Acta Oftalmológica Medicina do século 12; XX. 41-44, A minha2002 vivência 41 Medicina do século XX A minha vivência J. Castro-Correia Quando fiz o meu curso de medicina, o método anatomoclínico dominava totalmente a atitude médica, mesmo tomando em consideração a prática da Radiologia que, de facto, não era senão uma anatomia do homem vivo e que, indubitavelmente constituiu um enorme progresso médico, pois veio permitir a antecipação do diagnóstico e a instituição precoce de uma terapêutica adequada. A tuberculose era por essa época uma doença devastadora e a radiologia clínica contribuiu de modo decisivo para a sua erradicação, não só ao nível do diagnóstico precoce (relembrem-se as microrradiografias que quase toda a gente era obrigada a fazer), mas também ao nível do tratamento, permitindo seguir a evolução das lesões pulmonares. Ao recordar hoje a estrutura do ensino médico que me foi ministrado concluo, com a maior satisfação, que nele se continham as ideias mais avançadas sobre os conceitos e os objectivos da medicina da época. A medicina da primeira metade do século XX, prolongamento da gloriosa revolução conceptual médica operada durante o século XIX, revolução em que intervieram figuras tão paradigmáticas como Laenec (1781-1826), Magendie (1783-1855), Claude Bernard (1813-1878), Pasteur (1822-1895), Virchow (1821-1902), Freud (1856-1939), para só citar algumas das mais importantes, dominava o pensamento médico na altura em que fui aluno (1945-1951). A Anatomia era ensinada com o maior rigor. O cadáver dissecado era a figura dominante no ensino anatómico. As aulas, tanto teóricas como práticas, eram dadas num anfiteatro formado por duas bancadas de ferro, cada uma com vários patamares, colocadas de cada um dos lados da mesa de mármore sobre a qual jazia o cadáver minuciosamente dissecado pelos assistentes, bem como algumas peças especialmente preparadas para documentar o assunto que estava a ser exposto. À semelhança de Vesálio, os mestres colocavam-se ao lado do cadáver, no meio dos alunos que se debruçavam sobre a mesa como um cacho humano para observarem o mais de perto possível os pormenores anatómicos que os professores descreviam e ao mesmo tempo mostravam. A Anatomia fornecia a base factual da nova medicina e, por isso, tinha de ser ensinada com rigor científico. Na medicina não há lugar para raciocínios desligados dos factos. O ensino da Anatomia normal, feito desta forma, gravava profundamente no espírito dos jovens a marca do método científico que operara o renascimento da medicina a partir de meados do século XIX, libertando-a definitivamente dos dogmas hipocrático-galénicos e pondo termo vitorioso à luta iniciada, desde o século XVII, por alguns espíritos clarividentes, como Malpighi (1628-1694) e Leeuwenhoek (1632-1723), que bem podem ser considerados os precursores da Anatomia microscópica. O estudo microscópico dos tecidos do corpo humano, iniciado por Malpighi, teve, durante a primeira fase da escola médico-cirúrgica do Porto, grande expansão e grande renome, devido aos trabalhos de Abel Salazar que, além de cientista, também foi um notável filósofo e artista. Quando cheguei à Faculdade já não tive o privilégio de conhecer Abel Salazar, de que meu Pai, que fora seu aluno, me falara tanta vezes com a maior admiração e do qual já conhecia alguns escritos filosóficos e alguns quadros. A sua fama, porém, ainda era muito viva e, por isso, nos orgulhávamos em conhecer os pormenores do método tano-férrico que o celebrizara. A Anatomia Patológica, macro e microscópica, ocupava um lugar proeminente no ensino. Depois de um ano de anatomia patológica geralseguia-se a Anatomia Patológica especial que complementava o ensino da Patologia Médica e o da Patologia cirúrgica. As autópsias ocupavam uma parte importante do ensino da anatomia patológica, tornando assim o facto anatómico o elemento fulcral da medicina clínica. É a anatomia patológica que estabelece, em muitos casos, o diagnóstico definitivo. O ensino médico seguia, à semelhança das escolas médicas da Europa, o método anatomoclínico que o anatomista e cirurgião Xavier Bichat (1771-1802) iniciara no último quartel do século XVIII e que iria impor-se até meados do século XX. Nas Propedêuticas, Médica e Cirúrgica, aperfeiçoavam-se os interrogatórios dos doentes para colher com minúcia a história da doença, os antecedentes pessoais e os dos familiares e, em seguida, examinavam-se cuidadosamente os sintomas e os sinais, prestando atenção muito especial à auscultação cardíaca e pulmonar, à palpa-ção do abdómen e de todas as demais par- 42 tes do corpo que pudessem estar envolvidas no processo patológico. Recordo-me bem do árduo trabalho que era decorar todos os tipos de tosse, todos os tipos de escarro, todos os tipos de sopro cardíaco, etc., etc. para fazer o exame de Propedêutica médica ou, ainda, no caso da Propedêutica cirúrgica, dos tempos infindos que passávamos a aprender todas as técnicas de palpação do abdómen, do fígado, do baço, da tiróide, do útero e da bexiga, o que mais tarde voltava a repetir-se no ensino das especialidades clínicas, com relevo para a Neurologia, para a Clínica Obstétrica e para a Clínica Pediátrica. Era de facto o método anatomoclínico que dominava o ensino médico, havendo até a preocupação, bem louvável, de incluir a anatomia de superfície, ministrada em doentes hospitalares, no ensino da Anatomia topográfica. A Bacteriologia era também uma disciplina com grande incidência clínica. Por esse tempo estavam bem presentes na memória de todos as descobertas de Pasteur, as suas famosas intervenções na Academia das Ciências para derrotar de modo categórico os que ainda defendiam a geração espontânea e, ainda, o seu genial contributo para o combate às doenças infecciosas e para o nascimento da cirurgia moderna com a apresentação, em Abril de 1878, da sua teoria dos germes e do seu conceito de assepsia, conceitos que foram objecto de acesas polémicas e que só no século XX obtiveram aceitação geral. Na última metade do século XIX a bacteriologia microscópica identifica múltiplos “micróbios”, como então se chamavam, e de que vale a pena recordar o gonococo (Neisser, 1879), o estafiloco e o estreptococo (Pasteur, 1879), o bacilo da febre tifóide (Eberth, 1880), o bacilo da tuberculose (Koch, 1882), o bacilo da difteria (Löffler, 1884), o treponema da sífilis (Scahaudinn, 1905), além de muitos outros, o que veio demonstrar que as doenças infecciosas são provocadas por agentes específicos e abriu caminho ao desenvolvimento de medidas profiláticas de higiene individual e colectiva. De facto, o combate terapêutico eficaz às doenças infecciosas só veio a verificar-se na primeira metade do século XX com a descoberta das sulfamidas, antes da 2ª guerra mundial e, depois da guerra, a descoberta dos antibióticos. Relembro que entrei para o curso de medicina, em 1945, no ano em que terminou a 2ª grande guerra, e que nessa época a medicina vivia a grande euforia que a descoberta da penicilina e, depois, de outros antibióticos lhe proporcionavam. A anestesia, a assepsia, os antibióticos e as transfusões de sangue vieram permitir que as intervenções cirúrgicas se tornassem cada vez mais ousadas, mais extensas e mais radicais. Os cirurgiões passaram a ser os grandes heróis da medicina, aos quais a J. Castro-Correia sociedade rendia homenagens e prestava culto. Os alunos sentiam-se atraídos pela cirurgia queassim podia seleccionar os melhores e adquirir grande prestígio. Na segunda metade do século XX a importância da cirurgia continuou a crescer, pois é nesta fase que, devido aos progressos verificados no domínio da biologia e da imunologia, se começam a efectuar os transplantes de órgãos, desde o coração até ao fígado e ao rim, para não falar senão dos que tiveram maior repercussão social. De facto, a introdução da medicina experimental, o nascimento da biologia molecular, a eclosão da biostatística e da epidemiologia e o enorme desenvolvimento da imunologia geraram uma nova filosofia médica que conduziu à medicina da 2ª metade do século XX. Nomes como os de Magendie (1783-1785) que iniciara a medina experimental e introduzira o animal de laboratório na investigação médica, de Claude Bernard (1813-1878) que com o seu livro “Introduction à l’étude de la médecine expérimentale” aproximou a metodologia médica da metodologia das ciências físicas, de Ronald Fisher e de Student que no princípio do século XX criaram as bases para a aplicação do método quantitativo à medicina, estão bem presentes no espírito dos médicos da primeira metade do século XX. O ensino da Fisiologia no Porto, sobretudo da fisiologia cardíaca, assume grande expressão no ensino médico no final da primeira metade do século e lança as bases de uma cardiologia médica que usa como instrumentos de recolha de dados, não só o estetoscópio, mas também o electrocardiógrafo. A electrofisiologia do coração permite grandes avanços diagnósticos e, aos poucos, a electrofisiologia ocupa-se do estudo de outras áreas do corpo humano, introduzindo o electroencefalograma, o electroretinograma e, mais tarde, os seus derivados como, por exemplo, os potenciais evocados visuais, etc., etc. Suponho que na publicação dos trabalhos do Instituto de Anatomia da Faculdade de Medicina do Porto se encontra uma segura indicação da influência que o conceito de medicina experimental começara a exercer no nosso meio médico, logo no início do século. Os trabalhos científicos dos colaboradores do Instituto de Anatomia começaram a ser reunidos, na 1ª fase da vida do Instituto (1909-1930), num volume anual que tinha a designação de “Trabalhos do Instituto de Anatomia”. Após um interregno de dois anos surgiu, em 1932, uma nova colectânea dos trabalhos do Instituto com a designação de “Trabalhos do Laboratório de Medicina Operatória“ e, em 1934, iniciou-se uma terceira série com o nome de “Trabalhos de Anatomia e Cirurgia Experimental“, a qual se manteve até 1980, quando foi retomada a primitiva designação de “Trabalhos do Instituto de Ana- Medicina do século XX. A minha vivência tomia“, nome que se tem conservado até ao momento actual. A introdução do qualificativo experimental dá bem a ideia de que a mensagem de Magendie e de Claude Bernard tinham sido bem entendidas e que a cirurgia experimental constituía um meio expedito de averiguar as causas fisiopatológicas das doenças. A aliança entre a clínica e a investigação trouxe inequívocos progressos para a interpretação dos mecanismos causais das doenças, pois permitiu a passagem de uma abordagem qualitativa e estática para uma interpretação quantitativa e dinâmica. A função começou a ser percebida como estrutura em transformação através do tempo. A observação rigorosa do doente continuou a ser exigentemente praticada, a fim de recolher minuciosamente os factos clínicos, como o exigia a metodologia científica que a medicina definitivamente adoptara durante o século XIX, mas agora o médico ia procurar na experiência laboratorial desencadear os mecanismos que poderiam conduzir ao aparecimento de lesões semelhantes às do homem doente. A conjugação da clínica com a investigação conseguiu inegáveis progressos e, por isso, esta atitude ampliou-se e manteve-se até à actualidade. Recordo que, com o mesmo espírito, criei, em 1961, o “Laboratório de Embriologia Experimental”, designação que mais tarde alterei para “Laboratório de Embriologia e Teratologia Experimental”, pois me pareceu que esta designação não só se adaptava melhor às tradições do Instituto de Anatomia, onde o estudo da Teratologia tivera lugar de relevo, mas também evitava qualquer sobreposição com a disciplina de Histologia e Embriologia, onde a embriologia clássica, não experimental, era ensinada aos alunos de medicina. Mais tarde ainda, em 1977, após o advento da microscopia de transmissão, foi criado o Centro de Morfologia Experimental da Universidade do Porto, que ficou sediado no piso 2, nas instalações da Cirurgia Experimental que, pela mesma altura, foi transferida para o piso 01 do Instituto de Anatomia. Estes exemplos servem para pôr em evidência que também entre nós se compreendera plenamente as vantagens de associar a investigação à clínica, conceito que acompanhou o desenvolvimento tecnológico operado durante a segunda metade do século XX e permitiu que a medicina alcançasse extraordinários progressos. Os avanços da medicina verificados na 2ª metade do século XX foram devidos, por um lado, à transformação das mentalidades verificada durante e após a 2ª grande Guerra e, por outro lado, à introdução de uma grande colecção de exames paramédicos como auxiliares do diagnóstico clínico. Já tivemos ocasião de mencionar a Radiologia, a Electroencefalografia, a Electrocardiografia e outros 43 exames em que a electrofisiologia teve papel predominante. Mas não podemos esquecer aenergia nuclear, a ressonância magnética e, muito particularmente, os isótopos radioactivos que vieram permitir grandes avanços no domínio da pesquisa médica e contribuir de modo decisivo para o desenvolvimento da Biomedicina que é o aspecto mais característico da medicina actual. A Biologia Molecular veio aproximar o homem das células procarióticas e reforçar o darwinismo. Watson e Crick (1953) identificam a estrutura do ADN e dão assim o primeiro passo para o conhecimento do genoma do homem e doutros animais, de forma a permitir que no final do século se inaugure a clonagem e se amplifiquem as possibilidades do transplante de órgãos. Os físicos, os químicos, os matemáticos e os biólogos passam a colaborar com os médicos na pesquisa das causas das doenças e, deste modo, passam a intervir quase directamente no diagnóstico e na terapêutica, modificando-se, assim, a mentalidade médica. A medicina perde todas as suas raízes transcendentais e adopta definitivamente a metodologia científica das outras ciências. A informática médica prolonga a biostatistica e ambas se colocam no centro da atitude médica. A Epidemiologia passa a ser uma preocupação constante e a Medicina Social cresce exponencialmente, dando origem à Medicina Preventiva e à terapêutica de grupo, isto é, ao tratamento preventivo ou curativo dos agregados populacionais. A saúde das populações passa a ser uma bandeira política que tenta avassalar o médico, retirando-lhe prestígio e considerando-o como um artesão ao serviço do público. O método científico exige um apurado sentido crítico. À Universidade compete desenvolver esse mesmo espírito crítico, pois que ele é a sua própria essência e a sua indefectível finalidade. As reformas do ensino médico terão de ter como principal objectivo o desenvolvimento do espírito científico dos futuros médicos, de forma a conseguir que fiquem perfeitamente habilitados não só a questionar criticamente as causas das doenças e todas as formas de as evitar e curar, mas também a desmentir, sempre que necessário, as medidas irreflectidas propostas por outros interesses que não sejam os da protecção da saúde humana, da qual os médicos continuarão a ser sempre os primeiros e os últimos responsáveis. Com o enriquecimento de novas tecnologias e com o requintado aprofundamento dos conhecimentos que elas vieram trazer e de que é exemplo carismático a genética molecular, sobretudo no campo das doenças hereditárias, a medicina do último quartel do século XX parecia estar apetrechada para dominar todas as doenças a breve prazo. Inesperadamente, porém, a medicina depara-se, no fi- 44 nal do século, com a sua incapacidade de deter rapidamente a alarmante expansão da sida. Para termos uma ideia da gravidade desta terrível epidemia bastará recordar que a OMS calculou em trinta e seis milhões o número de doentes com sida no ano 2000. Sabe-se hoje que os principais agentes transmissores da doença são os toxicodependentes de drogas endovenosas, como a heroína, e os homossexuais. As comunidades gay reúnem todas as condições para a propagação das doenças sexualmente transmissíveis, como se provou em San Francisco onde, nos anos 70, já se contavam cem mil homossexuais. Admite-se que nos homossexuais se processam modificações biológicas que favorecem a eclosão da sida. Nas actuais circunstâncias, a Biomedicina, sem deixar de perseguir o objectivo de curar a sida, promovendo investigações e ensaios terapêuticos randomizados, tem de se associar aos esforços da medicina preventiva, da medicina social e de toda a sociedade para levar a J. Castro-Correia bom termo a erradicação de tão grave e terrível pandemia. Tal como aconteceu com a sífilis, a tuberculose, a peste e outras calamidades públicas, a sociedade tem de unir-se com a medicina para cada qual, dentro do seu nível de responsabilidade, eliminar a doença e isolar os agentes de transmissão. Após 1980 a descoberta de agentes antivíricos veio permitir combater as doenças provocadas pelos vírus, incluindo a sida, de forma incomparavelmente mais eficaz do que antes, quando a medicina só dispunha de caldos de galinha para o tratamento destas doenças. A tarefa é seguramente árdua, mas os progressos já alcançados pela medicina do século XX permitem augurar êxitos cada vez maiores e melhores na luta, não só contra a sida, mas também contra todas as doenças que afligem e martirizam a humanidade. Porto, 01/03/17