Bobby Peru
Alexandre Monteiro
Bobby Peru
Alexandre Monteiro
Alexandre Monteiro | Bobby Peru
Encosta sul do Foho Bubulau
20 de Setembro de 2000
Escorreram horas antes que o primeiro-tenente se decidisse a abrir
o cabrão do pacote. Há muito que as mãos não lhe obedeciam,
tolhidas de medo, paralisadas pelo receio do que quer que fosse que
estivesse dentro daquele embrulho de papel pardo, cheio de coisas
que bimbalhavam no seu interior.
Lá fora, o calor espesso da noite acacimbada acobertava o resto da
patrulha, vultos negros por entre a selva molhada, as M16 à mão
de semear, os urros dos bichos muito ao longe, um quadro vindo do
fundo dos tempos, como se ainda houvesse a loucura da raça e o
lastro da história, unidos pela voz que um dia ciciara a preto e branco
para Angola, rapidamente e em força.
Finalmente desperta, a mão do primeiro-tenente animou-se.
Lentamente, como se despisse um corpo adormecido, desatou um
a um os nós de sisal. À luz amodorrada do petromax, deixou cair
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na mesa um anel de ouro fino, três fotografias e uma folha branca
maculada pela tinta azul onde se desenhava, entre outras de caligrafia
fina, a palavra adeus.
O primeiro-tenente ficou suspenso uma eternidade, amarrotando
inconscientemente o pacote, abrindo sulcos na superfície engordurada
do papel almaço, descolando aqui e ali as fiadas de selos descoloridos
por uma multitude de carimbos e caracteres nos mais diversos alfabetos.
Seis meses levara o pacote a chegar-lhe às mãos, desde que alguém
na Ribeira das Naus achara ser o seu conteúdo urgente o suficiente
para que a regra não escrita que dizia “incontactável” pudesse ser
quebrada. Primeiro de avião, de Portugal para a Tailândia. Depois
para Singapura, por mão própria, de onde foi mais tarde expedido
para Lombok e daí para as suas mãos, escalando pequenas angras,
de ilha em ilha, a bordo de um velho perahu de pesca, desembarcando
de noite, subindo colinas e depois montanhas, por entre a vegetação
tropical, até atingir a cumeeira onde se encontravam agora, um
espinhaço de rocha vulcânica acobertado por um espesso manto
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verde envolto numa camada de ar podre e sufocante.
O primeiro-tenente sabia, sem precisar de olhar para o relógio, que
o dia não tardaria a nascer. Meses de selva tinham-no transformado
numa parte orgânica da floresta, uma árvore trepadeira em busca
do sol, um animal discreto e fugidio, sincronizado com as monções
e os estios daquela parte do mundo, em tudo igual aos outros que
caminhavam na sua companhia, por entre sendas e fragas, armas
aperradas e músculos tensos, no perigoso jogo do gato e do rato
em que se tornara a sua vida no último ano. Com a biqueira da bota,
escavou a terra empapada e deitou cuidadosamente lá dentro o
anel, a carta que rasgara suavemente em quatro e as três fotografias
de uma mulher com um rio ao fundo. Depois tapou e calcou tudo.
Saiu, esticou as pernas, trocou olhares com as duas sentinelas e
voltou para o abrigo, maquinalmente desmontando a tela e a rede
camuflada.
Atrás de si, a patrulha ia acordando em silêncio, os mais despertos
soprando as brasas das latas que serviam de fogareiro, acendendo
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nelas um cigarro que passariam depois, de boca em boca, até que
o café fervesse finalmente. Em vinte minutos, o grupo estava pronto
para a jornada, o peso bruto do morteiro de 120 mm dividido por três e
a fechar a linha de marcha. Em surdina, o primeiro-tenente deu ordem
de avançar e a coleante fila de homens deslizou silenciosamente
montanha abaixo, sob um charivari de aves alvorotadas pelo raiar do
Sol, já então uma bola de fogo carmim a dissipar a espessa bruma
da manhã.
A toda a volta, o verde-esmeralda afogava passos e sons, tolhendo
os pés, enleando os braços, sufocando as respirações nos habituais
trinta e quatro graus de temperatura ambiente para cem por cento
de humidade relativa. Havia água por todo o lado – nas botas, nas
meias, nas armas. Água, sempre água, gotículas de condensação
que se reuniam em pequenos rios que formavam grande torrentes,
escorrendo pelos cabelos, pelo pescoço abaixo, peito afora, homens
adentro, a caminho da terra, em simpatia com a chuva que não parava
de cair, miudinha.
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Sempre a chuva, pensava o primeiro-tenente, se não era a chuva,
era o calor, se não era o calor era a humidade que amolecia homens
e animais, que comia o aço e minava a pedra, sempre qualquer
coisa de excessivo, de incomodativo, a negar qualquer fantasia de
conforto, de normalidade.
À frente, Vicente, a catana pendurada dolentemente do pulso direito.
Atrás de Vicente, Eurico, dois palmos de gente de onde sobressaía,
pontiagudo, o tapa-fogo da MG, por entre uma confusão de alforges
e cartucheiras. Finalmente, aquele que fora o homem do rádio até o
dito ter dado o berro algures entre Manututo e Lebolau, Domingos,
que agora se voltava para trás e perguntava
– ne’e dook ka lae?
Sem se deter, o primeiro-tenente respondeu-lhe:
– não é muito longe. Bainrua, depois de amanhã.
Do verde da mata cerrada levantavam-se pássaros garridos à sua
passagem, crocitando, grasnando, piando em todas as direcções
tal como muitos anos antes se tinham levantado à sua passagem
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as perdizes que ele e o pai haveriam depois de chumbar, algures
entre as penedias do Marvão e Castelo de Vide, anos antes que um
dia, depois de um curso de História e um breve período de fastio, se
descobrisse na mesma cavalgada heróica daqueles homens a quem
o País pede que vertam sangue por ele, numa hemorragia de séculos
que vem desde o cerco de Lisboa até às bolandas da Guiné-Bissau.
A Pátria Honrai, que a Pátria não só vos contempla como também
vos dá com gosto aquilo que a Marinha dera ao primeiro-tenente em
87: esforço, lodo, frio de rachar, palhaçada homoerótica
– sua amélia, seu paneleiro do caralho, mexa-me esse cu, faça de
conta que tem uma piça lá dentro, sua amélia do caralho!
humidade e exercício físico. Até porque todo e qualquer pretexto
servia para exercitar os bíceps
– o sol vai nascer, suas amélias do caralho, cem flexões!
os glúteos
– vinte segundos atrasado, sua amélia. cem cangurus para toda a
gente!
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e os gémeos
– foda-se, caralho, que bando de amélias que vocês me saíram!
dêem-me já cem pulos de galo!
e a malta toda a desunhar-se para acertar o passo nos exercícios
de ordem unida, a memorizar as mnemónicas para os toques de
ombro-arma
– eh-pá-põe-me-essa-merda-no-ombro... já!
e para o apresentar-arma
– ena-cumcaralho... já!
tudo meros ensaios para o verdadeiro terror que era o Passeio dos
Alegres das quartas-feiras, os altifalantes a debitar roufenhamente
marchas marciais, que quase que poderia jurar nazis, o almirante
a bater com o pingalim ao som da muito provável Flieg, deutsche
Fahne, flieg, os pés trocados a pedir tantos pulos de galo e tantos
cangurus quanto os necessários para deixar uma companhia inteira
de baixa médica durante quinze dias.
Belos e heróicos tempos esses, em que as amélias procuravam
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transfigurar-se em homens empedernidos, exemplares tesos das
personagens do Jean Lartéguy, homens capazes de desmontar uma
G3 no escuro
– esta G3 é a sua namorada, sua amélia, vai dormir com ela, comer
com ela, vai cagar com ela!
a testosterona a comer-se às colheradas, a virilidade a medir-se pelo
número de flexões que se fazia, a masculinidade a medir-se pela
quantidade de álcool que se emborcava sem que se caísse para o
lado ou se vomitasse as botas ao oficial de dia. Belos tempos esses.
Lisboa
21 de Setembro de 1998
Conhecia-a dos congressos de História. Quando calhara um no
Porto, acabaram, não sabia como, no Capa Negra, a beber tulipas
umas atrás das outras até às tantas da matina.
Dessa noite com a jovem assistente universitária ficara-lhe a
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recordação de uma indefinível frescura, de uma proximidade com
aroma a maçãs verdes e de uma corrida louca até à Foz a bordo de
um espaventoso Porsche Boxster, oferta do pai, industrial da fiação.
Atolado num lamaçal de cadeiras por fazer e de trabalhos por concluir,
o aroma a maçãs verdes rapidamente se esfumara da memória para
só se reactivar quase um ano depois, altura em que a Sónia teve de
ir investigar ao Arquivo Histórico Ultramarino cobrando o jantar de
francesinhas e tulipas com uma ida à Portugália
– e calha mesmo bem porque o meu hotel é logo ali na Almirante Reis
duas portas abaixo da loja do Antunes. Ora, o Antunes era o gajo
que melhor arranjava máquinas fotográficas destrambelhadas, nas
quais se incluía a Nikon FM2 com que o primeiro-tenente atravessara
a recta final da adolescência e a restante idade adulta, enquanto
lia a Photo e aprendia a revelar rolos em casa. Assim sendo, e de
caminho, passava-se pelo Antunes
– para levantar a máquina, que já ando com saudades de bater uns
bonecos
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e a Sónia interessada, que bonecos, mostra lá, se eu soubesse
antes que tu fazias fotos dessas, nunca ninguém me tira fotos de
jeito, fico sempre com os olhos tortos, ou com o pescoço à banda,
é aqui a loja, é esta a máquina? E tens rolo lá dentro? Então não é
tarde nem é cedo, sobes já aqui comigo e tiras-me umas fotos aqui
à janela, e eis que sem dar por isso o primeiro-tenente se acha no
quarto da Sónia, uma história qualquer de um evento internacional
a decorrer em Lisboa, ginecologistas ou optometristas ou lá o que
era, deixara-a sem grandes opções em termos de alojamento – e o
melhor que conseguira fora isto.
E isto, já se sabe, era aquele quarto. O primeiro-tenente olha em volta
– a mobília, no seu anonimato desolador, gritava histórias de efémero,
de passageiros desirmanados, de encontros desencontrados. A
cortina em plástico do poliban esgrimia flores desbotadas a fazer
pendant com o tapete de borracha manchada, as ventosas já
esgaçadas definitivamente divorciadas do fundo em esmalte rachado
da banheira. A topografia acidentada do sofá, às riscas, num padrão
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que nem nos anos 70 fora moda. O nórdico pelintra. A terrina de
faiança multicolor, com andorinhas e vidrado craquelet. Os cortinados
destilando as manchas de esperma do tempo precoce. A alcatifa
puída, as cadeiras forradas a napa branco-sujo. E uma janela.
O primeiro-tenente, que nem sempre concordava com o Pinkhassov
quanto às janelas, apreciava esta com entusiasmo. Era larga e
luminosa e deixava entrar uma grande parte da Baixa, e do rio lá
ao fundo, acomodando com desafogo a silhueta da Sónia que se
chimpava agora com garridice no peitoril e que perguntava
– que tal assim? – enquanto se debruçava para trás, felina.
E o primeiro-tenente, que ia murmurando vagos sons de aquiescência,
enquanto se afadigava de volta da máquina, subitamente arisca nas
suas permutações possíveis de obturador e diafragma, ia igualmente
rememorando o checklist do bom retratista, enquanto pensava que
até era vaga e estranhamente excitante estar ali, naquele quarto, e
duas, três exposições, já está, vamos à quarta, gira a moça, tem uns
olhos expressivos e sabe procurar a melhor pose, o modo como se
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inclina realça-lhe o peito, debruça-se sobre ela, detém-se ora num
pormenor dos ombros, ora na moldura do cabelo por sobre o rosto,
vai já quase a meio do rolo, sabe que já bateu uma ou duas boas, e
ela que pergunta
– quais?
Numa em que estás com um sorriso esfíngico (Jesus, que clichet!) a
bailar-te nos lábios, a franja a tapar-te os olhos; noutra, em que és só
céu e mulher num contraluz de janela, o tecido fino a trair-te, e ela,
– se te incomoda, eu tiro.
E tira. E o primeiro-tenente respira fundo, finge que é tudo
perfeitamente natural. Mexe nos botões, aqui e ali, sopra no skylight,
leva a máquina à cara. Foca, faltam catorze exposições
– sai da janela, deita-te na cama, estica os braços, reclina-te, olha
para a câmara, inclina o pescoço, vira-te mais para aqui,
as instruções profissionais, ela estica-se, inteira, novamente felina,
recorda o fotógrafo a última regra que lhe ensinaram – correr riscos
compensa – e diz-lhe
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– tira tudo.
E ela tira tudo, não era já muito, o calor emana dela em ondas de
reverberação, a máquina fotográfica é agora o seu escudo, a sua
máscara, o assobio para o lado que disfarça o verdadeiro elefante
na loja de porcelana que é o corpo nu, dela, a centímetros do dele,
vestido, faltam cinco fotos. Deita-se no chão, faz um contra-picado,
esconde a erecção que lhe devora a perna direita, sente nitidamente
a humidade que alastra pelo tecido das calças.
Três. Põe-se de joelhos na cama, por entre as pernas dela, foca-a,
surge nítido e cristalino o seu sexo glabro, a latejar, impante, vem-lhe
à memória, vinda não se sabe de onde, uma frase idiota
– the little man in the boat, wallowing in the crimson sea
Duas. Pousa a câmara, desce a boca devagar, o corpo uma sarça
ardente, tem certamente os olhos fechados, prova-a, ela soergue as
ancas, as mãos dela engalfinham-se-lhe no cabelo, puxam-no ainda
mais ao seu encontro e uma, acaba-se-lhe o rolo, o corpo dela dali
em diante como um fio de prumo, suspenso sobre a profusão das
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águas, a pele a escurecer-se de prazer quando ele, efémero, habita
nela, fêmea plena a transbordar de cio e prazer, sem saber, sem
adivinhar, que anos depois lhe haveria de escrever adeus a meio
mundo de distância daquele quarto de pensão da Almirante Reis.
A caminho de Maubisse
21 de Setembro de 2000
O homem que assim corre desalmadamente chama-se Aboebakar.
Restam-lhe poucos minutos de vida e ele sabe-o. Sabe que foi
avistado, que nesse preciso momento outros homens acorrem,
abandoando-se para a matança.
Aboebakar corre, corre sempre, corre até que, espantado, olha para
a ponta de metal que de repente lhe cresceu por entre a arca do peito.
Ainda surpreso, dá mais dois passos em frente. O ferro desaparecelhe do corpo. Acorrilhado, a passada repentinamente cerceada,
Aboebakar estaca. À sua volta, vários homens desembocam à entrada
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do caminho. Um raio de sol faz rebrilhar as pontas das baionetas em
riste, lançando reflexos gaiatos nas faces silenciosas.
Está a morrer, Aboebakar. Fraqueja, ajoelha-se. Um dos ferros tocalhe no ventre e desce um pouco mais. Os homens entreolham-se.
Um deles, o branco, diz algo, numa língua estranha, volta as costas
e vai-se embora. Enquanto um lhe abre a boca, os outros sacam das
facas de mato e começam a cortar, lá em baixo.
Maubisse
22 de Setembro de 2000
Primeiro morreram as crianças. Atiraram-nas das janelas da igreja e
caíram do céu como folhas no Outono, imensas – anos mais tarde,
uma televisão australiana haveria de cobrir a efeméride, algures entre
a passagem do genérico e os fait-divers de final de alinhamento.
Depois foram os homens. As mulheres demoraram mais a morrer.
Pelo menos as mais novas. Como esta, que o primeiro-tenente
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descobriu já na periferia da aldeia, quando um avião a jacto, de
passageiros que não estavam nem ali, passava solitário lá no alto,
um risco prateado a rasgar silencioso o céu violeta do anoitecer, as
palavras do Brian Eno a martelar-lhe na cabeça
– one by one, all the stars appear, as the great winds of the planet
spiral in, spinning away, like the night sky at Arles
e os horrores da terra cá em baixo, tão longe do Reno de van Gogh,
a martelar-lhe os sentidos. Primeiro que tudo, o cheiro. Um pivete
medonho, um cheiro nauseabundo a corpos mal lavados, a merda,
a ranço, a bedum. Depois, os olhos habituaram-se. Divisou então
a forma inerte, moribunda, da mulher. Estava amarrada à cama
infecta, em cruz, um resto de vómito ao canto da boca, quase que
tapada por uma sombra escura e fardada, que lhe resfolegava em
cima, a lâmina curva e romba do sexo a trespassá-la em crescendo,
um ricto de prazer animal a descobrir-lhe os dentes podres, numa
imagem escarrapachada do Bobby Peru, no Wild at Heart, pensou
o primeiro-tenente, espantado com os seus próprios pensamentos,
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tão estúpidos quanto inapropriados.
No silêncio da noite, saltou-lhe em cima e esganou-o. Depois, levou
a mão ao cinto e só então constatou, surpreso, que o que tomara em
mãos era pouco menos que homem e pouco mais que bicho: era um
besouro que se retorcia e agonizava, a baioneta cravada nele, como
se esta fosse um anzol ferrugento a serpentear por ele acima, em
ziguezague, a procurar-lhe a alma, em busca de redenção, os dentes
podres a rasgar os próprios lábios, os dentes podres a rangerem uns
nos outros nas vascas da morte e sempre a mesma frase estúpida e
descabida a martelá-lo lá dentro, por dentro, Bobby Peru don’t come
up for air.
Lisboa
Setembro de 2003
A Cláudia entrara na mesma carruagem que ele, em Marvão – o
que não era de admirar tendo em conta que o comboio era apenas
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máquina e carruagem. Na altura, sobrecarregado com a parafernália
toda do montanhismo, o primeiro-tenente nem olhara bem para ela.
Se lho perguntassem, admitiria que fora só por alturas da Torre das
Vargens que teriam cruzado olhares. Não porque a carruagem fosse
grande ou porque estivesse cheia mas apenas porque, basicamente,
Cláudia era uma miúda. Uma miúda gira, de cabelos compridos e
lisos, olhos a atirar para o verde e amendoados – mas miúda. Tudo
nela gritava miúda – o rosto, jovem demais para a idade (18 anos,
viria a saber mais tarde), a calça largueirona em baixo e justa em
cima, a cintura descaída a mostrar o umbigo, os ténis surrados, um
prego espetado numa orelha e uma mochila da McKinley.
Contas feitas, foi a mochila que tramou o primeiro-tenente. Afinal,
nem toda a gente anda com uma mochila McKinley, coisa que se
justificou quando fizeram o transbordo em Abrantes e ela se ofereceu
para o ajudar a levar a tralha com um
– também faço escalada.
Irmanados no conhecimento mútuo da serra de São Mamede,
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mataram a viagem e os inúmeros apeadeiros a confabular sobre vias,
desníveis e cordadas – mais tarde haveria de constatar contérrito
que, para além da escalada, não tinham absolutamente nada em
comum; nem a linguagem, nem os livros que liam, nem o código do
vestuário, nem um grupo musical que se visse – ele fossilizara nos
Doors e, ela era mais Coldplay e Pearl Jam.
Trocaram contactos e despediram-se em Santa Apolónia. Passada
uma semana, recebeu um mail simpático, com duas ou três
amabilidades, a que respondeu com outras duas ou três palavras
inócuas, relembrando-a de que um dia haveria de a contactar para
saber coisas em concreto sobre uma determinada via da Serra Fria.
Uma coisa levou a outra e os mails sucederam-se. Em dois meses
ficou a saber da vida de Cláudia de dentro para fora e de fora para
dentro. Não que houvesse muito que saber: caloira de Economia
em Lisboa, os pais e uma irmã mais nova no interior profundo, os
infrequentes amores da juventude e pouco mais.
Aos quatro meses a coisa evoluiu de tal modo que o primeiro-tenente,
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o último dos herdeiros do Sturm und Drang, acabou por ceder ao misto
de adoração, gargalhada fácil, fascínio e sedução núbil e desajeitada
que de Cláudia irradiavam como se fossem as sereias de Ulisses.
Lisboa
20 de Setembro de 2012
Dissera-lhe mais tarde que viera a correr do aeroporto até à sua casa
e que enquanto durara a corrida viera com o coração nas mãos.
Já não a via há anos, e agora, que lhe abria a porta, era ela e não era
ela – o mesmo cabelo comprido, agora platinado, os mesmos olhos
esverdeados, a pele branca, aveludada como pericarpo de pêssego,
os ouros, uma leve sugestão de um qualquer perfume pesado, de
Inverno, o tailleur cinza, de Carnaby Street, de aspecto profissional,
caro, a voz, anormalmente tremida
– olá – a mesma voz das intermináveis conversas telefónicas de há
um ano, iniciadas com o singelo
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Alexandre Monteiro | Bobby Peru
– olha, a minha irmã entrou na Universidade aí, importas-te de a
orientar e de lhe servir de cicerone enquanto ela arranja casa e se
instala? – primeiro com o intuito de saber novas da caloira, e depois
prosseguidas apenas porque ela dizia,
– gosto tanto de ouvir a tua voz –, e tanto fazia ser de dia ou de noite,
as evasivas perante o marido, a justificação da viagem, a depilação
na Nara Health and Beauty, a ida ao cabeleireiro, a compra do bilhete,
o embarque sob a morrinha, o marido, o filho, a sogra, os quatro a
despedir-se, o miúdo em prantos, ela de aperto no coração a viagem
toda, a ficar molhada quando o comandante avisou
– senhores passageiros, iniciamos neste momento a descida para
Lisboa, é favor apertarem os vossos cintos, recolher os tabuleiros e
endireitar as costas das cadeiras
o coração nas mãos, a adejar, a latejar-lhe ritmadamente no meio
das coxas, as pernas fechadas, com força, o táxi que parava,
o primeiro-tenente que lhe abria a porta, que a deixava entrar, o
primeiro-tenente que lhe dizia, olá, de volta, que lhe fechava a porta
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Bobby Peru | Alexandre Monteiro
nas costas e que a encostava à parede, o primeiro-tenente que lhe
dizia, já te contei esta história, lembras-te, como no Wild at Heart,
quando o Willem Dafoe que faz de Bobby Peru encosta a Laura Dern
à parede, e ela, alta, um mulherão, sozinha, com ele no quarto.
O marido lá longe e ela ali, sozinha, mais o filho da puta do Bobby
Peru, ela, de combinação transparente, uma malha fina e curta por
onde se avista um mamilo claro, róseo, ele de dentes podres, a
lançar perdigotos para o ar, lapuz, boçal, javardo, a encurralá-la, e
ela, sozinha, encurralada, já te contei esta história, não contei? E
nós, a ver tudo, nós que adivinhamos mais do que vemos a mão
dele a encaixar-se nela, nós que suspeitamos a sua mão por sobre
a concha do sexo, nós que sabemos da força, da pressão inusitada
que a mão dele exerce no macio do sexo dela, a querermos que
a fina rede da combinação da Laura Dern esteja molhada, nós a
querermos que os dedos ásperos dele se movimentem dentro dela,
nós a querermos que os dedos dele, que os dedos nossos, a abram
como a um fruto maduro
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Alexandre Monteiro | Bobby Peru
– like a Christmas presente
E primeiro-tenente ali, no seu próprio filme, a evocar outras vezes
em que sentira os seus dedos assim, as texturas, a humidade
permissiva, elas de olhos fechados, assustadas como coelhos
defronte de faróis dopplerianos, e o primeiro-tenente a querer dizer-lhe
coisas sussurradas, noutros termos, mas com o mesmo tom, com as
mesmas palavras
– I sure do like a woman with nice tits like yours, who talks tough and
looks like she can fuck like a bunny.
Mas o primeiro-tenente não era o Bobby Peru. Ficou apenas calado,
a senti-la, e ela parada, imóvel, de pernas abertas, a senti-lo senti-la
– can you fuck like that? – a vê-lo levar os seus dedos à boca dela,
a dá-la a provar-se a si própria
– you like it like a bunny? – a deixar-se conduzir até ao quarto dele,
até à janela que ela sabe que dá para o mar
– ‘cause if you do, baby, I’ll fuck you good, like a big old jack-rabbit,
jump all around that hole!
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Bobby Peru | Alexandre Monteiro
Anoitece lá fora, e o primeiro-tenente continua calado, aprendeu a
gerir as expectativas na tropa, a lidar com a pressão, anos e anos
de praxes violentas, de treino de fuga e evasão, o corpo moído
à pancada, os truques dos sargentos-mores que noutras eras
geológicas fizeram a guerra de África, por entre os rios da Guiné
e pacaças esventradas à granada, o primeiro-tenente aprendeu
quase tudo com eles, o primeiro-tenente é teso, o primeiro-tenente
é um duro, o primeiro-tenente matou e viu morrer
– Bobby Peru don’t come up for air!,
mas o primeiro-tenente continua mudo, e ela continua expectante, e
ele reclina-se, e fecha os olhos, e ela aproxima-se, reclina-se com ele,
beija-lhe o pescoço, e ele deixa, e a sua mão procura-o lá em baixo,
atrapalha-se com os botões como sempre se atrapalhou, liberta-o,
continua a beijá-lo, e com a outra mão desaperta-lhe a camisa e
continua, com a mão, mais rápido e lesta e lépida, deixa de o beijar,
olha para o que a sua mão lhe faz, cada vez mais rápido, o sexo
estupendamente entumecido, como um Deus primitivo, que se limita a
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estar ali, entre os dois, e não se fala mais disso, e olham os dois agora
para aquilo que a sua mão esquerda faz e o primeiro-tenente olha com
olhos de ver, na mão esquerda uma aliança em ouro e um anel de
noivado, uma pedra a devolver uma fracção da claridade recebida,
num movimento cada vez mais tremido, num crescendo de velocidade
e o primeiro-tenente decide vir-se, ali e agora, e controla-se tão bem,
a intensidade, a força, anos e anos de prática masturbatória e de fodas
superlativas a serem finalmente valorizados, e vem-se em silêncio,
e ela abranda agora, segura-o com quatro dedos e acaricia-o com o
polegar, e é então que ele vê como escorre ao longo dos seus dedos
e como recobre a sua aliança – de casada – como a conspurca, o
marido lá longe e ela, ali – sozinha – com ele.
E não aguenta mais, e o desejo explode-lhe outra vez no ventre,
como se fosse um fruto fermentado, que se foda a contenção e a
guerra de África e levanta-se e ordena-lhe:
– Vira-te. Bobby Peru don’t come up for air.
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Cabo da Roca
22 de Setembro de 2012
Era um céu de fogo – a imagem gasta, batida, mas era a que lhe vinha
à cabeça sempre que levantava os olhos da estrada e observava o
mar, ao longe, à esquerda, por entre as rochas e as penedias – era
um céu de fogo e um mar de cinzas e uma estrada à beira-mar e ele
era a estrada, era o pedal do acelerador, era cada encontrão rápido
nos quilómetros que o carro engolia debaixo de si, nervoso, suicida,
na estrada, em direcção ao céu, ao mar, ao fogo.
Era a estrada, era o mar, era o céu de fogo, era o carro na vertigem
da velocidade, era a curva, a curva, a trajectória no céu, no mar, no
fogo, o fogo no mar, o mar era um céu de fogo, spinning away up on
a hill, as the day dissolves.
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Alexandre Monteiro
ILUSTRAÇÃO
NUNO RODRIGUES | WHO
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