XXVI Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología. Asociación Latinoamericana de Sociología, Guadalajara, 2007. *O acesso ao ensino superior e a reconstrução de um imaginário social. . Vanesa Praiva. Cita: Vanesa Praiva (2007). *O acesso ao ensino superior e a reconstrução de um imaginário social. XXVI Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología. Asociación Latinoamericana de Sociología, Guadalajara. Dirección estable: http://www.aacademica.org/000-066/553 Acta Académica es un proyecto académico sin fines de lucro enmarcado en la iniciativa de acceso abierto. Acta Académica fue creado para facilitar a investigadores de todo el mundo el compartir su producción académica. Para crear un perfil gratuitamente o acceder a otros trabajos visite: http://www.aacademica.org. PROUNI: O Acesso ao Ensino Superior no Brasil e a reconstrução de um imaginário Vanessa PaivaA Introdução Um estudo analítico do setor educacional no período de 1996-2000, produzido pelo MERCOSUL, aponta um percentual de 9,8% de brasileiros entre 18 e 24 anos matriculados no ensino superior nesse período. 1 Trata-se de um percentual pequeno em relação à maioria dos países da América Latina. Em outras publicações, 2 dados oficiais do Ministério da Educação relativos ao período 1999– 2004 mostram que houve uma ampliação significativa do número de Instituições de Ensino Superior em todo Brasil (de 1097 em 1999 para 1859 em 2004). No entanto, o maior crescimento foi definido pelas instituições privadas que passou de 905 unidades em 1999 para 1789 em 2004, um crescimento de quase 100% em cinco anos, ampliando, substancialmente, a oferta de vagas nessas instituições. As estatísticas apontam, no entanto, um aproveitamento decrescente dessas vagas. 3 Essa expansão do ensino superior no Brasil ampliou, em 2004, para 10,4% o percentual da população que, com idade entre 18 e 24 anos, freqüenta as instituições de ensino superior e, mesmo ainda incipiente, gerou alguma condição de acesso a um segmento da população para a qual a permanência prolongada no sistema de ensino se colocava como improvável. No entanto, permanece estatisticamente pequeno esse acesso mantendo-se, sobretudo para os indivíduos dos grupos populares, as maiores dificuldades. Sem entrar na discussão relativa ao sistema de ensino básico e seus reflexos na educação superior, este trabalho focaliza o crescimento, no Brasil, do acesso de camadas populares ao ensino superior. O texto aqui apresentado constitui parte da discussão teórico-metodológica que orienta uma pesquisa em andamento e, nessa condição, é apresentado a esse fórum A Vanessa Paiva é Doutora em Sociologia, professora aposentada da UFMG e, atualmente, Pró-Reitora Acadêmica do Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM. 1 Estudo analítico-descritivo comparativo do setor educacional do MERCOSUL : (1996-2000). Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2005. 2 Sinopse estatística do ensino superior : graduação 1999/2000/2001/2002/2003/2004. Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. 3 Em 2000 das 970.655 vagas ofertadas nas IES particulares houve um aproveitamento de 68,46% enquanto em 2004 foram ofertadas 2.011.929 vagas com um aproveitamento de 50,49% delas. Dados da Sinopse Estatística do Ensino Superior, INEP/MEC, 2005. Dados disponibilizados no site: www.mec.gov.br 1 buscando subsídios que nos permitam avançar nessas discussões e abordagens metodológicas, construindo redes de discussão em torno dessa temática. Além do mais, é nossa pretensão que esses estudos possam fornecer elementos para avaliação das políticas públicas voltadas, em especial, para o ensino superior. A pesquisa, ainda em andamento, elabora um estudo de caso relativo aos alunos participantes do Programa Universidade para Todos - PROUNI, no Centro Universitário de Sete Lagoas UNIFEMM, no Estado de Minas Gerais. O PROUNI, criado em 2004 e implantado em 2005 pelo Governo Federal, pelas suas características e exigências, atinge um segmento da população que constitui o foco da pesquisa que gerou as reflexões apresentadas neste trabalho.4 O UNIFEMM é uma Instituição de Ensino mantida por uma entidade filantrópica sem fins lucrativos (Fundação Educacional Monsenhor Messias – FEMM) criada em 1969 e com o objetivo de dar suporte financeiro aos jovens da região com baixo poder aquisitivo que desejavam sair da cidade para prosseguir seus estudos. Com o crescimento da cidade e aumento significativo da demanda a FEMM investiu na criação de cursos superiores, na cidade de Sete Lagoas, inicialmente em faculdades isoladas e posteriormente integradas em uma instituição de ensino, credenciada como Centro Universitário. Trata-se de uma IES que possui, hoje, 14 cursos de graduação, 4 cursos de especialização, uma escola de ensino fundamental e um Centro Vocacional Tecnológico, integrante do programa público de inclusão digital. Pela sua natureza jurídica (fundação filantrópica sem fins lucrativos), emprega parte de sua receita em projetos de assistência social, tendo criado um programa próprio de bolsas de estudos para aqueles alunos dos cursos de graduação que apresentam condições precárias para manutenção na escola. Os bolsistas do UNIFEMM, integrantes do PROUNI, são alunos dos cursos de graduação e estão sendo abordados pela pesquisa por meio de entrevista e depoimentos, quando se pretende identificar as vivências e experiências que constroem o cotidiano desses indivíduos dentro e fora da escola. 4. Em outra parte desse trabalho serão apresentados dados relativos a esse programa. Vale ressaltar que a motivação maior para propor uma pesquisa sobre os alunos do PROUNI deve-se, sobretudo, às características inovadoras desse projeto. 2 Com o objetivo de contextualizar o momento de surgimento desse programa, é necessário identificar como as respostas da sociedade brasileira à precariedade da oferta da educação determinaram ações dos órgãos governamentais e dos setores da iniciativa privada, nem sempre bem orquestradas. Não é objetivo deste trabalho discutir a natureza e o sentido dessas ações, mas vale ressaltar que, enquanto o governo se debruçou, em um primeiro momento, na avaliação e regulamentação do ensino superior, a resposta da sociedade civil, para esse mesmo nível de ensino, teve uma conotação bastante empresarial o que definiu a proliferação de instituições de ensino superior privadas em todo o território. Infelizmente, a motivação desses empresários nem sempre foi acompanhada pela preocupação com a qualidade do ensino que se estava oferecendo o que definiu a abertura de alguns cursos com precárias condições acadêmicas. Mesmo tratando-se de um fenômeno recente, essa precariedade, aliada a um retorno econômico fraco, tem determinado o fechamento precoce de muitas dessas instituições. De acordo com ROCHA e GRANEMANN (2003) Entendemos que as IES privadas que desprezarem os modernos princípios gerenciais tenderão a operar no vermelho, podendo culminar na bancarrota. 5 Esse movimento da sociedade em torno da abertura de instituições de ensino superior privadas acabou por desencadear uma discussão nova no ambiente acadêmico destinada aos gestores e com a finalidade de colaborar na condução de problemas com os quais as IES privadas se defrontam. Como a gestão dessas instituições é quase sempre atribuição de professores, a idéia do gerenciamento das instituições acabou sendo introduzida no meio acadêmico. A repercussão desse conjunto de discussões (baixo ingresso dos jovens na universidade, a explosão de IES privadas, etc) reorientou, também, um debate na sociedade colocando no centro dessas discussões a necessidade de reorganização do sistema educacional brasileiro. 6 Os debates sobre a reforma da universidade brasileira estão em pauta desde 2003 e uma das questões centrais desse debate retoma a obrigatoriedade do Estado na condução da educação. 5 ROCHA, C. Henrique e GRANEMANN, Sérgio. Gestão de Instituições Privadas de Ensino Superior. Editora Atlas, São Paulo, 2003. p. 13. 6 A reforma da Universidade brasileira é um debate em processo desde 2003 e tem envolvido os diferentes segmentos da sociedade, hoje já transformado em Projeto de Lei nº 7.200/06 em discussão no Senado. Sobre essa questão ver entre outros: CATANI, Afrânio e OLIVEIRA, João F. de. Educação Superior no Brasil. Editora Vozes, Petrópolis, 2002. O Plano Nacional de Educação do Governo Federal prevê colocar o Brasil entre os países com maior investimento em educação e acredita ser esse o caminho possível para o desenvolvimento. 3 A polêmica público x privado tem sido uma constante nessas discussões. No entanto, conforme apontado acima, a presença da iniciativa privada no cenário da educação superior brasileira é incontestável o que acabou dando suporte a uma estratégia do governo federal na ampliação das condições de acesso das camadas populares por meio de bolsas de estudos no Programa Universidade para Todos. Sem desconsiderar as diferentes estratégias adotadas ao longo desses últimos quinze anos, interessa a este trabalho acompanhar as repercussões de uma das medidas que, recentemente, o governo brasileiro vem adotando com o objetivo de ampliar as condições de acesso ao ensino superior, em especial para jovens oriundos de segmentos da população com menor poder aquisitivo. 1. O Programa Universidade para Todos - PROUNI O Programa Universidade para Todos, PROUNI, a mais nova política social de apoio às camadas populares para ingresso ao ensino superior, no Brasil, foi criado em 2004 pela MP213/2004 e institucionalizado pela Lei 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Tem como finalidade a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda, em cursos de graduação e seqüenciais de formação específica. Esses alunos são encaminhados para instituições privadas de educação superior, que aderirem ao Programa e essas recebem, em contrapartida, a isenção de alguns tributos. No seu primeiro ano de funcionamento (2005) o programa ofereceu um total de 112.275 bolsas entre totais e parciais, sendo que 1.142 instituições de ensino superior de todo o país aderiram ao Programa. O Estado de Minas Gerais, onde se encontra a IES que abriga os estudantes que fazem parte desse estudo, recebeu aproximadamente 12.000 bolsas, sendo o segundo estado brasileiro a receber maior número de bolsas. Com base na legislação que criou o Programa, fica clara a intenção de atingir determinados grupos identificados como aqueles com maiores dificuldades de acesso ao sistema de ensino. A Medida Provisória 213/2004 define como exigência de acesso pelo menos um dos seguintes requisitos: o candidato ter cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; provar, nos termos da lei, a condição de portador de necessidades especiais; ou ainda, sendo candidato aos cursos de licenciatura e pedagogia, destinados à formação do magistério da educação básica, exercer a função de 4 professor da rede pública de ensino como parte do quadro permanente. Nesse último requisito o candidato fica dispensado de apresentar comprovação de renda definida na legislação: 3 SM. per capita no caso de bolsa parcial ou 1 1/2 SM. per capita no caso de bolsa integral. A concessão e a manutenção da bolsa pelo beneficiário dependem, também, do cumprimento de requisitos de desempenho acadêmico. O candidato é pré-selecionado pelos resultados e pelo perfil socioeconômico obtidos no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM 7. Os estudantes que obtiverem as melhores notas são os primeiros a serem pré-selecionados, dentro da ordem de escolha que ele fez em relação aos cursos e à IES. O estudante vinculado ao PROUNI, beneficiário de bolsa integral ou parcial, deverá apresentar aproveitamento acadêmico de, no mínimo, 75% (setenta e cinco por cento) nas disciplinas cursadas em cada período letivo, sob pena de ter sua bolsa cancelada. Dessa maneira, o PROUNI reconhece e valoriza o mérito dos melhores estudantes. A intenção declarada do governo federal é a de interiorizar a educação pública e gratuita no intuito de combater as desigualdades regionais. Todas estas ações vão ao encontro das metas do Plano Nacional de Educação, que prevê a presença, até 2010, de pelo menos 30% da população na faixa etária de 18 a 24 anos na educação superior. O Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM aderiu ao PROUNI deste a sua criação e conta hoje com cerca de 280 bolsista do programa, em seus 14 cursos de graduação. Sendo uma IES filantrópica mantém, também, um programa de bolsa assistencial próprio que atende, hoje, cerca de 1600 estudantes. A coordenação deste trabalho exigiu a estruturação de um setor de atendimento ao estudante e que se ocupa, também, do acompanhamento e avaliação dos bolsistas do PROUNI. Os dados sócio-econômicos sobre os bolsistas do PROUNI dessa IES mostram que sendo a grande maioria (75%) ocupante de bolsa integral, pertence a grupos da população de baixa renda. A exigência de serem egressos da rede pública de ensino e de terem prestado o Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM - no ano anterior ao da candidatura, desenha um perfil bastante jovem dos bolsistas; 80% deles têm entre 18 e 24 anos. 7 ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Voltado para os estudantes que vão concluir o ensino médio no ano ou que já o concluíram em anos anteriores. Atualmente, 560 instituições de ensino superior utilizam o ENEM como item de seus 5 2. A abordagem teórico-metodológica da questão Este estudo busca integrar e colaborar para o avanço da pesquisa que trata da trajetória escolar das camadas populares, no Brasil. Percebe-se, apesar das aproximações singulares de cada pesquisa com o seu objeto, que existem algumas indagações que perpassam grande parte desses estudos e que permitem falar da construção de alguns parâmetros de análise. Em primeiro lugar os dados sócio-econômico e cultural dos alunos beneficiários dessas bolsas contrariam as probabilidades estatísticas de ingresso no ensino superior por constituírem grupos com baixo poder aquisitivo. Os jovens oriundos desse grupo social que alcançam a universidade são considerados uma exceção, sobretudo quase se trata do ingresso em universidades de renome e como alunos nas chamadas carreiras nobres. Utilizamos a noção de camadas populares para circunscrever um determinado segmento da população urbana brasileira de configuração heterogênea, definida por experiências e práticas diversas, mas que têm pontos de convergência que permitem sua integração em um conjunto. Trata-se de um segmento social com pouco acesso aos bens culturais, baixo nível de escolaridade, dificuldade econômica gerada pelas condições de inserção no mercado de trabalho e que, apesar dessas semelhanças de condições, apresentam formas diferenciadas de participação na sociedade definidas pelas experiências sócio-culturais diversas que a sociedade contemporânea, em sua complexidade, acaba por definir. É exatamente essa heterogeneidade das formas de inserção e a peculiaridade das estratégias de enfrentamento da vida, articuladas por esses grupos, que consagram e permitem o uso da noção de camadas populares. A sociologia da educação tem estudado a trajetória de escolarização de diferentes grupos sociais, entre elas a das camadas populares, buscando compreender as estratégias utilizadas por esses grupos na condução da vida escolar de seus filhos. Nesses estudos a família tem sido uma das dimensões utilizadas na explicação dessas estratégias. 8 No caso das famílias de baixa renda, alguns autores não identificam “investimentos específicos e intencionais na carreira escolar dos filhos (das camadas populares) que nos permitissem processos seletivos. Além disso, o estudante que participa do exame tem outros benefícios, como a chance de participar do Programa Universidade para Todos (PROUNI). 8 NOGUEIRA, M. Alice ROMANELLI, Geraldo, ZAGO, Nadir. (orgs) Família e Escola. Vozes, Petrópolis, 2000. 6 reconhecê-los como um traço explicativo dessas situações de longevidade escolar” 9; essas, quando encontradas, são tratadas como situações atípicas que fogem às trajetórias prováveis para a média de escolarização desse grupo social. De toda forma, nesses estudos estão implicadas dimensões que, mesmo destacando o sentido singular de cada trajetória, dão suporte para a compreensão do sucesso escolar de filhos de famílias de camadas populares. Alguns estudos apontam não ser essa uma decisão tomada a priori, planejada pela família ou pelo próprio estudante. Mostram que, na verdade, existe uma “atenção voltada para as oportunidades” que pode ter como suporte de sua construção as oportunidades surgidas de forma aleatória. Em outros estudos a longevidade parte mais de um incentivo da própria escola quando essa percebe que alguns alunos que “têm jeito para o estudo” e podem obter êxito maior, diferente daquele grupo ao qual pertencem o que acaba definindo um maior investimento naquele aluno. O interesse da escola em se projetar e ganhar maior visibilidade com alunos que se destacam pode, também, criar projetos que permitam o aparecimento de incentivos para prolongar a permanência de alguns estudantes no sistema escolar. De toda maneira destacam-se a família, o aluno e a escola como os focos centrais de grande parte desse conjunto de pesquisas que, em acordo com as bases conceituais e metodológicas próprias a cada uma delas, articula e/ou distingue de forma singular cada um desses elementos. Pensando a longevidade escolar do ponto de vista da escola e se perguntando o que é uma escola justa, DUBET (2004) afirma que “a igualdade de oportunidade é a única maneira de produzir desigualdades justas quando se considera que os indivíduos são fundamentalmente iguais e que só o mérito pode justificar as diferenças de renda, prestígio, poder...” (p.7) 10 . O mesmo autor reconhece que essa é uma discussão que se constrói na sociedade francesa e em todas as demais sociedades democráticas que militam por uma maior justiça escolar e que as respostas a essas questões estão longe de ser alcançadas. A igualdade das oportunidades é uma ficção necessária, pois dificilmente ela será alcançada em sua plenitude, mas que pode ser buscada por meio da igualdade da oferta como condição elementar. Dessa forma, o autor chama a atenção para a complexidade das políticas educacionais que, na tentativa de 9 Viana, M. J. Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. IN:NOGUEIRA, M. Alice et al.(orgs) Família e Escola. Vozes, Petrópolis, 2000 p.53 10 DUBET, François. L’école des chances. Seuil et La République dês idées, Paris, 2004. 7 estabelecimento de maior equidade na distribuição das oportunidades, reserva o lugar de indivíduos que, por sua origem sócio-cultural, pertencem a grupos com menores chances de acesso ao ensino superior. 11 Para BOURDIEU e CHAMPGNE (1993) a atual mudança no sistema de ensino permite um maior acesso aos diferentes níveis de escolaridade e constatam que; “é claro que não se constrói o acesso dos filhos de famílias mais desprovidas economicamente e culturalmente aos diferentes níveis do sistema escolar, e em particular aos mais elevados, sem modificar profundamente o valor econômico e simbólico desses diplomas...”12 Em outros termos, o sistema escolar criou e vem reforçando ao longo de sua história e da história das sociedades modernas a aderência entre o diploma e a origem social daqueles capazes de ascender ao topo do sistema escolar. Essa é uma trajetória reservada a poucos e, ainda, esses poucos devem exibir, em primeiro lugar, a origem, as marcas de pertencimento a um mundo reconhecido por meio de sinais econômicos e valores simbólicos. A alteração da exigência para a permanência longeva nesse sistema ou a criação de sistemas similares certamente vão definir, de acordo com os autores, formas distintas de valorização dos diplomas instituindo, também, critérios de exclusão no interior do próprio sistema. As grandes escolas e os cursos de ponta são reservados aos indivíduos que apresentam melhores condições econômicas e não apenas acadêmicas. Dessa forma, a maior abertura para o ingresso não modifica, necessariamente, os critérios de avaliação dos ingressantes que, independentemente de sua origem e experiência, integram um grupo, no qual os indivíduos mais aquinhoados, seja do ponto de vista econômico seja do ponto de vista cultural, possuem mais vantagem. Em outras palavras, o ingresso não garante a condição de ocupação de um lugar no sistema como um todo. Ao contrário, a possibilidade é a de que o próprio sistema crie condições de exclusão no seu interior. É nessa perspectiva apontada por BOURDIEU e CHAMPAGNE das condições em que são submetidos os excluídos do interior do sistema e nas interrogações construídas por DUBET, sobre as oportunidades que o sistema escolar coloca para as camadas populares que se desenha, mais concretamente, a construção teórico-metodológica dessa pesquisa. 11 No Brasil as políticas de cotas e o PROUNI se enquadram nesse conjunto. 8 A presença das camadas populares no sistema escolar é uma realidade e, independentemente de se discutir as razões desse acesso em cada sociedade concreta, a introdução desse grupo nas instituições de ensino superior traz novos elementos de análise para o conjunto desses estudos. Apesar de lidar com um provável insucesso escolar, previsto nas estatísticas, esse aluno permaneceu no sistema e deve construir no seu interior formas de interação e de sobrevida. Portador de uma experiência de vida diferente daquela dos incluídos do sistema como ele constrói as formas de enfrentamento e as estratégias para justificar esse novo pertencimento? A origem sócio-econômica e cultural desses estudantes define uma relação com o mundo que integra um outro olhar sobre a escola, sobre a relação com a família e sobre a preparação para o mundo do trabalho. 3. Outras referências: a contribuição da sociologia do cotidiano Entendendo o estar no mundo numa perspectiva relacional e, portanto, de influência recíproca é que buscamos a contribuição da sociologia do cotidiano no sentido de tornar mais claro o problema específico da nossa pesquisa. A noção de interação como um dos eixos teóricos é que nos permite pensar nas relações sociais como “uma relação de convívio, de atuação com referência do outro, com o outro e contra o outro, em um estado de correlação com os outros”... significando que cada indivíduo “exerce efeito sobre os demais e também sofre efeito por parte deles.” 13 Agregando aos estudos da sociologia da educação a contribuição da sociologia do cotidiano, podemos pensar a imbricação que se dá entre a escola e aqueles que, excluídos do sistema, começam a redesenhar as formas de sua inclusão. Voltando à noção de camadas populares retomemos o sentido de heterogeneidade para identificar, nesse grupo, as diferentes formas de inserção, os diferentes destinos traçados, as diferentes experiências, que se apresentam como dimensões na construção de respostas próprias e peculiares capazes de reunir e identificar o que HALBWACHS identificou como modos de vida. 14 12 BOURDIEU e CHAMPGNE. Les exclus de l’interieur. IN : BOURDIEU, Pierre. (org) La Misère du Monde. Éditions du Seuil, Paris, 1993, p.599. 13 SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. (Tradução Pedro Caldas) Zahar, Rio de Janeiro, 2006. p. 60 14 HALBWACHS, Maurice. (1877-1945) Dentre sua vasta obra destaca-se para a discussão da noção de modos de vida a obra A classe trabalhadora e os níveis de vida onde o autor discute que o homem se caracteriza essencialmente por seu grau de 9 É esse olhar centrado também nos detalhes da vida de todos os dias que permite buscar a compreensão dos fenômenos sociais para além dos modelos de explicação consagrados pela sociologia clássica, introduzindo a idéia de reciprocidade/interação como fundamento das ações dos indivíduos. Encontramos em SIMMEL apoio para a utilização dessa noção quando, falando da socialização como algo que faz e se desfaz constantemente, mostra que é nesse processo que os indivíduos se ligam e a sociedade se constitui enquanto tal, independentemente das formas de organização pré-estabelecidas. “Em si e para si, essas matérias com as quais a vida se preenche, essas motivações que a impulsionam não têm natureza social. A fome, o amor, o trabalho, a religiosidade, a técnica, as funções ou os resultados da inteligência não são, em seu sentido imediato, por si sós, sociais. São fatores de sociação apenas quando transformam a mera agregação isolada dos indivíduos em determinadas formas de estar com o outro e de ser para o outro que pertencem ao conceito geral de interação. A sociação é, portanto, a forma(...) na qual os indivíduos, em razão de seus interesses (...), se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio do qual esses interesses se realizam.” 15 Por outro lado, é ainda SIMMEL que fala que toda sociedade humana é pautada pela ação de reciprocidade entre os indivíduos que a compõem. Significa dizer que a presença de filhos das camadas populares em um sistema de ensino que foi concebido para excluí-los introduz formas de questionamento dessa mesma escola que se vê obrigada a dialogar com esse grupo. É interessante pensar que estamos falando de um conjunto de indivíduos que, como indicado anteriormente, ocupam um lugar subalterno na sociedade. E é exatamente em razão desse lugar que ocupam que engendram formas peculiares de inserção. Os bolsistas do PROUNI provenientes das camadas populares brasileira conformam um grupo homogêneo enquanto conjunto marginalizado pelo sistema de ensino, especialmente o de nível superior. No entanto, pensando do ponto de vista das experiências do dia-a-dia a que cada um deles é submetido, permite-se supor uma heterogeneidade de respostas frente aos embates sociais aos quais são submetidos. Daí as inúmeras alternativas possíveis para explicar a longevidade escolar desse grupo. integração no tecido das relações sociais. Citado por ALEXANDRE, J._Michel. IN: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Vértice, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1990. p.21 15 SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2006 p. 60 e 61. 10 Retomando a afirmativa de BOURDIEU, que destaca a alteração do “valor econômico e simbólico” do diploma, definida pela ampliação do acesso a esses diplomas e pela presença de grupos populares no interior do sistema, é possível imaginar que formas heterogêneas de pertencimento estão sendo gestadas e novas redes de relações se entrelaçam com aquelas préexistentes nesse sistema. Um mundo antes inatingível passa a fazer parte do dia-a-dia desses alunos que recriam ali formas de sociabilidade “mais adequadas” a essa nova convivência. O ingresso exige que o aluno recrie formas de enfrentamento para sustentação desse “lugar”, construindo novos indicadores de pertencimento a esse mundo. Vale lembrar, apenas a título de curiosidade, como nas grandes escolas americanas o estudante saído de guetos marginalizados, mas com boa performance no esporte, constrói seu espaço de convivência. Na pesquisa estamos trabalhando com a hipótese de que a dificuldade de ingresso e permanência como algo gestado em uma “cultura” de exclusão, presente no imaginário da sociedade brasileira, exige da sociedade e desses indivíduos a construção de atitudes e de um discurso cuidadoso que justifiquem essa permanência. 4. A título de conclusão A afirmativa de que o ensino superior é uma coisa para poucos é, sem dúvida, uma postura até hoje bastante aceita na sociedade brasileira, inclusive no meio acadêmico. Antes de formular qualquer crítica ou juízo de valor a esse respeito é preciso perceber que existe algo contraditório no interior dessa discussão. Imaginar que nem todos se dedicarão ao trabalho de pesquisa científica é diferente de aceitar o fato de que a pesquisa científica é reservada aos bem nascidos e que, portanto, apenas eles devem ter acesso aos níveis superiores de escolarização. Na medida em que a sociedade se estrutura de forma a valorizar a educação superior como passaporte para uma inserção no mundo do trabalho, como forma de reconhecimento social e de valorização cultural, este é um bem que passa a ser desejado por todos os cidadãos que participam dessa sociedade. Um dos eixos contidos na discussão da atual reforma do ensino superior parece estar voltado para a sua racionalização buscando “torná-lo mais eficiente, competitivo e produtivo, de 11 maneira, portanto, a dar resposta ao novo estilo de desenvolvimento científico e tecnológico e às necessidades do capital produtivo.” 16 Essa aproximação com o mercado traz maior presença das instituições na região onde operam e referenda um processo de busca de autofinanciamento, o que afeta a definição de prioridades, a avaliação dos produtos e serviços ofertados e os investimentos feitos nessas instituições. É clara a diferenciação entre as instituições que oferecem ensino superior no país, desde aquelas consideradas de excelência acadêmica até outras que, mesmo consideradas de qualidade acadêmica precária, são reconhecidas pela resposta imediata que dão ao mercado. Já existe, portanto, uma diversificação e diferenciação do valor econômico e simbólico do diploma de ensino superior, o que suporta e justifica uma oferta heterogênea desse nível de ensino. A presença das camadas populares no ensino superior é fruto, por um lado, da forma de expansão desse nível de ensino e, de outro, pela oportunidade de apropriação, de parte dessa expansão, pelo poder público através de seu programa de bolsas de estudos. No entanto, retomando a noção de interação que constrói as relações sociais é possível afirmar que a experiência que vivem as IES brasileiras, abrigando alunos proveniente de grupos sociais com baixo acesso a esse nível de ensino, certamente produzirá alterações no cotidiano dessas instituições. A inclusão de novos atores na educação superior cria novos critérios de pertencimento tanto para aqueles que passam a fazer parte, como para aqueles que perdem a exclusividade da inclusão. 16 CATANI, Afrânio M. e OLIVEIRA, João F. Educação Superior no Brasil – reestruturação e metamorfose das universidades públicas. Vozes, Petrópolis:RJ, 2002. p.23. 12 5. Bibliografia consultada BOURDIEUX, Pierre. La misère du monde (org) Seuil, Paris, 1993. BOURDIEU e CHAMPGNE. Les exclus de l’interieur. IN : BOURDIEU, Pierre. (org) La Misère du Monde. Éditions du Seuil, Paris, 1993 CANCLINI, Néstor Garcia. As culturas populares no capitalismo. Brasiliense, São Paulo, 1983. CATANI, Afrânio e OLIVEIRA, João F. de. Educação Superior no Brasil. Editora Vozes, Petrópolis, 2002. DUBET, François. L’école des chances. Seuil e République des Idées, Paris, 2004. Estudo analítico-descritivo comparativo do setor educacional do MERCOSUL : (1996-2000). Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2005. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Vértice, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1990. LAMARCHE, Thomas. (org) Capitalisme et éducation. Nouveaux Regards, Paris, 2006. NOGUEIRA, M. Alice ROMANELLI, Geraldo, ZAGO, Nadir. (orgs) Família e Escola. Vozes, Petrópolis, 2000. ROCHA, C. Henrique e GRANEMANN, Sérgio. Gestão de Instituições Privadas de Ensino Superior. Editora Atlas, São Paulo, 2003. SANSOT, Pierre. Les Gens de Peu. PUF, Paris, 1991. SIMMEL, Georg. Sociologie et Épistemologie. (2.ed.) PUF, Paris, 1991 SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. (Tradução Pedro Caldas) Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2006. Sinopse estatística do ensino superior : graduação 1999/2000/2001/2002/2003/2004. Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. VIANA, M. J. Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. IN:NOGUEIRA, M. Alice et al.(orgs) Família e Escola. Vozes, Petrópolis, 2000 p.53 13