Radiojornalismo e sentido no novo milênio
Ana Baumworcel (UFF)1
Resumo
Este texto traz a evolução histórica da linguagem do radiojornalismo no Brasil a partir de
momentos de rupturas representativas de um fazer diferente. E, ao analisar a transformação
da linguagem do jornalismo no rádio, identifica, hoje, um processo de de-significação,
caracterizado pela fragmentação da informação, pelo “apagamento” dos conceitos,
esvaziamento do conteúdo das palavras e “supressão” da história. Um processo que se
insere na lógica cultural do capitalismo tardio.
Palavras-chave: Radiojornalismo, linguagem, sentido.
O rádio entra no século XXI renovado pelas novas tecnologias que aprimoraram a
qualidade e a transmissão do som. Em sua essência, continua sendo o veículo de
comunicação mais ágil, popular, barato, com maior alcance e menor custo de produção. Ao
produzir uma oralidade eletronicamente, acabou constituindo uma nova forma de escrever a
própria oralidade. E ao fazer isso, o rádio enriqueceu a língua a partir da tecnologia.
Defendemos que o veículo produziu, em sua trajetória, uma outra materialidade sonora,
fazendo o som significar de diferentes maneiras.
A linguagem radiofônica, definida como a “composição sonora invisível de palavra,
música, ruído e silêncio, enunciada em tempo real” por Meditsch (1999:127), tem sua
materialidade dada exclusivamente pelo som. E, por não ter imagem, o rádio traz em sua
linguagem uma incompletude, que faz com que o ouvinte se torne ativo, tendo que
complementar o discurso veiculado com sua imaginação. É através do som que o receptor
cria imagens em sua mente. Imagens interiores 2.
1
Jornalista, professora de radiojornalismo da Universidade Federal Fluminense e mestre em Comunicação,
Imagem e Informação. Defendeu a Dissertação “Sonoridade e resistência: a Rádio Jornal do Brasil – AM na
década de 60” .
2
A vantagem do rádio reside, paradoxalmente, naquilo que ele não possui: a imagem. O som permite
criarmos o cenário dos acontecimentos do mundo, enquanto a TV traz uma imagem-cópia da realidade. E,
por isso, a TV inibe a imaginação e o senso crítico do receptor que crê no que vê. Já a “cegueira” produzida,
no rádio, pela invisibilidade do som possibilita que o ouvinte “veja” através de sua percepção corporal.
E essas imagens mentais podem comportar três dimensões, e também incluir
sensações táteis, olfativas e auditivas, tornando a comunicação mais rica 3. Balsebre
(1999:.35) afirma que “a linguagem radiofônica é uma linguagem artificial, e que a palavra
radiofônica, ainda que transmita a linguagem natural da comunicação interpessoal, é
palavra imaginada, fonte evocadora de uma experiência sensorial mais completa”.
Em função dessa materialidade sonora temos que concordar com Meditsch
(1999:127) de que “a identidade do rádio se localiza na especificidade de seu discurso e não
na forma de difusão da mensagem (AM, FM, transmissão por cabo, satélite ou Internet 4)”.
Em nossa pesquisa “Sonoridade e resistência” (Baumworcel, 1999) refletimos sobre a
especificidade do discurso no radiojornalismo, através do estudo de caso da Rádio Jornal do
Brasil – AM, apontando para a questão da sonoridade.
Inicialmente destacamos a evolução da linguagem do radiojornalismo no Brasil a
partir de três momentos históricos 5: década de 1940, quando foram criadas as primeiras
regras a partir do modelo norte-americano; década de 1960, quando o rádio investiu no
gênero como alternativa para continuar a existir frente à concorrência com a TV; década de
1980, como opção para as emissoras AM sobreviverem à hegemonia das FM. Sobre as
mudanças que a linguagem vem sofrendo com a produção e transmissão digital da
informação - marcas do novo milênio – apenas apontamos algumas pistas.
Mas lembramos que nos três momentos identificados a linguagem jornalística no
veículo sofreu transformações, que representaram rupturas com o padrão, que significaram
um fazer diferente. E, assim como em 40 a Segunda Guerra Mundial foi o assunto
preferencial, na década de 60 a necessidade de informação imediata sobre o país
impulsionou o radiojornalismo. Tanto a Segunda Guerra, quanto a explosão política dos
anos 60 no Brasil, contribuíram para a criação de novos mecanismos de discursividade para
o meio.
3
Ressaltamos que a percepção do som ocorre principalmente através dos ouvidos, embora sua vibração e
ressonância possam ser sentidas pelo corpo inteiro. Os ouvidos destinam a informação acústica ao cérebro que
comanda uma reação mental (sensação, atenção) ou corporal (relaxamento, alerta, movimento) para absorvêla. Portanto o som é percebido como vibração sonora, mas também a partir das alterações no organismo mentais e viscerais – que provocou. O som nos toca à distância e nos envolve, provocando uma espécie de
intimidade corporal (Meditsch, 1996, p.227).
4
Só consideramos mensagem radiofônica o áudio veiculado pela Internet. A transmissão paralela de imagens
e áudio seria, então, uma outra linguagem.
Em 40, as agências de notícias internacionais trouxeram a síntese para o rádio
brasileiro que começava então a produzir uma linguagem jornalística específica para o
veículo. Em 60, os avanços tecnológicos contribuíram para a sobrevivência do rádio,
baixando os custos de produção da informação. Entre esses avanços destaca-se a maior
utilização do telefone e do gravador. O rádio começava a produzir sua própria informação,
dependendo menos dos jornais impressos e das agências. Naquela época, o transistor
também foi fundamental, democratizando o acesso ao veículo6.
Na década de 20, os jornais impressos eram simplesmente lidos ao microfone. A
partir da década de 40, em função da necessidade de transmitir o máximo de informação em
menos tempo, começou-se a produzir textos escritos específicos para serem ditos. No texto
escrito, a mensagem fica mais clara, sintética e objetiva, do que no improviso, quando o
raciocínio nem sempre é linear. Do Estado Novo até 1945, o presidente Getúlio Vargas
proibiu o improviso no rádio, portanto o texto escrito também funcionou como controle da
informação.
Mas estes textos tiveram que absorver, a partir da década de 60, recursos
expressivos que conotassem uma impressão de realidade acústica, dando a sensação de
naturalidade e espontaneidade do discurso improvisado, oral. E a linguagem do
radiojornalismo adquiriu outro ritmo. Sua musicalidade propiciou melhores condições para
que o ouvinte absorvesse a mensagem e estabelecesse uma relação de significância, num
meio que fala para um receptor disperso.
Ousamos dizer que o radiojornalismo aperfeiçoou-se, aprofundando o conhecimento
sobre sua natureza sonora na década de 60. Época pouco estudada nos livros sobre a
história do rádio no Brasil. A impressão que se tem numa consulta bibliográfica, com
poucas exceções, é de que apenas o Repórter Esso, que acabou em 1968, foi importante.
Experiências de outras emissoras ficam marginalizadas em vagas citações. No entanto, na
década de 60, o veículo deslizou funções, forma e conteúdo.
5
Momentos definidos pela ruptura que representaram não se atendo a datas precisas. Não consideramos um
período histórico como massa homogênea e entendemos que essas rupturas são objetos de processos
complexos que não serão aqui aprofundados.
6
O transistor propiciou a substituição da recepção coletiva, em casa, para a individualizada em qualquer
lugar, inclusive nos carros. Essa mobilidade na recepção acabou interferindo no conteúdo e formato da
informação.
Foi nesse momento que houve a introdução de grande variedade de vozes, por meio
das sonoras 7, expondo a artificialidade da fala muito amarrada ao texto escrito. Aos
poucos, os textos escritos foram absorvendo relevantes marcas da oralidade, para produzir
uma linguagem coloquial.
A sonora representou uma reviravolta na história do rádio. E se foi tão importante
para o veículo quanto a fotografia para o jornal, em nossa opinião, ela é mais que uma
ilustração sonora. É a própria materialidade da informação num meio que se faz por uma
oralidade aparente. Além de exemplificar um fato mencionado pelo locutor, ter uma força
documental inquestionável e trazer verossimilhança para a situação descrita, as sonoras
colocam os sujeitos e as testemunhas dentro do fato.
A introdução do som ambiente no radiojornalismo através das sonoras contribuiu
para a criação da imagem mental, permitindo ao ouvinte acompanhar o fato como se o
estivesse presenciando, se envolvendo emocionalmente, apesar da distância física do
acontecimento. A notícia ganhou vida, diversidade de sons e passou a não depender só da
entonação do locutor no estúdio.
Em nosso estudo (Baumworcel, 1999: 60), constatamos que se a sonora representou
um avanço para a linguagem jornalística no rádio, ao possibilitar a democratização e a
comprovação das fontes, por outro lado, também funcionou como controle da informação.
Pois a edição, através da seleção e colagem de trechos da entrevista, permite “montar” o
discurso do outro de acordo com o interesse do que será enfocado na matéria.
A utilização das sonoras foi portanto uma forma “possível” de se fazer ouvir “outras
vozes” numa época de liberdade limitada, como na ditadura no Brasil. As emissoras
precisaram buscar essas vozes para falar num momento de cerceamento político no país e a
RJB-AM teve um papel de destaque neste período. O gravador portátil foi a ferramenta que
possibilitou a pluralidade de vozes, trazendo agilidade e credibilidade. “O aperfeiçoamento
da fonografia representou um salto fundamental para a transformação do rádio e a
miniaturização com a invenção da fita cassete proporcionou a portabilidade,
universalizando o seu uso na reportagem, de forma mais prática e econômica” (Meditsch,
1996: 94).
7
Pequenos trechos de entrevistas gravadas.
O gravador portátil, portanto, modificou o conteúdo da informação radiofônica
valorizando um jornalismo de “declarações” ao invés do relato de fatos. O problema é que
essas declarações, em alguns casos, passaram a ter um status de fato. E, por isso, não
podemos esquecer que são sempre sujeitos históricos que utilizam uma nova tecnologia em
determinada direção. Na década de 70, no Brasil, por exemplo, o ponto de vista de uma
autoridade militar passou a valer como se fosse o fato. Era a época da censura, quando o
jornalismo investigativo se transformou em “versão oficial”. Até hoje, no entanto, este tipo
de jornalismo predomina.
Na década de 80, a segmentação e a especialização das emissoras de rádio visaram
atender diferentes camadas da população. Várias estações que transmitiam em AM
investiram no jornalismo para se distinguir das musicais-FM e houve mudança na
linguagem. Devido às melhorias nas telecomunicações, foi possível entrar em rede e o
jornalismo ao vivo se expandiu. Ao sair do estúdio, retornando para a rua com o início da
redemocratização do país, o dizer radiofônico se transformou. Foi a volta do improviso.
E se a grafia trouxe a síntese para o rádio, também representou o aprisionamento da
palavra, a perda da espontaneidade no discurso. Mas, no momento em que o falado no rádio
incorpora as regras que facilitaram a linearidade do pensamento e a compreensão da
mensagem, a palavra pode “voar” novamente, como “palavra alada” e viva.
Portanto, o improviso e o jornalismo direto da rua trouxeram, mais uma vez, vida
para o rádio. É o momento de predomínio do “all news” 8, que alterou o jornalismo
radiofônico para um “show ao vivo em que o repórter é participante ativo no palco da ação,
causando uma excitação na audiência semelhante aos programas de ficção, mas muitas
vezes tendo que ser corrigido ou desmentido, por não priorizar a apuração correta do fato”
(Ortriwano, 1990: 88). Muitas vezes, também, há repetição da informação9, o que vem
mudando o conceito de notícia.
O “all news” simboliza um novo estágio na transformação da informação em
mercadoria. Estágio caracterizado pela informatização na produção e na veiculação dessa
mercadoria num processo acelerativo correspondente a uma modificação sistêmica do
8
Sistema norte-americano de transmissão exclusiva e constante de notícias, atualmente adotado por várias
emissoras informativas brasileiras.
9
Por ter uma equipe maior e investir exclusivamente no jornalismo, o sistema “all news” se destaca na
cobertura de “grandes acontecimentos”. Porém, no dia-a-dia, quando fatos relevantes não ocorrem, há
necessidade de repetição da informação ou da popular “encheção de lingüiça” que cansa o ouvinte.
próprio capitalismo. Vivemos o capitalismo “tardio”10, também chamado de capitalismo
multinacional ou terceiro estágio do capitalismo.
Jameson (1997: 30) afirma que a nova lógica cultural do capitalismo tardio está
“integrada à produção das mercadorias em geral, ou seja, a urgência desvairada da
economia em produzir novas séries de produtos que pareçam novidades com um ritmo de
turn over cada vez maior”. Acrescentamos que o “all news” se encaixa nessa lógica e
produz um excesso de informação sem sentido, priorizando a velocidade e a quantidade em
detrimento da qualidade.
O autor (1997: 32) enumera a falta de profundidade, a cultura do simulacro e do
pastiche, o enfraquecimento da historicidade, as mudanças na relação tempo e espaço, a
diluição e fragmentação da linguagem numa velocidade de caleidoscópio, a tecnologia
hipnótica e fascinante, o descentramento do sujeito e o esmaecimento do afeto como
marcas dessa época. A partir dos estudos de Orlandi (1999: 62) defendemos, além disso,
que vivemos um processo de de-significação.
A sociedade brasileira que sofre as conseqüências “globais” do terceiro estágio do
capitalismo vive um processo de massacre dos sentidos. Massacre a partir de uma
linguagem que controla reduzindo as formas lingüísticas e os símbolos de reflexão,
abstração, desenvolvimento e contradição. Uma linguagem que apaga os conceitos e tenta
“suprimir” a história. Marcuse (1979: 107) lembra que a “linguagem na civilização
industrial avançada tornou-se instrumento de controle, até mesmo onde não transmite
ordens, mas informação; onde não exige obediência, mas escolha, onde não exige
submissão, mas liberdade”.
Pêcheux (1999: 50) esclarece que é como se a história não tivesse ocorrido. “E
como a memória é, ela mesma, condição do dizível, determinados sentidos não podem ser
lidos, não têm como significar. Eles ficam inviabilizados”. Orlandi (1999: 60) acrescenta
que “a memória falha porque faltam sentidos, que foram silenciados, excluídos para que
não haja um já dito, um já significado constituído. Ficamos sem memória, o que impede
que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos”.
10
O termo tardio aqui empregado não tem o sentido de envelhecimento, colapso ou fim do sistema. O que
tardio significa é que as coisas são diferentes, que passamos por uma transformação de vida decisiva, ainda
que incomparável com as mudanças antigas da modernização e da industrialização (Jameson, 1997, p. 24) .
Entendemos, então, como de-significação o processo discursivo que é barrado,
impedido, esvaziado. É uma violência simbólica. O indivíduo não tem palavras para falar,
ou não sabe usá-las, apesar de não estar proibido de falar. Segundo Orlandi (1999: 62) isso
se dá em função do “apagamento dos novos sentidos que já foram possíveis mas foram
estancados em um processo histórico-político silenciador. São sentidos evitados,
desmoralizados, inviabilizados, postos fora do discurso, de-significados”.
O indivíduo não tem como se subjetivar porque vive numa sociedade que, apesar de
aparentemente aberta, na essência, aprisiona os significados de forma que eles não
representem outros sentidos. Marcuse (1979: 94) já defendia que a estrutura de uma
sentença abreviada e condensada, sem deixar tensão entre suas partes é uma forma
lingüística que milita contra o desenvolvimento do significado.
A sentença se torna declaração a ser aceita – repele a demonstração, a qualificação,
a negação de seu significado codificado e declarado. E é assim que a forma existente de
liberdade pode ser servidão e de igualdade, desigualdade. Orlandi (1999: 64) afirma que “o
discurso neoliberal individualiza a questão da liberdade, destituindo-a da força histórica que
ela já teve em outra formação discursiva”.
Defendemos, ainda, que o discurso neoliberal do capitalismo tardio traz em si um
processo que denominamos como a “censura do sim”. E a definimos como uma censura
subliminar, que trabalha no inconsciente coletivo e onde não há um agente facilmente
identificável. É um tipo de censura invisível, que vai se incorporando como reflexo de uma
cultura da exclusão. Diferente da época da ditadura, quando havia um sujeito que
interditava, enunciando o que não podia ser dito. A “censura do sim” é orgânica, está dentro
dos sujeitos, foi interiorizada. Não há proibição, mas falta opção 11.
Vivemos um momento de insignificâncias onde os impedimentos não são mais na
ordem do discurso, mas no pensar. E a “censura do sim” funciona mais como um
“controle” do pensar, do que do dizer. O ônus repercute exatamente na formulação, no
trabalho histórico do sentido para que ele produza efeito, bloqueando os processos de
identificação do sujeito.
11
E a falta, assim como a censura, tem o significado de interdição, é o que foi tirado do sentido, o que não
pode significar.
Chamamos atenção para como este mecanismo vem fazendo com que as palavras
deixem de ter sentido. O conteúdo das palavras vem sendo esvaziado.“O neoliberalismo
globalizado criou novas mentiras, a partir de uma filosofia de cinismo e hipocrisia; é
preciso reinventar a linguagem, temos que refundar o conteúdo das palavras", bradou o
cineasta argentino Fernando Solanas (JB, 27/06/1999). Por outro lado, a sociedade está tão
“faladeira” que as pessoas se “desligam”. Fala-se muito e ouve-se pouco.
E o rádio hoje reproduz e produz, ao mesmo tempo, o excesso de informação e a
escassez de sentido da sociedade. Principalmente no radiojornalismo, principalmente no
“all news”. O veículo se tornou um burburinho com pouco significado e o poder da
informação ficou esvaziado, relativizado. Muitos têm a informação (que se massificou),
mas como ela vem fragmentada, só poucos sabem selecioná-la, relacioná-la, pensá-la de
forma articulada, enfim, historicizá-la.
Talvez um caminho para “deslizar” a insignificância do radiojornalismo seja
explorar todos os elementos da linguagem radiofônica, como, por exemplo, os recursos não
verbais, para que, quem sabe, o veículo possa trazer novos conteúdos para a palavra e
resignificar a si próprio.
O meio necessita re-utilizar todo seu potencial expressivo para transferir sentidos,
agregando tudo que estimule o ouvinte a atribuir significados ao que escuta. E na trilha do
estranhamento possibilitar o deslocamento para o novo, para uma ruptura.
É preciso utilizar a técnica para tornar visível o apagamento do real, para deslocar
esse processo esvaziado de historicidade. Enfim, uma política da significação.
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