28CIDADES
A GAZETA
DOMINGO, 12 DE JULHO DE 2015
ENTREVISTA
Thales Guaracy
“Somos herdeiros
de um povo que chegou
ao Brasil para saqueá-lo”
Livro reconta a sangrenta conquista do Brasil por Portugal e revela
como os conflitos entre índios e colonizadores marcou o Espírito
Santo, cujo primeiro donatário foi um guerreiro das Índias Orientais
RONDINELLI TOMAZELLI
[email protected]
Como um caçador de homens, um padre
gago e um exército exterminador transformaram no maior país da América Latina
a terra inóspita e incógnita dos primeiros
viajantes? Recém-lançado pelo jornalista e
escritor Thales Guaracy, o livro “A conquista
doBrasil”reconta,cominstiganteeatraente
narrativa, a formação étnica, política e econômica brasileira nos primeiros 100 anos
(1500 a 1600) após o Descobrimento pelos
personagens oficiais do reino português.
Apartirdedocumentosoriginais,oautor
revisita o duro e sangrento processo de
dominação de Portugal no Novo Mundo. E
reabilitaprotagonistasdessaépicaaventura
humana abolidos dos livros de História. O
caçador é o degredado João Ramalho; o
gago, o jesuíta Manoel da Nóbrega; e o
exército foi formado pelo governador-geral
Mem de Sá para uma guerra acirrada contraosíndios,exterminadosnolitoraldopaís
banhado pelo “Mar Tenebroso” – como se
chamava o Oceano Atlântico. Thales ainda
recupera o papel estratégico do padre José
de Anchieta e de desconhecidos líderes indígenas, como Aimberê e Cunhambebe.
Em entrevista para A GAZETA, o escritor
apontacomooprimeiroséculodeocupação
violenta explica o conturbado e desigual
Brasil de hoje. Os conflitos e os massacres
nas novas terras envolveram colonizadores
eíndiostambémnoEspíritoSanto.Seulivro
revela que Vasco Fernandes Coutinho, primeiro donatário do Espírito Santo, era um
famoso guerreiro e herói português de façanhas lendárias nas Índias Orientais. A
obra detalha outros episódios históricos do
Brasil Colônia, retirando das sombras a Batalha do Cricaré (São Mateus). Confira:
Olivrodesconstróiosensocomumdeque
o povo brasileiro é cordial. A História nega isso desde os anos 1500. Houve guerrassangrentasentre índiosqueresistiam
à colonização e dominadores portugueses. Invasores estrangeiros também foram atuantes nas guerras e na ocupação
doatéentãodesconhecidoterritório.
Acostabrasileirafoiocupadaaospoucoseà
força, o que aconteceu também no Espírito
Santo. O rei de Portugal tinha pesados compromissos nas Índias Orientais, que eram
economicamente ainda mais importantes, e
issoconsumiarecursosegente.Eleprecisava
convencerseusnobresainvestiremdinheiro
próprio na ocupação do Brasil. Mesmo os
donatários de terra em grande parte nem
sequer vieram conhecer as terras que receberam.Aquieraperigosodemais.Eosque
vinham estavam sujeitos à guerra com os
índios, que inicialmente eram mão de obra
escrava, mas resistiam. A solução, de comum acordo entre a corte portuguesa, os
paulistas reunidos em torno de João Ramalho e sobretudo os jesuítas, quando desistiram da catequese até mesmo das crianças, foi o extermínio dos índios que não se
submetiam. O Brasil nasceu sob o signo
dessa guerra, nutriu desde então o mesmo
espírito: é um país que se estabeleceu por
meio da dominação violenta, da submissão
radical da classe trabalhadora, da imposição
da fé cristã a partir da Inquisição portuguesa
e, por fim, da proibição da língua indígena.
Graçasaessapolíticaimperialista,surgiuum
país de imenso território, unificado em religião e língua, que teve como base o Exército como instrumento de “integração nacional”, princípios que prevalecem até hoje.
Sua pesquisa relata o começo da capitania do Espírito Santo, cujo primeiro
donatário era um guerreiro famoso nas
lutas de Portugal nas Índias Orientais.
Quem era Vasco Fernandes Coutinho?
Porqueacapitaniaficousegregada,servindo como barreira verde, enquanto
outras regiões prosperavam?
Vasco Fernandes Coutinho era um herói
nacionalportuguês.Combateuosmourose
era considerado um homem corajoso. Suas
façanhas se tornaram lendárias. O padre
Fernão Cardim, um dos principais cronistas
do Brasil, diz em sua obra que ele realizou
“maravilhas” em Malaca, incluindo enfrentar um elefante que brandia uma espada
com a tromba – como se sabe, os hindus
montavam elefantes em seu exército. Porém foi vítima do mesmo abandono por
parte da Coroa portuguesa, que não tinha
recursos para apoiar os donatários.
Os portugueses
exterminaram índios
na Batalha do Cricaré,
mas o Espírito Santo
ficou à margem do
desenvolvimento. Os
tupiniquins da região
voltaram ao Rio para
ajudar a Coroa a tomar
a baía da Guanabara”
—
THALES GUARACY
EX-REPÓRTER E EDITOR de revistas
como Veja, Exame e Playboy e ex-diretor
editorial do selo literário Benvirá, da
Saraiva. O jornalista de 51 anos se dedica
hoje aos livros que escreve – é autor de
20 títulos, entre ficção e não ficção.
E como Vasco atuou na Batalha do Cricaré? Você narra com destaque o confronto sanguinário dessa luta ocorrida no Espírito Santo em 1557. O filho
do então governador, Fernão de Sá, foi
morto a flechadas. A história relata
que 100 índios tamoios foram mortos
e suas cabeças, penduradas em estacas. Como esse conflito se associa ao
contexto da dominação portuguesa?
Vasco enviou um pedido de ajuda ao governador Mem de Sá, que lhe enviou o
próprio filho, Fernão, à frente de uma pequena frota, para salvar o que restava dos
colonos. Notícias de que os índios se concentravam no Cricaré levaram Fernão de
Sá a subir o rio e invadir as aldeias. O
poema laudatório “De gestis Mendi de
Saa”, atribuído a José de Anchieta, por ser
o único na época que estava perto dos
acontecimentos e podia escrever um poema em latim, narra essa batalha com detalhes. É verossimilhante e ajudou muito
nessa passagem de “A Conquista do Brasil”. Os portugueses voltaram e exterminaram os índios, mas o Espírito Santo permaneceu à margem do desenvolvimento.
Os índios tupiniquins que povoavam a região, os únicos aliados dos portugueses,
voltaram ao Rio de Janeiro para ajudar a
CoroaatomarabaíadaGuanabaradeseus
antigos inimigos, os tupinambás. Então,
não havia segurança nem uma base sólida
de colonização construída na região.
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“Somos herdeiros de um povo que chegou ao Brasil para saqueá-lo”