“MULHERES DO POTI” (GÊNERO, IDENTIDADE, MEMÓRIA: ARTE CERÂMICA ECONOMIA DA CULTURA) Lucas Coelho Pereira (Graduando em Ciências Sociais. Bolsista PIBIC/ CNPq), Maria Dione Carvalho de Moraes (Orientadora. Departamento de Ciências Sociais- UFPI). INTRODUÇÃO A coleção de bonecas de argila denominada “Mulheres do Poty”, produzida na Cooperativa de Artesanato do Poti Velho - Cooperart-Poty, do Pólo Cerâmico do bairro Poti Velho, zona norte de Teresina-PI, é tomada nesta pesquisa como texto cultural (GEERTZ, 1989; MORAES, 2011), como porta de entrada para o estudo de sociabilidades diversas. Nesta segunda etapa da pesquisa, mantivemos nossa atenção no processo de concepção e produção da referida coleção, com seus diálogos, tensões, e controvérsias entre saberes locais e técnico-científicos, tanto na rede sociotécnica do artesanato, quanto na intervenção urbanística da gestão municipal, na Zona Norte de Teresina, através do Programa Lagoas do Norte-PLN. Quais os efeitos produzidos por este actante? Que desdobramentos e sentidos podem ser percebidos paralelamente ao discurso do PLN de (re)vitalização e (re)urbanização de uma área tida como degradada sócio-ambientalmente? METODOLOGIA A pesquisa, de cunho etnográfico, empregou como aparato teórico-metodológico a Teoria Ator-Rede, com base em Bruno Latour e Steve Woolgar, analisando a tessitura da rede sociotécnica do artesanato cerâmico do Poti Velho (MORAES, 2013). Na rede, sujeitos humanos e não-humanos são tomados simetricamente, como actantes: tudo aquilo que age, deixa rastros, produz efeitos. Na tessitura da rede sociotécnica em questão, na qual se insere o artesanato das cerca de 30 ceramistas da Cooperart-Poty, há múltiplos actantes, Sem ignorar as relações de poder (LAW, 1992), percebemos a dinâmica assimétrica e não-linear entre os pólos técnico e social (FREIRE, 2006). Na pesquisa de campo, na observação direta/participante, realizamos anotações em diário de campo (OLIVEIRA, 2002); entrevistas (BOURDIEU, 1997) individuais e grupais, semi-estruturadas, e com tópicos-guia (GASKEL, 2003); conversas no cotidiano (SPINK, 2000);oficinas, e produção de imagens fotográficas (BITTENCOURT, 1998). Participamos, ainda, de reuniões, no bairro, sobre o PLN, com equipe técnica da prefeitura e moradore/as. RESULTADOS E DISCUSSÕES O bairro Poti Velho se caracteriza pelo ethos de comunidade pesqueira, oleira e ceramista. Os inícios do artesanato cerâmico no local são demarcados na década de 1960, pela referência a Raimundo Camburão, apelido de Raimundo Nonato da Paz – ceramista maranhense, de acordo com alguns; piauiense, segundo outros – que se iniciou no fazer cerâmico em Rosário-MA. Esta genealogia aponta para as relações de gênero características da atividade ceramista potiense: a modelagem/moldagem de artefatos cerâmicos sempre fora de domínio do masculino; às mulheres, cabia transportar as peças e organizá-las para a venda, depois de pintá-las, se necessário. Poucas dominavam técnicas de moldagem/modelagem da argila. Mas a partir de final de 1990, as mulheres apropriam-se, gradativamente, de técnicas e saberes relativos à cerâmica, através de cursos profissionalizantes oferecidos pelo Programa de Apoio ao Trabalho Informal-PETI, pelo Programa de Artesanato do Piauí-Prodart, pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial-Senai, pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas–Sebrae e pela Prefeitura Municipal de Teresina-PMT, via Fundação Wall Ferraz (SERAINE, 2009). Em 2006, as artesãs criam a Cooperart-Poty e, em 2007, lançam a premiada coleção “Mulheres do Poti”, composta por cinco bonecas em cerâmica, representando: a mulher religiosa, a mulher oleira, a mulher do pescador, a mulher das continhas, e a mulher ceramista. São imagens prenhes de sentidos e significados das dimensões sincrônica e diacrônica da vida destas artesãs. No processo de concepção/realização da coleção, dirigido pela arquiteta Indira Matos, contratada pelo Sebrae, controvérsias vêm à tona, no diálogo entre saberes técnico-científicos da arquiteta/designer com saberes locais das ceramistas. As ceramistas discutem e reelaboram sugestões da arquiteta e, como sujeitos históricos concretos, participam de processos de negociação de sentidos e identidades. As bonecas da coleção, por decisão inicial da arquiteta, não teriam rostos, posicionamento alterado graças às negociações das artesãs, envolvendo, inclusive, mediadores externos, como aliados. A multiplicidade de atores, humanos e não humanos, que o fazer cerâmico na cooperativa envolve, aponta para a rede sociotécnica (MORAES, 2013) na qual o próprio barro é um actante. Ele é extraído e distribuído para as cooperadas através de mão-de-obra masculina, a qual também atua na feitura, à base de torno, do bojo das bonecas. Mas a extração de argila no Poti Velho sofreria alterações a partir de 2010, com o início da execução do PLN: a retirada do barro passou a ser proibida para a atividade oleira. Como a extração para fins artesanais foi considerada ambientalmente menos impactante, esta continuou permitida, porém, com prazo marcado. A extração mineral é avaliada pelo PLN como predatória e geradora, no Poti e em seu entorno, de acentuada degradação sócio-ambiental. O objetivo declarado do PLN é (re)vitalizar, (re)urbanizar a Zona Norte da cidade, sobretudo na área de concentração das lagoas, atuando em três frentes: 1/ Requalificação urbana e ambiental; 2/ Desenvolvimento Econômico e Social; 3/ Modernização da Gestão Municipal (PREFEITURA MUNICIPAL DE TERESINA, 2011). Pogramado para intervir em treze bairros da zona norte de Teresina, o PLN prevê medidas atenuantes para as pessoas afetadas pelo projeto. No caso de oleiros, idenização em dinheiro e capacitação para outras atividades. As ceramistas vêem vantagens e desvantagens no processo. Com a consolidação do Programa, estuda-se a possibilidade de se buscar argila em outro local, o que traz questões sobre encarecimento dos produtos e sobre a ruptura de vínculos identitários no artesanato potiense, nascido do seu solo. E se no PLN (2011) fala-se em compensação das perdas de cunho econômico e social, não há referências às perdas culturais do bairro, de um modo de vida, ou à atividade ceramista (MORAES e PEREIRA, 2012; MORAES, 2013). Parte significativa da fundamentação do PLN é a dimensão ambiental. Reconhecendo a importância desta dimensão, vemos o fenômeno, ainda, pelo ângulo do processo de gentrificação (NOBRE, 2003; MORAES, 2013), neologismo que refere o movimento pelo qual pessoas das classes médias (gentry) ocupam áreas operárias, modificando-lhes o caráter (NOBRE, 2003) e o valor imobiliário, acarretando controle/expulsão de setores de classes populares, e mudanças em estilos de vida e de consumo (FRÚGOLI Jr. e SKALIR, 2009). CONCLUSÂO Constatamos que o artesanato produzido na Cooperart-Poty envolve uma série de atores humanos e não humanos. Neste contexto, diálogos e controvérsias permeiam o fazer ceramista das artesãs da Cooperart-Poty. Atualmente, um novo actante na tessitura de rede é o PLN que, pautado em discursos de (re)vitalização e (re)urbanização da região Norte da cidade, tanto põe em cheque a retirada de argila para a produção do artesanato local quanto aponta para a emergência de um processo de gentrificação no Poti Velho. Algumas medidas administrativas foram tomadas, todavia, mesmo se compensam do ponto de vista material, nem sempre abrangem dimensões simbólicas (identidades, memórias, bens culturais), que se incorporam, pela experiência, a outros bens culturais, como as próprias peças cerâmicas. Palavras-chave: Artesanato. Gênero. Gentrificação. REFERÊNCIAS BITTENCOURT, L. A. Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica na pesquisa antropológica. In: Desafios da Imagem. Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais, Campinas: Papirus, 1998, 197-211p. BOURDIEU, P. Compreender. In:------. (coord.) A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2007, pp.155170. FREIRE, L. L. Tecendo as redes do Programa Favela-Bairro em Acari. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: http://www.ifcs.ufrj.br/~lemetro/pesquisadores/Leticia%20de%20Luna%20Freire/mestrado.pdf Acesso em 5/out/2012. GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, pp13-41. FRUGOLI JR, H.; SKLAIR, J.O bairro da Luz em São Paulo: questões antropológicas sobre o fenômeno da gentrification. Cuad. Antropol. Soc. Buenos Aires, n. 30, dez. 2009 . Disponível em <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S185075X2009000200007&lng=pt&nrm=iso> . Acesso em 05/abri/2013. LAW, J. Notes on the Theory of the Actor- Network: Ordering, Strategy, and Heterogeneity. System Practice, vol. 5, nº 4, 1992. MORAES, M. D. C. Artesanato cerâmico no bairro Poti Velho em Teresina- PI: (rede sociotécnica, agenda pública, empreendedorismo e economia criativa). Monografia de conclusão de curso. (Curso de Formação de Gestores Culturais dos Estados do Nordeste). Universidade Federal Rural de Pernambuco/ Fundação Joaquim Nabuco/ Ministério da Cultura. Recife: UFRPE/ FUNDAJ/ MEC, 2013. MORAES, M. D. C. de. “Mulheres do Poty” (Gênero, identidade, memória: arte cerâmica e economia da cultura). Projeto de Pesquisa, Teresina, 2011. MORAES, M. D. C.; PEREIRA, L C. Poti Velho: espaços, tempos, e itinerários de uma comunidade pesqueira e oleira em Teresina-PI. Encontro Estadual de História, de 02 a 04 de maio de 2012,Universidade Federal do Piauí, Teresina, 14 p. NOBRE, E. A. C. Intervenções urbanas em Salvador: turismo e “gentrificação” no processo de renovação urbana do Pelourinho, 11 p. ANAIS... X Encontro Nacional da Anpur. Belo Horizonte: ANPUR, 2003. OLIVEIRA, R. C. Viagem ao território Terêna. Os diários e suas margens. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, pp.23-5 PREFEITURA MUNICIPAL DE TERESINA. Projeto de reassentamento econômico e social dos oleiros do Poti Velho. Teresina, 2011, 24 p. SERAINE, A. B. M. Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009. SPINK, M. J (org.) Práticas discursivas e produção de sentido no cotidiano São Paulo: Cortez Editora, 2000.