filiação ideológica de sua personagem, o literato – também ele liberal – tenha buscado incutir entre seus companheiros de ideologia qual era a melhor forma de conduzir a emancipação. 91 Aliás, ―liberal‖ configura-se como um elogio no romance. A doutrina liberal, conforme a posição política defendida no periódico A actualidade (que contou com Bernardo Guimarães como um de seus redatores) era essencial para o avanço do Brasil: ―o futuro pertence ás ideias liberaes‖;92 questão melhor explicitada em artigo publicado no mesmo 88 Ibidem, p. 113. Ibidem, p. 113. 90 Ibidem, p. 114. 91 Conforme Dilermando Cruz, ―em 1859 [Bernardo Guimarães] passou a residir no Rio de Janeiro, incumbindo-se da parte literária na redacção da Actualidade, folha politica, de doutrina liberal‖. Em 1884, ano em que faleceu, Bernardo Guimarães era um dos colaboradores do Liberal Mineiro, um ―órgão do partido liberal‖ em Ouro Preto. Observamos os exemplares de A actualidade (cujos textos em sua maioria não apresentam autoria, todavia há nele muitas notícias sobre a província de Minas Gerais) referente ao período em que nosso literato foi um dos redatores do periódico (1859-1860); com efeito, o debate político nele impresso denotam ser ele de matriz liberal. Cf. CRUZ, Dilermando. Bernardo Guimarães: perfil biobiblio-litterario. 2ª Ed. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1914, p. 21; ―Bernardo Guimarães‖. Liberal Mineiro, ano 7, n. 28, Ouro Preto, MG, 11/03/1884, p. 1. APM, Jornais Mineiros; A actualidade (Rio de Janeiro, 1859-1860). AEL/CECULT. 92 ―A ideia liberal‖. A actualidade: jornal politilo, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 101, 29/09/1860, p. 1. AEL/CECULT. 89 51 periódico de autoria de Francisco de Paula Ferreira e Costa. Conforme o articulista, ―o partido liberal, a ideia nova, representando a liberdade e a ordem, é a estrella que luz e que mostra-se radiante nos horizontes da patria, acenando-lhe um futuro de felicidades, abrindo um campo livre e bem vasto ao progresso do povo brasileiro‖.93 Segundo Izabel Andrade Marson, ―os abolicionistas – liberais autênticos – são homens bons, dedicados a uma grande causa: emancipar todos os escravos do Brasil, cumprindo assim um ‗mandato‘ que a raça negra lhes conferiu, uma vez que a sociedade brasileira não permite que ela atue em causa própria, nem pela lei, nem pela força‖. 94 Eis a proposta liberal emancipacionista de Bernardo Guimarães e de outros bacharéis a exemplo de Sylvio Roméro, que assim expôs a questão da emancipação dos escravos: Quero a libertação dos escravos pelo meio pratico de uma reductio ad absurdum da escravidão, sem que para isto se lhe marque um prazo; porque esta idéa foi repelida, e sem que seja necessário inverter a historia de nossa civilização, que é uma civilização fundada pelos brancos e não inventada pelos negros. Não exijo destes que renunciem e posterguem a sua raça, mas deixem aos brancos o direito de tambem defenderem a sua. Quero a libertação como o resultado de uma transformação orgânica da sociedade, e não como um producto das declamações sem alvo do Sr. Nabuco, ou uma inversão das theorias negristas; quero-a, como a devem querer aqui os representantes do espirito civilizador europeu…95 Voltemos ao enredo romântico. Álvaro, o ―redentor‖ de Isaura, é o grande protagonista do romance. Elemento que não podemos ignorar ao buscarmos compreender a perspectiva antiescravista do literato, cujo mais conhecido romance indica que a extinção da escravidão deveria se dá pelos meios tradicionais de concessão de alforrias, visando garantir a ―gratidão‖ do liberto. A referida personagem era um emancipacionista, mas não só de palavras, uma vez que ―consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos‖,96 com toda a prudência emancipacionista não somente de ―filantrópico‖, mas também de um filósofo. Enfim, era um embate de indivíduos de características bastante divergentes, cujo maniqueísmo romântico atribuía a 93 COSTA, Francisco de Paula Ferreira e. ―O futuro do Brazil e o partido liberal‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 100, 22/09/1860, p. 4. AEL/CECULT. 94 MARSON, Izabel Andrade. ―Liberalismo e escravidão no Brasil: Joaquim Nabuco e o jogo de temas, argumentos e imagens na re(criação) do progresso‖. Revista USP, 17. São Paulo, mar./mai., 1993, p. 112. 95 ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, pp. 202-203. Grifos nosso, exceto das palavras em latim. 96 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114. 52 vitória ao ―bom‖ senhor liberal, culto e emancipacionista.97 A fortuna monetária era um elemento comum aos rivais. Os motivos do embate: amor e caridade versus perversão senhorial Também os motivos deste embate entre escravistas e emancipacionistas ligam-se as características das personagens envolvidas no embate. Ambos lutavam por Isaura, ou melhor, pelo seu destino. Leôncio pelo desejo de exercer – exageradamente – sua prerrogativa senhorial sobre a gentil escrava, o que incluía usufruir sexualmente de seu corpo, enfim, mantê-la num aviltante cativeiro. Mesmo que, para tanto, julgasse necessário o emprego da força.98 Questão que, em 1883, o literato apresentou novamente aos seus leitores. Trata-se da história de um senhor que, como Leôncio, também abandonou os estudos, não possuindo também elevados dotes intelectuais: Era de intelligencia um pouco menos que mediocre: tanto assim, que apezar de contar já os seus vinte e sete annos, apenas á custa de muito patronato e de muito alisar os bancos da Academia tinha podido içar-se até o terceiro anno. Si já era por natureza algum tanto avesso ás letras, a vida matrimonial, e a tal ou qual opulencia [garantida pelo sogro], que entrou a fruir, acabárão de lhe tirar completamente o gosto pelo estudo. Perdeo o anno, e não poude fazer acto. 99 Enfim, parece que para o narrador bernardino, certos comportamentos somente ocorriam com indivíduos com determinado perfil, a saber, com uma preparação intelectual mal sucedida (ou incompleta). Vejamos como agiu a referida personagem cuja história assemelha-se com a de Leôncio. Tendo feito muitas promessas a uma jovem escrava que ―oppunha sempre a mais rude e obstinada negativa‖, passou aquele senhor a realizar intimidações visando dobrar a firmeza da jovem: Com as repulsas e esquivanças ainda mais recrudecia a febre de ardente sensualismo que abrazava o sangue de Moraes; depois de ter empregado em vão todos os meios de seduucção a seu alcance, lançou mão também das mais terríveis ameaças. — Si não cederes a meus desejos, Rozaura, — dizia-lhe elle nos transportes de sua insensata e lasciva paixão, — vendo-te ahi a qualquer senhor libertino e sem coração, que fará comtigo o que eu não posso, nem 97 Sobre o maniqueísmo de Bernardo Guimarães ver: MOISÉS, História da literatura brasileira, p. 486. ―Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava-lhe o emprego da violência‖. Cf. GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 39 e 95. 99 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 16. 98 53 tenho animo de fazer; que te amarrará de pés e mãos, e fará de ti o que muito bem quizer.100 Maria Inês Côrtes de Oliveira, utilizando-se dos dados disponíveis nos testamentos no que concerne ao reconhecimento de filhos de senhores com escravas, menciona que um dos traços da sociedade escravista, cujo domínio era exercido pelo homem, era que a escrava, além de explorada enquanto força de trabalho poderia, ser também sexualmente explorada.101 Joaquim Nabuco, em 1870, ao fazer sua breve análise sobre a ―mocidade‖ da escrava, destacou: A escrava, essa, de quinze a dezesseis anos, às vezes antes, nos limites da impuberdade, é entregue, já violada, às senzalas. Aquela nasceu virtualmente sem honra. Ao alcance da primeira violência, sem proteção, sem tribunal, sem família, sem lei para que apelar, que pode ela contra a cilada? Não há para ela exemplo senão o da corrupção, e assim a moça de quinze anos é logo a mulher pública da senzala.102 Enfim, o que temos é o quadro do senhor degradado pelos vícios da escravidão, que de forma ―criminosa‖ (como expôs Nabuco) possuía coragem para ―deflorar pobres mulheres‖. 103 Questão para a qual os dotes físicos das escravas poderiam contribuir como também ocorreu com Juliana, a mãe de nossa gentil escrava Isaura: Isaura era filha de uma linda mulata, que fôra por muito tempo a mucama favorita e a criada fiel da espôsa do comendador. Êste, que como homen libidinoso e sem escrúpulos olhava as escravas como um serralho à sua disposição, lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascívia sôbre a gentil mucama. Por muito tempo resistiu ela as ameaças e violências. Tão torpe e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar oculto aos olhos de sua virtuosa espôsa, que com isso concebeu mortal desgôsto. 104 Ou, ainda, com a ―escrava‖ Rozaura – na verdade uma jovem livre que tendo sido batizada como filha de uma escrava que faleceu após o nascimento, foi escravizada – cujo senhor, uma personagem bernardina que foi dada ao público em 1883, ―a força de contemplar todos os dias as bellezas plásticas da formosa Rozaura […] se foi deixando 100 Ibidem, pp. 22-23. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio; Brasília: CNPq, 1988, p. 68. 102 NABUCO, A escravidão, p. 51. 103 Ibidem, p. 42. 104 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 32-33. 101 54 arrastar por uma paixão insensata e frenética por ella‖. 105 Aliás, a imagem da mulata como sensual e sedutora não se constituiu novidade na produção intelectual brasileira, a exemplo da poesia ―A mulata‖ de autoria de Mello Moraes Filho, publicada em 1881, nos seus Cantos do Equador, Eu sou mulata vaidosa, Linda, faceira, mimosa, Quaes muitas brancas não são. Tenho requebro mais bellos; Si a noite são meus cabellos, O dia é meu coração. Sob a camisa bordada, Fina, tão alva, arrendada, Treme-me o seio moreno: É como o jambo cheiroso, Que pende ao galho frondoso Coberto pelo sereno. 106 Sem dúvidas, senhores não faltaram que, como as personagens Leôncio e o comendador Almeida, se seduziram pelos propalados ―encantos‖ das negras e mulatas. Tal questão não escapou sequer aos olhos estrangeiros que por aqui passaram. Conforme a parisiense Adèle Toussaint-Samson, que esteve no Brasil entre 1850 e 1862, ―muitos homens acham belas essas negras [minas]‖, a despeito de a francesa julgar apenas ―mais que um tipo bastante feio‖. Em suas memórias, publicada em 1883 (na França e no Brasil), as negras tinham ―cintura bem-feita e muito arqueada e seu andar, de passo desembaraçado, é sempre acompanhado de um movimento de quadris bem provocante‖. Nas exageradas considerações de Adèle, ―não é raro ver estrangeiros, principalmente ingleses, sustentá-las e fazer loucuras por elas‖. 107 Por mais exagero que possa ter nas palavras de Adèle Toussaint-Samson, uma mulher branca, européia e letrada que conviveu com a família real brasileira (seu marido foi professor de dança das princesas imperiais), que julgava que as negras ―depravam e envenenam a juventude do Rio de Janeiro‖; não podemos ignorar a existência de comportamento senhorial como o descrito por ela, o que o narrador bernardino buscava evitar. 105 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 22. MORAES FILHO, Mello. Cantos do Equador: sertões e florestas, nocturnos e phantasias, poemas da escravidão. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1881, p. 53. 107 TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Trad. Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2003 [1883], pp. 82-84. 106 55 Por outro lado, Álvaro, nossa liberal e emancipacionista personagem, movido por sentimentos humanitários e uma nobre paixão, desejava livrar Isaura da escravidão e esposar-se com ela: ―enquanto meu peito pulsar um coração, hei de disputar Isaura à escravidão com tôdas as minhas fôrças, e espero que Deus me favoreça em tão justa e bela causa‖, disse Álvaro, prosseguindo: ―hei de empregar todos os esforços ao meu alcance para libertar a infeliz do afrontoso jugo que a oprime. Para tal empresa alenta-me não sòmente um impulso de generosidade, como também o mais puro e ardente amor, sem pejo o confesso‖.108 Enfim, em A escrava Isaura temos uma conhecida fórmula romântica cujos enredos envolvem um herói e uma heroína, brancos, cultos e ―civilizados‖ (protagonistas), pelos quais os leitores deveriam se comover e se identificar, e de outro lado um vilão (um ser repulsivo que deveria ser detestado), que antagoniza uma história de amor marcada por um obstáculo – a escravidão – que adia para os últimos momentos a união entre os enamorados. Nesse sentido, temos uma técnica – ainda habitual – que busca prender a atenção do leitor ao mesmo passo que procura lhes incutir valores morais: no romance bernardino as caracteristicas negativas do escravista acabaram por lhe ocasionar a ruína moral e econômica, eis o ensinamento implícito em A escrava Isaura, como veremos no capítulo posterior. 108 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 166-167. RUÍNA ESCRAVISTA, VITÓRIA EMANCIPACIONISTA: A ESCRAVA ISAURA E O ENSINAMENTO DO LITERATO SOBRE A EMANCIPAÇÃO Concluindo o capítulo anterior: a solução vitoriosa As caracterizações e pretensões dos senhores/personagens que apreciamos no capítulo anterior seriam suficientes para chegarmos a algumas considerações sobre a mensagem posta por Bernardo Guimarães em A escrava Isaura. Todavia, nossas considerações não ficariam completas sem compreender como nosso literato resolveu o impasse entre as personagens. Portanto, vejamos como se forjou a vitória emancipacionista (essencial para a concretização do amor entre Álvaro e Isaura) sobre a escravista no romance de Bernardo Guimarães. O ―inculto‖ escravista Leôncio por Seus desvarios e extravagâncias, e por último sua nefasta e insensata paixão por Isaura, fizeram-no perder de todo a cabeça, arrojando-se em um plano inclinado de despesas ruinosas, sem cálculo nem previsão alguma. Com os enormes dispêndios que teve de fazer em conseqüência da fuga de Isaura, mandando procurá-la por todos os cantos do império, acabou de cavar o abismo de sua própria ruína. Em pouco tempo o jovem fazendeiro estava de todo insolvável, sem um real em caixa, e com uma multidão de letras protestadas na carteira de seus credores. 1 Foram os custos com a fuga de Isaura que intensificaram os problemas financeiros do escravista, que ainda via diminuir sua autoridade sobre os demais escravos. Tais problemas são atribuídos ao caráter de Leôncio e de seu pai, o ―devasso‖ comendador: De feito, a casa de Leôncio, já desde os últimos anos de vida de seu pai, ia em contínuo regresso e desmantelamento. O velho comendador, entregando-se no último quartel da vida a excessos e devassidões, que nem na mocidade são desculpáveis, vivendo quase sempre na corte, e deixando quase em completo abandono a administração da fazenda, havia esbanjado não pequena porção de sua fortuna. 2 Ademais, o romance foi escrito em 1874 – e publicado em 1875 –, portanto três anos depois da Lei do Ventre Livre, período em que se destaca uma intensificação da fuga escrava. Questão relacionada ao uso, por parte dos escravizados, dos expedientes da 1 2 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 228-229. Ibidem, p. 228. 57 referida Lei como meio de barganha de melhores condições de existência e, sobretudo, da liberdade.3 No entanto, Bernardo Guimarães opta – neste aspecto – por destacar os ―excessos e devassidões‖ da classe senhorial como comportamentos extremamente prejudiciais na sociedade que ele buscou analisar e propor transformações/reformas. Em romance anterior a A escrava Isaura, ele já havia destacado que ―excessos e devassidões‖, ―em tôdas as sociedades são sempre um princípio de desorganização‖. 4 Características que como vimos estavam presentes no senhor Leôncio. Ademais, como vimos no capítulo anterior, as frustradas investidas do pai de Leôncio em sua ―educação‖ também consumiu uma parcela de sua fortuna. Mas, foi, principalmente, a manutenção da escravidão que acirrou os problemas financeiros de Leôncio: Por efeito da má administração, não só as safras começaram a escassear consideravelmente, como também o número de escravos foi-se reduzindo pela morte e pelas freqüentes fugas, sem que tanto o comendador como seu filho deixassem de substituí-los por outros novos, que iam comprando a prazo, tornando cada vez mais pesado o ônus das dívidas.5 Em tal discurso fica implícito que sob o trabalho escravo as safras decresciam causando prejuízos ao senhor que também possuía dificuldades em adquirir novos cativos. Não podemos ignorar que tal questão era importante na segunda metade do século XIX – quando o romance foi escrito – especialmente em virtude do fim do tráfico internacional de negros escravizados e o conseqüente encarecimento do trabalhador cativo. Os prejuízos com a escravidão aumentavam em virtude do capital investido na compra de escravos, questão também mencionada no já aqui referenciado artigo de Joaquim Caetano da Silva Guimarães que julgava o trabalho escravo como improdutivo a ponto de, em algumas situações, não compensar sequer o valor monetário pago no momento da compra do cativo. Segundo Joaquim Caetano, No tempo em que o africano custava cem oitavas de ouro, os fazendeiros os compravão a prazo, e muitas vezes levavão dous ou tres annos a fazer o pagamento de um ou dous escravos; si o comprador não era economico e trabalhador, via-se na dura necessidade de restituir os mesmos escravos 3 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; SILVA, Eduardo. ―Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação‖. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 62-78. 4 GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e romances. São Paulo: Livraria Martins, 194? [1871], p. 31. 5 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 228. 58 para saldar sua divida. A razão disto é clara: até a data da cessação do trafico o escravo occupado na lavoura não produzia tres por cento de seu valor, não levando em conta a mortalidade, doenças, fugas, etc.6 Ao que tudo indica, no artigo intitulado ―Agricultura em Minas‖, o irmão de nosso literato apresentou discussões que compactuavam com aquilo que Bernardo Guimarães pensava, tendo o literato se servido das discussões em torno da emancipação em sua província para escrever o romance. Provavelmente, o referido artigo chegou à imprensa da Corte pelas mãos de Bernardo Guimarães, que então trabalhava na redação do jornal A actualidade. No referido texto, há um discurso semelhante ao explicitado por imigrantistas que alegavam a superioridade econômica do trabalho livre. Noção que, provavelmente, o literato entrou em contato em São Paulo quando ainda era estudante, tendo por base as iniciativas do senador Vergueiro, o que o próprio narrador bernardino nos sugere, em 1883, no romance Rozoaura, a engeitada, obra com certo tom de memórias que relata momentos de personagens do curso jurídico de São Paulo de meados da década de 1840, período em que nosso literato ingressou na Academia. A cidade de São Paulo conforme o narrador bernardino, conservava ainda quentes as cinzas de Diogo Antonio Feijó, que ainda escutava os échos das vozes patrióticas e eloqüentes de Antonio Carlos e Martins Francisco, e que ainda não pranteava sobre o tumulo de dois illustres cidadãos. Modelos venerados de patriotismo e virtudes cívicas, – Vergueiro e Paula Souza.7 De feito, quando da estada do estudante Bernardo Guimarães em São Paulo, ainda não se ―pranteava sobre o tumulo‖ do ―illustre‖ senador Vergueiro, um dos pioneiros na introdução de trabalhadores emigrados da Europa para o Brasil. Essa referência, de autoria do próprio literato, sem dúvidas, indica um pouco do contexto que o literato encontrou na província de São Paulo: um contexto de debate imigracionista e de extinção do tráfico internacional de negros escravizados. Foi justamente em 1847 – ano em que Bernardo tornou-se bacharelando – que ―chegaram à fazenda Ibicaba, os primeiros imigrantes que se estabeleceram como colonos para trabalhar na colheita do café, iniciando um 6 ―Agricultura em Minas II‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 28, 15/06/1859, p. 3. AEL/CECULT. 7 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 7. Grifo nosso. 59 empreendimento que, em seguida, seria acatado por vários cafeicultores da Província‖. 8 Questão que certamente deve ter sido um aprendizado extracurricular de muitos bacharelandos que na década de 1870 se envolveram nos debates emancipacionistas. Ademais, Vergueiro era considerado como ―um dos mais estrenuos e leaes defensores das idéas liberaes‖, sendo seu pensamento elogiado por liberais posteriores, inclusive no periódico A actualidade que, como já mencionamos, contou com Bernardo Guimarães em seu quadro de redatores.9 Tratemos da personagem que há tempos abandonamos. Álvaro, que já havia emancipado seus escravos, ou seja, já havia adotado o trabalho livre em sua fazenda, não conheceu redução de safra nem tampouco perdeu sua autoridade sobre seus libertos, que se mantiveram em sua fazenda. É provável que tal solução tenha sido uma estratégia do literato para demonstrar aos senhores a viabilidade da emancipação conduzida sob os auspícios senhoriais, fundamental para manter a autoridade sobre os escravos/libertos. Enfim, no discurso de Bernardo Guimarães, manter a escravidão não era moral e economicamente viável. Voltemos à personagem Leôncio e sua ruína. Para tentar resgatar Isaura, Leôncio – que, como vimos, já não gozava das melhores condições financeiras – empenhou muitos de seus recursos, ―mandando procurála por todos os cantos do império‖, e ainda ofereceu generosa gratificação. Aliás, a própria dimensão do texto do anúncio, assim como a gratificação oferecida, nada tinha de modesta. Questão que certamente imputava-lhe não pouco dispêndio financeiro. Vejamos o minucioso ―grande anúncio em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuído por tôda a cidade com o Jornal do Comércio‖,10 através da leitura da personagem Martinho: Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município de Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isaura, cujos sinais são os seguintes: Côr clara e tez delicada como de qualquer branca; olhos prêtos grandes; cabelos da mesma côr, compridos e ligeiramente ondeados; bôca pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem talhado; cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno sinal prêto, acima do seio direito um sinal de queimadura, mui semelhante a uma asa de borboleta. Traja-se com gosto e elegância, canta e toca piano com 8 Sobre a imigração em São Paulo, com algumas referências ao senador Vergueiros, ver: SOUZA, Carolina Lima de. ―As primeiras experiências com o trabalho livre imigrante em Campinas no século XIX‖. Dissertação de Mestrado: IFCH/UNICAMP, 2008, especialmente, pp. 7-11. 9 ―O senador Vergueiro‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 53, 24/09/1859, p. 1. AEL/CECULT. 10 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 141. 60 perfeição. Como teve excelente educação e tem uma boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugiu em companhia de um português, por nome Miguel, que se diz seu pai. Quem a apreender, e levar ao dito seu senhor, além de se lhe satisfazerem tôdas as despesas, receberá a gratificação de 5:000$000.11 A gratificação oferecida foi bastante elevada (cinco contos de réis). Tal valor correspondia a pelo menos 2,5% da fortuna de Leôncio cuja ―fazenda de Campos, com escravos e todos o mais acessórios, não excederá talvez a duzentos‖ contos. Julgamos que aqui, o literato enfatizou a questão do custo econômico para manter o regime servil. Num período que historicamente se aproxima ao da narrativa de Bernardo Guimarães que se passa ―nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II‖,12 o alemão Eduardo Laemmert, proprietário da Tipografia Universal, produziu anúncio no qual ofereceu gratificação para quem apreendesse seu escravo de nome Fortunato que, além de cozinhar e entender de ―plantações da roça‖, sabia ―trabalhar de encadernador‖. Tanto o anúncio (em número de caracteres) quanto a gratificação oferecida são singelos se comparado a recompensa ficcional do romance de Bernardo Guimarães. Eis o anúncio de Laemmert: CRIOULO FUGIDO. RS. 50U000 DE ALVIÇARAS Anda fugido, desde o dia 18 de Outubro de 1854, o escravo crioulo de nome FORTUNATO, de 20 e tantos annos de idade, com falta de dentes na frente, com pouca ou nenhuma barba, baixo, reforçado, e picado de bexigas que teve ha poucos annos, é muito pachola, mal encarado, falla apressado e com a bocca cheia olhando para o chão; costuma ás vezes andar calçado intitulando-se forro, e dizendo chamar-se Fortunato Lopes da Silva. Sabe conzinhar, trabalhar de encadernador, e entende de plantações da roça, donde é natural. Quem o prender, entregar á prisão, e avisar na côrte ao seu senhor Eduardo Laemmert, rua da Quitanda n.º 77, receberá 50U000 de gratificação.13 O anúncio de Eduardo Laemmert, por este ser o proprietário da Tipografia Universal de Laemmert, certamente teve seu custo reduzido se comparado ao produzido na ficção de Bernardo Guimarães. Leve-se ainda em conta que Laemmert produziu seu 11 Ibidem, p. 143. Ibidem, pp. 21 e 228. 13 Crioulo fugido. RS. 50U000 de alviçaras. Rio de janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1854. Fotoreprodução do documento (um folheto) é apresentada em: BN. Registros escravos: repertório das fontes oitocentistas pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional. Org. Lilia Moritz Schwarcz & Lúcia Garcia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2006, p. 126. A localização física no acervo da Biblioteca Nacional é ICO, VOL 107. 12 61 anúncio em sua própria oficina resultando num menor custo. Nessa comparação – permitida pela tentativa de criar um anúncio quase real da parte do literato – entre anúncio ficcional e real, percebemos o tom desmedido da ação ficcional do escravista Leôncio. Resultado: a ruína do escravista devido a uma vida desregrada e aos custos com a manutenção da escravidão. Destacar que os custos com a vigilância e manutenção da escravidão eram inviáveis foi também o expediente adotado, em 1871, por um panfletista, ao referir-se às especulações de que com a extinção da escravidão, os ex-escravos se entregariam à ociosidade: Os senhores de terras, que têm estabelecimentos montados, engenhos, etc., alliviados do peso immenso e improductivo da fiscalização, vigia e compressão dos trabalhadores, terão que exercitar e pois desinvolver muito mais as suas faculdades, pensamentos e disposição industrial; acostumar-se-hão a melhorar hábitos de ordem em vez dos de dissipação do actual regimen; e longe de esterelisarem-se nas improbas funcções que hoje exercem, virão a ser orgams poderosos de producção. 14 É significativo que no romance bernardino, a tentativa de capturar Isaura tenha aumentado as dívidas do escravista Leôncio. Álvaro, senhor emancipacionista, por outro lado, além de permanecer com sua fortuna, adquiriu todas as posses de seu rival – incluindo Isaura que foi por ele libertada. Outros observadores também trataram das vantagens monetárias que ocorreria com a emancipação, incluindo a possibilidade de aumento de capitais que antes eram imobilizados com a compra de escravos: não existindo a necessidade de empregar na compra de novos escravos, as economias que realisa, póde elle [o senhor] empregal-as todas em um fundo de reserva, que vae augmentando todos os annos o valor de sua fortuna e o patrimonio de seus filhos. 15 O generoso senhor Álvaro, com o objetivo de resgatar a gentil escrava do jugo da escravidão – e com fundos disponíveis – adquiriu as posses do escravista que ―estava de todo insolvável, sem um real em caixa, e com uma multidão de letras protestadas na carteira de seus credores‖. Condição que tornava favorável a possibilidade de uma cruel vingança por parte de Álvaro que por sua índole opta em não fazê-la: 14 15 PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 23. MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 11. 62 a despeito da aversão e desprêzo que Leôncio lhe merecia, Álvaro não pretendia levar ao último extremo os meios de vingança, que por um acaso as circunstâncias tinham posto em suas mãos. Era ele dez vezes mais rico do que o seu adversário, e de muito bom grado, se não houvesse outro recurso, por um contrato amigável daria uma soma igual a toda a fortuna deste, pela liberdade de Isaura. Agora, que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna dêsse adversário caprichoso, arrogante e desalmado, Álvaro, sempre generoso, nem por isso desejava vê-lo reduzido à miséria.16 Leôncio se suicidou momentos após tomar conhecimento de sua derrota buscando manter o orgulho da condição senhorial que então lhe era arrebatada. Na opinião do panfletista Luis Barbosa da Silva, Em geral ignorante e embrutecido, o grande lavrador, além dos gozos materiaes não comprehende e não aspira a outros que não os de pompa e apparato. Com os maus habitos do mando absoluto, a apparencia do poder e da força é o que mais linsongeia-lhe a imaginação.17 Manter-se escravista além dos prejuízos financeiros causava-lhe também o inconveniente de diminuir sua autoridade sobre a mão-de-obra. Leôncio, que, devido a sua educação, conheceu apenas os meios escravistas para manter sua autoridade, ao compreender que não poderia mais adotá-los optou pelo suicídio: — Senhor, — bradou Leôncio com os lábios espumantes e os olhos desvairados, — aí tendes tudo quanto possuo; pode saciar sua vingança, mas eu lhe juro, nunca há de ter o prazer de ver-me implorar a sua generosidade. E dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova contígua à sala. — Leôncio! Leôncio!… onde vais! — exclamou [sua esposa] Malvina precipitando-se para êle; mal, porém, havia ela chegado à porta, ouviu-se a explosão atroadora de um tiro. — Ai… — gritou Malvina, e caiu redondamente em terra. Leôncio tinha-se rebentado o crânio com um tiro de pistola. 18 Para além dos problemas enfrentados por Leôncio, a vitória de Álvaro, o senhor emancipacionista, pode ser atribuída à sua prudência emancipacionista, que lhe garantiu vantagens morais e econômicas. Como já havia destacado em meados de 1869 o jurista e deputado Perdigão Malheiro, ―qualquer providencia mal pensada, ou simplesmente 16 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 229. PARKER (pseudônimo), Elemento servil, pp. 14-15. 18 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 232. Grifo nosso. 17 63 precipitada, extemporanea [relativa à questão do elemento servil], póde causar, além de uma incalculavel desordem economica, estremecimento nas familias e na ordem publica, cujas perigosas consequencias não podem deixar-se temer‖.19 Talvez, tendo em conta uma interpretação semelhante, nosso literato construiu uma ―sensata‖, ―inteligente‖ e ―prudente‖ personagem emancipacionista que, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gôzo da plena liberdade, organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro. A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e êles [os libertos] sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência e podiam indenizar a Álvaro do sacrifício, que fizera com a sua emancipação.20 Tal compreensão não se constituía novidade. Aqui novamente, podemos retomar o texto sobre a ―Agricultura em Minas‖ de autoria do irmão de nosso literato. Para ele, ―libertar um escravo é o mesmo que abandona-lo a seus vicios, e por conseguinte a mizeria; é uma acção imprudente, que não se pôde qualificar de generosidade, é antes um erro contra a experiência de todos os dias, que só a fraqueza pôde aconselhar‖. 21 Ao que tudo indica, Bernardo Guimarães esteve atento às discussões em torno do ―elemento servil‖, todavia não as apropriou inadvertidamente; pelo contrário fez uma leitura que via a emancipação como uma tarefa que seria positiva à sociedade, desde que ―bem‖ encaminhada pela classe senhorial. Para sanar o ―problema‖, mencionado por seu irmão, em sua obra colocou uma emancipação onde o liberto permaneceu sob a tutela senhorial, preservando os libertos de se entregarem ―à ociosidade, ao vício e aos crime‖. Perceba-se que as vantagens do processo de emancipação promovido pela personagem Álvaro eram bastante amplas, abarcando do escravo ao senhor. Um tipo de emancipação que era defendida por aqueles que julgavam que ela deveria ocorrer ―sem damno para a nação‖, concepção na qual, ―libertar sómente o escravo, é pois, um grande 19 Considerações realizadas, em cinco de julho de 1869, em virtude da discussão de uma proposta de lei que visava proibir a ―venda de escravos em leilão‖. Cf. Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: primeiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1869. Tomo 3, 1869, p. 52. BPEB, Periódicos Raros. 20 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114. Grifo nosso. 21 ―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 34, 06/07/1859, p. 3. AEL/CECULT. 64 mal para a nossa sociedade e até para o proprio escravo‖; julgava-se necessário ―regras para se obter a regeneração moral da raça, na pessoa de seus membros que passarem a gosar da liberdade‖.22 Para a prudente personagem emancipacionista as vantagens foram essencialmente duas: evitou os custos com a manutenção da escravidão e vigilância sobre os escravos – elementos que ampliaram as dificuldades do escravista Leôncio – bem como garantiu sua autoridade moral sobre os ex-escravos. O que aflora no romance é a defesa do protagonismo senhorial no processo de emancipação. Atente-se para que Isaura somente foi libertada por Álvaro após este adquirir sua posse: se êsse algoz [Leôncio] ainda há pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a tua vida, e não tas [sic] cedia senão com a condição de desposasse um ente disforme e desprezível, agora tens nas tuas a sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas, Isaura, tu és hoje a senhora, e êle o escravo; se não quiser mendigar o pão, há de recorrer à nossa generosidade. 23 Álvaro, de posse da fortuna de seu rival – o que incluía Isaura –, doou tudo à dócil e educada escrava, tornando-a livre. É importante atentarmos para o fato de que, quando o romance foi escrito, por Lei o senhor era obrigado a conceder alforria ao escravo que lhe apresentasse seu valor, o que acirrou os conflitos entre senhores e escravos. Elemento que, mesmo implicitamente, é retratado no romance de Bernardo Guimarães. A solução apresentada pelo narrador bernardino para evitar tais situações era a classe senhorial atuar como emancipacionista e assim obter a ―gratidão‖ do ex-escravo. O que foi praticado pela personagem Álvaro e ignorado por Leôncio. Nessa história de conflitos entre personagens, parece-nos que Bernardo Guimarães tenha, de alguma forma, adotado uma missão literária que foi explicitada, em 1847, num periódico editado pelos acadêmicos paulistas (entre eles nosso romancista), no qual o literato é exposto como um ―juiz imparcial‖ a quem cabe julgar a sociedade, pensando em seu futuro: Exprimindo a realidade do passado e do presente [o romancista] examina os passos, que o homem tem dado nestas duas idades, analysa as condições da existencia de uma secção da sociedade nossos sentimentos para reproduzir e comentar: e cercando de uma aureola brilhante a pureza dos costumes de uma classe e de um individuo, e ferindo com a critica severa do juiz imparcial a adopção de usos que a superstição, o prejuizo e 22 23 MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 18. GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 231. 65 a ignorância arraigarão em seo animo absolve ou condemna o passado; julga o presente, prepara e purifica o futuro.24 Ao atribuir a vitória do senhor emancipacionista sobre o escravista, nosso literato, também ele bacharel em direito, proferiu sua sentença que se desenrola em sua proposta emancipacionista, na qual a figura senhorial era tida como peça principal. Provavelmente por isso, nosso literato buscou ―iluminar‖ a mente dos senhores de escravos de que estava em suas mãos realizar a emancipação, evitando sua ruína moral e econômica. Emancipar, um desígnio senhorial Libertar Isaura para a personagem Álvaro ―foi uma missão santa, que julgo ter recebido do céu, e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo resultado. Deus enfim, por minhas mãos vinga a inocência e a virtude oprimida, e esmaga o algoz‖. 25 Ademais, o narrador do romance, de maneira teleológica, considerou que emancipar Isaura foi um desígnio divino para o senhor emancipacionista: O espírito de Álvaro firmou-se por fim na íntima e inabalável convicção de que o céu, pondo em contato o seu destino com o daquela encantadora e infeliz escrava, tivera um desígnio providencial, e o escolhera para instrumento da nobre e generosa missão de arrebatá-la à escravidão, e dar-lhe na sociedade o elevado lugar que por sua beleza, virtudes e talentos, lhe competia.26 Atente-se para o fato de que Isaura merecia a liberdade por ―sua beleza, virtudes e talentos‖, elementos que eram provenientes de seus aspectos fisionômicos brancos, questão que trataremos mais detidamente no capítulo posterior, especialmente por ser um elemento também explícito em outra obra que será nosso foco. A questão posta no romance não é a escravidão, mas a escravidão de indivíduos dotados de nobres características, como Isaura que, por suas características, deveria ser ―premiada‖ com a liberdade; nesse sentido, é significativa a ocultação que o enredo romântico confere aos demais escravos, aos típicos escravos negros que povoaram as fazendas brasileiras. O comportamento emancipacionista (de Álvaro), ao que tudo indica, julgou-se que deveria ser imitado: ―seja embora eu o primeiro a dar êsse nobre exemplo, que talvez 24 ―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos, 1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, p. 7. AEL/CECULT. 25 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 231. 26 Ibidem, p. 226. 66 será imitado. Sirva êle ao menos de um protesto enérgico e solene contra a bárbara e vergonhosa instituição‖, disse Álvaro, a respeito de sua ação emancipacionista, ao expor seu julgamento a respeito do regime servil. 27 Tais representações e enredo do literato ligase à lei do ventre-livre, ou melhor, a uma oposição do literato a um dispositivo legal que oficialmente buscava regular as relações entre senhores e escravos. A referida lei não foi bem aceita pelos senhores, que acusaram o governo imperial de interferir nas relações escravistas violando o direito de propriedade e de desorganizar o trabalho. Ademais, tais senhores defendiam uma emancipação ―conduzida pelos mecanismos tradicionais de concessão de alforrias‖, como forma de garantir uma ―transição ordeira‖, que mantivesse a autoridade (ex)senhorial sobre a mão-de-obra liberta.28 Tal foi a oposição na província do Rio de Janeiro que, no ano seguinte a aprovação da Lei, o presidente da província, em seu relatório apresentado à Assembléia Provincial destacou que, a despeito dos receios, a referida lei era favorável à classe senhorial. Talvez tenha tentado convencer os senhores de tal assertiva. Para ele, A Lei de 28 de Setembro do anno passado, que se dizia fonte e origem de violentas e tremendas pertubações da ordem publica, tem sido executada sem o menor abalo; e aquelles que se receiavam de suas disposições, vão reconhecendo que, além de darem a melhor e mais conveniente solução á questão social que nos affrontava, asseguram ellas instrumentos de trabalho da lavoura e legitimaram o seu emprego. Os perigos que se antolhavam eram imaginarios e vãos: a Provincia não soffreu em sua tranqüilidade. 29 Julgou que a legislação emancipacionista de 1871 buscava assegurar ―instrumentos de trabalho da lavoura‖ naquele contexto de discussão sobre a extinção do ―elemento servil‖; e não abalar o domínio senhorial. Julgou que os senhores não tinham motivos para recear das disposições postas na lei. Como vimos, no entanto, a despeito da retórica dos defensores da lei do ventre-livre, a emancipação ideal apresentada na história romântica de A escrava Isaura foi pautada na ação senhorial, não uma emancipação 27 Ibidem, p. 168. Sobre a oposição dos senhores a Lei ver, por exemplo: para a província da Bahia, FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, pp. 49 e 117; para o município de Campinas, província de São Paulo, CANO, Jefferson. ―Liberdade, cidadania e política de emancipação escrava‖. Revista de História, n. 136. São Paulo: USP, 1º Sem., 1997, p. 115; e, para o império com o enfoque para o sudeste, MAESTRI, Mário. Uma história do Brasil: Império. 3ª Ed. São Paulo: Contexto, 2002, p. 141. 29 Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio de Janeiro na primeira sessão da décima nona legislatura no dia 29 de setembro de 1872 pelo presidente Conselheiro Josino do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Typographia Perserverança, 1872, pp. 14-15. Grifo nosso. 28 67 conduzida pelo controle do Estado. Desde que era apenas uma proposta, a possibilidade de tal controle já era visto com temores; e continuaria a preocupar muitos senhores mesmo depois do projeto transformado em Lei. Com o dispositivo legal de 1871, já promulgado, o enredo romântico bernardino indicou que o melhor caminho era os próprios senhores realizarem a emancipação. Em relatório, referente ao ano de 1873, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, José Fernandes da Costa Pereira Junior, ministro da Agricultura, destacou que ―as manumissões voluntarias continuam em larga escala. Por toda a parte o sentimento publico presta homenagem de sua approvação á acertada providencia com que o legislador fez seccar a fonte da escravidão no Imperio‖. Para a referida autoridade, as manumissões realizadas por particulares significavam uma aprovação às iniciativas do Estado em virtude da lei. 30 Todavia, tal iniciativa pode ter significado justamente o contrário: uma emancipação promovida pela lei não era necessária, já que os senhores estavam realizando a emancipação, eis um recado que pode ter sido implícito nas referidas emancipações. Nem mesmo indivíduos que defenderam a ação do Estado para a realização da emancipação deixaram de pôr tal iniciativa como uma ação senhorial (pelo menos simbolicamente). Joaquim Manuel de Macedo, literato e historiador que gozava de proximidade com a família imperial, justificou que a iniciativa do Estado para a causa da emancipação era um clamor da classe proprietária. Segundo ele, Sob as apreensões de uma crise social iminente, infalível, que a todos há de custar direta ou indiretamente onerosos sacrifícios, o povo brasileiro, e particularmente os lavradores, esperam ansiosos, entre os receios por certo justificáveis e clamores que se explicam sem desar, o pronunciamento legal e decisivo da solução do problema da emancipação dos escravos.31 Tendo publicado sua obra, em 1869, propôs uma ―emancipação gradual iniciada pelos ventres das escravas, e completada por meios indiretos no correr de prazo não muito longo, e diretos no fim desse prazo com indenização garantida aos senhores‖. Proposta que então era discutida por estadistas. Ciente de que ocorreria oposição, Macedo colocou sua proposta de ação do Estado como uma reivindicação senhorial, destacando que as medidas 30 Relatorio apresentado á Assembléa Geral Legislativa na terceira sessão da décima quinta legislatura pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocio da Agricultura, Commercio e Obras Publicas José Fernandes da Costa Pereira Junior. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1874, pp. 4-5. 31 MACEDO, As vítimas-algozes, p. 7. Grifo nosso. 68 que ambicionava ver transformadas em Lei era um anseio da classe senhorial; o literato pôs – simbolicamente – o controle do processo nas mãos da classe proprietária. Nem a aprovação da Lei, nem tampouco sua execução, foi unanimidade para os senhores, pelo contrário; os debates parlamentares em torno das propostas de emancipação são significativos da oposição em torno de uma emancipação guiada por lei. Debates que fizeram um cronista da época ter uma visão irônica e curiosa a respeitos dos deputados que deles participaram: Quer na primeira, quer na segunda, quer na terceira discussão do projeto semelhava-se mais a dita Camara a um quintal de collegio em hora de recreio, do que a um parlamento. Ainda bem que no Senado não aconteceu o mesmo! Ahi foi a matéria discutida com verdadeira calma e sabedoria. E pode-se dizer, sem receio de errar, que qualquer dos discursos n‘elle proferidos valeu mais que todos os da outra Camara reunidos. 32 Com a Lei aprovada, a oposição a iniciativa do Estado não cessou, ocorrendo inclusive casos de autoridades responsáveis pela sua efetivação que se recusavam a pô-la em prática, o que ia desde a não realização – de forma intencional – da matrícula, como mencionou Sidney Chalhoub;33 até casos de juízes que se recusaram a cumprir as obrigações que a lei lhes incumbia. Em 1885, por exemplo, Francisco de Araujo de Aragão Bulcão, juiz de órfãos da comarca de Santo Amaro na província da Bahia, ausentou-se do termo ―para não dar audiencia na qual devia entregar cartas [de] liberdade‖. 34 Joaquim Manuel de Macedo, conhecendo os paradigmas da sociedade em que vivia, tentou evitar o conflito entre os senhores e o Estado, buscando ―iluminar os proprietários de escravos e convencê-los de que está em seus próprios interesses auxiliar o Estado na obra imensa e escabrosa da emancipação‖; compreendeu que ―o costume e o interesse do senhor hão de disputar ao Estado a opressão e o domínio do escravo‖. 35 Buscou evitar tal disputa, apresentando uma proposta na qual o Estado e a classe proprietária atuassem juntos. 32 ―A vida fluminense‖. A vida fluminense, ano 4, n. 194, Rio de Janeiro, 16/09/1871, p. 710. BN, Periódicos Digitalizados. 33 CHALHOUB, Machado de Assis, historiador. 34 Telegrama do Dr. Mendes ao presidente da província da Bahia, Santo Amaro, BA, 09/12/1885; e Carta de Vital Ferreira, juiz de direito da comarca de Santo Amaro, ao presidente da província da Bahia, Santo Amaro, BA, 15/12/1885. Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Série Judiciário, Correspondência recebida dos juízes, Santo Amaro, maço 2588 (1876-1885). 35 MACEDO, As vítimas-algozes, p. 9. 69 Para alguns, o projeto de lei foi visto com temores, tido como elemento que poderia perturbar a ordem vigente, ao interferir na autoridade senhorial. Temores que inclusive ocasionaram boatos cujos resultados poderiam ser trágicos. No relatório do chefe de polícia da província fluminense, datado de 31 de julho de 1871, por exemplo, foi mencionado o boato de que ―os escravos pertencentes aos estabelecimentos agricolas, se sublevassem nas noutes de Santo Antonio, S. João e S. Pedro‖. Para a autoridade policial, tais boatos ―eram espalhados por espiritos tímidos, algum tanto impressionados pelas questões que se agitam no parlamento ácerca do elemento servil‖. 36 Talvez, tais ―espiritos timidos‖ e ―impressionados‖ fossem na verdade contrários ao projeto de emancipação do governo e julgassem que tal discussão, em torno da emancipação no parlamento, poderia provocar agitação nas senzalas.37 Numa crônica publicada em A vida fluminense de nove de setembro de 1871, quando ―a questão do dia e da noite é ainda […] o projecto do gabinete de 7 de Março sobre o elemento servil‖, o cronista ironizou os opositores do projeto e suas falácias em torno de uma eminente ―revolução‖ em virtude da proposta de Lei: dizem os jornaes pela pequena boca que a revolução está roçando lugubremente nos alicerces de nossa sociedade. Falla-se em motins dos negros e no terror dos fazendeiros, etc. O – O que é certo é que cada vez são surrados com mais garbo os pobres diabos na casa de detenção, e os annuncios de ―negros fugidos‖ multiplicação [sic] se como os peixes do Evangelho. 38 36 ―Relatorio do Chefe de Policia‖, 31/07/1871. Anexo ao Relatorio com que o Conselheiro Theodoro Machado Freire Pereira da Silva presidente da provincia do Rio de Janeiro passou a administração da mesma ao exmo. sr. Dezembargador Manoel José de Freitas Travassos em 15 de março de 1871. Rio de Janeiro: Typographia de Quirino e Irmão, 1871, pp. 3-4. 37 Para alguns, a própria idéia de discutir questões relacionadas ao ―elemento servil‖ poderia ―assustar o paiz‖, como considerou, em 1869, o deputado Gomes de Castro sobre uma proposta para a realização da matrícula dos escravos no Império. ―Vamos assustar o paiz, concluiu ele‖ ao mencionar que a questão da ―materia é grave; […] envolve duas questões maximas da actualidade, a questão do imposto e a questão do elemento servil‖. Em 10 de julho de 1871, o deputado Perdigão Malheiro também realizou considerações semelhante: ―se a simples apresentação da proposta já tem produzido tão profundo abalo na sociedade, o que não aconteceria se semelhante projecto fosse convertido em lei?‖. Cf. Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: primeiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1869. Tomo 2. Rio de Janeiro: Typografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1869, p. 194; Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: terceiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1871. Tomo 2. Rio de Janeiro: Typografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1871, p. 52. BPEB, Periódicos Raros. 38 ―A vida fluminense‖. A vida fluminense, ano 4, n.193, Rio de Janeiro, 09/09/1871, p. 702. BN, Periódicos Digitalizados. 70 Enfatizar que ocorreria ―desordem‖ ao retirar o ―poder‖ senhorial em conceder alforria, foi um recurso utilizado por aqueles que defenderam a manutenção da autoridade senhorial. Em tal discurso, a ordem só seria possível com a manutenção da obediência e ―fidelidade‖ do negro (escravo, livre ou liberto) para com a classe proprietária. Os conflitos entre autoridade do Estado e autoridade senhorial, paradoxalmente não escaparam ao texto da Lei do ventre-livre. No quarto artigo, do dispositivo legal que visava regular a relação entre senhores e escravos, deixou margem para o exercício da autoridade senhorial: ―é permittido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias‖.39 Tal questão reforça que a redação do texto final da Lei foi marcada por disputas em torno do governo dos escravos, tendo seus adversários – apesar da aprovação do projeto – conseguido vencer alguma barganha. Com a Lei aprovada, a oposição a ―intromissão‖ do Estado na relação senhorescravo não cessou. A despeito das afirmações dos ministros da agricultura que destacavam que ―a execução da lei de 28 de setembro de 1871, não tem encontrado embaraços por parte da população‖. Em 1874, conforme dados do ministro José Fernandes da Costa Pereira Junior, 49 municípios não haviam encaminhado os dados da matrícula dos escravos (ou, talvez, sequer tenham realizado a matrícula como exigia a lei). Conforme o ministro, as faltas com a lei ocorriam também no tocante ao fundo destinado à emancipação que não havia sido aplicado em muitos lugares. No entanto, fez questão de enfatizar que tal ocorrência era devida à falta de pessoal para a aplicação da lei. Tentou afastar a possibilidade da existência de má vontade para com a emancipação,40 o que o caso do juiz baiano, ocorrido em 1885, acima citado representa. Em 1876, outro ministro da agricultura Thomaz José Coelho de Almeida, reconheceu que havia embaraços para a realização da emancipação proposta na Lei, também destacando o pouco efetivo para realização da matrícula dos escravos e ingênuos e composição de ―juntas de classificação dos escravos‖; todavia com a ânsia em afirmar que nada houve de intencional: Entretanto, comprazo-me em poder declarar que não consta nenhuma falta intencional de matricula de ingenuos; e as informações de que a 39 ―Lei n. 2.040 – de 28 de Setembro de 1871‖. In: Collecção das Leis do Imperio do Brasil. Tomo XXXI, Parte I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1871, p. 149. Grifo nosso. 40 Relatorio apresentado á Assembléa Geral Legislativa na quarta sessão da decima quinta legislatuura pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas José Fernandes da Costa Pereira Junior. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1875, pp. 6 e 7. 71 Secretaria de Estado se acha de posse dizem positivamente que as faltas provém, ou das causas já apontadas ou de ignorância, e não do proprosito de prejudicar a liberdade.41 A despeito das justificativas dadas pelos ministros a respeito das dificuldades encontradas para a efetivação da Lei, temos que considerar que houve uma oposição real (e intencional) a uma emancipação conduzida por iniciativa do Estado. Chalhoub, servindo-se de documentos da diretória da agricultura – do ministério da agricultura –, indicou que houve sim resistência à aplicação da referida Lei.42 Podemos considerar que a iniciativa senhorial na concessão de alforrias – expostas como exemplo por Bernardo Guimarães em A escrava Isaura e em outra história romântica publicada em 1871 43 – pode ter sido um exemplo desta obstrução – intelectual – da Lei, mesmo que nem todas as ações deste gênero possam ser consideradas sob esse prisma. Emancipação e manutenção da ordem senhorial A emancipação posta no romance bernardino ocorre na mais completa e perfeita ordem através da ação senhorial. Os negros libertados por Álvaro permaneceram em sua fazenda, escolha na qual ―preservavam-se de entregar à ociosidade, ao vício e ao crime‖ bem como ―podiam indenizar a Álvaro do sacrifício, que fizera com a sua emancipação‖. Com tal discurso, implicitamente rejeitava a necessidade de leis que regulassem o processo de extinção do regime servil, bastando que os senhores atuassem como emancipacionistas a exemplo da personagem Álvaro. Outros literatos, pelo contrário, serviram-se de enredos românticos para demonstrar a inviabilidade duma emancipação conduzida pela classe senhorial. Conforme Chalhoub, no contexto das discussões que levaria à lei de 28 de setembro de 1871, Machado de Assis reivindicava que o poder privado dos senhores deveria ser submetido ao domínio da lei. No conto ―Mariana‖, publicado em janeiro de 1871, ele enfatizou os sofrimentos de uma escrava tratada ―quase‖ como um membro da família; um recurso para demonstrar que o fim da escravidão deveria se dar pela intervenção do Estado; os senhores, em sua perspectiva, não eram aptos a conduzir a 41 Relatorio apresentado à Assembléia Geral Legislativa pelo Ministro da Agricultura Thomaz Jose Coelho de Almeida na segunda sessão da 16ª legislatura, 1876, Sem mais referências, p. 12. Grifo nosso. 42 CHALHOUB, Machado de Assis, historiador. 43 Referimo-nos a ―Uma história de quilombolas‖ incerta nas Lendas e romances cuja publicação foi anterior a aprovação da Lei do Ventre-Livre. 72 emancipação.44 A personagem/escrava Mariana após apaixonar-se pelo senhor moço e não ser correspondida praticou duas fugas cuja última encerrou-se com o seu suicídio, após trágica ação senhorial na tentativa de recapturá-la e reconduzi-la àquela escravidão que se considerava benigna. 45 Como veremos no capítulo posterior, pelo contrário, em 1870, Bernardo Guimarães produziu uma narrativa – publicada em 1871 – na qual, de forma semelhante a exposta em A escrava Isaura, a emancipação ocorria perfeitamente, e sem embaraços, dentro da ordem escravista. Ao propor que os senhores imitassem a atuação de Álvaro, o narrador bernardino talvez tenha adotado um recurso expresso em periódicos emancipacionistas, a saber, elogiar a concessão de alforrias na tentativa de torná-la uma prática senhorial. Conforme Robson Luís Machado Martins, para alguns, o método ideal para se extinguir a escravidão era através da concessão de alforrias, que eram divulgadas em periódicos, como exemplos a serem seguidos, buscando demonstrar que o Estado não necessitava intervir na questão servil: defendiam uma solução senhorial. Tática utilizada por emancipacionistas capixabas, paulistas e fluminenses.46 Tal ação poderia servir ainda ao propósito de criar uma representação de caridosa para a classe senhorial. Atitude, aliás, ironizada por Machado de Assis em crônica datada de 15 de junho de 1877. Para ele, ―os filhos do Evangelho inventaram a caridade nas gazetilhas‖. 47 Com efeito, Álvaro é representado como uma generosa e caridosa figura, diferente de Leôncio que na verdade é tido como representativo de um desvio moral e intelectual. Ademais, no romance de Bernardo Guimarães temos ainda uma personagem bacharel em direito que, mesmo com relacionamento estreito com Álvaro, o senhor emancipacionista, que tinha por ele mais afeto e intimidade que a outros amigos, não propôs nenhuma ação judicial em favor da liberdade da dócil escrava. A alegação pretendida por Álvaro era de que a mãe de seu rival ―criou-a com todo o mimo, e a quem ela deve a excelente educação que tem, tinha declarado por vêzes diante de testemunhas, que por sua morte a deixaria livre‖, todavia, a ―generosa‖ senhora faleceu sem deixar testamento. Geraldo então adverte seu amigo: ―se nada tens de valioso a apresentar em 44 CHALHOUB, Machado de Assis, historiador, pp. 136-137 e 162-164. ASSIS, Machado de. ―Mariana‖, jan., 1871. In: Contos de Machado de Assis, v. 5 (política e escravidão). Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de janeiro: Record, 2008, pp. 67-88. 46 MARTINS, Robson Luís Machado. ―Os caminhos da liberdade: abolicionistas, escravos e senhores na província do Espírito Santo, 1884-1888‖. Dissertação de Mestrado: UNICAMP, 1997, capítulo 3: ―A reação dos senhores: alforrias e a abolição‖. 47 ASSIS, Machado de. ―História de 15 dias‖, 15/06/1877. In: Obra completa, v. 3. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004, pp. 367-369. 45 73 favor da liberdade de tua protegida, êle [Leôncio] tem o incontestável direito de reclamar e apreender a sua escrava onde quer que se ache‖.48 Mesmo com todo o sofrimento que Geraldo conheceu ser a vida de Isaura perceba-se que o direito de Leôncio, o senhor escravista, foi tido, pela personagem, como ―incontestável‖. No diálogo entre Álvaro e Geraldo, o advogado, discute-se também a questão das leis e conseqüentemente da ―intervenção‖ do Estado no tocante à escravidão – mesmo sem especificar o dispositivo legal que estava em vigor desde 28 de setembro de 1871, afinal, o enredo romântico se passa em meados do século XIX, quando tal dispositivo não existia. Em meio às alegações de Álvaro quanto aos excessos e abusos cometidos por Lêoncio e a possibilidade de utilizá-los a favor de Isaura, o doutor, que é caracterizado como inteligente, firme, esclarecido, sincero e nobre, faz a seguinte declaração: meu caro Álvaro; esses excessos e abusos devem ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar doméstico, e ingerir-se no gôverno da casa do cidadão? que abomináveis e hediondos mistérios, a que a escravidão dá lugar, não se passam por êsses engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos, dêles tenham conhecimento?…49 Para a personagem Geraldo, a escravidão era uma questão de foro privado, apesar de apresentar-se contrário a essa instituição. Sobre os abusos do escravista considerou: ―enquanto houver escravidão, hão de se dar êsses exemplos. Uma instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão ser extintos cortando-se o mal pela raiz‖. 50 No romance, Geraldo é a encarnação da sensatez, era contra a escravidão quanto era a favor de uma solução senhorial para extingui-la. Sua caracterização certamente denota um pouco da posição do literato a respeito da escravidão e a forma que julgava ideal para extingui-la. Na descrição do narrador, Geraldo Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado altamente conceituado no fôro do Recife. Entre as relações de Álvaro era a que cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate, firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro. 51 48 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 117 e 164-165. Grifo nosso. Ibidem, p. 165. Grifos nosso. 50 Ibidem, pp. 165-166. 51 Ibidem, p. 117. 49 74 Sua relação com Álvaro criava um elemento favorável às duas personagens e à perspectiva de emancipação que resulta dos diálogos e divergências entre os amigos. Conforme o narrador bernardino, Seu [de Geraldo] espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às insinuações e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéias excêntricas e reformistas de seu amigo [Álvaro]; mas êsse antagonismo, longe de perturbar ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre êles reinava, servia antes para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia que deve reinar nas relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que uma quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem, enjoadas de tanto se dizerem – amém, – ver-se-ão forçadas a recolherem-se ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta amizade!… De mais, a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se uma pelas outras. É assim que muitas vêzes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo serviam de corretivo às utopias e exaltações de Álvaro, e vice-versa.52 Nem o radicalismo antiescravista (abolicionismo e seu ―desrespeito‖ à propriedade) tampouco o apego demasiado à escravidão foram defendidos por Bernardo Guimarães. A emancipação que garantiu a vitória moral e econômica de Álvaro – que possuía cunho passional e racional simultaneamente – pode ser entendida como um resultado de seu diálogo com o Dr. Geraldo. ―E‘ do choque das idéas que sae a luz da verdade‖, destacou outro indivíduo que se envolveu nos debates em torno da emancipação: ―e‘ no desencontro das opiniões individuais, que se póde basear a synthese de um verdadeiro systema, que aproveite a humanidade‖. 53 Talvez, tal característica ―prudente‖ tenha sido um aprendizado extra-curricular dos acadêmicos de direito (da personagem e do literato). Conforme Sérgio Adorno, o principal legado que a Academia de Direito de São Paulo transmitiu a seus filhos foi o de um aprendizado que não encontrou espaço nas salas de aula; o aprendizado de que o segredo da harmonia da vida civil e política residia na descoberta de pontos de equilíbrio entre radicalismos contrapostos, entre os avanços da história e a precaução própria aos espíritos ―práticos e reflexivos‖.54 52 Ibidem, pp. 117-118. Grifo nosso. MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 3 54 ADORNO, Os Aprendizes do Poder, p. 159. 53 75 Não sem razão, a personagem Álvaro (ex-acadêmico de curso jurídico), que foi descrito como ―abolicionista exaltado‖,55 ao libertar seus escravos o fez com toda a prudência emancipacionista (ou de ―abolicionista moderado‖) que já apresentamos. Ao que parece, o literato apresenta uma proposta de conciliação. Voltemos ao diálogo. Diante da negativa do doutor, quanto à possibilidade de uma ação judicial em favor da liberdade de Isaura, Álvaro declara: A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a êsse ponto o respeito por um procedimento absurdo, resultante de um abuso que nos desonra aos olhos do mundo civilizado. Seja embora o primeiro a dar êsse nobre exemplo, que talvez será imitado. Sirva êle ao menos de um protesto enérgico e solene contra uma bárbara e vergonhosa instituição. 56 Não pense, no entanto, apesar do discurso exposto pela personagem Álvaro, que o desfecho da história se dá com a extinção da escravidão de Isaura e dos demais escravos emancipados através de leis (da intervenção do Estado), pelo contrário, os dois casos de emancipação ocorridos no romance se dão pela ação direta de um senhor (Álvaro) que é representado como um exemplo a ser seguido. A própria personagem senhorial imaginava que poderia ser imitada em sua ação antiescravista como temos explicito no romance. Poder-se-ia argumentar que se referindo aos ―primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II‖, Bernardo Guimarães não poderia apresentar uma proposta de emancipação realizada através de leis (nesses tempos isso não existia). No entanto, o tempo histórico da narrativa foi uma escolha do literato que poderia ter optado por tantos outros momentos da história do Brasil. Talvez para dar à sua obra características históricas mais verossímeis o literato tenha escolhido aquele tempo, no qual o governo imperial não buscava ―intervir‖ na relação entre senhores e escravos. Tal escolha pode referir-se ao processo de emancipação defendido pelo literato. Ademais, atente-se para o fato de o narrador ser declaradamente contemporâneo ao período do lançamento do livro (meados da década de 1870), ou seja, narra a história sob a perspectiva e preocupações de seu tempo. No 55 56 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114. Ibidem, p. 168. Grifo nosso. 76 romance, o narrador logo declara: ―era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II‖,57 indicando se tratar de uma narrativa posterior aos acontecimentos narrados. A respeito da proposta emancipacionista posta no romance, perceba-se ainda que o argumento apresentado pela personagem Álvaro ao seu amigo bacharel, ao julgar que poderia recorrer judicialmente em favor da liberdade de Isaura, nada mais era do que uma reivindicação para que fosse cumprida a prerrogativa senhorial – mesmo depois da morte – em alforriar seu escravo. Eis o argumento: Isaura tem-me contado tôda a sua vida, e segundo creio, pode alegar, e talvez provar direito à liberdade. Sua senhora velha, mãe do atual senhor, a qual criou-a com todo o mimo, e a quem ela deve a excelente educação, tinha declarado por vêzes diante de testemunhas, que por sua morte a deixaria livre; a morte súbita e inesperada desta senhora, que faleceu sem deixar testamento, é a causa de Isaura achar-se ainda entre as garras do mais devasso e infame dos senhores. 58 Diante do argumento explicitado acima, a personagem emancipacionista pretendia que Isaura fosse ―mantida em liberdade, e que lhe seja nomeado curador a fim de tratar do seu direito‖. Enfim, como argumentamos a trama posta no romance se antepõe à legislação emancipacionista de 1871: defendia a prerrogativa senhorial em conceder a liberdade. A proposta de ação judicial, neste sentido, não seria considerada uma intromissão na vontade senhorial de Leôncio, que então se encontrava na posse ―ilegal‖ (ou ao menos imoral) de Isaura; mas sim para que fosse comprida a vontade (prerrogativa) de sua mãe que em vida era na prática a senhora da dócil escrava. Aliás, a própria prerrogativa senhorial da mãe de Leôncio foi muitas vezes usurpada por seu filho e pelo comendador, seu marido. Conforme foi narrado, a boa velha tentou por diversas vêzes escrever seu testamento a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupila; mas o comendador, auxiliado por seu filho com delongas e fúteis pretextos, conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvável e santo desejo de sua espôsa, até o dia em que, fulminada por um ataque de paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas sem ter tido um só momento de lucidez e reanimação para expressar sua última vontade. 59 57 Ibidem, p. 21. Grifo nosso. Ibidem, p. 164. 59 Ibidem, pp. 36-37. 58 77 A imprudência escravista, que sequer levou em consideração os desejos de sua mãe em alforriar Isaura, se liga aos elementos que acirraram os problemas do escravista Leôncio: se tivesse libertado Isaura, ou permitido que sua mãe o fizesse, teria evitado a quebra de sua autoridade moral (pela fuga de Isaura) e os dispendiosos esforços financeiros em sua busca pela escrava. Mas como suas características e seu histórico escolar sugerem, ele não tinha elevados dotes intelectuais para permitir-lhe perceber o quanto a escravidão lhe era prejudicial. Se tivesse conduzido o processo de emancipação principiado por sua mãe talvez tivesse evitado sua ruína. Para Álvaro, o escravista Leôncio mancha a sua vida com uma nódoa indelével conservando na escravidão essa mulher [Isaura]; cospe o desrespeito e a injuria sôbre o túmulo de sua santa mãe, que criou com tanta delicadeza, educou com tanto esmêro essa escrava, para torná-la digna da liberdade que pretendia dar-lhe, e não para satisfazer aos caprichos de V. S.ª. Ela por certo lá do céu, onde está, o maldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição ao homem que retém no mais infamante cativeiro uma criatura cheia de virtudes, prendas e beleza.60 É importante destacarmos que a progenitora de nosso perverso e irracional senhor, agiu de forma tradicional nos moldes senhoriais ao indicar que Isaura ficaria livre por sua morte. Era este um momento no qual o escravo poderia ter reconhecida sua obediência, recebendo a alforria. O reconhecimento da autoridade senhorial, que não faltava em Isaura, era um dos elementos que credenciavam o escravo à liberdade. A possibilidade da alforria, conforme Márcio de Sousa Soares, ―era um elemento basilar nas políticas de domínio que os senhores engendraram no intuito de obter o maior sucesso possível no governo dos escravos‖.61 Foi com pesar, para o narrador e algumas personagens, que a emancipação principiada pela velha senhora não ocorreu; afinal, elementos que habilitavam a escrava à vida em liberdade não faltaram em sua caracterização (era branca, obediente, educada, ou seja, satisfazia as expectativas senhoriais do ―bom‖ e fiel escravo). Se tal emancipação tivesse sido concretizada, no entanto, ficaria inviabilizado o enredo romântico – ao menos como o conhecemos – já que estaria cessado o grande obstáculos à felicidade de Isaura. A imprudência escravista de Leôncio certamente não lhe foi muito proveitosa tanto moralmente quanto economicamente, eis a mensagem posta no romance. Conforme 60 Ibidem, pp. 192-193. SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750-c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, pp. 85, 103 e 122. 61 78 Arethuza Helena Zero, ―além das fugas representarem um mau exemplo aos escravos não fugitivos, causavam prejuízos econômicos‖. 62 É importante destacarmos que Álvaro, o senhor emancipacionista, é o grande protagonista da história da emancipação no romance, ou seja, aquele que imprime as características do desfecho da trama: uma emancipação prudente, ordeira e economicamente viável. O desfecho do romance, com a vitória do senhor emancipacionista, configura-se como mais um ensinamento liberal: os mais hábeis e preparados como Álvaro sobressairiam na sociedade pós-escravidão. A disputa entre as personagens é significativa para compreendermos o pensamento liberal de uma parcela da sociedade que julgava se preparar para novos tempos, os tempos ―competitivos‖ – também para os senhores – de uma sociedade não-escravista. Outros indivíduos, também, reconheceram que a escravidão era uma questão econômica, a exemplo do literato Joaquim Manuel de Macedo que, em uma passagem de sua nota ao leitor de As vítimas-algozes, asseverou que a emancipação imediata e absoluta dos escravos, que aliás pode vir a ser um fato indeclinável e súbito na hipótese de adiamento teimoso do problema, e provocador do ressentimento do mundo, seria louco arrojo que poria em convulsão o país, em desordem descomunal e em soçobro a riqueza particular e pública, em miséria o povo, em bancarrota o Estado. 63 Ou, ainda, para o deputado Gomes de Castro que, em 21 de junho de 1869, em discussão sobre uma proposta para a realização de matrícula especial dos escravos existente no Império, destacou a imprudência econômica da proposta que estipulava liberdade para os escravos não matriculados e imposto de 500 rs. por escravo maior de dez anos. Para o deputado, vamos assustar o paiz (apoiados, muito bem) com essas medidas parciaes e indirectas, que não resolvem a questão, e apenas servem para depreciar o capital que possuimos […]. […] é necessario que os representantes da nação ataquem o problema de frente, e o resolvam de maneira condigna de sua illustração, e compativel com os legitimos interesses do paiz; mas não devemos minar essa propriedade, que, com pezar confesso, é a fortuna de todos, […] de um modo subtil e sorrateiro.64 62 ZERO, Arethuza Helena. ―O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro (1871-1888)‖. Dissertação de Mestrado: IE/UNICAMP, 2004, p. 38. 63 MACEDO, As vítimas-algozes, p. 9. 64 Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: primeiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1869. Tomo 2, 1869, p. 194. Grifo nosso. 79 Todavia, na literatura foi Bernardo Guimarães quem se serviu deste debate na tentativa de convencer a classe senhorial ao enfatizar a vitória da personagem emancipacionista. Joaquim Manuel de Macedo, a saber, optou por destacar a vingança escrava como meio para ―iluminar os proprietários de escravos e convencê-los de que está em seus próprios interesses auxiliar o Estado na obra imensa e escabrosa da emancipação‖.65 Como já mencionammos, a emancipação para Macedo era uma tarefa do Estado (através de uma lei) em que a classe senhorial deveria ―auxiliar‖, ao contrário da perspectiva de Bernardo Guimarães cuja emancipação era tida como uma tarefa para a classe senhorial. Macedo buscou uma emancipação em que o Estado e a classe proprietária atuassem juntos, resultando num processo ―com a menor soma possível de sacrifícios‖. Proposta que foi justamente a intenção do visconde do Rio Branco, conciliar o interesse dos senhores com o interesse público, ao lutar por uma emancipação lenta e gradual através de aparatos legais.66 Bernardo Guimarães e a lei do ventre-livre Realizada nossas considerações, precisamos ressaltar que, no romance A escrava Isaura, Bernardo Guimarães não tratou explicitamente da lei que então regulava a extinção do ―elemento servil‖. Em 1882, no entanto, saudou-a (em verso) pelo seu mérito em relação à ―emancipação da prole das escravas‖, inclusive, seguindo as concepções históricas de sua época, atribuiu tais transformações aos grandes vultos (ao visconde do Rio Branco e ao monarca D. Pedro II) que por sua sabedoria ―não mais nascerão escravos‖, ―sôbre o solo brasileiro‖. Em seu ―Hino à lei de 28 de setembro de 1871‖, datado de 28 de setembro de 1882, publicado no livro Folhas de outono, colocou a extinção da escravidão como tarefa dos grandes homens. Conhecendo a perspectiva posta em seu mais conhecido romance, temos que considerar que em tal Hino tenha Bernardo Guimarães apresentado mais do que um simples elogio ao monarca e ao visconde. Vamos ao hino em sua íntegra: 65 MACEDO, As vítimas-algozes, p. 9. CARNEIRO, Édison. ―A lei do Ventre-livre‖. Afro-Ásia, 13, 1980, p. 22. Suspeita-se que As vítimasalgozes foi produzida sob encomenda do próprio imperador para ―preparar o ‗espírito‘ dos senhores para a lei do Ventre Livre‖. Cf. AMARAL, ―Emancipacionista‖, pp. 200-210; e, ainda, TRÍPOLI, Mailde Jerônimo. ―Imagens, máscaras e mitos: o negro da literatura brasileira no tempo de Machado de Assis‖. Dissertação de Mestrado: IEL/UNICAMP, 1997, pp. 87-88. 66 80 Quebrou-se a tremenda algema, Que o pulso do homem prendia, E resolveu-se o problema Que tanto horror infundia. Esta data gloriosa Em letras de ouro grava: — Em nossa pátria formosa Não nasce mais prole escrava. Na terra da liberdade Destruiu-se o jugo vil; Onde impera a cristandade, Não há mais raça servil. Esta data gloriosa, etc. Graças ao sábio Monarca, Da nação chefe eminente, Não há mais do escravo a marca No Brasil independente. Esta data gloriosa, etc. De Rio Branco à memória Rendamos eterno culto; Ergam-se hosanas de glória A seu venerado vulto. Esta data gloriosa, etc. Ao Estadista eminente Erga a pátria este padrão: — No Brasil independente Extirpou a escravidão. Esta data gloriosa, etc. Destruiu cruel vexame, Que tanto nos humilhava; Apagou labéu infame, Que a fonte nos malsinava. Esta data gloriosa, etc. Da liberdade ao ruído, Ante a nova geração, É uma voz sem sentido A palavra — escravidão. Esta data gloriosa, etc. Não mais nascerão escravos 81 Sôbre o solo brasileiro; Não mancha a terra dos bravos O estigma do cativeiro. Esta data gloriosa Em letras de ouro grava: — Em nossa pátria formosa Não nasce mais prole escrava.67 Na poesia acima, Bernardo Guimarães sugeriu que, com a lei do ventre-livre, já estava extinta a escravidão no império. Segundo Joseli Nunes Mendonça, em 1871, a lei, que eliminou o nascimento de escravos no Brasil, foi vista como perturbadora da ordem e ―contra os direitos dos proprietários‖. Já nos momentos de discussão da libertação dos sexagenários, nos anos de 1884 e 1885, os mesmos que fizeram oposição à lei de 1871 se apegaram a ela para evitar novas leis que regulassem as relações entre senhores e escravos.68 Nesta conjuntura, buscou-se impedir a criação de novas leis emancipacionistas. Em 1882, chegou-se até a cogitar a formação de um ―novo partido‖ para coibir tais ações: ―fala-se na corte na formação de um partido, composto por liberais e conservadores, para opor-se a idéa da ampliação, que porventura pretenda-se dar á lei de 28 de setembro‖.69 Também no inicio da década de 1880, Sylvio Roméro, que também se pronunciou contra uma emancipação organizada pelo Estado, argumentou que ―depois da lei de 28 de setembro de 1871, a escravidão é um phenomeno mórbido, uma instituição que vae morrer, uma arvore damninha a que se cortaram as raizes‖. 70 Os opositores de novas ―intervenções‖ do Estado na ―questão servil‖ argumentavam que a lei 28 de setembro de 1871 era suficiente para extinguir a escravidão.71 Bernardo Guimarães foi além, para ele com aquela lei já estava extinta a escravidão. Teria Bernardo Guimarães que, em 1875, defendeu o protagonismo senhorial, utilizado tal tática ao, em 1883, publicar seu elogio ao monarca, ao visconde do Rio Branco e à lei de 1871? Não temos registros históricos suficientes para uma afirmação categórica; todavia, a referência indireta que o literato fez ao referido dispositivo legal (na 67 GUIMARÃES, Bernardo. Folhas de outono, 1883 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959), pp. 381-382. 68 MENDONÇA, Joseli Nunes. Entre a mão e os anéis: a leis dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. 2ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp. 122-123. 69 ―Novo Partido: Lê-se no Diario de Noticias‖. Echo Sant’amarense, ano 1, n. 166, Santo Amaro, BA, 15/01/1882, p. 2. BPEB, Periódicos Raros. 70 ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 192. 71 MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 48; COSTA, A abolição, pp. 59, 81 e 89. 82 década de 1870), bem como sua defesa da lei no ano de 1883 sugerem uma resposta afirmativa. O literato não viveu ao ponto de ver promulgada a lei de 28 de setembro de 1885, pois faleceu em 10 de março de 1884, todavia, decerto, acompanhou debates em torno da ―necessidade‖ de novas leis que regulassem o processo de transição do trabalho escravo ao livre. Como vimos, ele não julgou que o melhor caminho para a emancipação fosse através de intervenções do Estado. Provavelmente, julgou necessário coibir novas leis emancipacionistas; já que, para ele, a lei de 1871 já havia ―decretado‖ o fim da escravidão. De modo geral, podemos considerar que havia muitas semelhanças das formulações de Bernardo Guimarães com as considerações de Sylvio Romero publicadas na Revista Brazileira em 1881 na qual considerava que O melhor meio de acabar com a escravidão não é formular projectos absurdos e combinações legislativas engenhosas. O melhor meio de acabal-a é cerceal-a, pôl-a em estado de sitio, estabellecer com ella a concurrencia, tornal-a inútil, e depois impossivel. E‘ fazer crescer a seu lado o trabalho livre, mais fecundo, e depois mais facil, mais barato; é, em uma palavra, matal-a economicamente. Aquelle órgão se atrophiará por falta de funcção. Não será preciso, portanto, pedir ao governo que decrete leis contra a escravidão. 72 Também da década de 1880 é o romance Rozaura, a engeitada, no qual no último capítulo do primeiro volume, o narrador bernardino apresenta considerações que indicam referir-se a lei do ventre-livre. Trata-se de uma breve passagem na qual é exposta uma senhora/personagem que vivia da venda da cria de escravas. A referida personagem ―era tida em conta de uma boa e honesta senhora, reputação que devia talvez mais aos seus haveres do que a qualidades reaes‖. Para o narrador, ―o amor ao dinheiro, o desejo de engrossar cada vez mais o seu já soffrivel mealheiro, era o movel principal de todas as suas acções‖. Vivia ela com o lucro que obtinha com o trabalho de sete escravas que herdou de um irmão juntamente com os produtos (aguardente, fumo, quitanda) da quinta que possuía.73 Todavia, seu maior lucro provinha de um ―viveiro de escravos‖: Um lucro porém mais avultado lhe provinha das sete escrava; ha doze ou quatorze annos, que lhe pertencião, estas escravas tinhão dado já umas vinte e tantas crias lindas e vistosas, as quaes logo que chegavão á edade de dez annos, a boa mulher tratava de vender pelo melhor preço que podia. Seu estabelecimento bem se podia chamar um viveiro de escravos. 72 73 ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 196. Grifo do original. GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, pp. 249-250. 83 Na época em que nos achamos, já ella havia melhorado consideravelmente o estado de sua burra, e tinha a casa cheia de uma chusma de creanças da mesma procedência e condemnados ao mesmo destino. Parece que ella conhecia um annexim egoistico e deshumano de nossos antepassados, que diz: creoulos creál-os e vendel-os, – e sabia executal-o á risca.74 Ao lermos tais críticas, devemos considerar que se tratava de outro momento, quando a lei do ventre livre já estava em vigor há mais de uma década e já se cogitava a criação de uma nova lei emancipacionista. Ademais, temos que considerar que criticar uma ação não significa necessariamente que se considere que o Estado deva intervir para sanála. Nesse sentido, a proposta emancipacionista de A escrava Isaura – que mesmo discordando da existência da escravidão, tem sua ―extinção‖ colocada como ação privada a ser exercida pelo senhor – é significativa. Ademais, no próprio romance que retiramos a citação posta acima, houve personagens que, ao tentar liberta uma escrava (vítima da dona do ―viveiro de escravos‖), agiram de maneira tradicional, tentando comprá-la para depois alforriá-la.75 Nem mesmo em ―Uma história de quilombolas‖, publicada em 1871 – quando a emancipação era uma pauta de muitos intelectuais – Bernardo Guimarães se referiu explicitamente à proposta de emancipação do governo. No segundo volume de Rozaura, a engeitada, o narrador apresenta ainda a história de uma personagem que, tendo nascido de pais livres, foi submetida ao cativeiro. No romance é reivindicada a liberdade de Rozaura justamente por sua condição de nascimento: ―partus ventrem sequitur‖, ―a cria segue a condição da mãe‖, 76 eis o que é indicado na história que, neste quesito, se aproxima da concepção do romance publicado em 1875. 74 Ibidem, p. 250. Na obra, publicada em 1883, só foi cogitada a possibilidade de recorrer à justiça para tentar provar a condição de nascimento livre da ―escrava‖, cuja mãe era livre por nascimento. Todavia, foi uma ação de outra personagem que tomou conhecimento da história da ―escrava‖. Cf. GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2. 76 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2. 75 ANSELMO, UM CAPITÃO-DO-MATO EMANCIPACIONISTA: REPRESSÃO E ALFORRIA NA LITERATURA ROMÂNTICA BERNARDINA Para além de A escrava Isaura A escrava Isaura não foi o único romance em que Bernardo Guimarães tratou da escravidão; sendo mais vasto seu repertório de personagens que se envolveram em conflitos em torno da emancipação e do controle dos escravos, a exemplo de Anselmo que é uma das personagens – mais precisamente o herói romântico – de ―Uma história de quilombolas‖ publicada, em 1871, no volume Lendas e romances.1 Obra que, ao que tudo indica, não foi muito valorizada pelo mercado editorial, tendo o literato, provavelmente, conhecido uma única edição.2 Em 1914, Dilermando Cruz, biógrafo do poeta e romancista Bernardo Guimarães, destacou: Difficilmente, vendo-se a brochura, poder-se-á suppor que se trate de um livro em que se encontram tão interessantes trabalhos. Imagine o leitor que a brochura, em sua capa azul, de ordinarissimo papel egual ao que é usado geralmente nas capas dos roes de roupa servida, não tem, siquer, o nome do autor nem o título do livro!! Pelo typo das letras, pela impressão, pelo papel empregado, vê-se logo que esse livro foi impresso ha muitos annos, e talvez não tenha tido outras edições precisamente por ter sido impresso de tal forma que, collocado nas vitrines, á vista do publico, este não poderá jámais suppor que elle seja o magnifico trabalho que é, e escripto por quem foi. Um livro bem impresso tem meio successo garantido, e as ―Lendas e Romances‖ de Bernardo Guimarães bem mereciam maior cuidado na sua feitura material. 3 As considerações do biógrafo sugerem que a referida obra tenha caído num certo esquecimento devido à sua péssima composição material. Indica também que o exemplar que se encontrava em suas mãos era a primeira edição publicada pelo editor Baptiste Louis Garnier. Conforme o biógrafo, 1 No referido volume constam ainda as seguintes narrativas: ―A garganta do inferno‖ e ―A dança dos ossos‖. Cf. GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 5-105. 2 No derradeiro ano do século XIX houve uma ―Nova edição‖ também pela Casa Garnier. O literato faleceu em 10 de março de 1884 na província de Minas Gerais. 3 CRUZ, Bernardo Guimarães, p. 159. 85 a Casa Garnier, nesse particular, não é das mais zelosas; livros ha de Bernardo Guimarães, dos quaes o sr. Garnier é editor-proprietario, se não nos enganamos, e nos quaes apenas se lêm estas palavras nas suas respectivas capas: – Nova edição – mas não diz se é 2.ª, 3.ª, 4.ª, ou que edição é. 4 Deixemos, no entanto, os problemas editoriais referentes à apresentação do volume que, sem dúvidas, é, entre os livros de Bernardo Guimarães, um dos menos conhecidos, não tendo sequer recebido comentários de Sylvio Roméro, um importante crítico de finais do século XIX, que apenas o listou entre os livros do poeta e romancista, ao contrário do que fez a respeito de A escrava Isaura.5 A despeito das considerações de Dilermando Cruz temos que considerar que outros elementos foram importantes para o esquecimento desta e de outras obras do literato. É provável que as Lendas e romances tenham caído no esquecimento devido ao grande sucesso editorial de A escrava Isaura,6 que teria recebido uma ―edição magnífica: bom papel, feitura artística, impressão nítida e revisão mais ou menos cuidada‖. 7 Conforme Alfredo Bosi, o romance A escrava Isaura teve ―popularidade‖ devido ao problema explicitado, a escravidão.8 Esse que é o seu mais conhecido romance logo seria comparado a um importante romance antiescravista estadunidense: ―A Escrava Isaura póde bem rivalizar com a celebre Cabana do Pai Thomaz‖, assim, foi anunciada a obra no Jornal do Comércio de 29 de maio de 1875; 9 notícia que, como muitas outras, após a morte do literato, foram reunidas por José Maria Vaz Pinto Coelho e publicadas no volume Poesias e romances do Dr. Bernardo Guimarães (1885) pela tipografia de Laemmert (Rio de Janeiro). As características físicas do volume A escrava Isaura é mais um indício que foi publicado para ser consumido por classes mais abastadas da sociedade. Com as Lendas e romances a história não foi diferente. Em 1873, exemplares do referido livro eram vendidos por 3$000 em versão encadernada e 2$000 em brochura. 10 É provável que ao oferecer duas opções de venda para a referida obra, o editor Garnier estivesse se ajustando 4 Ibidem, p. 157. ROMÉRO, Sylvio. Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II (1830-1877). Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1888, pp. 958-959. 6 ROLIM, Anderson Teixeira. ―Bandidos e santos: um diálogo literário‖. Dissertação de Mestrado: PPGL/UEL, 2005, pp. 52-53. 7 CRUZ, Bernardo Guimarães, p. 158. 8 BOSI, História concisa da literatura brasileira, p. 143. 9 Apud COELHO, José Maria Vaz Pinto. Poesias e romances do Dr. Bernardo Guimarães. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert & C., 1885, p. 153. BN, Livros, I,260,2,4. 10 Tais valores são mencionados na primeira edição em volume de O indio Affonso (1873). 5 86 aos novos tempos de um mercado editorial de edições mais baratas, todavia sem abandonar seu tradicional público de edições melhor elaboradas. Conforme Alessandra El Far, tratando da década posterior ao lançamento das Lendas e romances, uma obra destinada ao povo variava de $100 (cem réis) a 1$ (mil réis) ou 2$ (dois mil réis), conforme o número de páginas, o tratamento editorial e o gênero em questão, enquanto o romance vendido pela Garnier girava em torno de 3$ (três mil réis) e 4$ (quatro mil réis), e até mais, dependendo do tipo de encadernação.11 Ademais, talvez, ao produzir um ―romance histórico‖, nosso literato tenha explicitado o público leitor por ele almejado, ―a classe elevada‖. Em novembro de 1847, nos Ensaios Litterarios – periódico que, como já mencionamos, contou com a colaboração de Bernardo Guimarães – foi destacada a diferenciação entre romance de imaginação (ou ficção) e o romance histórico que ―concentra sua attenção n‘um facto, e fal-o reflexionar sobre elle‖;12 bem como sugeriu para que público recaia cada uma das formas do romance. Questão que talvez tenha sido um aprendizado para os acadêmicos que adentraram ao mundo das letras. Conforme o articulista, o romance de ―imaginação‖ ou ―ficção‖ é por sua essencia mais adequada á classe proletária, que balda de instrucção aprecia mais a ficção do que a realidade, e muitas vezes confunde aquella com esta. Sem educação litteraria ella não tem dados para a justa apreciação de factos commentados pelo romancista historico, e no entretanto que a ficção é para ella um deleite, em que expande-se sua alma e coração, porque não lhe falta imaginação antes lhe sobra. O romance da vida real [histórico] é porem de mais solida instrucção e mais agradável e adequado a classe elevada da sociedade do que o romance todo ficticio.13 A saber, em ―Uma história de quilombolas‖ o literato retratou o período préindependência do Brasil, quando Minas Gerais, onde se passa a história, era ainda uma capitania, em finais do período colonial. A despeito desta provável tentativa do editor em atingir um público mais amplo, a julgar pelo discurso em torno da questão do elemento servil (discurso essencialmente direcionado à classe senhorial) o literato ao escrever tal história com um cunho histórico teve seu próprio público em mente. ―Uma história de 11 EL FAR, ―Livros para todos os bolsos e gostos‖, p. 333. ―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos, 2ª série, n. 1 (dezembro). São Paulo, 1847, p. 10. AEL/CECULT. 13 ―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos, 1ª série, n. 3 (novembro). São Paulo, 1847, p. 6. Grifo nosso. AEL/CECULT. 12 87 quilombolas‖ (inclusa nas Lendas e romances) foi publicada justamente no ano em que foi promulgada a lei que ficou conhecida como do ―ventre-livre‖, tendo sido sua publicação efetivada antes dela. Em 29 de junho de 1871 – três meses antes da promulgação da referida lei – foi anunciada sua publicação no Jornal do Comércio: A pena elegante e o fulgente engenho do Dr. Bernardo Guimarães são tão conhecidos, que annunciar uma obra delle é alvoratar quantos prezão as bôas lettras. Agora mesmo temos diante dos olhos mais um livro deste autor, de quem apenas se póde sentir que não sejão mais amiudadas as producções. Intitula-se Lendas e Romances e contém tres contos de vivo interesse: Uma História de Quilombolas, A Garganta do Inferno e A Dansa dos Ossos. É editor o Sr. B. L. Garnier.14 Todavia, diferentemente de Machado de Assis que naquela conjuntura destacou a incapacidade senhorial para conduzir a emancipação,15 nosso literato apresentou uma narrativa na qual a emancipação ocorria – de forma bem sucedida – sob os auspícios da ordem escravista (como também ocorreu no romance A escrava Isaura, publicado em 1875). Tal história estava, assim como muito do que se produziu no império de finais de 1860 a meados da década seguinte, relacionada ao embate – em pauta, não somente no seio parlamentar, mas também na imprensa e na literatura – em torno da ―melhor‖ forma para se conduzir a emancipação, quando uma das questões discutidas era evitar as propaladas insurreições escravas. Aliás, em sua província natal, no ano em que fui publicada ―Uma história de quilombolas‖, o vice-presidente Francisco Leite da Costa Belem destacou que ―diversas tentativas de insurreição de escravos tem-se dado em alguns municipios‖.16 É significativo que na narrativa de nosso literato vigore o conflito entre a ―boa sociedade‖ e os quilombolas que aterrorizavam as mentes de senhores e autoridades. Provavelmente, a questão da insurreição escrava fez com que o literato se colocasse como porta-voz de uma parcela da classe senhorial que visava eliminá-la. Por isso, a despeito do esquecimento que a referida história tenha sofrido, julgamos que a perspectiva emancipacionista de Bernardo Guimarães pode ser mais bem compreendida se confrontarmo-la com um de seus mais conhecidos romances; ambas as obras, como veremos, formaram um imbricado conjunto romântico emancipacionista que estabeleceu 14 Apud COELHO, Poesias e romances do Dr. Bernardo Guimarães, p. 134. ASSIS, ―Mariana‖; CHALHOUB, Machado de Assis, historiador, pp. 136-137 e 162-164. 16 Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou no acto da abertura da sessão ordinaria o vice-presidente Francisco Leite da Costa Belem. Ouro Preto: Typographia de J. F. de Paula Castro, 1871, p. 7. 15 88 relação com as discussões em torno das iniciativas do Estado na chamada ―questão servil‖, bem como através delas percebemos a perspectiva antiescravista de nosso literato com maiores detalhes. Visando atingir nosso alvo, nos serviremos especialmente das caracterizações das personagens envolvidas na captura de escravos fugidos, presente em ambas as obras. Nosso objetivo é analisar as representações de tais personagens e as intenções do literato com dadas representações. É importante destacarmos que não estamos tratando de personagens que atuaram profissionalmente enquanto capitães-do-mato, ofício que, conforme Luiz Mott, as primeiras referências remontam ao século XVII. Todavia, a oficialização do cargo e suas atribuições foi um processo lento, tendo sido atividade esporádica e temporária sendo exercida por qualquer indivíduo que poderia receber recompensa. Segundo Silvia Hunold Lara, ―as primeiras referências documentais a uma certa especialização na caça aos fugitivos datam de meados do século XVII. Algumas indicam haver pessoas nomeadas especificamente para essa tarefa, outras se referem a recompensas em dinheiro, fixadas pelas câmaras, por cativo apreendido‖. 17 Enfim, ao nos referirmos aos capitães-do-mato, tratamos de personagens que em dado momento atuaram na tentativa de capturar um escravo fugido, como também ocorreu para além das margens das páginas dos contos e romances. Por ora, podemos adiantar que as caracterizações das personagens envolvidas na captura (ou tentativa) de escravos fugidos produzidas por Bernardo Guimarães se relacionam com os comportamentos que o literato considerava adequado para os escravos. Comportamentos insubmissos não eram por ele tolerados, para estes casos, propôs punições, inclusive a pena de morte como ocorre com as personagens/quilombolas. 18 Liberdade apenas para os ―bons‖ escravos, ou seja, aqueles que se comportavam de acordo às expectativas senhoriais. Enfim, as representações do capitão-do-mato dão-se em oposição às dos escravos fugidos e seus comportamentos. Assim, consideraremos também as representações dos fugitivos como forma de compreender a mensagem do literato. Afinal, a existência de capitães-do-mato – sempre, seja na história real ou ficcional – se dá em virtude da existência da fuga escrava, do escravo fugido. Bernardo Guimarães 17 Cf. MOTT, Luiz. ―Santo Antônio: o divino capitão-do-mato‖. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 123; e LARA, Silvia Hunold. ―Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos‖. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 83, 88 e 98. 18 GUIMARÃES, Lendas e romances. 89 publicou, num curto espaço de tempo, duas representações divergentes a respeito dos capitães-do-mato. Questão que, talvez, num olhar aligeirado pudesse ser entendida como uma transformação no pensamento antiescravista do literato; no entanto, veremos que tais representações estiveram intimamente ligadas formando o que podemos definir como um projeto romântico-emancipacionista cujas representações dos escravos perseguidos são fundamentais para se compreender. Os capturadores ficcionais da obra de Bernardo Guimarães Eis uma das personagens, Anselmo, e sua idílica aparição que é narrada no romance: Pela estrada que vai do arraial da Cachoeira, onde outrora houve coudelaria imperial, para o de Congonhas, célebre por sua romaria do Bom Jesus Matosinho, um rapaz montado em um lindo cavalo prêto galopava cantarolando uma modinha amorosa. Era um moço bem disposto, de fisionomia agradável, de olhos negros e expressivos; trajava com asseio e esmero, e os arreios de sua cavalgadura cintilava ao sol, cobertos de prataria. Pôsto que de tez clara, todavia pela aspereza de seus cabelos negros e crespos, se conhecia claramente que tinha nas veias sangue africano. Em seu semblante risonho e expressivo transluzia a felicidade em tôda sua plenitude. O cavalo, caracolando e relinchando através daquelas aprazíveis campinas, aos primeiros raios de uma linda manhã de abril, parecia partilhar as alegrias de seu amo.19 Dirigia-se ele para uma fazenda aonde ―chegava, com o coração a pular de emoção e de felicidade, a primeira pessoa que avistava era uma linda rapariga de quatorze a quinze anos, que sempre, impreterivelmente, o esperava à porta, com o sorriso nos lábios e os olhos radiantes de prazer‖. Na ocasião, no entanto, teve uma triste surpresa. Florinda havia sumido: ―Anselmo sentiu gelar-se-lhe o coração, os olhos se lhe escureceram, e quase caiu do cavalo abaixo‖. 20 Florinda havia sido raptada e levada para um quilombo, o que provocou a atuação de Anselmo como ―capitão-do-mato‖.21 Aqui, o obstáculo ao feliz desenlace romântico também é a escravidão, todavia, ao contrário do que ocorre em A escrava Isaura, não é um perverso senhor que impõe os óbices e sim os quilombolas. Anselmo é caracterizado como nobre, corajoso e leal; um perfeito herói romântico. Corajoso, saiu em caçada aos quilombolas apesar das advertências quanto aos 19 GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 14. Ibidem, pp. 14-15. 21 Ibidem, pp. 15-16. 20 90 perigos da empreitada: ―Não faça tal, bradou o patrão; está doido, homem! Olhe que êles são muitos. Depois quem sabe de que quilombo são e que rumo levaram? Há tantos quilombos por êsses matos…‖; ―Mas o senhor sòzinho nada pode fazer, Sr. Anselmo‖. Com a recusa de Anselmo em ficar, o ―patrão‖ ofereceu-lhe dois companheiros para a empreitada: ―já que assim o quer a todo transe, espere um momento; não vá sòzinho; leve dois dos meus camaradas‖. Iniciada a busca, ―descobriram a direção que tinham tomado os quilombolas‖. ―Mais adiante reconheceram que os negros tinham largado a estrada, e tinha trepado a serra procurando os lados dos pequenos arraiais chamados José Correia e Itatiaia, em cujas imediações havia famosos e formidáveis quilombos‖. 22 A cada instante aumentava-se os perigos da ação sem que esmorecesse a coragem do valente Anselmo. Conforme é narrado, O terreno tornava-se cada vez mais rude e impraticável, e era gravíssimo o perigo que corriam, caso encontrassem os quilombolas. Seus companheiros, que não tinham a sua coragem, nem eram animados do mesmo estimulo que êle para prosseguir em tão arriscada emprêsa, começaram a desanimar, e em vão tentavam dissuadi-lo de seu propósito. — Ainda que gaste oito dias e oito noites por estas brenhas sem comer e sem dormir, hei de segui-los, e hei de descobrir o quilombo, ainda que seja no inferno. Vamos, vamos, meu valente cabiúna; é só contigo que eu conto, dizia Anselmo batendo na tábua do pescoço do seu brioso cavalo. Vamos salvar a pobre Florinda, ou morrer com ela. 23 De feito, somente o corajoso Anselmo e seu ―brioso cavalo‖ prosseguiram no encalço dos quilombolas, elemento que fortalece a caracterização de valente e corajoso de nosso herói romântico. Acabou, enfim, sendo capturado pelos quilombolas, seus antagonistas na história. Todavia, por ―tino‖ e ―reflexão‖, optou por não oferecer resistência: ―de que lhe serviria isso, senão para assanhá-los mais, e tornar inevitável a sua morte sem poder salvar Florinda, que era o seu principal e único fim?‖. 24 Conseguindo fugir dos quilombolas com uma incrível epopéia no acidentado terreno em torno de Vila Rica providenciou de imediato nova empreitada contra os quilombolas. Desta vez, foi na posição de chefia de um grupo de cinqüenta capitães-do-mato, homens do ―governadorgeneral D. Manuel de Portugal e Castro, que foi o último governador da capitania, e o primeiro presidente da província de Minas Gerais‖, e mais alguns voluntários. Ação que 22 Ibidem, pp. 16-17. Ibidem, p. 18. 24 Ibidem, pp. 18-19. 23 91 evidencia uma possível reivindicação do narrador para que o poder público e o dos senhores atuassem juntos em prol da manutenção da ordem, 25 que muitos envolvidos nos debates em torno da emancipação julgavam que a existência de uma lei (proposta pelo governo) regulando as relações entre senhores e escravos poderia prejudicar. Em virtude do empenho do governador-geral, Anselmo colocou sua cabeça à disposição caso não desse conta dos quilombolas. Mais uma prova de sua valentia. 26 Deixemos, no entanto, a coragem de nossa personagem e vejamos resumidamente um grande exemplo de sua lealdade, característica bastante acentuada na história. Assim como Álvaro do romance A escrava Isaura, Anselmo é o típico protagonista romântico que, por suas características, deveria ser almejado e imitado. Tendo chegado novamente ao quilombo, nosso ―capitão-do-mato‖ teve logo em seguida a surpresa de ver Florinda ameaçada por um quilombola. Alguns instantes depois houve um revés na história, ficando Florinda sob ameaça de Zambi Cassange, o chefe dos quilombolas. Diante da situação, que lhe era favorável, Cassange faz a seguinte proposta: ―vai já pôr em liberdade tôda minha gente, e nos deixa em paz; e você levará Florinda‖. Perante tal proposta, ―Anselmo recuou dois passos; a proposição era altamente comprometedora, e punha em sério perigo sua cabeça‖ que estava comprometida com o governador-general. Todavia, ―tratava-se de salvar Florinda, e não haveria sacrifício a que se recusasse para êsse fim‖: aceitou o acordo. Quando o acordo foi firmado, ―os milicianos e capitães do mato tinham já amarrado todos os quilombolas, à exceção de uns dois ou três que morreram, e outros tantos que sempre lograram evadir-se‖. Os companheiros de Anselmo reconhecendo sua vantagem julgavam que o ideal era agir contra os quilombolas e descumprir o acordo do qual tomaram conhecimento: ―não há lei nenhuma que nos obrigue a guardar lealdade para com semelhantes feras‖, disse um dos capitães-do-mato, acrescentando, ―demos cabo desta canalha, enquanto está em nossas mãos‖. Anselmo, no entanto, não quebraria o acordo: ―por mim não quebrarei nunca meu juramento‖. Foi então que ―os companheiros de Anselmo, vendo a disposição horrível do negro contra a pobre Florinda, e por outro lado admirados da lealdade e coragem do moço a quem começavam a estimar e a respeitar, não 25 Conforme Pereira, o Estado e classe senhorial muitas vezes agiam unidos no intuito de preservar a ordem vigente no século XIX. O primeiro se incumbia de destruir quilombos e evitar insurreições escravas e os senhores ofereciam recompensas para quem capturasse os escravos fugidos. Cf. PEREIRA, ―As representações da escravidão‖, p. 52. 26 GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 74-75. 92 ousaram mais insistir‖. 27 Para evitar a possível desgraça de Anselmo, um indivíduo leal e corajoso, um de seus companheiros propõe: mas para satisfazer o Sr. governador e desempenharmos nossa palavra, cortemos a cabeça àqueles sete que ali estão enforcados, e mais a êsses dois que matamos, e levemos para Vila Rica. Nove cabeças de quilombolas já não é um mimo para se desprezar, e S. Ex. não deve ficar mal satisfeito. — Bravo! muito bem, exclamaram alguns; façamos isso e ficará tudo remediado. Diremos que os outros escaparam, e nenhum de nós baterá com a língua nos dentes sôbre o acontecido. — Nenhum, nenhum de nós, repetiram muitas vozes. 28 Proposta que, mesmo colocando sua cabeça em evidência, Anselmo recusa-se a aceitar por não julgar digna: — Nada disso, meus amigos, bradou Anselmo; semelhante procedimento são [sic] seria digno de mim, nem de vocês; eu vou contar ao governador, com tôda a franqueza, tôda esta história tal qual tem acontecido, e lhe direi que tudo isso foi feito por mim e por minha ordem, para salvar esta infeliz. O governador me confiou a honra de dirigir e comandar esta diligência; vocês nada fizeram senão me obedecer como deviam, a eu afianço que nada sofrerão. Quanto a mim, que me importa! minha cabeça rolará no chão, porém ao menos terei salvado Florinda.29 Enfim, o capitão-do-mato Anselmo é caracterizado na história como uma digna e admirável figura; assim como Álvaro, era um perfeito herói romântico, um protagonista que é fundamental para a concretização do bom e feliz desfecho romântico emancipacionista. Por outro lado, em 1875, o literato apresenta de maneira depreciativa a personagem Martinho que também atuou enquanto capitão-do-mato. Martinho, personagem que assume a tarefa de capturar Isaura, é caracterizado por ―seu satânico instinto de cobiça‖ que o fez ―farejar uma escrava na pessoa daquele anjo!‖. Era um estudante que se mantinha do ―rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista‖, mas pelo ―espírito de cobiça, e de sórdida ganância‖ atuou nas buscas por Isaura. Era um acadêmico e freqüentador dos fictícios bailes de Recife, mas não é totalmente identificado com a ―sua‖ classe; eis o que diz outra personagem após Martinho ter desmascarado Isaura, que se fazia passar por livre, em pleno baile: ―êste homem, se não é um insolente, 27 Ibidem, pp. 81-85. Ibidem, pp. 85-86. 29 Ibidem, p. 86. 28 93 ou está louco ou bêbado […]. Em todo caso deve ser enxotado como indigno desta sociedade‖. É caracterizado, pelo narrador, como um estudante que ―pelo desalinho do trajo, sem o menor esmêro e nem sombra de elegância, parece mais um vendilhão‖. Aliás, um contraste com a personagem Anselmo que possuía ―fisionomia agradável‖ e ―trajava com asseio e esmero‖.30 Foi, no entanto, principalmente por sua atuação no caso de Isaura que pretendiam extingui-lo da sociedade: — Forte miserável… disse um dos comparsas — que vil ganância de ouro a dêste Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender aquela môça aqui mesmo em pleno baile. — Por cinco contos [de réis] é capaz de tôdas as infâmias. Tão vil criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para expeli-lo da Academia. 31 Ao apresentar a personagem, que irá ―tomar parte um tanto ativa nos acontecimentos desta história‖, o narrador destaca: o seu todo respira o mais chato e ignóbil prosaísmo. Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmensuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que na opinião de Lavater, é indício de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez. O todo da fisionomia tôsca e quase grotesca revela instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém, mais o caracteriza é certo espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que lha transpira em tôdas as palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria.32 As feições (formes e deformes) das personagens são associadas às suas características psicológicas e morais. O literato recorreu a um discurso ―científico‖ de sua época para apresentar pejorativamente a personagem que atuou enquanto capitão-domato.33 Mailde Jerônimo Trípoli, em sua dissertação de mestrado sobre a imagem do ―negro na literatura brasileira no tempo de Machado de Assis‖, cita o mesmo trecho do romance de Bernardo Guimarães para demonstrar que o discurso científico racialista que buscava legitimar a escravidão ―não se limitou às páginas científicas e aos discursos 30 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 138, 153 e 157. Ibidem, p. 146. 32 Ibidem, p. 138. Grifo nosso. 33 Sobre os discursos científicos no Brasil de finais do século XIX e inícios do XX ver: SCHWARCZ, O espetáculo das raças. 31 94 escravocratas‖.34 Aliás, o literato cita o nome de um indivíduo influente nesta corrente de pensamento, o suíço Johann Caspar Lavater que, em 1780, ―sistematizou a fisiognomonia‖, método ―segundo o qual poder-se-ia detectar todas a qualidades de um indivíduo pela sua fisionomia‖. 35 Conforme Lilia Moritz Schwarcz, a partir do século XIX, uma postura influente foi estabelecer ―correlações rígidas entre patrimônio genético, aptidões intelectuais e inclinações morais‖. 36 Ao contrário de Anselmo, Martinho não era um indivíduo leal visto o espanto do senhor emancipacionista, Álvaro, que ao ser informado por ele que Elvira – nome adotado por Isaura quando fugida – era uma escrava fugida não tinha motivos para acreditar naquela personagem. Conforme o narrador, Álvaro, se bem que conhecesse a vilania e a impudência do caráter de Martinho, no primeiro momento ficou pasmo ao ouvir aquela súbita e imprevista delação. Não podia dar-lhe crédito, e refletindo um instante confirmou-se mais na idéia de que tudo aquilo não passava de uma farsa posta em jôgo por algum indigno rival, com o fim de desgostá-lo ou insultá-lo. A pessoa do Martinho, que não poucas vêzes, na qualidade de truão ou palhaço, servia de instrumento às vinganças e paixões mesquinhas de entes tão ignóbeis como êle, servia para justificar a desconfiança de Álvaro, que acabou por não sentir senão asco e indignação por tão infame procedimento. 37 Conhecendo o quanto Martinho agia muitas vezes motivado pelo seu ―espírito de cobiça, e de sórdida ganância‖, Álvaro declarou: ―Senhor Martinho, […] se alguém pagoulhe para vir achincalhar-me a mim e a esta senhora, diga quanto ganha, que estou pronto a dar-lhe o dobro para nos deixar em paz‖. 38 Ademais, sua atuação enquanto capitão-domato nada tinha de nobre, ao contrário da de Anselmo, era unicamente motivada por questões econômicas como bem concebia o senhor emancipacionista: — Estou persuadido, senhor Martinho, — disse-lhe Álvaro em voz baixa, tomando-o de parte, — que a gratificação de cinco contos é o motivo principal que o leva a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher, que nunca o ofendeu. Está em seu direito, eu reconheço, e a soma não é para desprezar. Mas se quiser desistir completamente desse negócio, e deixar em paz essa escrava, dou-lhe o dobro dessa quantia. 34 TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, pp. 49-50 e 56. SILVEIRA, Renato da. ―Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental‖. Afro-Ásia, 23, 1999, p. 101. 36 SCHWARCZ, O espetáculo das raças, p. 47. 37 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 152-153. 38 Ibidem, p. 153. 35 95 — O dobro!… dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os olhos. — Justamente; dez contos de réis e hoje mesmo. 39 Quando ocorreu o diálogo acima, Martinho já havia se empenhado com Leôncio, o senhor de Isaura, todavia, por suas características, diferente do capitão-do-mato da história de 1871, não seria leal ao seu compromisso. Voltemos à conversa: — Mas, senhor Álvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor da escrava, dei passos para êsse fim, e… — Que importa!… diga que ela evadiu-se de novo, ou dê outra qualquer desculpa… — Como, se é tão público que ela se acha em poder de V. S.ª?… — Ora!… isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo e atilado como o senhor embaraça-se com tão pouca coisa!… — Vá, feito — disse Martinho depois de refletir um instante. — Já que V. S.ª tanto se interessa por essa escrava, não quero mais afligi-lo com semelhante negócio, que a dizer-lhe a verdade bem me repugna. Aceito a proposta.40 Capturar Isaura era uma ação que na ―verdade bem me repugna‖, dizia Martinho; todavia não fosse a proposta de Álvaro, que lhe era economicamente mais vantajosa, sem dúvidas isso não lhe traria grandes preocupações. Sua consciência poderia ser comprada por quem melhor pagasse. Feito o acordo, restou armar um plano para ludibriar o senhor da escrava, questão que pelas características da personagem não seria tarefa das mais complicadas como podemos observar no diálogo abaixo: — Mas que volta darei eu ao negócio para sair-me bem dele? — Veja lá; sua imaginação é fácil em recursos, e há de inspirar-lhe algum meio de safar-se de dificuldades com a maior limpeza. Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os olhos pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levantando à testa o dedo índice: — Atinei! exclamou. — Dizer que a escrava desapareceu de novo, não é conveniente, e iria comprometer a V. S.ª, que se responsabilizou por ela. Direi sòmente que, bem averiguado o caso, reconheci que a môça, que V. S.ª tem em seu poder, não é a escrava em questão, e está tudo acabado. — Essa não é mal achada… mas foi um negócio tão público… — Que importa!… não se lembra V. S.ª de um sinal em forma de queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no anúncio? direi, que não se achou semelhante sinal, que é muito característico, e está destruída a identidade da pessoa. Acrescentarei mais que a môça, por 39 40 Ibidem, p. 174. Ibidem, pp. 174-175. 96 quem V. S.ª se interessa, vista de noite é uma coisa, e de dia é outra; que em nada se parece com a linda escrava que se acha descrita no anúncio, e que em vez de ter vinte anos mostra ter seus trinta e muitos para quarenta, e que tôda aquela mocidade e formosura era efeito dos arrebiques, e da luz vacilante dos lustres e candelabros. — O senhor é bem engenhoso, — observou Álvaro sorrindo-se; — mas os que a viram nenhum crédito darão a tudo isso. Resta, porém, ainda uma dificuldade, senhor Martinho; é a confissão que ela fêz em público!… isto há de ser custoso de embaçar-se. — Qual custoso!… alega-se que ela é sujeita a acessos de histerismos, e é sujeita a alucinações.41 Martinho era hábil em enganar: — Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua perícia e habilidade. E depois? — E depois comunico tudo isso ao chefe de polícia, declaro-lhe que nada mais tenho com êsse negócio, passo a procuração a qualquer meirinho, ou capitão-do-mato, que se queira encarregar dessa diligência, e em ato contínuo escrevo ao senhor da escrava comunicando-lhe o meu engano, com o que êle por certo desistirá de procurá-la mais por aqui, e levará a outras partes as suas pesquisas. Que tal acha o meu plano?… — Admirável, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho. 42 Firmado o acordo – para ludibriar Leôncio – e o plano de sua concretização, o ―capitão-do-mato‖ não ficou totalmente satisfeito continuando a agir e pensar a partir de sua ―vil ganância‖: ―Não há dúvida! — continuou êle consigo mesmo; — isto vai a dobrar como no lansquenê. Esta escrava é uma mina, que me parece não estar ainda esgotada‖; afinal era de um ―caráter desprezível e abjeto‖.43 Para além, Martinho é caracterizado na obra como a encarnação dos ―desprezíveis‖ e usurários capitães-do-mato que continuariam a agir a despeito da solução encontrada pela personagem Álvaro. Segundo destacou o sensato Dr. Geraldo, não faltaram malsins igualmente enganados por dinheiro, que pelos cinco contos de réis, que para estes miseráveis é uma soma fabulosa, se ponham à cata de tão preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deu o alarma, e que êsse negócio tem atingido a um certo grau de celebridade, em vez de um, aparecerão cem Martinhos no encalço da bela fugitiva, e não terão mais que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro. 44 41 Ibidem, pp. 175-176. Ibidem, p. 176. 43 Ibidem, p. 177. 44 Ibidem, p. 178. 42 97 Depreciar o capitão-do-mato foi também o empenho de outros indivíduos que trataram da escravidão nas derradeiras décadas do regime servil. Mello Moraes Filho, em poema intitulado ―Escravo fugido‖, publicado em seus Cantos do equador qualificou os capitães-do-mato como ―frios‖, ―algozes‖ e traidores: E que direito a grandes recompensas Tem quem prendel-o? respondei senhores! Procuram-n‘o, portanto, homens sem crenças, Folga a traição a bem dos opressores. Povo sem coração, algozes frios, Almas d‘esquife e tum‘los branqueados, Porque abrir os mausoléus sombrios Que não podem conter mais desgraçados?!… 45 Todavia, ao que tudo indica, o único caso de literato que apresentou caracterizações divergentes sobre a figura do capitão-do-mato foi Bernardo Guimarães. Divergência que, em nossa compreensão, está relacionada ao resultado de sua atuação e ao perfil de escravo que era alvo da empreitada dos referidos capitães-do-mato. Os escravos fugidos e suas características Quais eram as características das personagens/escravos perseguidos por Anselmo e por Martinho? Eis um questionamento que nos auxiliará a compreender a divergência entre as representações dos indivíduos que atuaram enquanto capitães-do-mato. Isaura, a personagem mais conhecida de Bernardo Guimarães, era uma escrava ―branca‖ criada e educada por sua senhora no intuito de ―torná-la digna da liberdade que pretendia darlhe‖. 46 Não representa ameaça à sociedade como os quilombolas da história de 1871. Ao contrário, representa, na perspectiva do literato, o modelo ideal para a extinção da escravidão. Bernardo Guimarães, em seu conhecido romance, apresenta como mote a questão da ―preparação‖ do escravo para a vida em liberdade. Nessa perspectiva, produziu uma narrativa na qual as personagens que tentaram obstruir tal projeto – seja um senhor demasiadamente apegado à escravidão como Leôncio, ou quem buscasse reinserir na escravidão determinado escravo, como foi o caso da personagem Martinho – foram 45 46 MORAES FILHO, Cantos do equador, p. 138. GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 192. 98 caracterizados pejorativamente. Eis as características físicas da dócil e educada escrava, ―uma bela e nobre figura de moça‖: As linhas do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas ainda mais negras do que êle. São tão puras e suaves essas linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam tôda análise. A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou côr-de-rosa desmaiada.47 Era tal a beleza ―caucasiana‖ de Isaura, que é descrita como ideal de perfeição a ponto de ser comparada a Vênus (deusa romana da beleza): Um vestido de chita ordinária azul-clara desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada, e desdobrando-se-lhe em roda amplas ondulações parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus nascendo da espuma do mar, ou como anjo surgido dentre brumas vaporosas.48 Isaura encarnava perfeitamente o ideal de beleza européia como nas pinturas de artistas do velho continente de finais do século XIX. Determinadas imagens produzidas pensando no contexto europeu, facilmente, poderiam ter sido utilizadas para ilustrar a história de Bernardo Guimarães ficando perfeitamente condizente com a descrição da dócil escrava que talvez mais se assemelhasse com uma camponesa européia (ou mesmo uma senhora) do que com uma típica escrava negra do continente americano. Não obstante, a escrava ainda possuía uma esmerada educação: À medida que a menina [Isaura] foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ela mesma [sua senhora, mãe de Leôncio] ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também mestres de música, de dança, de italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se enfim em dar à menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para uma filha querida. Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas graças e atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua viva e robusta inteligência, foi muito além das mais exageradas esperanças da excelente velha, a qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados, cada vez mais se comprazia em lapidar e 47 Ibidem, p. 24. GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 25. A comparação de Isaura à deusa é novamente lembrada ao ser exposto o anúncio no qual apresenta as características da escrava fugida: ―— Deveras, Martinho? — exclamou um dos ouvintes, — está nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Vênus, e vens dizer-nos que é uma escrava fugida!…‖ (pp. 143-144). 48 99 polir aquela jóia, que ela dizia ser a pérola entrançada em seus cabelos brancos.49 Desnecessário, talvez fosse, reafirmar a cor ―branca‖, ―como o marfim do teclado‖, de Isaura, que ―és formosa, e tens uma côr linda que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano‖;50 todavia, tal condição, na obra, são indicadores de suas qualidades e características psicológicas e morais. Lembremos que ao descrever o ―capitão-do-mato‖ Martinho, o narrador destacou que suas características físicas, ―na opinião de Lavater, é indício de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez‖;51 questão que textualmente, o literato volta a sugerir em 1883, todavia sem referenciar nenhum teórico.52 Segundo Renato da Silveira, Com a sucessão das obras de Lavater, todos os povos do vasto mundo começaram a ser enquadrados pela doutrina fisiognomonista, pretendendo-se estabelecer o caráter de cada qual pelo exame de traços faciais individuais e logo também pela cor da pele, considerada reveladora da alma. A pele escura, previsivelmente, era tida pela fisiognomonia como signo de uma alma pervertida, enquanto a pele clara conotava um caráter nobre. 53 Poderá facilmente notar o leitor dos referidos romances que tal assertiva é aplicada também aos demais personagens descritos. Conforme Mailde Jerônimo Trípoli, quando ―Uma história de quilombolas‖ foi escrita, ―lealdade e coragem‖, características presentes em Anselmo, ―não eram atribuíveis aos da raça escravizada‖. 54 Temos, no entanto, que relativizar a condição de negro de Anselmo, ―um moço bem disposto, de fisionomia agradável‖, ―pôsto que de tez clara‖. 55 Tanto Anselmo quanto Isaura possuem características físicas que denotam que em suas veias também ―corria‖ sangue europeu, eram mestiços. Conforme Lilia Moritz Schwarcz, as teorias evolucionistas, que tiveram, no Brasil, os anos de 1870 a 1930 como de maior influência, ―não só elogiava o progresso e a civilização, como concluía que a mistura de raças heterogêneas era sempre um erro, e levava à degeneração não só do indivíduo como de toda a coletividade‖. Todavia não 49 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 34. Ibidem, p. 25. 51 Ibidem, p. 138. 52 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, pp. 127-128. O narrador bernardino destacou que a figura, tipo físico, de uma personagem ―estava em perfeita harmonia com sua natureza‖, ou seja com suas características morais. A saber, a personagem possuía ―boas‖ características. 53 SILVEIRA, ―Os selvagens e a massa‖, p. 102. 54 TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, p. 62. 55 GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 14. 50 100 foram elas assimiladas no Brasil, um país mestiço, sem ressalvas: ―aceitar a idéia da diferença ontológica entre as raças sem a condenação à hibridação‖, eis a saída de muitos intelectuais da época.56 Por aqui, ―certos rearranjos teóricos, não impediam pensar na viabilidade de uma nação mestiça‖. 57 Questão programaticamente defendida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), instituição norteadora do pensamento social brasileiro da época. Nas palavras de Carlos Frederico Ph. de Martius, em dissertação aceita pelo IHGB como norteadora da historiografia brasileira, Tanto a historia dos povos quanto a dos individuos nos mostram que o gênio da historia (do mundo), que conduz o genero humano por caminhos, cuja sabedoria sempre devemos reconhecer, não poucas vezes lança mão de crusar as raças para alcançar os mais sublimes fins na ordem do mundo. 58 Concepção na qual se projetava um futuro de população ―embraquecida‖ para a nação: ―jamais nos será permittido duvidar que a vontade da Providencia predestinou ao Brazil esta mescla. O sangue Portuguez, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças India e Ethiopica‖. 59 Questão que ganha outros contornos com a disseminação do darwinismo que também foi apropriado pelas Ciências Sociais. Em 1875, mesmo ano de publicação de A escrava Isaura, o darwinismo, que já era conhecido no meio acadêmico, foi disseminado no meio letrado do Rio de Janeiro tendo obtido grande aceitação.60 É importante destacarmos que, mesmo morando em sua província natal, nosso literato não ficou distanciado totalmente da corte: continuou, por exemplo, mantendo o contato com o editor Garnier, responsável pela publicação de suas obras, possuindo ainda outros contatos; em carta a Garnier datada de 25 de fevereiro de 1870, solicitou que o editor, entregasse ―aos Srs. João Antonio de Mattos e Cia‖ os quinhentos mil réis que lhe cabia pela publicação do romance O garimpeiro (publicado somente em 1872).61 Ademais, 56 SCHWARCZ, Lilia Moritz. ―Espetáculo da miscigenação‖. Estudos Avançados, v. 8, n. 20, 1994, pp. 138139; SCHWARCZ, O espetáculo das raças, pp. 18-19. 57 SCHWARCZ, O espetáculo das raças, p. 65. 58 MARTIUS, Carlos Frederico Ph. Von. ―Como se deve escrever a Historia do Brazil‖. Revista trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro. Tomo VI, v. 6. Rio de Janeiro, 1844, p. 383. 59 Ibidem, p. 383. 60 Sobre a disseminação do darwinismo no Rio de Janeiro, ver: CARULA, Karoline. A Tribuna da Ciência: as Conferências Populares da Glória e as discussões do darwinismo na imprensa carioca (1873-1880). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2009, p. 79. 61 Carta de Bernardo Guimarães ao editor B. L. Garnier sobre o contrato para a publicação de O Garimpeiro. Ouro Preto, 25/02/1870. BN, Manuscritos, I,07,09,017. 101 tendo si estabelecido em sua província natal desde 1866, se casou no ano seguinte indo residir, com sua esposa e sua sogra, na fazenda da Rancharia que servia de pouso para os viajantes que enfrentavam o trajeto Rio-Minas e vice-versa, 62 provavelmente tendo dialogado com alguns (ou muitos) deles. Mesmo Bernardo Guimarães não tendo se referido explicitamente às idéias de origem darwinistas (incorpora muitos de seus elementos), tais dados referentes à divulgação e aceitabilidade do darwinismo na sociedade letrada da corte, são significativos na perspectiva que tais idéias acabaram por reforçar ―cientificamente‖ concepções de muitos letrados inclusive de outras localidades que provavelmente tomaram conhecimento de tais discussões.63 Sabemos que não era raro as discussões ocorridas na corte logo circularem nas cidades de outras províncias, a exemplo da própria discussão sobre o ―elemento servil‖. 64 Ademais, é provável, que ao caracterizar suas personagens mestiças como de tez clara, quase caucasiana, tenhamos explícito uma idéia de cunho racialista que advogava que a mestiçagem era favorável pois acabaria por gerar uma população com maiores semelhanças com as ―raças‖ européias. Voltemos às características da mestiça Isaura que são ―condizentes‖ com a sua boa fisionomia. Isaura ―era sempre alegre e boa com os escravos, dócil e submissa com os senhores‖; ―era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e submissa‖. Características que indicam que ela era uma escrava preparada para a liberdade: ―por que razão não libertaram esta menina?‖ questionava uma personagem destacando, ―uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava‖. 65 Também no romance Rozaura, a engeitada, publicado em 1883, há uma comoção ante uma escrava que era uma ―muito linda creatura‖, posto que ―branca‖: até faz pena ver no captiveiro um menina tão mimosa. Si ella for boa mesmo, como parece, hei de tratal-a com todo o carinho, mais como uma companheira, uma irmã de meus filho, do que como escrava; e até, si for 62 GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, p. 141. Karoline Carula, em estudo sobre as discussões do darwinismo na imprensa carioca da década de 1870, menciona que muitas dos debates sobre o tema acabaram por ser reproduzidos e discutidos em outras províncias. Cf. CARULA, A Tribuna da Ciência. 64 A questão da reforma do ―elemento servil‖ logo que foi posta em discussão no seio parlamentar, situado na corte, adentrou nos jornais mineiros – como também de outras províncias – que reproduziam notícias provenientes da capital do império. No jornal Noticiador de Minas, logo após a apresentação do projeto na Câmara dos Deputados foi ele reproduzido seguindo de diversos artigos sobre a ―reforma do elemento servil‖ e a proposta do governo. Cf. Noticiador de Minas: 17/06/1871, pp. 2 e 3; 08/07/1871, pp. 2-3; 11/07/1871, pp. 1-3; 14/07/1871, pp. 3-4; 18/07/1871, pp. 1-2; e 21/07/1871, pp. 2-3. APM, Jornais Mineiros. 65 GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 34-35 e 36. 63 102 possível, o meu desejo é dar-lhe a liberdade. Uma creatura tão bella e interessante não nasceo para o captiveiro.66 Com efeito, Rozaura, por nascimento (seus pais naturais eram livres, era na verdade uma filha enjeitada da mulher que, sem saber, a tinha como escrava), não deveria ser escrava; todavia, na obra, é colocada uma comoção em virtude de suas características; era ―uma joia, e não ahi qualquer creoula beiçuda, ou mula encarapinhada‖; ―é uma menina branca, rosada e mimosa como um anjo‖ que ―parece mais outra sinhásinha‖; sendo ainda ―dócil‖ e ―mimosa‖.67 A saber, Rozaura Era uma menina, que parecia ter quatorze annos, de bello porte, cabellos de azeviche, não mui finos e sedosos, mas espessos e de um brilho refulgente como o do aço polido. – Os olhos grandes e da mesma côr dos cabellos tinhão tal expressão de ingenuidade e doçura, que captivavão logo a sympathia a affeição de todos. A boca pequena, com lábios carnudos do mais voluptuoso e encantador relevo formava com o queixo algum tanto pronunciado e o nariz recto e afilado um perfil das mais delicadas e harmoniosas curvas. A tez do rosto e das mãos era de um moreno algum tanto carregado; mas quem embebesse olhar curioso pelo pouco que se podia entrever do collo por baixo do corpilho do vestido, bem podia adivinhar que era o sol, que tinha assim crestado, e que sua côr natural era fina e mimosa como a do jambo.68 Ademais, note o leitor que, para além das ―boas‖ características, há nas obras do literato um discurso que para adquirir a liberdade um escravo deveria ser digno de tal dádiva. Conforme Manuela Carneiro da Cunha, em cartas de alforrias, insistia-se na generosidade do senhor, mas também em elementos que tornavam os escravos elegíveis à liberdade.69 Acreditamos que o narrador bernardino buscou incutir na mente de seus interlocutores qual era o perfil do escravo que era digno de ser agraciado com a liberdade. Perfil que, sem dúvida, incluía Isaura, Florinda, Anselmo e a engeitada Rouzara. Mesmo digna da liberdade, Isaura foge. Iniciativa, no entanto, que não se deu de forma tranqüila para sua consciência, elemento que fortalece a tese de que estava preparada para a liberdade. Ao ouvir de seu pai – depois de insistente recusa senhorial em concederlhe a liberdade, com a ―devida‖ recompensa pecuniária – a proposta para que fugissem, 66 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 9. Grifos nosso. Ibidem, pp. 7, 8 e 76. 68 Ibidem, p. 5. Grifo nosso. 69 CUNHA, Manuela Carneiro da. ―Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX‖. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense; Editora da Universidade de São Paulo, 1986, pp. 136-137. 67 103 Isaura disse: ―vamo-nos, meu pai; que posso eu recear?… Posso acaso ser mais desgraçada do que já sou?…‖, numa explícita referência que a fuga se dava porque já vivia uma desgraça, uma escravidão na qual, enquanto donzela, era constantemente assediada pelo senhor. Ao questionar: ―posso acaso ser mais desgraçada do que já sou?‖, a escrava deixa uma importante dúvida. Seria a situação de fugitiva melhor?70 ―Fugira em companhia de seu pai, para escapar ao amor de um senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de violências e tormentos tentava forçá-la a satisfazer seus brutais desejos‖. 71 Mesmo assim, sentiu remorsos! Com efeito, ela correspondia às expectativas de uma parcela real da classe senhorial que almejavam escravos dóceis e submissos. Outro episódio é interessante para compreendermos o dilema de Isaura enquanto fugitiva, ou melhor, o quanto o narrador bernardino caracterizou a personagem como digna da liberdade que almejava. Estando, após a fuga, já em Recife, em um sarau ―dos ricos e dos fidalgos‖ Isaura comenta o seguinte com seu pai: ―é um crime que cometo, envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade‖, ressaltando, ―se estas nobres senhoras adivinhassem que ao lado delas diverte-se e dança uma miserável escrava fugida‖. 72 É importante atentarmos que a condição de miserável é acentuada pela situação de fugida, que não a agradava. Conforme o narrador, Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de sua verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-se consigo mesma de impor às poucas pessoas, que com ela tratavam de perto, um respeito e consideração a quem nenhum direito podia ter. Mas considerando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar à sociedade, conformava-se com sua sorte.73 Eis, acima, as características da escrava/personagem para a qual recairia a ação do satânico ―capitão-do-mato‖ Martinho que, diferente de Isaura, Álvaro, Anselmo e Florinda (os dois últimos personagens de ―Uma história de quilombolas‖), é caracterizado para ser detestado e repugnado naquela sociedade que buscava ser civilizada aos moldes europeus. Sociedade na qual não cabia espaço para satânicas criaturas, nem tampouco para bárbaros quilombolas como os apresentados na história de 1871. Até mesmo os aspectos culturais relacionados à cultura africana a exemplo do entrudo buscou-se que fossem substituídos. 70 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 102. Ibidem, p. 162. 72 Ibidem, p. 118. 73 Ibidem, p. 127. 71 104 No jornal A actualidade que, logo abaixo do subtítulo, listava Bernardo Guimarães como um de seus redatores, reconheceu-se com pesar que o entrudo fosse mais aceito e entendido pela população do que o carnaval que se buscava implantar em ―proveito‖ da civilização: ―foi sem duvida uma boa obra, e reclamada pela civilisação a substituição do entrudo pela festa do carnaval‖; ―lastimamos, que o carnaval ainda não se ponha em pratica entre nós de modo a destruir todas as saudades, que podessemos ter daquele outro divertimento‖.74 Compactuando com os aspectos da cultura de matriz européia, Isaura representa bem o perfil de escravo ―digno‖ de ser alforriado. Anselmo, moço ―civilizado‖ que aflora ―lealdade e coragem‖ (nosso digno herói romântico), por outro lado, é caracterizado em oposição aos quilombolas comandados pelo terrível Zambi Cassange, personagens que além de fugidos, viviam de furtos e zombavam das autoridades. 75 Nas obras de nosso literato, há um jogo de caracterizações – adjetivações – que muito se prestou à estética romântica que valorizava o herói, questão que, como vimos nos capítulos anteriores, se dá em relação ao conflito entre escravistas e emancipacionistas, mas também nas caracterizações de escravos e ―capitães-do-mato‖. Como destacou, em 1888, o crítico Sylvio Roméro, o romantismo foi criticado justamente pelos seus exageros nas adjetivações: Em 1836, em artigo inserto na Revue dês deux Mondes, satyrizava a litteratura corrente [romântica], mostrando não ter ella nada avançado além da que precedera a não ser o emprego abusivo de adjectivos… O primeiro poeta francez d‘este século poz o dedo em cima de uma das chagas da romantica.76 Ao apresentar Cassange, personagem que se opõe a Anselmo, o narrador também relaciona suas características físicas com as psicologias criando adjetivações que reforçam a coragem e a perspicácia do herói romântico que, apesar das dificuldades e do grande valor de seu adversário, sobressai como valente, inteligente e vitorioso. Conforme é descrito pelo narrador, Zambi um negro colossal e vigoroso, cuja figura sinistra e hedionda se refletia ao clarão do fogo, com as faces retalhadas, beiços vermelhos, e dentes alvos e agudos como os da onça; mas o nariz acentuado e curvo, e 74 ―O carnaval no Rio de Janeiro‖. A actualidade: jornal politico, litterarios e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 70, 25/02/1860, pp. 1-2. AEL/CECULT. 75 GUIMARÃES, Lendas e romances. 76 ROMÉRO, Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II, p. 687. 105 a vasta testa inclinada para trás revelavam um espírito dotado de muito tino e perspicácia, e de extraordinária energia e resolução. 77 Ao apresentar características físicas consideradas positivas dos quilombolas, apresenta ressalvas, como no seguinte exemplo: ―era um cabra ainda muito novo, bem feito, bonito e reforçado, porém de má catadura‖.78 Perceba-se que na nomenclatura do chefe quilombola há uma dupla referência ao elemento africano. Primeiramente, Zambi pode muito bem representar Zumbi – dos Palmares – chefe dos quilombos dos Palmares que, como conhecido e lembrando por intelectuais e autoridades do século XIX, ofereceu grande resistência às autoridades coloniais. Quilombos que, conforme Joaquim Manuel de Macedo – em manual didático publicado em 1865 – ―era um perigo para as capitanias onde existião e que se avizinhavam com esses quilombos‖; ―mandáram contra elles por vezes os governadores de Pernambuco expedições successivas, os Palmares zombaram das forças de governo, até que […] o paulista Domingos Jorge Velho obrigou-se a destruir aquelles quilombos e a aprisionar os quilombolas‖. 79 Com efeito, no período histórico retratado pelo narrador bernardino, quilombos existiram na província de Minas Gerais provocando nas autoridades coloniais o receio da formação de um ―novo‖ Palmares nas paisagens mineiras, questão que, segundo Carlos Magno Guimarães, ocorreu muito em virtude da realidade mineira que apresentava elementos da rebeldia escrava.80 Não podemos afirmar, no entanto, que o objetivo de nosso literato tenha sido somente a fidelidade histórica ao retomar aspectos da realidade mineira colonial. Afinal, vivia ele num momento em que se rememorava a história da rebeldia escrava/africana que, conforme alguns discursos, poderia ressurgir em virtude das discussões em torno da emancipação que se agitava no parlamento. Nesse sentido, é significativo que o termo Cassange era a denominação dada a um grupo de africanos que foram aportados no Brasil, provenientes da região centroocidental do continente – de um ―povoado situado no interior de Angola‖. 81 Enfim, as personagens perseguidas por Anselmo personificavam o ―bárbaro‖ elemento africano. 77 GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 12. Ibidem, p. 10. Grifo nosso. 79 MACEDO, Joaquim Manuel de. Lições de história do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria. Edição Revista e Actualizada. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1907 [1865], pp. 224-225. 80 GUIMARÃES, Carlos Magno. ―Mineração, quilombos e Palmares: Minas Gerais no século XVIII‖. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 139-163. 81 MATTOS, Regiane Augusto de. ―De cassange, mina, benguela a gentio da Guiné: grupos étinicos e formação de identidades africanas na cidade de São Paulo (1800-1850)‖. Dissertação de Mestrado: FFLCH/USP, 2006, pp. 29 e 56. 78 106 Ademais, para o narrador da história, os quilombolas eram elementos perturbadores da ordem estabelecida e um risco à segurança da região: eram o terror das imediações do Ouro Prêto, havia perto de vinte anos, em um raio de cinco a seis léguas em redor. Não havia segurança alguma para os viandantes e tropeiros; o roubo nas estradas e a pilhagem nas fazendas eram cotidianos. Em vão os capitães do mato traziam quase todos os dias, metida em um saco, a cabeça de um quilombola e recebiam por cada cabeça cinqüenta oitavas de ouro; em vão as milícias e os apenados batiam aqui ou ali um quilombo; acolá ressurgia outro mais forte e numeroso, e a pilhagem e o roubo continuavam sempre, cada vez com mais audácia e mais freqüência. Chegou o negócio a ponto que alguns donos de tropa e fazendeiros, vendo a impotência do govêrno para protegê-los, estipulavam com os chefes de quilombo, obrigando-se a pagar-lhes uma certa contribuição, para que os não incomodassem. 82 Eram ainda, conforme o narrador, o flagelo dos tropeiros e dos caminhantes, e o terror dos fazendeiros. As milícias e os capitães do mato do governador, a despeito dos esforços que empregavam, eram impotentes para dar cabo dêles. Eram como os formigueiros; se aqui extinguia-se um, acolá organizava-se outro com os restos daquele e com uma chusma de outros negros, que incessantemente fugiam a seus senhores, certos de achar agasalho e vida regalada nos covis de seus parceiros quilombolas.83 Enfim, a atuação de Anselmo enquanto capitão-do-mato, pela perspectiva do literato, foi tida como necessária; ao contrário da de Martinho tida como desmesurada, cruel e prejudicial. A partir das representações dos ―capitães-do-mato‖ de Bernardo Guimarães podemos perceber para quem deveria recair a repressão, a saber, aos considerados insubordinados que procuravam a liberdade para além da ordem vigente, ou seja, para os negros insubmissos. O posicionamento antiescravista não implicava numa radicalização no discurso, assim, não é difícil aceitarmos que a figura do capitão-do-mato tenha sido tolerada por alguns emancipacionistas. Para além, é provável que o literato tenha julgado a atuação do capitão-do-mato como um mecanismo de controle da moralidade e manutenção da autoridade senhorial assim como indicou um senhor baiano ao anunciar – num periódico declaradamente emancipacionista – a fuga de um escravo declarando: ―quem o aprehender, ou der noticia certa, será muito bem recompensado pelo 82 83 GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 74. Ibidem, p. 11. 107 annunciante, não porque o escravo tenha valor algum; mas para exemplo e moralidade dos demais seus parceiros‖.84 A questão da captura ter servido como um ensinamento moral aos escravos não fugitivos foi também indicada em verso – na poesia ―Escravo fugido‖ – por Mello Moraes Filho que assim cantou ironizando a entrega de escravos fugitivos ao senhor por capitães-do-mato: Á fazenda chegou, e meia noite Batia no terreiro O feitor o recebe, o dono, os servos, No dia derradeiro. — Que toque o sino, e os negros formem todos, O fazendeiro falla. Os negros vêm sahindo, uns após outros, De dentro da senzala. — Que se acenda a fogueira, e que o castigo Comece já, comece! E a turma cabisbaixa dos captivos Se confrange e entristece. 85 Conforme Massaud Moisés, em ―Uma história de quilombolas‖, Bernardo Guimarães demonstra o relativismo de sua tese antiescravista. O literato era contra a escravidão tanto quanto era contra os comportamentos considerados insubmissos dos escravizados. O problema colocado é o ―cativeiro quando imposto a figuras da estirpe de Isaura‖.86 Questão que implica numa escravidão de indivíduos semelhantes aos da classe senhorial, sendo o caso de Rozaura – uma menina/personagem que, sendo enjeitada, acabou por ser comprada para servir de mucama para sua própria irmã –, o ápice da tentativa do narrador bernardino para sensibilizar o leitor para os problemas da sociedade brasileira que submetia à escravidão indivíduos com ―boas‖ características. 87 Assim, nada há de surpreender que o literato, que tentou comover o leitor para a situação de Isaura, tenha reivindicado ação enérgica contra insurretos e quilombolas, 88 questão contrária às 84 ―Escravo Fugido‖. Echo Sant’amarense, ano 1, n. 263, Santo Amaro, BA, 23/05/1882, p. 3. BPEB, Periódicos Raros. 85 MORAES FILHO, Cantos do equador, p. 140. 86 MOISÉS, História da literatura, v. 1, pp. 484-486. 87 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2. 88 Um episódio real, segundo o literato, mencionado em sua nota ―Ao leitor‖ de O indio Affonso, ocorrido em 1872, é significativo do empenho do literato em destacar que não compactuava com certos tipos de comportamentos. Antes da publicação em volume, da referida história, foi veiculada a notícia de um ―horroroso attentado perpetrado pelo Indio Affonso, e acompanhado das circumstancias mais atrozes e revoltantes‖. A respeito dessa suposta notícia que, conforme Bernardo Guimarães, ―a ser exacta vem 108 concepções de base iluminista. Nosso literato afasta-se daquela vertente do pensamento que muito serviu ao discurso emancipacionista, especialmente neste aspecto em que ela se choca com elementos do pensamento racialista. Nosso literato, assim como muitos outros seus contemporâneos, não julgava que o escravizado tinha direito a rebelar-se.89 A escrava Isaura e ―Uma história de quilombolas‖ foram escritas num período em que a escravidão perdia sua legitimidade social, quando os mecanismos de dominação – como o constante estado de vigilância da sociedade – não se constituíam mais como uma prática generalizada a ponto de coibir o sucesso de muitas fugas de escravos. 90 Enfim, modificavam-se as relações escravistas provocando o descontentamento de alguns, como de uma ressentida personagem senhorial machadiana que expôs: ―hoje os escravos estão altanados‖, ―se a gente dá uma sova num, há logo quem intervenha e até chame a polícia. Bons tempos os que lá vão! Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue‖. 91 Tendo publicado duas representações divergentes sobre o capitão-do-mato, Bernardo Guimarães oferece elementos para melhor compreendermos sua perspectiva emancipacionista. Era também um contexto de discussão em torno da emancipação, especialmente em virtude dos debates e da aprovação da lei do ―ventrelivre‖, questão que como vimos nos capítulos anteriores não foi desprezada pelo literato. Tanto ―Uma história de quilombolas‖ quanto A escrava Isaura possuem seus enredos em tempos passados, todavia, os narradores são declaradamente contemporâneos ao período de lançamento dos livros, ou seja, narram a história sob a perspectiva e preocupações de seu tempo. A primeira história ocorre sob o governo de D. Manuel de Portugal e Castro ―último governador da capitania, e o primeiro presidente da província de Minas Gerais‖, ou seja, por volta de 1820; publicada em 1871, o narrador declara: ―esta cena se passava, desmanchar completamente a figura do meu heróe, a quem atribui caracter magnanimo, indole bondosa e sentimentos generosos‖. Por isso, o literato logo buscou se defender: ―para que se não pense que em meu conto tive o proposito de fazer a apologia de um facinora, cumpre-me declarar o que há de real e de ficticio em minha narrativa, e em que me baseei para prestar ao Indio Affonso o caracter com que apparece em meu romance‖; ―para desenhar-lhe o caracter baseei-me no que em Catalão ouvia dizer a todo o mundo. Todos o pintavam com o caracter e costumes que lhe attribuo, e era voz geral que elle só havia commettido um homicidio, e isso para defender ou vingar um seu amigo ou pessoa da familia‖. Cf. GUIMARÃES, O indio Affonso, pp. V-IX. 89 ―Enquanto um povo é obrigado a obedecer e o faz, age bem; assim que pode sacudir esse jugo e o faz age melhor ainda‖, escreveu o filósofo suíço que é referenciado por nosso literato. ROUSSEAU, O contrato social, pp. 9 e 12. 90 SILVA, ―Fugas, revoltas e quilombos‖, pp. 66-67; MACHADO, Maria Helena. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 17-18, 32 e 34. 91 ASSIS, Machado de. ―História de 15 dias‖, 01/10/1876. In: Obra completa, v. 3. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004, p. 352. 109 há cêrca de 50 anos‖.92 Em A escrava Isaura, já mencionamos, o narrador logo declara: ―era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II‖,93 indicando se tratar duma narrativa posterior aos acontecimentos. Ou seja, os narradores serviram-se da discussão em torno da atuação do Estado na ―questão servil‖. Ademais, Bernardo Guimarães pretendia ―civilizar‖ o país, ou seja, produzir libertos que não ameaçassem o domínio (ex)senhorial e o futuro da nação. Talvez aqui esteja um ensinamento extra curricular do bacharel que, durante sua estada na acadêmica cidade de São Paulo, contribuiu e, certamente também leu, o jornal Ensaios Litterarios, cujos redatores ―irão entrar em contato com as idéias de civilizar a nação a partir do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro‖. 94 É importante destacarmos que a questão da educação – enquanto meio civilizador – esteve presente em muitas obras de nosso literato. Hélder Garmes, em estudo sobre os acadêmicos contemporâneos de Bernardo Guimarães, menciona a existência de uma concepção histórica que pensava na constituição de uma civilização branca e européia na América que teria sido compartilhada pelos acadêmicos. Como considerou Garmes, Ao que tudo indica, nossos acadêmicos compartilharam tais concepções históricas e entenderam o Brasil a partir de tal prisma. Conscientes de sua condição de futura elite dirigente, imbuíram-se desde cedo do papel ―iluminado, esclarecido e civilizador‖ do Estado, escrevendo para um ―povo‖ branco e europeu. Esse papel era reforçado pelas leituras de cursos.95 Também, ao que tudo indica, na perspectiva de Bernardo Guimarães, o ápice do processo de emancipação era a aproximação do (ex)escravo ao modelo de civilização que se almejava, tal qual a própria Isaura, que não se distinguia de nenhuma outra ―senhora‖. Aproximação que se daria, ainda em tutela senhorial, através da educação. Conforme Azevedo, os abolicionistas (no caso de Bernardo Guimarães, emancipacionista) brasileiros guiaram-se no darwinismo social de Herbert Spencer para ―fundamentar seu pressuposto de que os ex-escravos passariam por um desenvolvimento mental favorável às 92 GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 10 e 74. GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 21. Grifo nosso. 94 GARMES, Hélder. ―Os ensaios literários (1847-1850) e o periodismo acadêmico em São Paulo de 1833 a 1860‖. Dissertação de Mestrado: DTL/UNICAMP, 1993, p. 80. 95 Ibidem, pp. 81-82. 93 110 necessidades da vida civilizada‖.96 Este é o caso de Isaura, mas também de Anselmo cujas características que apresentamos denotam que ele era digno da liberdade que gozava. Tal questão foi, em 1860, posta em cena na cidade de Ouro Preto – através do drama A voz do Pagé – por nosso literato. Na história que se passa na capitania de Pernambuco de finais do século XVI, há um índio escravizado que é estimado por suas características semelhantes as do europeu, mas também por ser ―tão submisso, tão delicado‖: ―eu amo Henrique, esse nobre e valente indio, que me salvou a vida, esse indio tão civilizado como nós, e capaz de fazer inveja aos mais illustres e valentes cavalheiros portuguezes‖, declarou uma das personagens. 97 A esse escravo índio/personagem também não faltou uma educação que o tornava credor de confiança: ―baptisado com o nome de Henrique, e educado […] com todo esmero, mostrou-se sempre dócil, tratavel e submisso, e, por sua intelligencia, vivacidade e boas qualidades, tornou-se credor da estima e distincção de todos‖.98 Possuia características que, como vimos, estavam presentes na dócil e estimada Isaura. A questão da ―preparação‖ do escravo para a vida em liberdade não foi exclusividade de nosso literato, tendo sido explicitada e defendida por opositores e defensores da idéia de liberdade do ventre. Em 1869, por exemplo, Adolfo Bezerra de Menezes, defensor da libertação do ventre como solução para a extinção da escravidão, declarou ser este ―o meio mais simples, mais facil e mais commodo entre todos de quantos se tem, até hoje, cogitado‖, pois oferece ―liberdade a indivíduos nas condições de receberem uma educação apropriada a seus novos destinos‖. 99 Tal preocupação liga-se aos perigos que imaginavam uma educação inadequada traria para a família e a autoridade senhorial. Como pensava o Dr. Menezes, Tão deshumano modo de crear, de educar e tratar o escravo, não produz sómente o mal horrendo do embrutecimento e da degradação moral de uma raça humana; acarreta tambem comsigo os maiores e os mais invenciveis perigos que podem ameaçar a paz e a felicidade das famílias. O escravo embrutecido pela educação que recebe e pela vida que leva, não conhece o que seja honra, nem o que seja dever; não conhece a repressão moral, só obedece a repressão material. 96 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. ―Imagens da África e da Revolução do Haiti no abolicionismo dos Estados Unidos e do Brasil‖. Anais da Biblioteca Nacional, v. 116 (1996). Rio de Janeiro: A Biblioteca, 1999, p. 62; e, da mesma autora, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, p. 139. 97 GUIMARÃES, Bernardo. A voz do Pagé: drama em 5 actos, Ouro Preto, 1860 (In: CRUZ, Dilermando. Bernardo Guimarães: perfil bio-biblio-litterario. 2ª Ed. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1914), pp. 80-81 98 Ibidem, p. 86 99 MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 20. 111 Resulta dahi que a prostituição, com o cortejo de vicios humanos, é a condição da mulher escrava; e que o ódio e o desejo ardente, insaciavel de vingança, é o sentimento mais forte do coração do negro para com a raça branca em geral, e para com seu senhor em particular.100 Com essa perspectiva, rejeitava-se qualquer proposta que indicasse uma extinção imediata da escravidão; o que, na referida perspectiva, colocaria na sociedade indivíduos não preparados para gozar da liberdade: Póde haver perigo maior para a nação, quer no sentido moral, quer no sentido social, do que esse projecto de soltar no meio da população, homens até aqui dominados pelo julgo da escravidão, agora armados com o poder, e até certo ponto com o direito de saciarem todas as paixões ruins que sua primitiva condição excitava e reprimia ao mesmo tempo? 101 Com efeito, não era esse o liberto que Bernardo Guimarães pretendia para a sociedade. Ao contrário, em suas obras temos uma descrição do liberto ideal. Como mencionamos, tal discussão, em torno de uma emancipação não planejada, não foi exclusividade de nosso literato, tendo sido exposta em dois de julho de 1859, no jornal A actualidade (em texto de autoria do irmão de nosso literato). O referido periódico contava com Bernardo Guimarães em seu quadro de redatores, por isso julgamos possível que ele tenha sugerido a publicação do referido texto – publicado em partes – que é datado de 15 de março de 1858. Vejamos, numa longa citação, as considerações de Joaquim Caetano da Silva Guimarães sobre o liberto, que são vistos com desconfiança por sua condição: Um dos maiores males, que também reside da escravatura, é a classe dos libertos que della procede; classe que seria nomerosissima, se […] todos os vicios não fizessem nela tamanho estrago. A immoralidade e mortalidade dos libertos é uma facto reconhecido nos Estados-Unidos, onde a policia é mais vigilante, e a preguiça geralmente detestada. A vista do que lá se observa, qualquer póde fazer idéia do excesso de immoralidade a que póde chegar essa classe no Brasil, onde uma carta de alforria é um titulo de cidadão, onde a lei mais protege do que castiga os vadios. O liberto entrega-se por tal forma a indolencia, que a fome e a miséria causão-lhe menos horror que o trabalho. Com os mesmos vicios do escravo, mas sem o freio que o póde cohibir, dá-se inteiramente á preguiça, á devassidão, á embriaguez, ao furto, e á toda a sorte de vicios por modo tal, que as leis da natureza, mais severas, 100 101 Ibidem, p. 6. Grifo nosso. Ibidem, p. 15. 112 se encarregão de punil-os em menoscabo das leis civis; os libertos se extinguem. 102 Ao contrário de seu irmão, no entanto, Bernardo Guimarães enxergou a possibilidade de promover a emancipação, o que perpassava por criar um liberto ideal, que não ameaçasse a ordem vigente e o futuro da nação. Todavia, não resta dúvidas que Bernardo Guimarães entrou em contato com as discussões em torno da emancipação e a propalada incapacidade do liberto viver em sociedade. Não tendo se apropriado estaticamente de tal debate, ele apresentou uma ―solução‖: era sim possível conceder alforrias (desde que prudentemente), eis o recado que parece ter sido explicitado em A escrava Isaura e ―Uma história de quilombolas‖, obras emancipacionistas que primavam pela prudência para uma tranqüila extinção da escravidão no Império do Brasil. Todavia, sem rejeitar a ―necessidade‖ de repressão para conter comportamentos ―inadequados‖ dos escravos como os quilombolas da história de 1871. Libertos ideais em enredos românticos bernardinos Conheçamos um pouco mais a personagem Anselmo. Era ele filho de uma escrava: ―Eu também tenho sangue da África nas veias, e minha mãe penou no cativeiro‖; nascido cativo ―foi fôrro na pia‖, 103 ou seja, na ―primeira chance de alforria para aqueles que já nasciam sob o jugo do cativeiro‖; tipo de alforria que, geralmente, ocorria devido à estima do senhor para com as mães dos libertandos, questão para a qual a ―obediência‖ escrava poderia contribuir. 104 Durante toda a história – já enfatizamos – tal personagem é caracterizada como corajosa e leal. Enfim, demonstrava-se merecedor da liberdade que gozava. Para além, o ―capitão-do-mato‖ demonstrava-se apto a auxiliar na difusão do processo de emancipação. Ademais, a própria atuação de livres e libertos em funções como feitores, capitães-do-mato e milicianos submetiam esses indivíduos a certas relações de compadrio e clientelismo. 105 Situação que, para além do aparato repressivo, aumentava o domínio senhorial pela formação de um ―exército‖ de agregados. Anselmo era um liberto ideal, aquele que auxiliava a classe senhorial. Nada mais adequado ao discurso emancipacionista, que, aliás, também foi expresso em outros 102 ―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 33, 02/07/1859, p. 3. AEL/CECULT. 103 GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 20 e 35. 104 SOARES, A remissão do cativeiro, pp. 67 e 73. 105 PEREIRA, ―As representações da escravidão‖, p. 47. 113 registros históricos. Em 31 de dezembro de 1876, o Jornal do Comércio, noticiava ter ocorrido, no dia anterior, audiência para a entrega de 131 cartas de alforrias ―por conta do fundo de emancipação distribuido ao municipio da córte‖, das quais apenas 83 foram entregues devido à ausência de alguns senhores. Na mesma ocasião ―dous ou tres senhores […] declararam livre seus escravos classificados, renunciando generosamente á indemnisação a que tinham direito‖. O juiz João Lustosa da Cunha Paranaguá, que conduziu a audiência, mencionou o ato dos senhores; destacou os esforços provenientes da ―humanitária lei de 28 de setembro de 1871‖; e ―n‘essa mesma occasião o douto juiz dirigio aos libertandos palavras de conselho, estimulando-os a honrarem por seu procedimento a nova condição a que a lei os havia chamado‖.106 Lembremos que atuação de Anselmo na caça aos quilombolas foi motivada pela tentativa de resgatar Florinda, sua amada, que havia sido raptada. A pretensão de Anselmo, o ―capitão-do-mato‖ emancipacionista, para com a escrava Florinda, era ―forrá-la para casar-me com ela, com consentimento do senhor‖, ou seja, atuava dentro da ordem senhorial defendida pelo narrador bernardino como o modelo ideal para realizar a emancipação. Foi, no entanto, impedido pelo rapto da rapariga que foi roubada ―à força da casa de seu senhor‖ e levada para o quilombo de Zambi Cassange. 107 Enfim, além de zombarem das autoridades e sobreviverem de furtos, tais quilombolas poderiam, na perspectiva colocada na história, prejudicar – ainda mais – o processo de emancipação considerado ideal, a saber, através de um processo lento e gradual, com preparação do escravo para viver em liberdade e com o devido consentimento senhorial. Florinda, a personagem alvo da ação emancipacionista de Anselmo, também apresenta características físicas e morais que a tornavam digna de obter a liberdade. Conforme o narrador, Era com efeito uma linda criatura, e sua bela figura ainda mais sobressaía à luz de um fraco fogo, no meio dos hediondos objetos que a circulavam. Seus cabelos, que estavam soltos, eram compridos, e desciam-lhe em ondas miúdas pelo colo, que naquele lugar onde só se viam através de quase completa escuridão vultos negros como a noite, quase parecia alvo. Seus olhos grandes, pré-pálpebras arroxeadas pelo pranto à sombra de espêssas sobrancelhas, pareciam dois pombos negros, espreitando cheios de pavor à porta do ninho o vôo do gavião. As feições, a não serem os 106 ―Libertações. – Lemos no Jornal do Commercio de 31 do passado‖. Jornal da Bahia, ano 24, n. 3, Salvador, 05/01/1877, p. 1. APEB, Setor Republicano. Grifo nosso. 107 GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 27. Grifo nosso. 114 lábios carnosos e as narinas móveis, que se contraíam e dilatavam ao arquejo violento de seu coração, eram quase de pureza caucasiana.108 Suas características psicológicas e morais, como também ocorre com outras personagens do literato, relacionam-se com suas características físicas, com sua beleza ―quase de pureza caucasiana‖. Estava ela de tal forma preparada para a liberdade que seu senhor, quando deu por sua falta, não acreditou na possibilidade de que tivesse ela fugido, proferindo as seguintes palavras: Não, decerto; era incapaz disso. Sem dúvidas foi roubada… os malditos quilombolas… O cabra Mateus também já dias que desapareceu… decerto foi obra daquele malvado… Ela tinha o costume de levantar-se muito cedo, antes que os outros se achassem de pé, e saía a lavar o rosto na fonte… foi por certo nessa ocasião… 109 Florinda era de ―feições suaves e sedutoras‖, ―corpo tão formoso‖, ―rosto de uma pureza e serenidade angélica‖, ―seio inofensivo, mimoso ninho de meiguice e de ternura‖.110 Anselmo e Florinda são caracterizados como nobres ao ponto de se ressentirem pela morte de Mateus que tanto sofrimento lhes provocou, visto ter sido ele a raptá-la e levá-la para o quilombo, provocando toda a história de perigos e sofrimentos que é narrada na ―História de quilombolas‖: Quando Florinda, radiante de prazer no braço de seu esposo, ao sair da igreja, punha o pé no alpendre da porta principal, por acaso dirigiu os olhos para o Morro da Fôrca, e vendo ali povo reunido, e um cadáver que ainda oscilava pendurado no patíbulo, perguntou assustada: — Que é aquilo?… — E‘ o cabra Mateus que acaba de ser enforcado, responderam-lhe — Coitado!… exclamaram ambos os noivos, com verdadeira e íntima compunção, e, voltando para dentro da igreja, ajoelharam-se e rezaram pela alma de Mateus Cabra.111 Conforme Massaud Moisés, a personagem Florinda foi precursora de Isaura. 112 A respeito disto também mencionou Flávio dos Santos Gomes, que destacou que ―na descrição do autor da ‗mulatinha Florinda‘ já se esboçava a imagem da escrava ‗quase 108 Ibidem, p. 22. Ibidem, p. 15. 110 Ibidem, p. 79. 111 Ibidem, pp. 105-106. 112 MOISÉS, História da literatura, v. 1, pp. 484-485. 109 115 branca‘ do romance A escrava Isaura, publicado posteriormente‖.113 De fato, as descrições são semelhantes, talvez tendo sido ―aprimorada‖ (no sentido de uma maior aproximação ao padrão estético branco) no romance de 1875. Vejamos cronologicamente. Em 1871, Florinda: ―As feições, a não serem os lábios carnosos e as narinas móveis, que se contraíam e dilatavam ao arquejo violento de seu coração, eram quase de pureza caucasiana‖.114 Isaura, em 1875: ―A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou côr-de-rosa desmaiada‖.115 Ambas possuem seus caracteres morais associados às suas características físicas – assim como outras personagens do literato – todavia com mais riqueza de detalhes em A escrava Isaura. As duas obras de Bernardo Guimarães possuem relação entre si. Ambas apresentam história de sofrimentos de escravas – uma pela ação senhorial, outra pelos quilombolas que a raptaram – que são remidas pela liberdade e união matrimonial com seus benfeitores. Nelas, o literato indica sobre quais escravos deveria recair a repressão, bem como sugere qual era o comportamento considerado adequado aos libertos ou àqueles que pretendiam a liberdade; mas, principalmente, sugere a classe senhorial como deveriam conduzir o processo de emancipação. Para Trípoli, A escrava Isaura foi um romance ―com propósito de propaganda abolicionista‖, todavia a respeito de ―Uma história de quilombolas‖ destacou que foi ―apenas uma história‖, na qual o autor não discutiu a escravidão e suas implicações. Com estas considerações, conclui-se que a ―história de quilombolas‖ ―não se apresenta com qualquer propósito‖, consideração que, a partir do que vimos, não pode ser verdadeira. Para ela, tal história foi apenas ―um causo, à moda mineira, cheio de silêncios, para o leitor preencher‖.116 Tal concepção que implicitamente enfatiza certa ingenuidade em Bernardo Guimarães pode estar relacionada à interpretação do crítico literário Machado de Assis, que, em 1873, quando ―Uma história de quilombolas‖ já havia sido publicada, escreveu que Bernardo Guimarães ―brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu‖. 117 113 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidade de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 8. 114 GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 22. Grifo nosso. 115 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 24. 116 TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, p. 67. 117 ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade‖, 24/03/1873. In: O ideal do crítico. Org. Miguel Sanches Neto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 110. 116 A partir de ambos os romances, podemos concluir que, na perspectiva de Bernardo Guimarães, para o negro o bom destino somente era possível quando este recebia uma educação e/ou apresentava qualidades como as apresentadas por Florinda, Anselmo e Isaura, indivíduos dignos da liberdade que gozavam ou pretendiam gozar. Para os demais (como o cabra Mateus e o chefe quilombola Zambi Cassange, ambos da história de 1871) não restava senão a punição. Para Bernardo Guimarães, não havia um direito natural à liberdade, como destacou Rousseau,118 filósofo setecentista que muito serviu aos argumentos emancipacionistas. Ao contrário, a liberdade era um direito conquistado através de elementos físicos e morais que tornavam os indivíduos dignos de gozá-la. O literato, cujos narradores se apresentam como sectários de Rousseau, se afastou da concepção iluminista rousseauniana justamente num aspecto que contradizia com a proposta emancipacionista que ele advogava. Em suas obras, o literato também demonstra para que tipo de escravo recaia sua compaixão, questão já explicitada, em 1852, na poesia intitulada ―À sepultura de um escravo‖, na qual o cantor se comove ante a sepultura de um ―fiel escravo‖, não qualquer escravo: Também do escravo a humilde sepultura Um gemido merece saudade: Uma lágrima só corra sôbre ela De compaixão ao menos…. Filho da África, enfim livre dos ferros Tu dormes sossegado o eterno sono Debaixo dessa terra que regaste De prantos e suores. Certo, mais doce te seria agora Jazer no meio lá dos teus desertos À sombra da palmeira, — não faltará Piedoso orvalho de saudosos olhos Que te regasse a campa; Lá muita vez, em noites d‘alva lua, Canção chorosa, que ao tanger monótono De rude lira teus irmãos entoam, Teus manes acordara: Mas aqui — tu aí jázes como a fôlha Que caiu na poeira do caminho, Calcada sob os pés indiferentes Do viajor que passa. 118 Para Rousseau, ―se há, pois, escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza‖; ―nenhum homem tem autoridade natural sobre seu semelhante‖. Cf. ROUSSEAU, O contrato social, pp. 11 e 13. 117 Porém que importa — se repouso achaste, Que em vão buscavas neste vale escuro, Fértil de pranto e dores; Que importa — se na há sôbre esta terra Para o infeliz asilo sossegado? A terra é só do rico e poderoso, E dêsse ídolos que a fortuna incensa, E que, ébrios de orgulho, Passam, sem ver que co‘as velozes rodas Seu carro d‘ouro esmaga um mendigante No lodo do caminho!… Mas o céu é daquele que na vida Sob o pêso da cruz passa gemendo; É de quem sôbre as chagas do inditoso Derrama o doce bálsamo das lágrimas; É do órfão infeliz, do ancião pesado, Que da indigência no bordão se arrima; É do pobre cativo, que em trabalho No rude afã exala o alento extremo; — O céu é da inocência e da virtude, O céu é o infortúnio Repousa agora em paz, fiel escravo, Que na campa quebraste os ferros teus, No seio dessa terra que regaste De prantos e suores. E vós, que vindes visitar da morte O lúgubre aposento, Deixai cair ao menos uma lágrima De compaixão sôbre essa humilde cova; Aí repousa a cinza do Africano, — O símbolo do infortúnio.119 A referida poesia, acredita-se, foi uma homenagem ao fiel e dedicado escravo Ambrósio, que acompanhou nosso literato durante sua vida acadêmica em São Paulo. 120 Conforme informações de José Armelim Bernardo Guimarães, neto e biografo de nosso literato que além de documentação escrita obteve dados de familiares que conviveram com o literato, (incluindo Teresa Gomes de Lima, viúva do poeta e romancista) ―para companheiro do novo acadêmico, deu-lhe João Joaquim [pai de Bernardo Guimarães] um préstimo e dedicado escravo, o Ambrósio‖. 121 Já deve ter notado nosso leitor que o problema colocado por Bernardo Guimarães, em A escrava Isaura, não foi a escravidão em si. De acordo com Alfredo Bosi, ―o nosso romancista estava mais ocupado em contar as 119 GUIMARÃES, Cantos da solidão, pp. 53-54. GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. ―Introdução, cronologia e notas‖. In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959, p. 469. 121 GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 33 e 35. 120 118 perseguições que a cobiça de um senhor vilão movia à bela Isaura que em reconstituir as misérias do regime servil‖. 122 Nas obras e nas caracterizações das personagens de Bernardo Guimarães há muito da forma de pensar de seu tempo. Enfim, as representações que aqui apresentamos se referem ao pensamento de um literato num contexto de transição. Quando por um lado, a escravidão, enquanto sistema juridicamente legítimo dependia da atuação dos capitães-domato, ―necessária‖ para a manutenção da ordem e extinção de determinados focos considerados avessos à civilização como os quilombos. Assim, capturar fugitivos configurava-se como uma ação digna e necessária como nos tempos de Palmares. Por outro lado, a função de capitão-do-mato, tornava-se desnecessária diante de uma retórica de ―civilização‖ e ―preparação‖ do escravo para a vida em liberdade. Nessa perspectiva, converte-se o capitão-do-mato num ser ―satânico‖ como a personagem Martinho, ou seja, contrário à civilização. Eis a perspectiva de Bernardo Guimarães, que julgava que a extinção da escravidão deveria se dar por meio da ação senhorial. Tais representações indicam aquilo que o literato planejava para a sociedade, as razões de sua representação. A pesquisadora colombiana Nara Fuentes Crispín, analisando (a ausência das) vozes dos escravos numa obra literária de finais do século XIX, argumenta que tais vozes foram silenciadas na perspectiva de que as personagens assumem ―comportamientos y actitudes que corresponden al autor y su imaginario de civilización paternalista‖. Para Crispín, uma das razões que guiaram o literato em sua produção, que oculta as injustiças do regime escravista – criando a imagem de um paraíso sem conflitos – foi o peso do discurso civilizador, projeto que define a fazenda escravista como espaço de civilização e de construção de um modelo de nação.123 Conforme Chartier, as representações não são discursos neutros, ao contrário, ―produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo legitimar escolhas‖. Assim, as representações se inserem na luta intergrupos. Formulações que, de acordo com Francismar Alex Lopes de Carvalho, situam-se na ―revisão do marxismo proposta por Bourdieu‖, 124 filósofo e sociólogo que considerava 122 BOSI, História concisa da literatura brasileira, pp. 143-144. CRISPÍN, Nara Fuentes. ―‗Nos damos por convidados‘, la vos de esclavos en la hacienda ‗el paraiso‘‖. Tabula Rasa, n. 4. Bogotá, Colombia: Universidade Colegio Mayor de Cundinamarca, jan./jun., 2006, p. 220. 124 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand, 1988, p. 17; CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. ―O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier‖. Diálogos, v. 9, n. 1. Maringá, PR: DHI/PPH/UEM, 2005, pp. 149-150. 123 119 haver uma estreita relação entre a produção artística e os anseios das classes dominantes, especialmente em conjunturas em que artistas e intelectuais não possuíam certa autonomia frente às camadas dominantes. Em suas palavras, quando se trata de explicar as propriedades específicas de um grupo de obras a informação mais importante reside na forma particular da relação que se estabelece objetivamente entre a fração dos intelectuais e artistas em seu conjunto e as diferentes frações das classes dominantes. À medida que o campo intelectual e artístico amplia sua autonomia, elevando-se, ao mesmo tempo, o estatuto dos produtores de bens simbólicos, os intelectuais e artistas tendem progressivamente a ingressar por sua conta, e não mais apenas por procuração ou por delegação, no jogo dos conflitos entre as frações da classe dominante. 125 Com efeito, as representações do capitão-do-mato que apresentamos situam-se nas disputas em torno do processo de emancipação, são exemplos da proposta do literato para efetivá-lo. Produzidas num contexto de acirramento das críticas ao regime servil, existia base sociocultural para se firmar representações de caráter mais depreciativo sobre aqueles que atuaram na captura de fugitivos, porém os limites do discurso emancipacionista do literato – que buscava garantir o controle senhorial sobre a mão-de-obra liberta e ao mesmo tempo coibir os focos considerados avessos ao processo de emancipação – limitaram tais caracterizações. Escrito mais enérgico que retrata ―o quadro das caçadas aos negros‖, todavia se referindo especialmente aos Estados Unidos (tendo um romance como fonte), foi produzido por Joaquim Nabuco. Ressalvou, entretanto, que ―entre nós as barbaridades não são levadas a esse excesso na maioria dos casos, ainda que deploráveis exceções tenham-se visto que pareçam dobrá-las‖:126 Vivo e palpitante está nesse belo romance, que foi antes de tudo uma boa ação, a Cabana do Pai Tomás, de uma senhora cujo nome ilustre honra a América, Mrs. Beecher Stone, o quadro das caçadas aos negros. Adestravam-se cães para esse mister e aperfeiçoavam-se armas de alcance. Atirava-se aos escravos como a um animal bravio, e os que eram presos tinham os dentes da frente quebrados. Muitas eram as crueldades com que essa raça [branca] intolerante e exclusiva tratava seus escravos.127 125 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 191. NABUCO, A escravidão, p. 54. Grifo nosso. A referida obra foi escrita na juventude de Joaquim Nabuco, em 1870, e somente publicada, em 1949, quando se comemorava o centenário de seu nascimento. 127 Ibidem, p. 54. 126 120 Ou, ainda, na caracterização de outro contemporâneo dos debates que considerou que numa sociedade escravista um escravo – um negro, de modo geral – só obteria vantagens aliando-se ao senhor contra seus parceiros visto que do seu trabalho, Por maior que seja seu esforço, por mais inteligente que seja a applicação do mesmo, por mais abundante o seu resultado, a desditosa sorte em nada melhorará, nenhum gozo moral ou material lhe póde provir de esforço seu, mas tão sómente do acaso incarnado no capricho do senhor, e por ventura do maior desenvolvimento das más qualidades da natureza humana.128 Era assim que para o panfletista Luis Barbosa da Silva existiam capitães-do-mato, e outros indivíduos negros que atuavam em proveito do senhor de escravos; estes, em sua perspectiva, buscavam benefícios que dentro do quadro tradicional do trabalho exercido pelo negro jamais teriam. Fez uma interpretação bastante diferente da de Bernardo Guimarães para o auxilio que indivíduos que apresentavam sangue africano davam à classe senhorial. Ao contrário, para ele tal comportamento dos descendentes de africanos era moralmente prejudicial, pois as vantagens que tinha com tal atitude deveriam ter em virtude de seu trabalho, o que, em sua visão, só seria possível com o trabalho livre. Nas palavras do panfletista, Si se fizer collaborador do branco na oppressão dos parceiros, si for delator de seus irmãos de infortunio, si, como um cão, der-lhes caça quando fugirem, se os zurzir quando quizerem furtar-se por um instante ao cansaço sem treguas que os opprime, si se fizer corretor dos lascivos appetites dos senhores e de seus prepostos, oh! então póde obter algum favor, algum allivio a seus tormentos. Do exercicio do bem, da applicação em produzir mais e melhor nenhum beneficio colhe, mas das industrias perversas e estéreis, que fazem prosperar a depravação de escravos e senhores, augmentando as desgraças de uns e de outros, póde esperar alguma material vantagem. 129 Enfim, existiram indivíduos que pensaram na existência em si do capitão-domato, de feitores e outros agentes da autoridade senhorial – especialmente se fossem negros – como algo extremamente prejudicial à sociedade. Bernardo Guimarães, por outro lado, ao que tudo indica, enxergava a existência desses ofícios como agentes essenciais de manutenção da autoridade e da moral da classe senhorial, desde que agissem com 128 129 PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 13. Ibidem, p. 13. 121 prudência para não prejudicar o processo de emancipação em curso, ou seja, sua ação deveria ser dirigida para um determinado tipo de escravo, àqueles não ―preparados‖ para a vida em liberdade como o cabra Mateus e o chefe quilombola Zambi Cassange. As representações do capitão-do-mato expostas por Bernardo Guimarães estavam relacionadas aos anseios de uma fração de uma classe em determinado contexto, ao mesmo tempo em que estavam informadas por questões sociais movidas pelo prisma desta mesma fração, pretendiam ―impor‖ um projeto que se relaciona com o atendimento destes mesmos anseios. Enfim, nada havia de ingênuo nas histórias de Bernardo Guimarães. Ao contrário, sabia ele, muito bem, que projeto defendia, tendo exposto tal questão não apenas nos dois romances aqui mais referenciados. No romance O ermitão de Muquém, por exemplo, o literato expôs ao publico a idéia de que a educação poderia tornar o indivíduo útil à sociedade, questão que certamente o autor de ―Uma história de quilombolas‖ e de A escrava Isaura continuou concordando. A questão da educação parece ter sido uma tônica recorrente em obras do literato mineiro. Em 1883, por exemplo, no romance Rozaura, a engeitada, o narrador destacou o seguinte sobre uma das personagens: ―formmosa e dotada de bastante espírito e intelligencia, teria sido uma das mais perfeitas creaturas, si não fosse a falsa e má educação que lhe perverteo consideralmente a excellente índole, de que a dotára a natureza‖.130 O ermitão de Muquém foi publicado em São Paulo em formato de folhetim, em 1858, conhecendo posteriormente duas edições pela Garnier, 1869 e 1873. Certamente sua história ainda tinha algo a dizer naquele contexto emancipacionista, em que se discutia a ―preparação‖ dos escravos para a vida em liberdade. Vejamos uma breve descrição de Gonçalo, que de alguma forma corrobora também com a idéia da necessidade da tutela para uma boa formação do indivíduo: Era filho de pais abastados e de boa família; porém educado à larga, abandonado desde a infância a si mesmo, sempre em meio de más companhias, dotado além de tudo de índole inquieta e fogosa, este rapaz, que poderia ser um homem de bem e útil à sociedade, se uma educação regular tivesse dado salutar direção aos instintos de sua natureza, foi-se tornando um valentão famoso, talhado a molde para as galés ou para o patíbulo. […] Ainda para maior desgraça de Gonçalo, antes de chegar aos vinte anos de idade, tinha perdido pai e mãe. 130 Cf. GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 125. 122 Desde então senhor absoluto de suas ações e de uma tal ou qual fortuna, não encontrou mais paradeiro a seus desvarios e paixões desordenadas.131 Note a ênfase no abandono sofrido pela personagem, elemento que contribuiu e muito para a sua péssima formação. Concepção, ao que parece, também relacionada ao filósofo Rousseau, que acreditava que ―no estado em que agora as coisas estão, um homem abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos‖.132 Assim, para Bernardo Guimarães, da mesma forma, os escravos não deveriam ser abandonados, deveriam ser emancipados, como fez a personagem Álvaro, e educadas como Anselmo, Isaura e Florinda evitando ameaçarem a sociedade senhorial. Tem-se aqui, uma suposta preocupação com o liberto. Lembremos que em A escrava Isaura, o literato destacou que permanecendo na lavoura, os libertos ―preservavam-se de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime‖. 133 Conforme Mendonça, de 1871 a 1888 argumentava-se sobre a incapacidade do (ex)escravo viver em liberdade sem a tutela senhorial. Ainda segundo a autora, a idéia de proteção ao liberto, muitas vezes, foi utilizada para legitimar a legislação emancipacionista.134 Não foi, no entanto, isso que defendeu Bernardo Guimarães que, como temos observado, não julgou necessária a existência de leis para conduzir a emancipação. Facilmente perceberá o leitor, que as personagens emancipadas permaneceram na companhia de seus benfeitores, mesmo apresentando características que justificassem sua liberdade: os libertos de Álvaro permaneceram em sua fazenda; Isaura casou-se com Álvaro; e Florinda casou com o ―capitão-do-mato‖ emancipacionista. Neste quesito, implicitamente o literato trata da questão da gratidão do liberto para com o seu benfeitor, aquele que concede a liberdade. Em um dos artigos da lei do ventre-livre, que teve a oposição de Bernardo Guimarães, proibiu-se a prática de revogar a alforria por ingratidão. Questão que, na perspectiva senhorial, comprometia a formação de uma mãode-obra livre subordinada, grata ao senhor pela concessão da alforria. Ademais, seguindose o texto da lei o senhor era obrigado a alforriar o escravo que lhe apresentasse seu valor.135 Conforme Mendonça, a alforria obrigatória privou os senhores de um ―importante 131 GUIMARÃES, O ermitão de Muquém, pp. 17-18. Grifos nosso. ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, p. 7. 133 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114. 134 MENDONÇA, Cenas da abolição, pp. 29 e 31. 135 ―Lei n. 2.040 – de 28 de Setembro de 1871‖, pp. 149-150. 132 123 meio de produção de dependentes‖,136 gratos ao senhor pela concessão da alforria da qual então era o detentor da prerrogativa. 137 Ao que tudo indica, Bernardo Guimarães atuou como porta-voz de uma parcela da classe senhorial que se opôs ao referido dispositivo legal. Trípoli considerou que Bernardo Guimarães, em ―Uma história de quilombolas‖, não partiu da ótica senhorial. Ressaltou ainda que a imagem das personagens, ao não produzir os estereótipos atribuídos aos negros, ―não interessava às camadas dirigentes, pois refutava alguns critérios de valor por elas estabelecidos‖.138 Discordamos de tal interpretação. Como temos observado, as representações valorativas dos ―negros‖, nas obras do literato, recaíam apenas para as personagens que estavam alinhadas com o perfil considerado ideal para o escravo/liberto. Ademais, os traços positivos de personalidade para os ―negros‖ existem à medida que estes apresentavam certa mestiçagem que lhes fizeram herdar aspectos fisionômicos e morais ―brancos‖, eis os casos de Isaura, Anselmo e Florinda. Senhores, feitores e capitães-do-mato emancipacionistas Provavelmente, foi seguindo uma perspectiva senhorial de oposição à lei de 1871 que o literato apresentou, em suas obras, personagens emancipacionistas, inclusive um que atuou como capitão-do-mato, que em nada agridem o domínio senhorial. Tais personagens emancipacionistas apenas intentaram contra a prerrogativa senhorial em casos extremos. Foi, por exemplo, nessa perspectiva que Álvaro – juntamente com o ―satânico‖ Martinho, este cuja motivação nada tinha de nobre – agiu para ludibriar o senhor de Isaura a respeito de seu paradeiro como vimos páginas atrás. Na referida ocasião, o jovem Álvaro foi reprimido pelo sensato Dr. Geraldo: ―tu não vês que semelhante procedimento não é digno de ti?… que assim incorres realmente nos epítetos afrontosos, com que obsequiou-te o tal Leôncio, que te tornas verdadeiramente um sedutor e acoutador de escravos alheios?…‖. 139 Repreensão que logo a personagem responde: 136 MENDONÇA, Cenas da abolição, p. 85; e, ainda, CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador, pp. 182-192. 137 Diversos estudos apontam que a concessão de alforria foi uma tática senhorial utilizada na tentativa de assegurar seu controle sobre a mão-de-obra. Cf., por exemplo, SALLES, Ricardo. ―Vassouras – século XIX. Da liberdade de se ter escravos à liberdade como direito‖. In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 298 e 302; FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, especialmente, p. 117; PEREIRA, ―As representações da escravidão‖, p. 30. 138 TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, pp. 65-66. 139 GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 178. 124 — Desculpe-me, meu caro Geraldo; não posso aceitar a tua reprimida. Ela só pode ter aplicação aos casos vulgares, e não às circunstâncias especialíssimas em que eu e Isaura nos achamos colocados. Eu não dou couto, nem capeio a uma escrava; protejo um anjo, e amparo uma vítima inocente contra a sanha de um algoz. Os motivos que me impelem, e as qualidades da pessoa por quem dou estes passos, nobilitam o meu procedimento, e são bastantes para justificar-me aos olhos de minha consciência.140 Da mesma forma justifica-se a atuação de Miguel, pai de Isaura, na fuga de sua filha. Era uma ação extrema e justificável. Miguel tentou pelos meios tradicionais alforriar Isaura, a saber, com o devido consentimento senhorial. Por diversas vezes suplicou ao comendador – que sempre se recusou – para que colocasse preço na escrava, sua filha. O pai da personagem Leôncio, no entanto, ao colocar preço para o resgate de Isaura o fez indicando um valor bastante elevado para aquela transação: Muito pode o amor paterno em uma alma nobre e sensível!… Miguel, sobrepujando todo o ódio, repugnância e asco, que lhe inspirava a pessoa do comendador, não hesitou em ir humilhar-se diante dele, importuná-lo com suas súplicas, rogar-lhe com as lágrimas nos olhos, que abrisse preço à liberdade de Isaura. — Não há dinheiro que a pague; há de ser sempre minha, — respondia com orgulhoso cinismo o inexorável senhor ao infeliz e aflito pai. Um dia enfim para se ver livre das importunações e súplicas de Miguel, disse-lhe com mau modo: — Homem de Deus, traga-me dentro de um ano dez contos de réis, e lhe entrego livre a sua filha e… deixe-me por caridade. Se não vier nesse prazo, perca as esperanças.141 O valor era demasiadamente alto, uma extorsão, tendo como objetivo evitar que Miguel conseguisse acumular tal quantia e libertar sua filha (questão que compactua com a caracterização que o narrador fez sobre a personagem senhorial, um indivíduo devasso e cruel). Todavia, Miguel não mediu esforços: — Dez contos de réis! é soma demasiado forte para mim… mas não importa! ela vale muito mais do que isso. Senhor comendador, vou fazer o impossível para trazer-lhe essa soma dentro do prazo marcado. Espero em Deus, que me há de ajudar. O pobre homem, à fôrça de trabalho e economia, impondo-se privações, vendendo todo o supérfluo, e limitando-se ao que era estritamente 140 141 Ibidem, p. 178. Ibidem, p. 65. 125 necessário, no fim do ano apenas tinha arranjado metade da quantia exigida. Foi-lhe mister recorrer à generosidade de seu nôvo patrão, o qual, sabendo do santo e nobre fim a que se propunha seu feitor, e do vexame e extorsão de que era vítima, não hesitou em fornecer-lhe a soma necessária, a título de empréstimo ou adiantamento de salários. 142 Estando, enfim, de posse da quantia estipulada pelo acordo, Leôncio, como representante de seu pai, não somente se recusou a alforriar a escrava – descumprindo um acordo anteriormente acertado (o que diminuía a força moral de sua palavra) – como num período não muito distante já começaria a imputar a Isaura severos tratamentos, que fizeram a moça, inclusive, pensar num ―recurso extremo‖, o suicídio: — Não, minha filha; não serão necessários tais extremos. Meu coração já adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro, que não me serviu para alcançar a tua liberdade, vai agora prestar-nos para arrancar-te às garras desse monstro. Tudo está já disposto Isaura. Fujamos. 143 Perceba-se que antes de propor a fuga, Miguel tentou atuar dentro da ordem senhorial estabelecida: se predispôs a pagar pela liberdade de Isaura, mesmo sendo o valor acertado uma ―extorsão‖; somente atinou com a possibilidade da fuga quando sua filha vivia ―o mais cruel e aviltante cativeiro, um martírio continuado da alma e do corpo‖.144 Ademais, atente-se para o fato de Leôncio somente exercer a prerrogativa senhorial sobre Isaura por ter usurpado tal prerrogativa de sua falecida mãe, como vimos no capítulo anterior. Voltemos à caracterização da personagem Miguel, um feitor que também atuou enquanto emancipacionista: Era um homem de mais de cinqüenta anos; em sua fisionomia nobre e aberta transpirava a franqueza, a bonomia, e a lealdade. Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas maneiras e conversação, conhecia-se que aquêle homem não viera ao Brasil, como quase todos os seus patrícios, dominado pela ganância de riquezas. Tinha o trato e a linguagem de um homem polido, e de acurada educação. De feito Miguel era filho de uma nobre e honrada família de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus pais, vítimas de perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar ao filho, que deixaram na idade de dezoito a vinte anos. Sòzinho, sem meios e sem proteção, viu-se forçado a viver do trabalho de seus braços, metendo-se a 142 Ibidem, p. 66. Ibidem, p. 101. 144 Ibidem, p. 100. 143 126 jardineiro e horticultor, mister êste, que como filho de lavrador, robusto, ativo e inteligente, desempenhava com suma perícia e perfeição. 145 Esta personagem foi feitor da fazenda do comendador, pai de Leôncio, nos momentos em que a mãe de Isaura conheceu os piores momentos de sua fictícia vida, por resistir a sanha de seu senhor, que Enfureceu-se com tanta resistência, e deliberou em seu coração perverso vingar-se da maneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando-as de trabalhos e castigos. Exilou da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados serviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recomendando bem ao feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor, porém, que era um bom português ainda no vigor dos anos, e que não tinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão, seduzido pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava carícias e presentes, de maneira que daí a algum tempo a mulata deu à luz da vida a gentil escravinha, de que falamos. Êste fato veio exacerbar ainda mais a sanha do comendador contra a mísera escrava. Expeliu com impropérios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tão rudes trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou no túmulo, antes que pudesse acabar de criar sua tenra e mimosa filhinha. 146 Como já se deve ter notado era ele uma nobre personagem, um ―bom‖ feitor. Aliás, no próprio romance é destacado que quem ocupava esta posição na sociedade escravista era geralmente detestado, especialmente pelos escravos: — Um raio que te parta, maldito! — Má lepra te consuma, coisa ruim! — Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! — Estas e outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas êste voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios. É abominado mais do que o senhor cruel, que muniu do azorrague desapiedado para açoitálos e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz, que a executa.147 Tal ódio, no entanto, não atingia Miguel: ―isso é que era feitor bom!… todo mundo queria êle bem, e tudo andava direito. Mas êsse siô Francisco, que aí anda agora, cruz nele!… é a pior peste que tem botado os pés nesta casa‖. Como já destacamos, Miguel também era um emancipacionista, visto ter atuado na tentativa de libertar sua filha. 145 Ibidem, p. 64. Ibidem, p. 33. 147 Ibidem, p. 77. 146 127 Todavia, ainda antes, ―o siô Miguel gostava muito de Juliana [mãe de Isaura], e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar ela‖, não concretizou seu plano, no entanto, devido ao falecimento da escrava. Se esforçar pela emancipação parece ter sido uma sina de tal nobre personagem. Miguel era um português, sendo então a razão para que Isaura tenha herdado as características físicas e morais ―brancas‖. 148 Provavelmente, na caracterização desta personagem, o literato tenha se utilizado do perfil de outra personagem emancipacionista, o ―capitão-do-mato‖ Anselmo. Aliás, Anselmo foi o nome adotado pelo feitor Miguel quando se encontrava fugido com sua filha. Ao que tudo indica, Bernardo Guimarães defendeu que a solução para a extinção da escravidão salvaguardando o futuro da nação era a educação – para tornar os indivíduos preparados para a liberdade – e o ―branqueamento‖ – que os dotaria de características físicas e morais que os tornariam hábeis à ―nova‖ sociedade sem a escravidão. Ademais, há no discurso de Bernardo Guimarães uma prudência emancipacionista que não lhe permitiu de todo depreciar as figuras do feitor e do capitão-do-mato. A emancipação em suas obras ocorre na mais perfeita ordem escravista ou desvia-se apenas em casos extremos e justificáveis. É assim, que para além de senhores, temos um feitor e até um ―capitão-domato‖ emancipacionistas, todos com características físicas e morais ―brancas‖. Anselmo, como vimos, era ainda um liberto. Não é novidade a atuação de libertos – e até escravos – como capitães-do-mato,149 todavia tal questão toma um tom significativo no enredo romântico bernardino cujo capitão-do-mato era um emancipacionista: provavelmente, visava indicar que a própria ordem senhorial era capaz de reger a emancipação. Em 1871, em pleno debate sobre a proposta de emancipação do governo, o deputado e jurista Perdigão Malheiro, defendeu que a melhor opção para extinguir a escravidão era incentivar a iniciativa senhorial de conceder alforrias. Defendeu que a própria sociedade, a ordem escravista, já conduzia a emancipação; retórica adotada para justificar que não havia, naquele momento, necessidade de uma lei para tal fim. Em suas palavras, 148 Ibidem, p. 73. Em estudo sobre quilombos em Minas Gerais colonial, Carlos Magno Guimarães mencionou a existência de libertos e até escravos atuando como capitães-do-mato, seja por iniciativa própria ou encaminhado por seu senhor. Para o autor, isso se justificava pelo conhecimento que os escravos possuíam sobre os comportamentos dos fugitivos. Apesar de muitos forros atuarem a favor dos quilombolas, muitos defenderam a ordem senhorial, o que, na perspectiva de Carlos Magno Guimarães, se deu devido à defesa dos próprios interesses de alguns libertos que se tornaram senhores de escravos. Cf. GUIMARÃES, ―Mineração, quilombos e Palmares‖, pp. 144, 151 e 152-153. 149 128 as libertações vão-se succedendo como os pequenos rios a formarem um grande rio (apoiados); por actos entre vivos e de ultima vontade, com clausula ou sem ella, gratuitamente ou a titulo oneroso, de todas as idades, sexo e condição, e até a geração futura das escravas. Concorrem de modo notavel em subscripções para tão caritativo e nobre fim. Libertase até ultimamente em massa, aos 20, 30, 40 e 100, por acto de ultima vontade sobretudo! E, não satisfeitos, dão-lhes educação, casão-nos, e estabelecem-nos. Por fim deixão-lhes legados, ás vezes valiosos, e instituem seus herdeiros. (Apoiados.) De sorte que o progresso da libertação, da alforria, é exactamente um dos elementos mais poderosos com que devemos contar; que não devemos desprezar, ao inverso animar; e muito menos contrariar. (Apoiados.) Desde que se pretenderem providencias que possão de algum modo affectar este progresso, por meios artificiaes e prejudiciaes, devemos evita-lo deixando a idéa seguir seu caminho. Entendo que não devemoss fazer nesta questão, senão auxiliar o movimento espontaneo da emancipação (apoiados); essas medidas de nascimento livre, resgate forçado absoluto, alforrias forçadas sem criterio, e sememlhantes, são perigosas, inconvenientes, vão fazer grande mal á idéa, grande mal ao paiz.150 Para o jurista e deputado, destacar que a própria classe senhorial conduzia um processo de emancipação que deveria ser estimulado servia ao propósito de tentar convencer seus pares na Assembléia Geral que aquele não era o momento para o Estado intervir na questão servil. Bernardo Guimarães publicou duas histórias românticas nas quais a emancipação ocorre – de forma bem sucedida – pela ação senhorial. Publicada em princípios de 1871 (provavelmente finalizada em 1870) ―Uma história de quilombolas‖ pode ter implícito o mesmo propósito apresentado por Perdigão Malheiro, a saber, evitar a transformação da idéia de libertação do ventre em Lei. Em 1875, no entanto, quando A escrava Isaura foi publicada (provavelmente escrita em 1874), já estava promulgada a Lei. Provavelmente, nosso literato tenha buscado evitar que ela se convertesse em ação prática do Estado: ―como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar doméstico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão?‖, questionou o sensato doutor Geraldo, personagem do romance de 1875.151 150 151 MALHEIRO, Discurso proferido na sessão da Camara Temporaria de 12 de Julho de 1871, pp. 43-44. GUIMARÃES, A escrava Isaura, p, 165. CONSIDERAÇÕES FINAIS A escrava Isaura é sempre identificada como uma obra em que o autor apresentou os sofrimentos de uma escrava branca para comover o leitor. Por isso, não poderíamos finalizar este estudo sem algumas considerações a respeito da classificação racial de suas personagens. A emancipação e o futuro da nação, na perspectiva do literato, dependiam de uma maior aproximação da sociedade brasileira aos padrões culturais e estéticos europeus; o caso de Isaura, Florinda e Anselmo, personagens educados e – apesar de mestiços – com características fisionômicas predominantemente brancas são exemplos de um pensar na formação de uma sociedade européia nos trópicos. Questão que se tornou mais preponderante com a adesão e re-significação dos letrados ao darwinismo, formulando uma concepção que compreendia o homem branco como ápice de desenvolvimento e civilização.1 Pensamento ―civilizador‖ que, ao que tudo indica, não foi desprezado por nosso literato. Na opinião de Sylvio Roméro, publicada em 1888, em sua Historia da Litteatura Brazileira, Bernardo Guimarães não era um d‘esses espíritos curtos, maldizentes, que praguejavam contra todo o progresso, um d‘esses obcecados que desejariam ficasse o Brazil perpetuamente entregue aos caboclos na sua inveterada estupidez. Muito pelo contrario, Bernardo foi sempre avesso aos caboclismos exagerados. Era um espirito liberal e progressivo. Amava a civilização, não levava o seu amor pela paizagem, ao ponto de gostar mais de uma bella matta do que d‘uma bella cidade. 2 É importante destacarmos que ―progresso‖ e ―civilização‖, para o referido período, significava estar pautado em parâmetros considerados científicos provenientes das luzes européias, entre eles os das Ciências Naturais e Econômicas. O que não significava transformar a produção literária num tratado científico. Roméro ao analisar o romance O seminarista (1872) – que julgou ser um dos quatro romances mais significativos de Bernardo Guimarães (inclui O garimpeiro, Mauricio, e A escrava Isaura) – destacou o que provavelmente ele considerou ser válido também para A escrava Isaura. Conforme o crítico, o referido romance 1 2 Sobre o darwinismo ver: CARULA, A Tribuna da Ciência, pp. 108-109. ROMÉRO, Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II, p. 946. 130 Não tem aquelle aspecto doutrinario, escavador, scientifico, technico, que vae invadindo o romance moderno, ás vezes levado a tal exaggero que antes ler um tratado de pathologia, especialmente de molestias do systema nervoso e das faculdades mentaes, do que ler taes livros, que, afinal de contas, dem [sic] sciencia, nem arte são. O nosso livro não tem aquelle aspecto demonstrativo de uma equação algebrica nem o tom realista de um processo crime. 3 É importante destacarmos que Roméro criticou aqueles que exageravam ao se servir de elementos ―científicos‖ em suas obras literárias e não a sua simples utilização. Aliás, o próprio crítico, ao analisar as transformações na poesia brasileira, utilizou elementos provenientes das ciências naturais destacando a existência de uma ―phylogenia literaria‖, ou seja: ―cada nação tem seu patrimonio de ideias representativas do seu desenvolvimento natural‖. 4 Para ele, A litteratura rege-se pela lei do desenvolvimento á maneira das formações biologicas, ella tem a sua lucta pela existencia, onde as ideias mais fracas são devoradas pelas mais fortes e tradicional e um elemento novo de adaptação a novas necessidades e a novos meios.5 O próprio crítico reconheceu a relação entre ciência e arte. Para ele, ―a differença existente entre a litteratura do seculo XIX e a literatura dos outros tempos é a mesma que existe entre a sciencia e a philosophia do seculo XIX e a sciencia e philosophia dos outros tempos‖.6 Ciência que, aliás, era pensada como uma forma de garantir um melhor futuro para as nações que somente com ela progrediriam chegando aos níveis de civilização e povo então encontrados na Europa em oposição aos negros tidos como bárbaros. Não é novidade que a questão da presença africana preocupou os intelectuais no Brasil, tendo sido discutida desde os primórdios da institucionalização da historiografia brasileira através do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, cuja perspectiva historiográfica, que também esteve presente na produção literária, indicava que se conheceria melhor o país apreciando os elementos raciais (o branco, o negro e o índio) que compunham a jovem nação. Em 1843, Carlos Frederico Ph. Von Martius, que concebeu o europeu/português como elemento civilizador, ao propor ―Como se deve escrever a Historia do Brazil‖, estabeleceu a seguinte questão sobre a presença do negro no Brasil: 3 Ibidem, pp. 959. Ibidem, pp. 691-692. 5 Ibidem, p. 691. 6 Ibidem, p. 689. 4 131 Não ha duvida que o Brazil teria tido um desenvolvimento muito differente sem a introducção dos escravos negros. Se para o melhor ou para o peior, este problema se resolverá para o historiador, depois de ter tido occasião de ponderar todas as influencias, que tiveram os escravos Africanos no desenvolvimento civil, moral e político da presente população. 7 Questão que logo obteve resposta. Francisco Adolfo de Varnhagen, por exemplo, julgou que por um lado, os ―escravos africanos concorriam a augmentar a riqueza pública com o seu trabalho, por outro pervertiam os costumes, por seus habitos menos decorosos, seu pouco pudor, e sua tenaz audacia‖. 8 Bernardo Guimarães não foi indiferente a tal questão; todavia, não compactuou com uma perspectiva na qual a miscigenação era tida como prejudicial, como alguns sugeriram na época: quanto à raça brasileira, mistura de sangue europeu, americano e africano, tem toda a indolência crioula, é fraca, abastarda, muito inteligente e não menos orgulhosa. É evidente que é ao comércio com os negros que se deve em parte a deterioração dessa raça. As negras, com seus ardores africanos, estiolam a juventude do Rio de Janeiro e de suas províncias. Há em seu sangue um princípio acre que mata o branco.9 É bastante provável que nosso literato tenha entrado em contato com tal discussão ainda em São Paulo quando freqüentava a Academia de Ciências Sociais e Jurídicas (18471851). Entre 1847 e 1850, o bacharelando Bernardo Guimarães foi sócio do Instituto Literário Acadêmico que editava o jornal Ensaios Litterarios que, conforme Hélder Garmes, apresentava uma proximidade, ao menos historiográfica, com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Segundo ele, podemos ver nos artigos históricos dos Ensaios Literários uma ramificação das concepções vigentes no Instituto Histórico e Geográfico brasileiro, o que vem corroborar a idéia de que o Instituto Literário Acadêmico realmente funcionava, ao menos quanto às diretrizes historiográficas, em consonância com aquela instituição. 10 7 MARTIUS, ―Como se deve escrever a Historia do Brazil‖, p. 397. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia geral do Brazil. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1854, pp. 179-180 e 185. 9 TOUSSAINT-SAMSON, Uma parisiense no Brrasil, p. 100. 10 GARMES, ―Os ensaios literários (1847-1850)‖, p. 89. 8 132 Tal questão, encontramos explicita, por exemplo, num artigo sobre a ―Historia dos paulista‖, publicado em 1850 nos Ensaios Litterarios, onde se destaca uma certa tendência à miscigenação que seria proveitosa ao futuro da sociedade brasileira. Tratando, no entanto dos primórdios dos tempos coloniais, o autor menciona as relações entre brancos e indígenas, todavia fez questão de generalizar seu pensamento, o que, sem dúvidas, incluía pensar a sociedade brasileira de meados do século XIX. Conforme pensava o autor do referido artigo, e, talvez, outros acadêmicos de sua geração, A co-existencia prolongada de duas raças, qualquer, que seja a distancia social, que as separe, produz a final em um período mais ou menos longo a sua fusão, meio pacifico e providencial, pelo qual tende sempre a restabelecer-se a igualdade e unidade nacional, e a harmonizarem-se os seus heterogêneos, ou hostis interesses; fora deste meio não restaria nenhuma outra solução a esse grande problema social senão a expulsão, ou extermínio de uma raça pela outra.11 É importante destacarmos que um princípio romântico, muito explicito por José de Alencar, que não via o negro como personagem, como participante da sociedade brasileira, foi explicitado por Bernardo Guimarães em artigo publicado nos Ensaios Litterarios. Nosso literato, enquanto estudante da Academia de Ciências Sociais e Jurídicas, pensou no índio, ―a raça extinta‖ – como enfatizou o jovem Bernardo –, e/ou branco (a raça ―dominadora‖) como elemento de inspiração para a poesia brasileira, ignorando ou omitindo o elemento negro. Conforme Garmes, Bernardo Guimarães, assim como outros literatos (José de Alencar, Aluísio Azevedo, Almeida Pereira), manteve de alguma forma certa coerência entre as diretrizes que ele indicou no meio acadêmico e suas futuras produções literárias. 12 Para o jovem Bernardo, que iniciava suas investidas na senda da crítica literária, duas fontes se abrem fecundas de inspiração para a muza brasileira – o nosso passado, e o nosso futuro – a raça extinta [indígena] e a dominadora [européia]. Naquelle que é os nossos tempos heroicos, acharemos essas aventuras que tão vasto assumpto dão para o genero historico, como o drama e a epopêa: a historia, as tradicções, os usos e costumes bisarros e barbaros das tribus brasileiras, suas continuas luttas, já entre si, já com os europeos, todas essas reminiscencias de nossa historia primitiva tão cheias de heroicos accidentes e aventuras 11 ―Historia dos paulistas‖. Ensaios Litterarios: jornal academico, s.n., São Paulo, 1850, p. 43. AEL/CECULT. 12 GARMES, ―Os ensaios literários (1847-1850)‖, pp. 116 e 150. 133 romanescas, são ricos thesouros de poesia nacional que devemos-nos apressurar em salvar das garras do olvido, consagrando-os perduravelmente nossos cantos. 13 Com efeito, em muitos dos romances escritos por Bernardo Guimarães há menções aos elementos brancos, considerados como o futuro pelo jovem crítico, e indígenas (tidos como nosso passado). O elemento negro, não era muito benquisto naquela sociedade na qual os intelectuais projetavam um magnífico futuro. Foi nessa perspectiva, por exemplo, que Perdigão Malheiro rejeitou a possibilidade da introdução de africanos livres no Brasil, por conta da possibilidade da extinção da escravidão; julgava que o ideal era a imigração de elementos europeus: Houve já quem se lembrasse da introducção de negros livres. Basta, porém, o elemento que existe entre nós; fiquem elles na sua Africa, que bem precisa, e tal parece ter sido o seu destino. – Fallou-se em coolies (caulis) ou Indios da Asia; porém Indios também temos nós, e descendentes delles. – A experiencia dos Chins está feita. E‘ outra a raça que devemos preferir. Convém insistir na immigração de raça Européa. Todas as Nações da Europa e da America podem fornecelos; se uns não são inclinados á lavoura, outros o são; empregar-se-hão todos nas diversas industrias e serviços. O Portuguez, o Ilhéo é muito bom colono ou immigrante para as cidades, para o commercio, e outras industrias. O Allemmão deve ser o preferido para a lavoura; neste intuito é elle o melhor colono até hoje conhecido em toda a parte para onde tem emigrado. O Norte-Americano é emprehendedor, arrojado, inventivo, e applica-se a todas as indrustrias.14 Já se chegou a afirmar que a principal personagem romântica de Bernardo Guimarães (Isaura) somente poderia ser branca, pois exclusivamente desta forma se sensibilizaria a classe senhorial, afirmando que ―preta no tronco, apanhando de chicote, era coisa de todos os dias e de todos os lugares do Brasil, ao vivo‖. Concepção que ou ignora a ocorrência de um debate racialista no tempo de Bernardo Guimarães, ou ignora que nosso literato entrou em contato com tal debate pelo menos desde a sua vida acadêmica. Conforme Schwarcz, a década de 1870 – período em que o romance A escrava Isaura foi escrito e publicado – é um marco para a história das idéias no Brasil, pois representa um momento em que ―os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental‖. Sobre a personagem Isaura, José Armelim Bernardo Guimarães, neto de nosso literato, declarou: 13 GUIMARÃES, Bernardo. ―Reflexões sobre a Poesia Brasileira‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos, 1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, pp. 16-17. AEL/CECULT. 14 MALHEIRO, A escravidão no Brasil (Parte 3ª: Africanos), pp. 192-193. 134 A principal figura será, como não poderá deixar de ser, uma escrava. Preta? Claro que não! Escrava comum não comoverá ninguém. O que é mesmo preciso é que a sinhazinha se sinta no lugar da negra, e que o senhor desalmado veja sua própria filha debaixo do azorrague do feitor, lá fora, amarrada ao tronco!… […] Em Isaura moreninha de luso sangue, apenas filha de escrava, em lugar da africana de puro sangue como as demais, percebe-se a perspicácia acutíssima e inteligentíssima do autor, o talento sobremaneira atilado do romancista que, por esse modo, realizou a contento a sua ardorosa campanha contra o cativeiro. Atingiu estrategicamente em cheio o alvo que mirava. Ele não seria o grande lidador que foi na peleja da abolição se Isaura fosse de cor, essa é a verdade!15 A razão para Isaura e outras nobres personagens – como Anselmo e Florinda – serem ―brancas‖, como temos implicitamente sugerido, é que as características positivas de personalidade não eram atribuíveis aos da raça negra. A solução do literato foi embranquecer – miscigenar – estas personagens. Ademais, temos que levar em consideração que, como argumentamos, a justificativa central do emancipacionismo expresso em A escrava Isaura não foi um apelo para a sensibilidade senhorial quanto aos sofrimentos do escravo, que Isaura representa. Eventualmente, o literato fez críticas ao preconceito de cor,16 todavia, as características positivas das personagens, a exemplo de Isaura, ocorrem em decorrência de seus aspectos ―brancos‖. 17 No romance Rozaura, a engeitada, por exemplo, diferentemente do que ocorre com Isaura, uma personagem mestiça tem sua beleza e características morais apresentadas com ressalvas: ―não era Adelaide uma belleza completa e sem senão‖.18 Conforme é descrito, Era um desses typos singulares, que attraem e fascinão por sua encantadora originalidade. Era de porte alto, bem feita e garbosa; de feições era engraçada e bonita, como bem raras se encontrarão. Grandes olhos de uma negridão e brilho incomparáveis abrião-se suavemente entre longos cilios da mesma côr, como dois lagos onde se espelhavão o amor e a voluptuosidade. A tez tinha a côr, que o leitor póde imaginar seria a da filha de gentil mulata e de um belo e robusto descendente dos Tibiriçás; era morena, mas de uma matiz suave e transparente, atravéz do qual via15 GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 159-160. Tal questão está mais explicitada no romance Rozaura, a engeitada, publicado, em 1883, pelo famoso livreiro Garnier. Romance, no qual, no entanto, também fica muito implícito certo preconceito de cor por parte do literato que caracteriza positivamente as personagens a medida de suas características ―brancas‖. 17 Sobre tal questão, que é mencionada por Alfredo Bosi, já enfatizamos. Cf. BOSI, História concisa da literatura brasileira, p. 144. 18 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 35. 16 135 se animar e colorir-lhe as faces o sangue ardente das duas raças de que procedia.19 A beleza da mestiça, aliás, também é atribuída às suas características herdadas da ―raça‖ branca: ―na bem proporcionada e delicada conformação das mãos e dos pés, bem como na finura do talhe e na elegancia do porte, era ella tambem representante dos mais bellos e genuinos typos europeus‖. 20 Como outras personagens do literato, as feições morais e psicológicas da personagem estão associadas às suas características físicas, ou seja, era mestiça também neste aspecto. Como lemos no romance, Sua natureza moral era tambem um composto inexplicavel de qualidades oppostas, que deverião excluir-se umas as outras, ou andar em perpetua collisão. Fosse por indole ou por defeito de educação, era ella um mixto incomprehensivel de desenvoltura e recato, de meiguice e esquivança, de ingenuidade e malicia. Nas maneiras, nos ademanes, nas palavras era ás vezes de tal desembaraço, que degenerava em estouvamento; e outras vezes de tal timidez e acanhamento, que roçava pela imbecilidade. 21 Neste quesito, temos uma concepção que não foi exclusividade de nosso literato: associar as características físicas aos caracteres psicológicos. No já aqui referenciado artigo ―Historia dos paulistas‖, publicado em 1850, o autor – um acadêmico de ciências sociais e jurídicas – também destacou ocorrer uma miscigenação de atributos morais e psicológicos. Para o acadêmico, Erão os mamelucos o resultado d‘esse cruzamento operado no periodo de quasi um seculo. Tinhão elles herdado o valor e audácia de seus pais [brancos], unidos á resignação, e perseverante impaccibilidade de suas mães [indígenas] […]. […] Em grau iminente união [sic] os mamelucos todas as vantagens de sua dupla origem, e em sua physionomia se desenhavão ainda mais vigorosamente os mesclados traços dos typos primitivos; porem ao mesmo tempo esta raça meio civilizada, e meio selvagem compartia os defeitos, os vicios, e as paixões de um e outro estado. 22 Segundo Karoline Carula, tal questão também foi expressa por Aluísio Azevedo, no romance O mulato (1881), que, seguindo uma concepção pautada no darwinismo, 19 Ibidem, p. 36. Grifo nosso. Ibidem, p. 37. 21 Ibidem, p. 37. 22 ―Historia dos paulistas‖. Ensaios Litterarios: jornal academico, s.n., São Paulo, 1850, p. 43. AEL/CECULT. 20 136 apresenta uma história na qual a personagem principal herdou características físicas e morais de seus ascendentes, numa explícita utilização de elementos considerados científicos numa produção literária. 23 A escrava Isaura, a julgar pelo comentário crítico de Sylvio Roméro – defensor do imigrantismo – publicado em 1888 em sua Historia da Litteratura Brazileira, ecoou bem nos indivíduos adeptos da solução imigrantistas que essencialmente acreditavam na superioridade da ―boa raça aryana‖ e que ―o negro é um ponto vencido na escala ethnographica‖.24 Ao se referir a obra, o crítico, que desprezava abertamente a ―raça‖ africana e defendia a não necessidade de leis para extinguir a escravidão,25 elogiou justamente as características da personagem não ignorando a solução emancipacionista apresentada por Bernardo Guimarães. Para ele, A Escrava Isaura é um estudo social. Assenta sobre o facto da escravidão existente entre nós. Trata-se de uma bella rapariga, intelligente, graciosa, prendada e alva, como um exemplar de boa raça aryana. A pobre, entretanto, era captiva e requestada pelo senhor… Consegue fugir em companhia de seu pai, e da cidade de Campos na provincia do Rio de Janeiro, onde se passa o principal da acção, vae ter ao Recife. Ahi passa por livre, freqüenta boas rodas, vae a reuniões, tem admiradores. E‘ descoberta e presa afinal, voltando ao poder do cruel senhor, de cujas garras é arrancada por um moço riquíssimo que se tornara por ella de profunco affecto. O facto é possivel e deu-se até mais de uma vez; há veracidade em geral, apar de algumas incongruencias e ficelles.26 O crítico Sylvio Roméro, é importante destacarmos, compreendia a diversidade no discurso antiescravista, tendo se colocado contra determinadas concepções que julgou como intransigentes e infrutíferas, sendo assim percebemos o quanto o crítico teve em boa conta a obra do mineiro Bernardo Guimarães, a julgar pelo elogio exposto acima e as observações sobre a emancipação citadas abaixo: Quem já não vê que a questão [da emancipação dos escravos] passou de seu momento agudo sem que nada se haja resolvido, sem que outra cousa tenhamos apreciado além das coquetices do pedantocrata Joaquim Nabuco e das declamações ingenuas e inoffencivas de um ou outro 23 CARULA, A Tribuna da Ciência, p. 141. ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 197. 25 AZEVEDO, Onda negra, medo branco, pp. 59-60. 26 ROMÉRO, Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II, pp. 959-960. Grifos nosso. 24 137 sangmêle transformado de chofre em vidente e director da opinião brazileira?27 Ao que tudo indica, para o nosso literato, a solução para o futuro de progresso do Brasil era uma mestiçagem que tendesse ao ―branqueamento‖. Sobre a personagem Adelaide, que possuía ―mescla de sangue caboclo e africano‖, o narrador de Rozaura, a engeitada declarou: ―si realmente ella participava das duas raças, era evidente que deixára com seus ascendentes o que nellas há de ruim, grosseiro e imperfeito, e só herdará o que por ventura nellas há de bom, de bello e de perfeito‖. A personagem Rozaura era filha natural de Adelaide. Mesmo com tal ascendência, a menina é descrita como branca e de excelentes qualidades. Enfim, nosso literato foi contrário a uma perspectiva na qual a miscigenação fazia prevalecer as heranças negativas dos indivíduos.28 Como temos notado, as características positivas para Bernardo Guimarães eram oriundas da ―raça‖ branca, vide Isaura, Anselmo e Florinda. Ademais, considerou ser difícil – vide o termo ―por ventura‖ – encontrar características de caráter a serem valorizadas nas duas raças que formaram a personagem Adelaide, que ―é na verdade uma bonita mocetona; mas tem os instinctos da raça; o sangue africano, que lhe gira nas veias, faz com que não tenha lá muito bom gosto na escolha dos amantes‖, como declarou uma personagem. Sobre a existência de escravas brancas, aliás, temos uma interessante declaração de uma nobre e inteligente personagem – um acadêmico de ciências sociais e jurídicas da Faculdade de São Paulo –, que, de certa maneira, apresenta o tom do pensamento do literato: ―com a continuação do cruzamento, a raça africana se depura e aperfeiçoa, e eu tenho visto mais de uma escrava branca e mais bonita que sua senhora‖. 29 Com isso, podemos considerar que a representação de escravos brancos na obra bernardina se refere ao otimismo do literato quanto ao futuro da nação que, na perspectiva de muitos indivíduos, dependia de um aperfeiçoamento da ―raça brasileira‖. A partir das obras, percebemos um literato que oscilava entre uma concepção de base iluminista e a – florescente – concepção de base racialista, mesmo apresentando declarações contrárias ao preconceito de cor expresso principalmente, em 1883, no romance Rozaura, a engeitada: ―que significava aos olhos de um jovem poeta e philosopho, sectario de J.-J. Rousseau, alguma gotta de sangue servil que circulasse nas 27 ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 192. Sobre as teorias raciais no século XIX ver: SCHWARCZ, O espetáculo das raças, pp. 56-57. 29 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 227. 28 138 veias de Adelaide?‖;30 não obstante, no referido romance também esteve explícita uma concepção de base racialista (vide a declaração, da nobre e inteligente personagem, que apresentamos no parágrafo anterior). Questão nada incomum numa sociedade que já discutia os ―males‖ da escravidão, como também explicitava uma concepção na qual o negro era considerado social e biologicamente inferior. Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo, a convergência entre liberalismo e teorias raciais foi uma importante base para o discurso antiescravista brasileiro: ―argumentos liberais e raciais convergiam para que a suposta irracionalidade da escravidão fosse explicada‖. 31 Em Bernardo Guimarães, não encontramos um discurso radical como o escrito, em 1870 (publicado somente em 1949), pelo jovem Joaquim Nabuco, em seu ensaio diacrônico sobre a escravidão, que levou mais ao extremo seu discurso de base iluminista, considerando a escravidão como um fato criminoso, que como a pirataria, como o tráfico, como a inquisição, pode e deve acabar sem que a sociedade deva conta aos senhores de sua extinção, da mesma sorte que não se indenizou aos piratas pelos cristãos, que poderiam ainda vender, nem ao Santo Ofício pelos judeus que ainda poderiam queimar vivos. 32 Ao contrário, ao propor uma solução senhorial para a extinção da escravidão, Bernardo Guimarães reconheceu as deficiências do regime servil, todavia, primou por sua legitimidade. Ao aderir parcialmente a duas correntes antagônicas, uma de base racialista (que pregava a desigualdade moral e de caráter com base nas características físicas do indivíduo) e o iluminismo (que defendia a igualdade), o literato construiu um discurso próprio, pautado nos interesses da classe senhorial que ele reivindicava representar. Tal ambigüidade filosófica, que buscava conciliar tendências conflitantes, não foi uma característica exclusiva de nosso literato. Conforme Adorno, na Faculdade de Direito de São Paulo do século XIX, que foi freqüentada por muitos indivíduos que seguiram carreira literária, havia uma ―vã esperança de conciliar tendências opostas‖. 33 Não podemos ignorar que foi o curso jurídico da Academia Paulista um dos espaços de formação acadêmica, cultural e intelectual de Bernardo Guimarães. 30 GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, pp. 100 e 117. AZEVEDO, Onda negra, medo branco, p. 55. 32 NABUCO, A escravidão, p. 61. 33 ADORNO, Os Aprendizes do Poder, pp. 96-97 e 102. 31 REGISTROS HISTÓRICOS Poesias, dramas, romances e artigos de Bernardo Guimarães ―[Carta de despedida aos amigos, editores e leitores do A actualidade]‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 110, 19/12/1860, p. 1. ―Á memoria de João Joaquim da Silva Guimarães, no anniversario de sua morte (24 de junho)‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 35, 09/07/1859, pp. 3-4. ―Reflexões sobre a Poesia Brasileira‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos. São Paulo, 1847-1849 (publicado em partes). ―Revista Litteraria‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 54, 01/10/1859, p. 2. A escrava Isaura. Biografia, introdução e notas por: M. Cavalcanti Proença. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Edições de Ouro), 1967 [1875]. 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