EDIÇÃO DA GRANDE ÁREA METROPOLITANA DE LISBOA TRIMESTRAL NÚMERO 16 MUNICÍPIOS Nova Marginal de Sesimbra CULTURA Poetas do Tejo Manuela Fonseca 1 10 DOSSIER TEMÁTICO Acelerar Roterdão Martin Aarts 5 2006 GASTRONOMIA As Caldeiradas de Sesimbra Maria de Lurdes Modesto 12 Nova Marginal de Sesimbra MUNICÍPIOS Nova Marginal de Sesimbra Esta fase ficará concluída com um novo acesso à Praia da Califórnia, obra que tem parecer favorável do Parque Natural da Arrábida mas aguarda, desde 2004, um parecer favorável do ICN. A marginal nascente é hoje a nova grande praça central de Sesimbra, expressão da afirmação da vila. Um grande passeio urbano valoriza o desenvolvimento equilibrado dos múltiplos usos instalados, constituído por uma plataforma de nível, que se alonga junto da amurada e viabiliza a circulação viária lenta, proveniente do centro, balizada por pequenas bolsas de estacionamento, geridas através de pinos retrácteis e um caminho pedonal adjacente ao limite edificado. Também para o sucesso desta área contribuiu a qualidade da sua pavimentação, do mobiliário e da iluminação. A intervenção teve em conta as sugestões apresentadas no âmbito da discussão pública de um conjunto de ideias para a marginal de Sesimbra, feita em 2002 e consubstanciada numa grande exposição que decorreu no Auditório Municipal Conde de Ferreira e culminou numa sessão de debate público muito participada. Em Sesimbra a ligação entre a terra e o mar foi sempre determinante. A íntima relação entre o vale, as falésias e a praia, caracteriza o anfiteatro natural onde a vila cresceu, dando protagonismo à pesca e à importância dos contactos marítimos com o exterior, em detrimento das difíceis ligações terrestres, que só na segunda metade do século XX foram significativamente melhoradas. É também desse período a construção da marginal. O automóvel passa a ser progressivamente preponderante, invadindo as ruas e ruelas da antiga vila de pescadores. A devolução da marginal ao peão, e da rua ao cidadão, é uma exigência histórica e uma dívida a saldar com a “bela piscosa”... Intervenção em três fases O plano de reordenamento da marginal de Sesimbra contempla três fases de intervenção. A primeira, do Largo Bombaldes às rochas do Caneiro, na Praia da Califórnia, iniciada em 2005, envolveu a requalificação da marginal nascente e a edificação de uma nova praça, com comércio e equipamento de apoio à Praia da Califórnia. FICHA TÉCNICA 2 EDIÇÃO TRIMESTRAL DA AML, ANO IV, Nº16, 2006 COORDENAÇÃO: Dalila Araújo COLABORAÇÃO: Arq.º Augusto Pólvora (Pres. C. M. Sesimbra), Martin Aarts, Dr.ª Sofia Cid, Prof. Manuela Fonseca, Mª de Lurdes Modesto REDACÇÃO: Silas Oliveira | Fotos: Área Metropolitana de Lisboa, C. M. Sesimbra, Município de Roterdão, A2-Studio/KCAP Architect & Planners Rotterdam, Associação de Turismo de Lisboa PRODUÇÃO: Escrita das Ideias PROPRIEDADE: Área Metropolitana de Lisboa - R. Carlos Mayer 2, R/C 1700 - 102 LISBOA TIRAGEM: 10 000 ex. | ISSN: 1645-7471 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA MUNICÍPIOS O projecto procurou responder a algumas das críticas então apresentadas, sem fugir ao conceito desenvolvido, assente na eliminação integral do estacionamento e na devolução do espaço público ao peão e às actividades de recreio e lazer. Estando praticamente concluída a primeira intervenção, a Câmara Municipal procura agora soluções para a execução da segunda fase, que vai desde o Largo de Bombaldes ao monte do Macorrilho, junto à Praia do Ouro. A terceira e última intervenção inicia-se no monte do Macorrilho e prolonga-se até à doca. De referir que, em breve, avançarão duas intervenções integradas na segunda fase, que darão continuidade à Nova Marginal. Incluem a Rua Cândido dos Reis, Largo António Baptista e Rua da Fortaleza, da autoria do Arquitecto Paulo Braula Reis, e a da Rua Jorge Nunes e Largo de Bombaldes, da autoria do Arquitecto Paulo Adelino. As propostas sugerem soluções originais que, apesar das linhas modernas, têm um enquadramento perfeito na traça urbana antiga. Criação de estacionamento Consciente de que, para a valorização dos espaços exteriores, é essencial a criação de condições para a sua utilização multifuncional, em muitos casos impedida pela invasão do automóvel, a autarquia programou a construção de dois silos de parqueamento localizados a nascente e a poente da marginal. ➤➤ 3 MUNICÍPIOS O parqueamento nascente, aberto ao público em 2005, está inserido no edifício Mar da Califórnia e conta com 500 lugares cobertos, escadas e elevadores de acesso à praia. O parqueamento poente, com 350 lugares cobertos, será localizado a nascente do Hotel do Mar num terreno junto à praia, e deverá ser concretizado nos próximos anos, a par de uma unidade turística projectada para a mesma zona. Os dois silos, com acesso viário por Norte, permitem eliminar ou reduzir substancialmente o parqueamento e condicionar a circulação automóvel no centro histórico de Sesimbra, tornando possível a sua reabilitação e o reordenamento faseado da marginal, desde a Praia da Califórnia até à doca. Nova marginal movimentada Decorrido pouco mais de um ano desde a conclusão da obra, a nova marginal é já um dos locais mais movimentados de Sesimbra. A requalificação permitiu o alargamento do passeio em vários metros, que beneficiam o peão em detrimento do automóvel. Aproveitando as potencialidades desta zona, a Câmara tem vindo a dinamizar ao longo do ano, com particular incidência no Verão, inúmeras iniciativas de âmbito cultural, como a Feira do Livro, espectáculos musicais, actividades no âmbito do Dia Internacional da Criança e acções em parceria com outras entidades, de que é um bom exemplo a Exposição Internacional de Artes Plásticas. Como se esperava, a nova marginal contribuiu para aproximar a população da vila e do mar, proporcionando longos passeios numa zona cada vez mais viva e movimentada e com novas esplanadas. Um pormenor interessante a ter em conta: a plantação de flora da região na zona nascente, que privilegiou o alecrim, o rosmaninho, a alfazema, o caril e outras espécies, cujos aromas despertam os sentidos e proporcionam grande proximidade com a natureza. 4 DOSSIER TEMÁTICO Acelerar Roterdão Martin Aarts * Numa altura em que a cidade perde algumas das suas velhas funções, outras terão, de alguma maneira, que as substituir. A especialização é a palavra-chave. Esta especialização dará azo a uma nova rede europeia de cidades, em que todas competem entre si e ao mesmo tempo se complementam. Harm Tilman (1) Lenta, mas inevitavelmente, as actividades de manufactura desaparecem da paisagem económica da sociedade ocidental, deslocando-se para os países onde a mão-de-obra é barata. Estas actividades estão a ser substituídas pela economia do lazer e – cada vez mais – pelos serviços assentes no conhecimento. A única medida que uma cidade europeia pode tomar para sobreviver é concentrar-se neste tipo de serviços. Perante isto, se, por um lado, Roterdão parece estar a evitar esta transformação graças à sua economia portuária pujante, por outro nada podia estar mais longe da verdade. Actualmente, o porto tem uma necessidade premente de pessoal altamente qualificado. Basta pensar, por exemplo, na investigação e desenvolvimento levada a cabo no porto e em todos os balcões de bancos e seguradoras no centro da cidade. Praça de Schouwburg A transição da era industrial para a era do conhecimento é, em geral, muito mais complicada do que se possa imaginar. A rivalidade entre as cidades europeias força-as a manterem-se atraentes para os trabalhadores do conhecimento, livres e sem compromissos. A cidade tem uma importância vital para este grupo, pois é o ambiente privilegiado para todos os que têm um estilo de vida criativo. Tal tem consequências claras para a sociedade urbana, caracterizada, por um lado, pelo enorme dinamismo da classe mais qualificada e, por outro, pela insatisfação dos menos qualificados devido à perda, sobretudo, de benefícios sociais. (2) Ao mesmo tempo, é também aqui que reside a chave do êxito, porque é nas cidades com maior sucesso que há uma maior procura do sector dos serviços, sector criador de postos de trabalho para todos os que vivem nos arredores e trabalham no interior da cidade, inclusive para os menos qualificados. (3) A “caça” aos profissionais mais qualificados irrompeu não sem consequências. O factor mais importante para este grupo, quando chega a altura de decidir o local de residência, para onde regressa depois de um dia de trabalho, é o nível de atracção da cidade. Por outras palavras, este grupo procura uma cidade altamente “urbana”, com alojamento a preços acessíveis, uma comunidade tolerante e um ambiente cultural inovador. Com um centro onde as pessoas se possam encontrar. Neste contexto, torna-se vital a existência de restaurantes, bares, esplanadas agradáveis nos passeios e uma vida nocturna empolgante. Competição entre cidades Roterdão está altamente focalizada na Europa, de uma forma corajosa e, porém, inevitável. Um passo mental significativo para Roterdão foi abandonar a retórica da reconstrução que surgiu como resultado dos bombardeamentos durante a Segunda Guerra Mundial, que arrasaram completamente o centro da cidade. Depois de um longo e demorado período de construção, Roterdão passou a integrar de forma consciente o grupo de cidades activas. Cidades que se debatem com uma nova realidade económica. Estas cidades estão actualmente a florescer. Não só porque estão a crescer, mas sobretudo porque continuam a ter a capacidade para se reinventarem. Hoje, o objectivo do projecto urbano é modernizar, reorganizar e transformar a área urbana. Tudo ligado à ideia de que é necessária uma intervenção mais activa para tornar a cidade mais agradável para viver e melhorar a sua viabilidade. A cidade desabrochará como resultado de uma combinação de três tipos de inovação: no domínio da cultura, no mundo da tecnologia e no domínio da administração pública. Nas três áreas, a aposta situa-se ao nível da criatividade, valor acrescentado e resultados tangíveis. (4) A História transformou-se no curriculum vitae da cidade. Os planos para o futuro utilizam esta qualidade intrínseca e utilizamna como potencial inalienável. Aquilo que todas estas cidades têm em comum é o facto de só conseguirem competir se forem capazes de “angariar” as pessoas graças à “urbanicidade”, pois é aqui que se situam os pontos de encontro dos trabalhadores do ➤➤ conhecimento modernos. 5 DOSSIER TEMÁTICO Esplanadas na margem do rio As agradáveis esplanadas de passeio são tão importantes aqui quanto o ambiente cultural experimental. O raciocínio é o seguinte: se os estudantes acham que uma cidade é atraente, existem fortes probabilidades que aí se queiram instalar de maneira permanente. As actuais leis da economia ditam, subsequentemente, que as empresas se estabeleçam onde os recursos humanos com elevada formação se sentem melhor. É óbvio que a actividade comercial estará sempre ligada ao conhecimento específico fornecido pelos cursos de formação existentes na cidade. Ao desempenhar o seu papel no âmbito do ordenamento territorial, o Governo deixou de ocupar uma posição autónoma e terá que procurar a colaboração junto dos agentes da cidade interessados. Trata-se, em primeira instância, de saber qual é o ADN económico da cidade. É necessário, em seguida, adaptar a cidade no sentido desta poder responder às exigências da idade. Depois, a importância recai tanto na qualidade dos espaços públicos no centro como nos investimentos na cultura. Ao mesmo tempo, é imprescindível não esquecer a séria tarefa de combate aos problemas sociais associados a esta nova realidade económica. As cada vez maiores divisões no interior da sociedade são o resultado da diferença nas oportunidades de carreira, que variam consoante o nível de formação. Mas a formação também é necessária para a economia dos serviços, daí que sejam urgentes grandes investimentos em escolas e na colocação de professores. A questão não é de saber SE Roterdão vai responder a todas estas exigências, porque muito simplesmente será obrigada a fazê-lo. A questão é saber ONDE é que Roterdão se demarcará, tanto ao nível económico como físico. É imprescindível a realização simultânea de estudos e acções para responder a esta questão. 6 Porta de acesso à Europa Na perspectiva de Roterdão, o ADN da cidade é indubitavelmente utilizado como alicerce para o futuro. Não se trata de uma ambição fictícia, mas sim de reforçar as qualidades já existentes. Roterdão, que pertence ao Randstad Holland, juntamente com outras cidades como Amesterdão, Haia e Utrecht, está bem ciente que tem de justificar claramente o seu valor acrescentado. Só assim se perceberá de imediato que Roterdão é por excelência uma cidade portuária. (i.e. Uma porta de acesso à Europa) Mas, tal como já referido, o impacto económico do porto alterouse. Não se trata apenas de ampliar o porto para reforçar a sua posição competitiva internacional, intensificando as actividades de alto mar; verifica-se também uma intensificação notória de outras actividades portuárias, que se reflectem nomeadamente no reforço da Investigação e Desenvolvimento na indústria petroquímica. Além disso, a transformação das áreas portuárias adjacentes à cidade está orientada para a inovação e expansão da economia do porto. Estão praticamente a transformar-se em tradicionais cidades portuárias, onde os indivíduos vivem e trabalham. O interior da cidade continua a desempenhar um papel enquanto localização prestigiada para sedes de empresas e como centro de negócios para actividades bancárias e de seguros relacionadas com o porto. A inovação continua a desempenhar o seu papel no porto, mas hoje em dia há cada vez menos trabalho para os menos qualificados e uma oferta cada vez maior para os altamente qualificados. A cooperação com as instituições de conhecimento de Roterdão e de Delft é cada vez mais importante neste contexto. Deverão surgir também novos pilares económicos. O Centro Médico Erasmus de Roterdão, juntamente com a Universidade Técnica de Delft, por exemplo, entrevê oportunidades de gerar actividades comerciais relacionadas com a Medicina/Tecnologia na zona entre Delft e Roterdão. Oportunidades essas que já foram utilizadas com proveito por Delft. Por último, e igualmente importante, Roterdão dispõe de um mercado florescente para artes aplicadas. Tal deve-se prioritariamente aos institutos baseados na cidade, mas também ao carácter internacional da cidade portuária. Roterdão é, a título de exemplo, A capital da arquitectura dos Países Baixos; por um lado existe a UT de Delft, o Instituto de Arquitectura de Roterdão, o Instituto Berlage, o Museu de Arquitectura, a Bienal de Arquitectura de Roterdão e, por outro, os gabinetes de arquitectura OMA (Rem Koolhaas), MVRDV e Neutelings Riedijk, que servem de íman para atrair os estudantes de arquitectura do mundo inteiro. Outros aspectos das artes aplicadas estão também em curva ascendente, tal como a fotografia e o design, tendo como figuras de proa Hans Werlemann, Hella Jongerius e Joep van Lieshout. Uma cidade deve fazer-se notar As cidades que querem ser competitivas não têm outra escolha senão tornar-se imediatamente atraentes e publicitar os seus dotes. A cidade deve fazer-se notar e, ao mesmo tempo, cativar as pessoas. Este último aspecto é importante, pois é o sinal DOSSIER TEMÁTICO inequívoco de que as pessoas querem continuar a viver na cidade. Uma das condições sine qua non é a existência de uma comunidade tolerante. Mas uma cidade tem de possuir uma identidade própria que seja o orgulho justificado da elite urbana. Na maioria das cidades bem sucedidas, esta identidade própria é cunhada pelo interior da cidade. Em nenhuma outra zona é a cidade tão autêntica, tão grande a concentração e diversidade de esplanadas agradáveis, de restaurantes, lojas, cinemas, teatros e museus. Uma coisa é sentir-se orgulhoso da sua cidade, outra coisa é a prova dos nove. Um indício muito revelador acerca de uma cidade é o facto de uma proporção significativa da sua população estudantil se instalar permanentemente na cidade após ter terminado os estudos. Os licenciados procuram trabalho, mas muitos tornam-se empresários. Acresce que uma cidade onde uma população altamente qualificada queira viver também atrai novas empresas, tal como já mencionado. A autenticidade de Roterdão pode ser descrita sobretudo pelo facto de ser uma cidade moderna junto ao rio Maas. A este rio deve a cidade a sua razão de ser e a sua identidade. O rio constitui, em termos físicos, o principal elemento estruturante da cidade. A importância do rio revela-se de várias maneiras, mas a mais visível encontra-se na frente ribeirinha no centro da cidade. O espaço abre-se na sua imensidão graças ao rio, mas também graças às antigas zonas do porto que se estão a transformar, lenta mas inevitavelmente, em áreas urbanas e que, apesar do bombardeamento de que foram alvo, representam séculos de história, quanto mais não seja devido à sua estrutura robusta. O rio é de todos os que lá vivem, pertence aos habitantes de Roterdão e a TODOS os que a visitam. O que significa que a Praia fluvial Cafe Rotterdam zona ribeirinha já é o domínio público mais atraente na cidade e na região. (ie. maratonas, praia, piqueniques). As autoridades estão a desenvolver uma estratégia diferenciada relativamente à divisão de programas públicos. Sempre que, como actualmente, não há verbas para financiar espaços e equipamentos públicos de alta qualidade para a manutenção da zona ribeirinha, são criadas soluções temporárias. Todos os Verões, por exemplo, é criada uma praia temporária ao longo do cais De Boompjes (a avenida principal junto ao rio). O enorme sucesso da praia é a prova de que o rio e a cidade estão geneticamente ligados e que há uma grande necessidade de utilizar a cidade de diferentes maneiras. Uma das estratégias de maior êxito é a atenção dada à nova política de habitação. O carácter urbano de uma cidade devese essencialmente aos seus habitantes e Roterdão ainda tem muito trabalho a fazer neste domínio. No respeito da tradição de Roterdão, estes novos empreendimentos surgem muitas vezes sob a forma de construção em altura (i.e red apple, Wilhelminapier). Esta é uma forma de habitação altamente valorizada, porque expressa o estatuto e a identidade da cidade moderna, mas também porque a construção em altura é feita no local certo, designadamente junto às infra-estruturas urbanas que conduzem ao centro da cidade. Neste sentido, existem poucos precedentes na Europa, daí que promotores e investidores se desloquem frequentemente a Nova Iorque ou a Chicago para uma visita de reconhecimento. Alguns exemplos: Wiel Arets construiu duas torres gémeas junto à Ponte Erasmus, os Arquitectos H&M conceberam três torres em Wijnhaveneiland, numa das margens do rio, e Mecanoo desenvolveu uma torre residencial (Montevideo) na outra margem. Mas a zona ribeirinha precisa de melhorar ainda mais. Um dos principais objectivos no sentido de aumentar a “sensação de centro” é precisamente duplicar a actual população de cerca de ➤➤ trinta para sessenta mil pessoas. 7 FPW-Katendrecht DOSSIER TEMÁTICO Wilhelminapier: Novas áreas de habitação e serviços no Porto de Roterdão É por esta razão que a construção nunca pára na frente ribeirinha. Estão a ser/ ou serão brevemente edificadas as torres residenciais concebidas por OMA, KCAP, Siza e Cruz y Ortiz. Ao continuar a enveredar por este caminho, Roterdão faz jus à sua fama de “cidade das torres” dos Países Baixos. Nos próximos dez anos, as actuais 25 torres poderão duplicar e, tal como já referido, a grande maioria será residencial. Todos estes planos são imprescindíveis para se conseguir uma melhor fusão entre as funções urbanas. Com novos residentes é possível uma maior densidade de instalações de lazer que sejam atraentes. Para além disso, faz crescer a pressão nos teatros e museus existentes. Por sua vez, esta pressão faz crescer o entusiasmo naqueles que participam desta evolução. Aqueles que vivem no centro são, neste sentido, os que marcam a vida cultural. Mas a questão que se coloca é de saber se os trabalhadores do conhecimento se querem ligar a esta Roterdão. E será que uma frente ribeirinha forte é uma forma de atingir esta ambição? Estudos revelam que os jovens profissionais gostam de viver no centro da cidade, mas que estão igualmente conscientes de que não podem pagar os elevados preços de alojamento pedidos nas torres residenciais no centro da cidade. Contudo, esta forte identidade de um centro de cidade vivo é importante para eles. O querer fazer parte dessa identidade é um factor de relevo. As áreas perto do centro são hoje consideradas igualmente atraentes já que o centro da cidade, incluindo a zona ribeirinha, se tem vindo a desenvolver com êxito. Mas os critérios permanecem exigentes. O alojamento deve situar-se a não mais de cinco minutos do centro em bicicleta, numa zona onde viva uma massa crítica de habitantes do mesmo “grupo” e com uma identidade que possa ainda ser considerada tipicamente de Roterdão. Como resultado, apenas os típicos bairros do século dezanove à volta do centro 8 são verdadeiramente populares. O processo de “gentrificação” que está numa fase bastante avançada nesta zona significa que a área da qual a cidade se pode orgulhar cresceu consideravelmente. Para além disso, o número de bairros realmente problemáticos diminuiu, tornando possível uma política focalizada. O investimento numa frente ribeirinha de qualidade, em Roterdão, significa um investimento num verdadeiro íman, porque sabemos que não é possível conseguir “mais Roterdão” do que isto. Roterdão deve ser o tal íman com o qual todos se possam identificar, mas que pode igualmente ser usado a qualquer hora do dia para lazer e entretenimento. Não é por acaso que Roterdão é a cidade escolhida para a realização do festival dos portos e de muitos mais eventos, desde o Carnaval de Verão à maratona. A cidade do futuro será cada vez mais um local “24 horas”. O horário de trabalho é cada vez mais flexível e as pessoas querem ter a possibilidade de poder comer, beber ou sair a qualquer hora. Nenhuma cidade pode ser encarada seriamente se não possuir bibliotecas famosas, museus e teatros; mas os equipamentos públicos onde todos se possam divertir no dia a dia estão a ganhar cada vez maior importância. Roterdão deve grande parte da sua fama, por exemplo, à sua cultura jovem desinibida, com discotecas como a Now & Wow. A frente ribeirinha desempenha aqui um papel-chave, porque é a prova clara de que nos encontramos numa cidade portuária internacional. * Director do Departamento de Ambiente do Município de Roterdão Fontes: Martin Aarts, Ben Maandag: Acelerar Roterdão, stad in versnelling (1) Richard Sennet: Respeito (2) Richard Florida: A ascensão da classe criativa (3) Peter Hall: Cidades na civilização (4) PATRIMÓNIO O Cabo Espichel Erguendo-se sobranceiro ao Oceano, sujeito às agruras das águas e dos ventos, o Cabo Espichel alberga o conjunto monumental do Santuário de Nossa Senhora da Pedra da Mua, considerado o mais importante do concelho de Sesimbra e ainda hoje destino de romaria anual. O conjunto arquitectónico inclui a Ermida da Memória e a Igreja Seiscentista de Nossa Senhora do Cabo, ladeada por uma fila de alojamentos para peregrinos – a Casa dos Círios, ou simplesmente Hospedarias -, que formam o Terreiro. Ao fundo pode avistar-se um cruzeiro; um pouco mais longe encontra-se a Casa da Água, que recebia a água trazida por aqueduto desde a Azóia, e possuía um poço e dois tanques para dar de beber aos animais. A Ermida para os mareantes remonta a 1410, ano em que foi descoberta na extremidade do Cabo Espichel a venerada imagem de Nossa Senhora do Cabo, por dois velhos da Caparica e de Alcabideche, que em sonhos coincidentes foram avisados por Deus. Diz a lenda que Nossa Senhora teria sido conduzida da praia até ao planalto por um animal designado por “Mua”, cujas pegadas ficaram gravadas nas rochas. Na realidade, o trilho que sobe da falésia faz parte de um importante conjunto de jazidas de icnofósseis, que incluem pegadas de dinossauros saurópodes. A Ermida da Memória, uma capela de planta quadrada coberta por cúpula boleada, tem o interior revestido por silhar de azulejos setecentistas, representando o milagre de Nossa Senhora do Cabo, a construção da igreja e das hospedarias. A igreja foi construída em 1701/1707 por iniciativa de D. Pedro II. A fachada principal é enquadrada por duas torres sineiras e rematada por um frontão triangular, decorado com volutas. Penetrando no templo através do guarda-ventos de madeira do Brasil, deparamo-nos com uma nave ampla, coberta por falsa abóbada de madeira pintada com a Assunção da Virgem, obra executada por Lourenço da Cunha. À volta da igreja foram crescendo modestas casas para receber os peregrinos, que, em 1715, deram lugar à construção das hospedarias com sobrados e lojas, também conhecidas como as casas dos círios. No entanto, só entre 1745 e 1760 foram ampliadas para as dimensões actuais. Numa lápide junto à porta da igreja pode mesmo ler-se: “Casas de N. Sra. de Cabo feitas por conta do Sírio dos Saloios no ano de 1757 p. acomodação dos mordomos que vierem dar bodo”. A cerca de 600 metros do santuário, ergue-se o farol do Cabo Espichel, uma torre hexagonal de grossas paredes de alvenaria. Data de 1790 e foi mandado construir na sequência de um alvará pombalino da Junta Geral da Fazenda, de 1758. No final do séc. XIX o corpo do edifício anexo à torre foi aumentado para ambos os lados. 9 CULTURA À BEIRA RIO Poetas do Tejo Manuela Fonseca * Poetas, muitos, entre a nossa gente: na vida, no trabalho tantas vezes duro, na esperança no porvir, na projecção de sonhos nos filhos, na transmissão de valores. Poetas à beira-mar e à beira-rio, construtores de sonhos nas acções, nas palavras feitas acções. Poetas, produtores de beleza e de sonhos, o Atlântico e o Tejo como testemunhas da criação. Mulheres, anos e anos a caminho de Lisboa, o lar na outra margem, as crianças no barco, o jardim-de-infância, a escola tão perto quanto possível do local de trabalho da progenitora. Mulheres ao lado das crianças, os trabalhos de casa feitos à pressa, livros no colo das mães, os conselhos e achegas destas, os lápis afiados, os cadernos, mais ou menos cuidados, o fim da viagem, curta e impertinente. Novo dia de labor, os meninos e as meninas longe de casa, das suas ruas e bairros; ficam tão perto quanto possível das mães, o encontro à tardinha, no fim das aulas, das oficinas escolares e dos trabalhos conotados (ainda) com a Mulher. Uma corrida até ao barco, a rotina desgastante que nem poupa os mais pequenos, já cansados pelos dias que podiam ser de (mais) brincadeira, outros passos até aos autocarros e mais tempo de ansiedade, não vá o próximo transporte estar cheio. Entre o nervosismo e o cansaço do passado e do futuro já ali, as mulheres e as crianças dormitam, no regresso, embaladas pela ondulação do Tejo, nem sempre amiga, afagadas pelo cansaço. Poetas que foram os meninos-alunos e as meninas-alunas de Maria Rosa Colaço, enquanto jovem professora primária, docente, pedagoga e artista da palavra que encontrei, há trinta e cinco anos, indirectamente, em Lisboa, num estabelecimento comercial feito livraria, através da quinta edição de A Criança e a Vida, monumento à infância, à educação, ao desenvolvimento proporcionado por esta, à língua feita criação. No Prefácio, a mestra, que descobrira a riqueza das palavras infantis na orla do rio dos que queriam tempos mais felizes, referia esses alunos sem privilégios: “Não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões-de-coisas… essenciais-ao-dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio.” 1 Meninos-alunos e meninas-alunas que, estimulados pela professora que acreditava na suas possibilidades, comunicacionais e estéticas, enquanto utentes das palavras, assim escreviam: “vou viajando num barco de morte vou andando sem andar não tenho passaporte não tenho luar” 2 (A dor – feita retórica – enfeitando a tristeza) 10 CULTURA “se me levassem nos braços para o céu com se fosse uma gaivota, essa era a minha melhor prenda de Natal.” 3 (A comparação do ser poético com a ave marinha, motivo de liberdade reinventado) Maria Rosa Colaço, criadora de sentimentos, cores, personagens e cenários, Maria Rosa Colaço, pioneira, o Tejo inspirador, arquitecta paciente de almas e palavras, as suas, as dos pupilos e pupilas, nadando contra a corrente política do situacionismo (cobarde) de então, na descober ta daquelas crianças. Obreira do imaginário das mesmas, em altura de ditadura – a que tinha os olhos e ouvidos sempre atentos a qualquer manifestação de liberdade, impedindo-a que chegasse ao País, às suas escolas e crianças. Liberdade ainda mais perigosa (para aqueles olhos e ouvidos doentes) se inventada pelos miúdos. Liberdade à beira-Tejo no imaginário construído por essas crianças, devido ao profissionalismo, atenção e coragem da Maria Rosa. O poema-feito-vida da professora Maria Rosa Colaço e dos pequenos e pequenas que fez desabrochar e que educou ligou-se ao imaginário. Como refere Postic: “Pelo imaginário a criança descobre laços entre si e o mundo, interioriza significações. O céu torna-se o infinito; a noite, o mistério.” 4 Foi um feito pedagógico notável porque ainda hoje, nas sociedades livres e democráticas, os processos de ensino / aprendizagem que promovem a imaginação têm escolhos no seu desenvolvimento, considerando de novo as palavras avisadas de Postic: “Na escola, a imaginação da criança é incessantemente retida, refreada pelas actividades que se lhe propõem. Quando ela é solicitada, permanece sob vigilância, tanto no domínio do texto quanto no das actividades principais.” 5 À BEIRA RIO Imaginámos, as crianças que fomos, os olhos habituados ao Tejo que nos moldou, na observação das fotografias de Mestre Augusto Cabrita que (também) o imortalizou, pontes físicas que melhor unissem as suas margens, não a esquerda e a direita mas margens, apenas. De progresso e fraternidade. Os políticos (também para isso os elegemos), os cientistas, os técnicos e os operários têm-nas materializado, também eles poetas com outra inspiração, fazedores de desejos tornados matéria, artífices de um desenvolvimento que nos junta na diversidade, olhando e vivendo um rio com riquezas novas. O Tejo, esta parte da nossa vida, não esquecerá a professoraquase-menina, aqui chegada há quase cinquenta anos, oriunda do Alentejo cujo aroma nos entranha com poejo e dignidade. Professora que, na invenção de mais afazeres para além do Tejo, o ligou a rios africanos que se cruzam com a nossa História, tirando, certamente, crianças da marginalidade e comungando com elas da riqueza maior, a da Língua Portuguesa. “Um grande abraço para todos. A fresca memória da Maria Rosa é a nossa, enquanto vivermos. Para quem é mortal esse é talvez o melhor dos futuros possíveis. Maio, 2006 - O António Joaquim de A Criança e a Vida” 6 * Cidadã do Barreiro. Professora de Língua Portuguesa e Literatura da Escola Superior de Educação de Setúbal 1. COLAÇO, Maria Rosa. A Criança e a Vida. 5.ª ed., ITAU, Lisboa, 1971, pp. 14-15. 2. Idem, p. 55. 3. Idem, p. 47. 4. Postic, MARCEL. O Imaginário na Relação Pedagógica. 1.ª ed., ASA, Col. Biblioteca Básica de Educação e Ensino (10), 1992, p. 22. 5. Idem, p. 28. 6. http://mariarosacolaco.blogspot.com 11 PATRIMÓNIO Gastronomia As Caldeiradas de Sesimbra Maria de Lurdes Modesto Falar de Sesimbra é evocar um mar muito azul e espelhado, peixe magnífico e o bulício que envolve os pescadores na sua faina e no ritual que envolve a confecção das suas caldeiradas. Se existe um prato nacional, eu não hesitaria em apontar a caldeirada. Faz-se em todo o litoral de Norte a Sul do País, mas também no interior, nas terras banhadas pelos rios onde ainda nada o peixe. É um prato que não se sujeita a regras fixas, nem na composição dos ingredientes, nem no modo de fazer. Só tem que haver peixe, porque onde há peixe há pescadores e caldeirada. A caldeirada dos pescadores de Sesimbra tem, contudo, as suas exigências, o que a torna diferente e inconfundível. Essa diferença está sobretudo na composição piscícola: é imprescindível a presença do tamboril, safio, caneja (pata-roxa), tremelga e ainda os fígados do tamboril, da caneja e da tremelga e, geralmente, sardinhas. Esta fórmula já pode variar para a que se faz em casa, em família, ou nos restaurantes. Nos últimos, a primeira camada tem que ser de amêijoas e as batatas cozidas à parte. Já nas famílias, a caldeirada começa pelo quase imprescindível refogado, a que chamaríamos a marca da cozinha nacional. Estas diferenças confirmam e, ao mesmo tempo, desmentem aquilo que foi tão descrito por Fialho de Almeida a propósito do “Prato Nacional”, designação para que eu elegi a caldeirada. “Uma composição rebelde à escrita dos manuais, característica, inconfundível, incapaz de se exprimir em quantidades de ingredientes, fracções de tempo, e acção rápida ou lenta do calor, da água, do gelo, do uso da peneira, do passador, da faca ou da colher.” A caldeirada faz-se em Sesimbra sempre que o peixe convida, mas há dois dias no ano em que é da praxe: no dia de S. Pedro, o padroeiro dos pescadores, e no dia 30 de Junho, dia de S. Marçal. Ninguém sabe o porquê desta devoção dos pescadores sesimbrenses a este santo. Nem tão pouco se sabe quem inventou esta caldeirada de que os homens do mar de Sesimbra fazem uma das de mais nomeada do País. Ainda a propósito do “prato nacional”, e em jeito de sobremesa, rematemos, a seu respeito, com mais algumas palavras de Fialho de Almeida: “É como o romanceiro nacional, ninguém o inventou e inventaram-no todos; vem-se ao mundo chorando por ele, e quando se deixa a pátria, lá longe, antes de pai e mãe, é a primeira coisa que lembra.” COMO FAZER UMA BOA CALDEIRADA PARA DEZ PESSOAS 7 kg de peixes, nos quais são obrigatórios: tamboril, safio, caneja (pata roxa), tremelga e 10 sardinhas; 4 kg de batatas; 2 kg de cebolas; 4 dentes de alho; 3 kg de tomate maduro; sal e pimenta; 1 ramo de salsa; 3 folhas de louro; 2,5 dl de azeite; 1 copo de vinho branco; piripiri (fac). Amanham-se os peixes, reservando os fígados. Lavam-se impecavelmente e cortam-se em bocados,com excepção das sardinhas que se amanham, mas ficam inteiras. Descascamse as batatas, as cebolas e os alhos, e cortam-se em rodelas. Lava-se e corta-se o tomate, também em rodelas. Num tacho grande e com o fundo espesso introduzem-se os peixes e os legumes em camadas alternadas. Reservam-se os fígados e as sardinhas. Cada camada de peixe é temperada com sal grosso, pimenta, piripiri, raminhos de salsa e bocados de louro. Estando tudo no tacho, rega-se com o azeite e leva-se ao lume, que deve ser brando. Quando as batatas estiverem quase cozidas, dispõem-se à superfície os fígados e as sardinhas em estrela. Salpicam-se com sal e regam-se com o vinho. Se for necessário, junta-se um pouco de água. Para servir, retiram-se os peixes e os legumes de baixo para cima, metendo a colher até ao fundo, cuidadosamente, para não os esmagar. Ao caldo que sobrar da caldeirada, juntam-se cotovelinhos e raminhos de hortelã e come-se como sopa, mas depois da caldeirada.