A LATA DE COCA COLA. Um projecto educativo, um desafio multidisciplinar
José Couto Marques, Maria Teresa Restivo, Pedro Portela, Ricardo Teixeira
Universidade do Porto, Faculdade de Engenharia
Rua Dr. Roberto Frias, 4200-465 Porto, Portugal
Resumo
O
simples
estudo
aqui
apresentado
constitui
um
exemplo
ilustrativo
de
quão
surpreendentemente rico se pode revelar um problema experimental "aberto". Recorreu--se apenas a uma
lata de refrigerante instrumentada e a um computador, que constituíram o ponto de partida para uma
frutífera investigação multidisciplinar, que acabou por mobilizar o saber e a experiência de várias áreas de
Engenharia, num exercício cooperativo de ensino e aprendizagem muito interessante.
Introdução
A crescente especialização dos curricula dos cursos de Engenharia pode estar a contribuir para
uma excessiva fragmentação dos assuntos leccionados, dificultando deste modo a formação de uma
perspectiva global na mente dos alunos.
No decorrer do seu ensino experimental básico, os estudantes de engenharia são habitualmente
levados à obtenção de resultados que confirmem simples efeitos ou leis físicas. O actual recurso a
linguagens gráficas baseadas na programação por ícones, para monitorização, controlo, aquisição e
processamento de dados, permite ao aluno a utilização de uma interface gráfica e sugestiva, tornando-se
numa excelente ferramenta intuitiva, aberta, interactiva e flexível. Na nossa opinião, a exploração deste
tipo de ferramenta no ensino experimental de engenharia pode estimular a criatividade do estudante,
transformando observadores passivos em participantes activos e promovendo uma mais profunda
compreensão dos conceitos matemático e físicos subjacentes, de acordo com a teoria de Kolb da
"aprendizagem experiencial".
Acreditamos firmemente que o recurso a problemas interdisciplinares, cuidadosamente
seleccionados, tem um papel extremamente importante a desempenhar na integração de conhecimentos
provenientes de distintos campos de engenharia, com o benefício acrescido de providenciar excelentes
oportunidades para uma prática cooperativa de aprendizagem/ensino/investigação, que pode ser
altamente motivadora, criativa e estimulante, quer para professores, quer para alunos.
Ponto de partida – um objecto bem conhecido
“Instrumentação para Medição” é uma disciplina do 2º semestre do 3º ano da Licenciatura de
Engenharia Mecânica da FEUP, de que é responsável a Investigadora Teresa Restivo, na qual cerca de
60% do tempo é dedicado a trabalho em laboratório envolvendo cerca de 140 alunos. Procurando
responder ao pedido de um tema não convencional para um projecto final da disciplina, formulado por um
grupo de trabalho particularmente dinâmico, liderado pelo terceiro autor (Pedro Portela), foi sugerido pela
docente responsável um problema experimental utilizando um objecto bem conhecido – uma lata de
Coca-Cola.
A tarefa dos alunos incluía:
(1) Arranjar uma lata e medi-la cuidadosamente.
(2) Instrumentar uma lata idêntica com extensómetros de resistência alinhados nas direcções axial e
circunferencial incluindo, também, um sensor de temperatura.
(3) Fazer uma estimativa da ordem de grandeza das deformações que ocorrem na abertura da lata,
aplicando fórmulas conhecidas da Resistência de Materiais para um cilindro de secção circular,
de paredes finas, infinitamente longo e com os topos fechados, constituído por um material
elástico isotrópico3, sujeito a uma pressão interna de cerca de 50 psi (0.345 MPa)4.
(4) Utilizar um sistema de aquisição de dados para registo digital da abertura da lata.
(5) Processar os dados recolhidos a fim de avaliar a duração do estado transitório correspondente.
(6) Determinar as deformações ocorridas e calcular a correspondente pressão interna da lata.
(7) Verificar a consistência dos valores estimados, medidos e/ou calculados para as deformações e
para a pressão interna.
Os estudantes teriam uma bonificação suplementar no caso de conseguirem, antes da experiência,
estimar com razoável aproximação os valores das deformações e, além disso, seleccionar
adequadamente a respectiva taxa de aquisição de dados, uma vez que estes dois requisitos são
fundamentais para o completo sucesso do problema proposto.
Esta experiência tão simples recebeu já a atenção de vários autores
4-7
e, como veremos, tem ainda
muito para oferecer.
Passo preliminar – determinação dos parâmetros do material
Com a prestável colaboração dos nossos peritos em metalurgia, foram identificados os
parâmetros do material da lata, utilizando nomeadamente análise por espectroscopia de emissão.
Concluiu-se que o material da tampa é uma liga de alumínio, enquanto que o corpo da lata é feito de uma
liga de aço. Foi preparado um provete para um ensaio do aço à tracção simples (Figura 1) cujos
resultados estão incluídos na Tabela 1.
Figura 1 – Provete para ensaio de tracção
Tabela 1 – Parâmetros dos materiais
Zona
Material
Módulo de Young
Tensão de cedência
E (GPa)
σY (MPa)
Tampa
Alumínio 5052 (AA)
70
240
Corpo
Aço C2D1 (EN10016-3)
205
455
Primeiro passo – resultados experimentais
A lata foi instrumentada com uma roseta de extensómetros para medição da deformação e com
um termopar de tipo K (ligado a um multímetro digital) para a monitorização da temperatura (ver Figura 2).
Dois dos elementos da roseta de extensómetros, orientados segundo as direcções principais de
deformação, estão inseridos em dois circuitos de ponte de medição distintos (Sistema Modular RDP 600 módulo tipo 628) utilizando a técnica dos três condutores. Cada circuito condicionador foi configurado
para funcionar em ¼ de ponte usando extensómetros com resistência nominal de 120 Ω. Dois voltímetros
digitais (Keithley 2000) são utilizados para testes de quantificação inicial e ajustamentos de cada circuito
de ponte de medição. O sistema de aquisição de dados inclui um PC com software LabTech e uma carta
DAS PCL-818 HG de ganho programável. A resolução da conversão A/D depende do ganho
seleccionado, que foi definido tendo em conta a ordem de grandeza estimada para os decréscimos das
deformações. A taxa de aquisição de dados foi ajustada para a duração esperada do fenómeno transitório
causado pela abertura da lata (Figura 3).
Circuito de
Lata instrumentada
condicionamento de
sinal
Terminais de aquisição
de dados
Figura 2 – A lata instrumentada e o sistema de medição
Aplicação desenvolvida
utilizando software
LabTech
Figura 3 – O momento da abertura da lata
Os resultados obtidos foram mais tarde processados e estão listados abaixo.
Tabela 2- Resultados experimentais
Temperatura da lata
17.1 ºC
Duração do transiente associado à abertura da lata
70 ms
Deformação longitudinal
-114 µε
Deformação circunferencial
-500 µε
Segundo passo – verificação dos resultados experimentais
A elasticidade isotrópica e a chamada fórmula dos tubos foram as hipóteses base para a
verificação da consistência dos resultados.
Recorrendo aos valores de εθ e εz dados pela Tabela 2, determinou-se para o coeficiente de
Poisson v o valor de 0.307 a partir da expressão
v= (εθ - 2εz)/(2εθ - εz)
(1)
A pressão interna p foi determinada a partir da deformação circunferencial εθ (uma estratégia menos
sensível aos erros inerentes ao valor do coeficiente de Poisson do que obtidos por recurso à deformação
longitudinal εz 4 )
p = 2 t E εθ /[r (2-v)]
(2)
onde t e r representam, respectivamente, a espessura da parede da lata (0.11 mm) e o seu raio (33 mm)
a meia altura, o que levou a um valor para p de 0.404 MPa (58.54 psi).
As correspondentes tensões circunferencial e longitudinal σθ e σz são dadas por
σθ = p r / t
(3)
σz = p r / (2 t)
(4)
Finalmente a lei de Hooke generalizada levou a valores de – 113.56 µε
e – 497.57 µε,
respectivamente, para as deformações longitudinal e circunferencial que estão em perfeito acordo com os
valores medidos da Tabela 2. Por outro lado, a pressão interna calculada de 0.404 MPa (ou 58.54 psi)
está ligeiramente acima do valor de referência esperado de 50 psi (0.345 MPa).
Terceiro passo – a modelação numérica – análise linear por elementos finitos
Com o objectivo de investigar mais minuciosamente a resposta estrutural da lata e como
complemento do trabalho experimental, decidiu-se explorar o problema de forma mais profunda
realizando um estudo numérico, com a intervenção do primeiro e quarto autores (José Couto Marques e
Ricardo Teixeira).
Utilizando os dados geométricos e materiais obtidos preparou-se uma malha axissimétrica de
elementos finitos isoparamétricos de 8 nós 8, com um total de 340 elementos e 1684 pontos nodais. Esta
malha está representada na Figura 4, que inclui pormenores ampliados do topo e da base da malha da
lata. Começou por se proceder a uma análise linear elástica aplicando uma pressão interior de valor igual
ao acima calculado, ou seja 0.404 MPa (58.54 psi). Os correspondentes diagramas de tensão
circunferencial e longitudinal na zona da meia altura da lata (ver figura 4) estão em perfeito acordo com os
respectivos valores atrás referidos. Parece poder concluir-se, por um lado, ser válida a adopção das
fórmulas dos tubos para a estimativa da pressão; por outro lado, este factor indica que o efeito da
geometria da tampa e da base no campo de pressão está confinado às extremidades da lata, pelo menos
para este nível relativamente baixo de pressão interior.
Figura 4 – Malha de elementos finitos e distribuição de pressão obtida com uma análise linear
Quarto passo – modelação numérica (continuação) – análise geometricamente não-linear
Encorajados por estes resultados preliminares decidimos investigar o comportamento da lata na
área das grandes deformações, incluindo a reversão da cúpula da base da lata. Foi realizada uma
análise geometricamente não-linear
9
utilizando o método "arc-length" para controlar a pressão interna
aplicada de forma a conseguir ultrapassar os pontos críticos na curva força-deslocamento da lata. A não
linearidade do material não foi tida em conta nesta fase, para que melhor se pudesse avaliar a
contribuição de cada tipo de não linearidade na resposta da lata. A Figura 5 ilustra a evolução da
geometria da lata, enquanto que a Figura 6 mostra a curva pressão – deslocamento vertical do ponto A da
cúpula da base da lata (ver Figura 4). A pressão requerida para iniciar o processo de reversão foi de
8.86 MPa (1285 psi).
Figura 5 – Evolução da deformação para a análise geometricamente não-linear sem
plasticidade.
Figura 6 – Gráfico da pressão – deslocamento vertical do ponto A da base considerando apenas a nãolinearidade geométrica.
Quinto passo – Análise geométrica e materialmente não linear
Finalmente, os efeitos das grandes deformações e da plasticidade foram considerados em simultâneo. O
critério de cedência de von Mises
10
foi adoptado para ambos os materiais, tomando para a tensão de
cedência os valores da tabela 1. A curva pressão – deslocamento vertical do ponto A da Figura 7 mostra
uma diminuição substancial da pressão requerida para desencadear a reversão da cúpula da base da
lata, que é agora de 1.48 MPa (214.6 psi), por outras palavras, seis vezes menor. A evolução da
geometria da lata pode ser observada na figura 8.
Figura 7– Curva pressão - deslocamento vertical do ponto A considerando não-linearidade geométrica e
material em simultâneo.
Figura 8 – Evolução da deformação para a análise geometricamente não-linear com plasticidade.
Os gráficos do campo de deformação plástica efectiva da Figura 9 realçam a natureza localizada das
rótulas plásticas que se desenvolvem nas zonas de pequeno raio de curvatura da base e do topo da lata e
que são responsáveis pela resposta estrutural muito menos rígida observada na análise geométrica e
materialmente não linear, a qual exibe nomeadamente uma reversão mais completa da cúpula da base.
Figura 9 – Campo de deformação plástica efectiva para a fase final da análise geometricamente nãolinear com plasticidade, representado sobre a malha indeformada
Passo final – O que mais pode ser feito?
Num problema aberto, como aquele que temos estado a discutir, parece apropriado esboçar perspectivas
para desenvolvimentos futuros. A questão para a qual procuramos uma resposta é: como obter uma
compreensão mais profunda deste simples problema?
No que se refere à experimentação pretendemos investigar
com maior detalhe dois aspectos. O primeiro está relacionado
com o modo como a pressão interna da lata varia com a
temperatura. Uma estratégia possível, que exigirá algum apoio
por parte de uma empresa de refrigerantes, consiste em
inserir no interior da lata, antes desta ser selada, sensores de
pressão e de temperatura sem fios. O aumento lento de
temperatura do conjunto, imerso num banho termostático,
permitirá obter a curva de variação da pressão com a
temperatura e, responderá também à nossa segunda questão:
qual é o valor da pressão a que ocorre a inversão da cúpula
do fundo da lata.
De facto, alguns passos foram já dados com o objectivo de
analisar este fenómeno recorrendo a uma tecnologia menos
sofisticada (ver Figura 10).
Figura 10 – Lata para estudo da reversão da
cúpula da sua base
A simulação numérica pode ser aperfeiçoada através da utilização de elementos finitos de casca delgada,
pelo refinamento da malha na zona de selagem da tampa de modo a permitir modelar a sua separação e
ainda pela realização de uma análise tridimensional baseada num conhecimento rigoroso da geometria e
das características do material.
O efeito da anisotropia criada na folha do material devido ao processo de fabrico só poderá ser
devidamente contabilizado através de uma modelação completa do processo de conformação da lata.
Conclusão – “Some food for thought”
Tópicos de diversos campos da engenharia foram integrados neste estudo. Foram envolvidos conceitos
das áreas da metalurgia, da instrumentação e medição e da mecânica computacional e foram exercitadas
as capacidades de ensino e aprendizagem cooperativa. Daqui resultou um exercício muito motivador em
torno de um pequeno objecto do quotidiano, que se revelou uma interessante oportunidade para reunir
esses diferentes domínios de engenharia que habitualmente são tratados independentemente uns dos
outros.
“Se sempre for feito o que sempre foi feito, sempre se obterá aquilo que sempre foi obtido”
11
. Este é o
método tradicional de ensino, que não envolve riscos nem perdas de tempo. A exploração de problemas
abertos de engenharia, como estratégia de aprendizagem cooperativa, requer um planeamento cuidado,
uma boa coordenação de recursos humanos e materiais e abertura de espírito por parte de todos os
responsáveis envolvidos. Esta prática estimula ainda nos alunos as aptidões de trabalho em grupo e de
responsabilização pessoal de cada elemento, bem como a auto-organização e a capacidade de gestão de
conflitos. Desenvolve ainda, as capacidades de análise, de interpretação e crítica de resultados, enquanto
integra de forma estruturada diversos conceitos fundamentais constituindo, também para os docentes
envolvidos neste exercício cooperativo, uma experiência de aprendizagem muito rica.
Terminamos registando o comentário dos alunos (conforme traduzido por PP).
“Há dois modos de adquirir conhecimentos: pela auto aprendizagem ou pelos conhecimentos que nos
transmitem. Esta experiência mostrou-nos que a única coisa que, de facto, pode ser eficientemente
ensinada é como aprender.
Um mau resultado pode ser mais enriquecedor do que um bom resultado porque força a investigar mais
profundamente o fenómeno em questão.
Este trabalho mostrou-nos, ainda, que existe um enorme fosso entre o que usualmente se faz numa sala
de aulas ou no laboratório e a solução dos problemas reais”.
Informação Bibliográfica
1. Automated System for Educational Training on Punching Process Characterization, Teresa Restivo and Joaquim
Mendes, National Instruments User Solution (Education/Mechanical Engineering), Texas, 1998.
2. Experiential Learning - Experience as the Source of Learning and Development, D. A. Kolb, Prentice-Hall, New
Jersey, 1984.
3. Strength of Materials, S. P. Timoshenko, 3rd edition, D. Van Nostrand, Princeton, 1956.
4. The Real Thing, Experimental Stress Analysis NOTEBOOK, Issue 1, October 1985, Measurements Group, Inc.,
Raleigh, NC 27611.
5. The Real Thing Revisited, Experimental Stress Analysis NOTEBOOK, Issue 13, April 1990, Measurements Group,
Inc., Raleigh, NC 27611.
6. The Real Thing Revisited (Again), Experimental Stress Analysis NOTEBOOK, Issue 25, April 1995, Measurements
Group, Inc., Raleigh, NC 27611.
7. The Aluminium Beverage Can, W. F. Hosford and J. L. Duncan, Scientific American, Volume 271, Number 3, pages
34-39, September 1994.
8. The Finite Element Method, O. C. Zienkiewicz, 3rd edition, McGraw-Hill, London, 1977.
9. Non-linear Finite Element Analysis of Solids and Structures, M. A. Crisfield, Volume 1, Wiley, 1991.
10. Finite Elements in Plasticity - Theory and Practice, D. R. J. Owen and E. Hinton, Pineridge Press, Swansea, 1980.
11. If you always do what you have always done, you will always get what you have always got, Bob Matthew and Pete
Sayers, Learning How to Think Like an Engineer - Cognitive Apprenticeship, Second International Conference on
Teaching Science for Technology at Tertiary Level, S. Törnkvist (Ed.), KTH Royal Institute of Technology, Stockholm,
1997.
12. http://www.fe.up.pt/~trestivo/im/welcome.htm
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