POR Gildeci de Oliveira Leite LITERATURA E MITOLOGIA AFRO-BAIANA: ENCANTOS E PERCALÇOS Autor: Gildeci de Oliveira Leite (UNEB)1 Palavras-chave: Mitologia afro-baiana — Literatura — Lei 10.639/2003 — Alteridade — Etnocentrismo INTRODUÇÃO Durante a organização do I Congresso de Pesquisadores do Recôncavo Sul na UFRB2, o qual teve como subtítulo “Educação, Cultura e Sociedade” o professor Luís Flávio Reis Godinho propôs a temática Literatura e Recôncavo para um mini-curso de três dias. Eu, Gildeci de Oliveira Leite (UNEB), a professora Carla Bispo de Santana (UNEB) e o professor Marco Aurélio Souza (UESB)3 aceitamos a proposta e elaboramos nossos vieses do mini-curso. Imediatamente decidi trabalhar com Jorge Amado e Carlos Vasconcelos Maia, focalizando representações da mitologia afrobaiana em obras desses autores baianos. Parecia-me e ainda parece-me uma boa proposta, principalmente agora com a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras, instituída através da Lei 10.639/2003. O mini-curso também serviria como um despertar de trabalho em sala de aula. Tivemos um público, em sua extrema maioria, atento e encantado com as descobertas de tantas narrativas negras em obras literárias, também em letras de músicas populares e carnavalescas e em diversas práticas sociais. A todos um muito obrigado, principalmente aos que foram encantados e também aos que mesmo sem o encantamento interagiram e lançaram encantamento sobre mim. Entretanto, a perspectiva desse texto é justamente com a mira voltada para os desencantados, não me refiro aos cursistas, e sim àqueles que, conforme Nietzsche denuncia, preferem a tristeza e as lições do sacerdote do ideal ascético ao invés da 1 Professor de Literatura Brasileira da Universidade do Estado da Bahia com concentração de pesquisas em Literatura Baiana. Contatos: [email protected]; [email protected]; www.seara.uneb.br. 2 Universidade Federal do Recôncavo Baiano. 3 Universidade Estadual do Sudoeste Baiano. 1 POR Gildeci de Oliveira Leite demolidora alegria dionisíaca. Essas preocupações sempre estiveram despertadas em mim, mas, durante o curso fui perguntado se enfrentava problemas de intolerância ao tratar dessas questões referentes à mitologia afro e como agia: dei respostas, discuti outras e o texto a seguir problematiza a questão. Ao invés de fazer análises de aspectos mitológicos em obras de Carlos Vasconcelos Maia e Jorge Amado, faz-se necessário esclarecer alguns conceitos. Inicialmente serão elucidados os conceitos de mito, incorporado nesta proposta, e aquele não aproveitado. No lugar comum, mito é sinônimo de mentira. Costumeiramente ouve-se dizer coisas como “o mito da educação perfeita”; o mito disso ou daquilo sempre em tom irônico, sarcástico, ácido. Não de maneira despropositada, posicionamentos adversos são desqualificados com a palavra mito e aí então alguns podem dizer: “mas isso é mito, você acredita nisso”? Ou, continuando fora do plano das crenças religiosas, estabelecer que tal propósito e /ou narrativa são uma grande mentira, um mito. Tudo isso foi dito só para esclarecer que não é esse o entendimento de mito, aqui admitido para atribuir à mitologia afro-baiana. Mito é uma narrativa primordial; uma narrativa que explica comportamentos, crenças, algo com força de lei, vide Chauí (1993) e Massaud Moisés (1995). Por exemplo, a bíblia é o grande livro mitológico do cristianismo, será que os cristãos gostariam de tê-la, a bíblia, chamada de livro das grandes mentiras? Seria ético e justo atribuir mentiras à bíblia? Não seria, com certeza, mas não porque a bíblia é a única e inquestionável verdade, como querem etnocêntricos, e sim uma verdade entre tantas que deve ser respeitada, tais como as verdades mulçumanas; afro-baianas e outras. Portanto, o conceito de mito aqui utilizado é de verdade, narrativa verdadeira, pois se há alguém que acredita na narrativa e ela serve como modelo para determinada ou determinadas sociedades, grupos, comunidades, não cabe chamá-la de mentira. É claro que tudo isso depende do grau de alteridade positiva e/ou negativa de cada pessoa para levar à frente essa definição de mito. 2 POR Gildeci de Oliveira Leite Todos sabem que alteridade é o direito à diferença, logo, todos teriam o direito de serem o que são sem sofrerem discriminações de quaisquer naturezas. Contudo, numa tentativa de segregar as diferenças e evidentemente de exercer uma alteridade negativa, setores reacionários da sociedade, conforme Marilena Chauí (1993), exerceram e incentivaram a alteridade negativa. O exercício da alteridade negativa diz que o outro pode exercer a alteridade, desde que não se misturem com o eu. Então haveria, por exemplo, pessoas que criam em mitos afro-baianos e pessoas de denominações e correntes cristãs, com comportamentos reacionários, isoladas sem se comunicarem ou estabelecendo uma comunicação precária e muitas vezes arredia por parte daqueles que possuem um discurso com menor poder de persuasão. Discurso subjugado por contingências históricas e ideológicas tais como a escravidão e o inculcamento de complexos de inferioridade e de atribuição do elemento não divino da dicotomia maniqueísta bem versus mal, no caso o mal, aos de cultura afro-baiana. Felizmente essa realidade vem sendo modificada. A prática da alteridade negativa é irmã do etnocentrismo; da xenofobia e da xenofilia. Irmana-se com o etnocentrismo por estabelecer seus costumes; sua etnia; sua cultura como centro e julgar todos a partir de seus conceitos, seria como se julgassem todos os outros conceitos mitológicos a partir de um único conceito, o de quem julga, o julgador onipotente e dono da verdade. Muito prático, se se julga, por exemplo, práticas e comportamentos do candomblé a partir de conceitos bíblicos, quem sempre estaria certo e quem sempre estaria errado? Acho que todos têm as respostas. Então muito fácil deduzir como estaria o etnocentrismo irmanado à xenofobia, aversão ao que é estrangeiro, e à xenofilia, aversão ao que é nacional. O etnocentrismo pode exercer no sujeito paciente, aquele que recebe a ação etnocêntrica, a aversão ao que é nacional e no sujeito agente, aquele que pratica a ação etnocêntrica, aversão ao que lhe é estrangeiro. Para melhor ampliar a compreensão da cadeia alimentar dos preconceitos, deve-se entender como estrangeiro não só aquele ou aquela nascido ou nascida em outro país, também aquele ou aquela que pertence a um pensamento ou a uma identidade cultural diferente, independente do local de nascimento. Provavelmente, o leitor deve se perguntar onde estariam as análises de aspectos mitológicos afro-baianos em obras de Carlos Vasconcelos Maia e Jorge Amado? Qual o intuito de ocupar-se de boa parte de um pequeno texto que poderia discutir literatura, com conceitos de mito e outros ligados à cultura? 3 POR Gildeci de Oliveira Leite Perguntas e olhares iguais a estes são recorrentes quando se trata do tema em questão. Não raro ouve-se dizer: o que isso tem a ver com literatura ou como pode alguém querer falar de tema tão antagônico ao meu modo religioso de entender a vida, a minha religião. Primeiro deve-se esclarecer que apesar de entender toda a narrativa mitológica como verdade, não se pensa que há uma única verdade — isso já foi dito — nem tampouco que o trabalho com a mitologia afro-baiana é um trabalho de catequese. Contudo, é necessário conhecer essas representações, principalmente na literatura, e ainda mais agora com o advento da Lei Federal 10.639 de 09 de janeiro de 2003, sancionada pelo presidente Lula. Sendo assim, buscar essas representações na literatura é uma oportunidade de cumprimento da citada Lei, um espaço para dizer não ao etnocentrismo; à xenofobia; à xenofilia; e à alteridade negativa. A maior resistência para ler os mitos afrodescendentes, como um todo, naquela que é território de representações possíveis de todas as disciplinas, a literatura, são as opções religiosas adversas. Caras e bocas, por vezes, ficam retorcidas e autorizam ao locutor central de uma palestra com a temática mitologia afro ou afro-baiana perguntas referentes à insegurança religiosa dos ouvintes. Estariam eles tão inseguros a ponto de não se permitirem conhecer e estudar uma mitologia diversa da deles; gozam de elevados e diferentes graus de preconceitos ou os dois ao mesmo tempo? Como negar o belo; o histórico; o antropológico e o teor pedagógico nos mitos afro e simplesmente descartá-los nas senzalas e levá-los aos pelourinhos da contemporânea inquisição cristã? Ninguém será convertido ao Candomblé, ao Jarê4 ou à Umbanda5; ao Xangô6 ou ao Tambor da Mina7 se estudar suas mitologias. As religiões negras no Brasil, em especial o candomblé, não são doutrinárias. Com todo respeito a quem assim faz, não há no candomblé campanhas de obtenção de novas almas, os meios de entrada são por outras formas de magia, sem imposição de agentes carnais. As escolhas são feitas anteriormente ao colo do útero, existe uma relação direta com ancestralidade, nem sempre visível aos olhos da matéria, o que explicaria a existência de brancos estrangeiros no candomblé. Além do mais, os segredos devem ser 4 Religião afro-brasileira da Chapada Diamantina – Bahia. Religião afro-brasileira dita por Jorge Amado “a mais brasileira de todas” (RAILLARD, 1992, p.91). 6 Além de ser um orixá é a religião afro-brasileira do Recife. Aqui está sendo mencionada como religião. 7 Religião afro-brasileira do Maranhão. 5 4 POR Gildeci de Oliveira Leite preservados e somente aos iniciados, em seus diversos graus de iniciação, é permitido o aprendizado parcimonioso do aô, o segredo, da liturgia negra. Portanto, seria pretensão de alguns ouvintes acharem que estão penetrando nos recônditos do candomblé ao perceberem mitos afro-baianos em quaisquer narrativas. A obrigatoriedade da preservação do segredo garante que não há nessa proposta o ensino de práticas religiosas e a tentativa de obtenção de mais um adepto. Mesmo as narrativas sendo elementos de vital importância para as religiões afro, o que existe narrado nos textos literários não constituem rituais propriamente ditos, pois a narrativa deveria ser combinada a outros elementos para então existir o ritual. Então qual mesmo o motivo de tanta rejeição? Repete-se a pergunta: “qual o intuito de ocuparse de boa parte de pequeno texto, que poderia discutir literatura, com conceitos de mitos e outros elementos ligados à cultura?” Respostas: tocar o eu preconceituoso; fazer o eu, que não se compreende também um pouco como o outro, perceber que o eu e o outro se misturam e devem se respeitar; promover a aceitação mútua, o tão falado amor ao próximo, ao invés de segregações e intolerâncias. Em uma outra possibilidade de resposta, pode-se recorrer às lembranças da aula inaugural do semestre 2006.2 do campus XVI da UNEB em Irecê. Lá, o auditório, lotado de estudantes de Pedagogia, ouvia atentamente a uma proposta de trabalho com narrativas e mitologia afro-baiana, como possibilidade de cumprimento da lei 10.639/2003. Ao final, uma professora do curso, que no semestre anterior havia lecionado história e cultura afro, fez uma intervenção. A professora se dirigiu ao palestrante e autor deste texto, dizendo sobre o quanto tempo perde-se para trabalhar a conscientização e quebra de preconceitos, para só então chegar a outras análises mais específicas. O significado da expressão “perda de tempo” quer dizer “não deveria ser preciso” tal ação e não perda de tempo propriamente dita. Trata-se de um sonho com uma sociedade menos preconceituosa. Carinhosamente, a resposta dizia que não era perder tempo e que o momento histórico era de construção de sujeitos agentes que exercessem alteridade positiva para só então depois agir, sem as preliminares nomeadas de maneira metafórica como “perda de tempo”, em assuntos como mitologia afro e correlatos. Por isso, não pode ser considerada “perda de tempo” a utilização do espaço aqui dado para tentar tocar o outro e talvez contribuir para outras argumentações contra atitudes intolerantes. 5 POR Gildeci de Oliveira Leite REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 7ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. BHABHA, Homi K. A outra questão. In:____ O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998, p.105-128. BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 10 de janeiro de 2003. CHAUÍ, Marilena. Cultura e racismo: aula inaugural na FFLCH – USP em 10.03.1993. Revista Princípios, São Paulo, nº 29, p. 10-16, junho-julho de 1993. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio de Janeiro, 1975. DERRIDA, Jacques. O outro cabo. Coimbra: Reitoria da Universidade: Ed. A Mar Arte, 1995. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: Aula Inaugural do Collège de France Pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 8ª edição. São Paulo: Loyola, 2002. LEITE, Gildeci de Oliveira. A representação dos Orixás e da ancestralidade em Dona Flor de Seus Dois Maridos. Dissertação de Mestrado defendida em 12-12-2003 no PPGLL-UFBA, 131p. LEITE, Gildeci de Oliveira. “Ilê Ojuobá, casa de Pedro Archanjo”. IN: LEITE, Gildeci de Oliveira.Vertentes Culturais da Literatura na Bahia. Salvador: Quarteto Editora, 2006, p.117 a 130. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1995 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma Polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2000. RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1992. SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos (Mestre Didi). Contos de Mestre Didi. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. SANTOS. Juana Elbein. Os Nago e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1986. 6