UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
POLÍTICAS DE IMIGRAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS PRÁTICAS
BRASILEIRAS E FRANCESAS
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Joana Beatriz de Lima Sifuentes
Santa Maria, RS, Brasil
2014
POLÍTICAS DE IMIGRAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS PRÁTICAS BRASILEIRAS E
FRANCESAS
Joana Beatriz de Lima Sifuentes
Monografia realizada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel
em Relações Internacionais pelo curso de Relações Internacionais, da
Universidade Federal de Santa Maria.
Orientadora: Profª Drª Giuliana Redin
Santa Maria, RS, Brasil
2014
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Curso de Relações Internacionais
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Monografia
Políticas de Imigração: Uma Análise das Práticas Brasileiras e Francesa
elaborado por
Joana Beatriz de Lima Sifuentes
como requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Relações Internacionais
COMISSÃO EXAMINADORA
Giuliana Redin, Drª.
(Presidente/Orientadora)
(UFSM)
José Renato Ferraz da Silveira, Dr.
(UFSM)
Danielle Jacon Ayres Pinto, Me.
(UFSM)
Santa Maria, 04 de dezembro de 2014.
Aos meus pais, Roberto e Lina, e a cidade de Santa Maria e as
oportunidades aqui me oferecidas.
Clandestino
Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Para burlar la ley
Perdido en el corazón
De la grande Babylon
Me dicen el clandestino
Por no llevar papel
Pa' una ciudad del norte
Yo me fui a trabajar
Mi vida la dejé
Entre Ceuta y Gibraltar
Soy una raya en el mar
Fantasma en la ciudad
Mi vida va prohibida
Dice la autoridad
Mano Negra clandestina
Peruano clandestino
Africano clandestino
Marijuana ilegal
Argelino clandestino
Nigeriano clandestino
Boliviano clandestino
Manu Negra ilegal
(Manu Chao)
RESUMO
Trabalho de Conclusão de Curso
Curso de Relações Internacionais
Universidade Federal de Santa Maria
POLÍTICAS DE IMIGRAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS PRÁTICAS BRASILEIRAS E
FRANCESAS
AUTORA: JOANA BEATRIZ DE LIMA SIFUENTES
ORIENTADORA: GIULIANA REDIN
Santa Maria, 04 de dezembro de 2014.
As migrações internacionais fazem parte da realidade de todos os Estados no sistema
internacional, porém os mesmos diferem na maneira que abordam a questão migratória em
suas práticas internas. O enfoque desse trabalho é desvelar de que maneira a politização da
construção dessas políticas em torno de conceitos como a securitização estatal e direitos
humanos são abordados no Brasil e na França. Através da análise dos marcos normativos
nacionais e internacionais de ambos os países, da realidade em que a população migratória
esta inserida e das perspectivas e debates atuais sobre a questão, procura-se responder se
há um avanço nas políticas dos dois países condizentes com as perspectivas dos direitos
humanos. Conclui-se que no Brasil a cidadania sul-americana, em construção a partir do
Acordo de Residência do Mercosul, tem características que podem vir a ser fundadas no
paradigma da mobilidade, assim como, o Anteprojeto de lei que representa um avanço no
tratamento dos imigrantes no Brasil, condizente com os direitos humanos, caso venha a ser
aprovado. Na França, a partir da última década nota-se um recrudescimento nas políticas
migratórias, especialmente no que tange a questão de reunificação familiar, como também,
no âmbito internacional a regulamentação da Diretiva do Retorno, que na prática criminaliza
o ato de migrar.
Palavras-chave: Brasil, França, Políticas de imigração, Direitos humanos, integração.
ABSTRACT
Monograph
International Relations
Universidade Federal de Santa Maria
IMMIGRATION POLICIES: AN ANALYSIS OF BRAZILIAN AND FRENCH
PRACTICES
AUTHOR: JOANA BEATRIZ DE LIMA SIFUENTES
TEACHER: GIULIANA REDIN
Santa Maria, December 4rd, 2014.
International migration is part of the reality of all states in the international system, however
these states differ in the way they approach the migration issue in their internal practices.
The focus of this work is to reveal how the politicization of the construction of these policies
around concepts such as state security and human rights are dealt in Brazil and France.
Through the analysis of national and international legal frameworks of both countries, the
reality in which the migratory population is inserted, and the prospects and current debates
on the issue, the work aims to respond if there is an improvement in the policies of the two
countries consistent with the outlook of human rights. We conclude that in Brazil the South
American citizenship, under construction from the Mercosur Residence Agreement, has
features that may be based in the mobility paradigm as well as the Draft Law which
represents a breakthrough in the treatment of immigrants in Brazil, consistent with human
rights, should it be approved. In France, from the last decade there is an upsurge in
migration policies, especially regarding the issue of family reunification, as well as at the
international level the regulation of the Return Directive, which effectively criminalizes the
act of migrating.
Keywords: Brazil, France, Immigration Policies, Humans Right.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 9
1. SEGURANÇA NACIONAL, DIREITOS HUMANOS E MIGRAÇÕES ........................................................13
1.1 Soberania e direitos humanos no sistema internacional ..........................................................13
1.2 Migrações internacionais: uma questão de securitização estatal ou de direitos humanos? ......20
1.3 Imigrações, cidadania e nacionalidade.....................................................................................25
2. MIGRAÇÕES NO BRASIL: UMA NOVA POLÍTICA BASEADA NOS DIREITOS HUMANOS? ....................30
2.1 Marco jurídico nacional ...........................................................................................................32
2.1.1
Constituição de 1988 .................................................................................................32
2.1.2
Lei nº 6.815, de 1980 .................................................................................................32
2.2 Marco jurídico internacional ....................................................................................................34
2.3 Realidade migratória brasileira ................................................................................................37
2.3.1
Casos Emblemáticos: Imigrantes bolivianos e haitianos ..............................................40
2.4 Perspectivas e debates atuais sobre a questão migratória .......................................................43
3. POLITÍCAS MIGRATÓRIAS FRANCESAS: DA SÍNTESE REPUBLICANA A DIRETIVA DO RETORNO ........47
3.1 Marco normativo nacional.......................................................................................................50
3.2 Marco normativo internacional ...............................................................................................54
3.3 Realidade migratória francesa .................................................................................................59
CONCLUSÃO .....................................................................................................................................61
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................65
9
INTRODUÇÃO
A migração foi parte essencial do processo de formação da maioria dos Estados
no sistema internacional. A sua importância histórica remota desde os tempos das
grandes migrações e da dispersão do homo sapiens, passando pelo período de
colonialismo, que embasou a dominação de povos na América, Ásia e África desde o
século XVI até meados do século XX, inclusive o processo de industrialização do século
XVIII, que só foi possível diante da grande disponibilidade de mão de obra vinda do
campo.
Os movimentos migracionais, dessa maneira, não constituem uma prática de
exceção. No entanto, a partir das comunidades políticas que chamamos de Estadonação, ao qual a prática da migração internacional vincula-se inevitavelmente, através
do cruzamento das fronteiras políticas dos mesmos, o ato de migrar passou a ser
condicionado ao interesse dos Estados-nações, e não mais em uma prática recorrente
na história da humanidade. O que revela por si só o caráter excludente do Estado já
em sua origem (BARALDI, 2014).
Uma vez dentro do Estado-nação e da cidadania nacional, as políticas
migratórias enfatizam o nacionalismo e o “direito” estatal, condicionado por sua
soberania, de excluir os migrantes indesejados. Para os migrantes que entram de
forma autorizada, além da exigência da obtenção desta, aplicam-se exigências de
integração à comunidade nacional, pois a diferença hierarquiza e não é vista com bons
olhos. Para aqueles que por ventura não obtêm tal autorização, resta a criminalização
ou o favor das anistias.
Atualmente estima-se que 50 milhões de pessoas vivam e trabalhem em países
estrangeiros com o status de “irregular”. Ainda que frequentemente paguem impostos
e desempenhem um papel econômico importante aos países de destino, podem não
ter acesso a serviços básicos, correndo também o constante risco de ser deportado. No
entanto, é importante destacar que entre a população que se desloca atravessando
fronteiras nacionais, pouco mais de um terço mudaram-se de um país em
10
desenvolvimento para um país desenvolvido – menos de 70 milhões de pessoas. A
maioria dos mais de 200 milhões de migrantes internacionais do mundo mudou-se de
um país em desenvolvimento para outro, ou entre países desenvolvidos 1.
De acordo com Sayad (1998) o imigrante é tido como uma força de trabalho no
país receptor, uma força de trabalho essencialmente provisória, que tem seus direitos
garantidos enquanto parte da rede do chamado “mercado de trabalho para
imigrantes”. No entanto, o que acontece quando tal rede é desfeita?
O nosso mundo é muito desigual. As enormes diferenças existentes em termos
de desenvolvimento humano, entre e dentro de cada país, levam a um grande número
de pessoas de países em desenvolvimento a saírem de seus Estados de origem, no que
pode ser a melhor, senão a única, opção para melhorar as suas oportunidades de vida.
Quando as pessoas se deslocam embarcam em uma viagem de esperanças e
incertezas. A grande maioria da população migrante parte em busca de melhores
oportunidades, com o intuito de aliar os seus próprios talentos, através da sua força de
trabalho, com os recursos disponíveis nos países de destino. Quando bem sucedidos a
sua iniciativa beneficia aqueles que foram deixados para trás, em seu país de origem,
assim como, a sociedade na qual se inseriram como força de trabalho.
No entanto, em momentos de crise econômica nos países receptores, a rede,
que Sayad (1998), definiu como “mercado de trabalho para migrantes” é desfeita.
Períodos de recessão tornam os migrantes particularmente vulneráveis. E alguns
governos dos países de destino intensificam a aplicação de leis de migração sob formas
que podem até mesmo infringir os direitos humanos básicos dos migrantes 2. Isso
muitas vezes ocorre com o aval de boa parte da população, motivada pela crise
econômica, por uma ameaça de terrorismo e narcotráfico, ou simplesmente pela
xenofobia, a pressionar o governo para fechar as portas à imigração.
A magnitude dos fluxos internacionais, sobretudo os ilegais, é constantemente
usada como evidência da falência dos Estados, incapazes de controlar suas fronteiras
diante de uma economia globalizada e da autonomia que adquirem as redes sociais de
1
2
PNUD – Relatório de Desenvolvimento Humano 2009
Ver Diretiva de Retorno página 58
11
imigrantes. Este debate vai de encontro com o argumento cada vez mais presente na
teoria das relações internacionais, de que o Estado não seria mais o único ator
relevante no sistema internacional, ao perder parte de sua importância, e até mesmo
soberania para regimes e organizações multilaterais. (REIS, 2007).
No que tange ao caso específico das migrações internacionais, a sua dinâmica
estaria sendo bastante afetada pelo fortalecimento de um regime internacional de
direitos humanos, o qual cada vez mais impõe limites externos à faculdade estatal de
escolher qual a melhor política a adotar em relação à imigração e aos migrantes. Dessa
maneira, com a crescente legitimidade do discurso de direitos humanos das últimas
décadas, nenhum governo quer associar a sua imagem à violação dos direitos
humanos. (REIS, 2007). No entanto, paralelamente ao fortalecimento do discurso dos
direitos por parte dos organismos internacionais, difundiu-se a ideia de que a
imigração e os imigrantes põem em risco a segurança e a integridade dos Estados, e
que seriam, portanto um problema de segurança.
Não é de se estranhar, em vista disso, que nas últimas eleições para o
Parlamento Europeu em maio de 2014, constatou-se um grande crescimento da
extrema direita, que obteve 26% dos votos referentes à bancada francesa do
Parlamento Europeu. Historicamente quando partidos de direita estão no poder
políticas migratórias restritivas são adotadas, as quais, muitas vezes, limitam não
apenas a entrada de novos imigrantes, como também os direitos daqueles que já
migraram. A volta da extrema direita coincide com um período de crise econômica em
diversos países da Europa, onde várias das redes citadas por Sayad foram desfeitas, e a
questão dos trabalhadores imigrantes e o seu papel na sociedade está em destaque,
sendo muitas vezes associado a problemas de ordem econômica ou de segurança
nacional e terrorismo.
Sendo assim, o objetivo do presente trabalho é analisar de que maneira a
questão migratória, através da construção das políticas de migração e de
nacionalidade, são abordados pelo Brasil e França. Procura-se responder ao
questionamento se as práticas adotadas por estes países condizem com um discurso
de proteção ao migrante e de direitos humanos ou se são práticas de securitização e
12
que criminalizam a migração. A escolha destes países se dá pelo fato de serem, a nível
regional, importantes países receptores de imigrantes. Como também, por
apresentarem realidades migratórias bem distintas e que ajudam a elucidar, de
maneira complementar, importantes debates sobre a questão migratória.
Dessa maneira, no primeiro capítulo é realizado um mapa do debate com as
questões mais importantes referentes às políticas migratórias. Como a questão dos
direitos humanos e sua relação com a soberania estatal, a argumentação em torno de
uma política migratória alinhada com medidas de segurança estatal ou de direitos
humanos, e, por fim, temas recorrentes as migrações, como o direito a cidadania e a
nacionalidade.
No segundo e no terceiro capítulo analisa-se, a partir dos conceitos
apresentados na primeira sessão, de que maneira os governos brasileiros e franceses
tratam a questão migratória. Após uma pequena contextualização histórica, são
examinadas quais as políticas normativas no âmbito jurídico nacional e internacional
dos respectivos países que dizem respeito à migração. A partir de então, é realizado
um mapeamento da maneira que essas políticas migratórias afetam a realidade da
população migrante destes países, para então considerar quais são as perspectivas
futuras e os debates acerca da questão migratória neste países.
13
1. SEGURANÇA NACIONAL, DIREITOS HUMANOS E MIGRAÇÕES
A questão migratória no ambiente internacional relaciona-se com diversos
temas de política internacional. Desta maneira, nesse primeiro capítulo é feito uma
introdução da maneira como essa questão, a partir de um tema referente aos direitos
humanos, se insere nos questionamentos acerca da soberania no sistema
internacional. Destaca-se também, a dualidade do debate sobre a migração se tratar
de um assunto referente à segurança estatal ou ao direito humano de migrar. Por fim,
são apresentados temas correntes que complementam o debate sobre a questão
migratória, como o direito a cidadania e nacionalidade.
1.1 Soberania e direitos humanos no sistema internacional
As relações internacionais têm como base e origem as relações entre Estados.
Na essência dessa relação está o conceito de soberania, que Bodin 3, no século XVI,
definia em função das seguintes características: absoluta, perpétua, indivisível,
inalienável, imprescindível. Nesse momento, e na posterior concepção do Estado
Westfaliano, tratava-se do monopólio estatal da produção e da aplicação do direito.
Para Lafer (1995) o objetivo do conceito de soberania era consolidar a territorialidade
do Estado moderno, apenas a liberdade e a capacidade de governar limitariam
efetivamente o poder do soberano em seu território. A soberania foi o resultado
histórico da Reforma Protestante e da Guerra dos Trintas Anos, ao centralizar a
administração monárquica, do protecionismo econômico e do cisma religioso na
Europa.
3
Jurídico francês do século XVI, teve uma importante contribuição para que o absolutismo ganhasse
justificativas intelectuais. Defendia a soberania como indivisível e não aceitava uma forma de governo
pautada na ausência desta. (SOUSA, 2008).
14
Segundo Dias “o Estado moderno traz em si os traços do que reconhecemos
como soberania desde sua origem” (2007, p.18). Já no período pré-Westfaliano, os
Estados soberanos, em especial o Estado Francês, se mostravam mais fechado em sua
postura quando comparados com os demais sistemas políticos da época, como as
Cidades-Estados ou a Liga Hanseática 4, sua formação era baseado no reforço do
caráter centralizador e unitário. O surgimento do Estado Westfaliano foi suscitado por
uma série de movimentos e transformações, entre elas se destacam a Reforma
Protestante, responsável pelo desencadeamento de diversos conflitos no início do
século XVII.
De acordo com Marvin Perry (2002), a Reforma Protestante iniciada por
Martinho Lutero (1483-1546) contra a autoridade da Igreja Católica, fragmentou, em
menos de uma década, a unidade religiosa da cristandade. Iniciada em 1517, a reforma
dominou a história da Europa ao longo de grande parte do século XVI. A Igreja Católica
era a única instituição europeia que transcendia as fronteiras geográficas, étnicas,
linguísticas e nacionais.
Tais características iam de encontro com o objetivo de
ampliação do poder dos reis.
Os centros urbanos, com seus leigos sofisticados,
cresciam em número e tamanho, dessa maneira as pessoas passaram a questionar a
autoridade da Igreja internacional e seu clero. Por fim, a reforma contribuiu para a
formação da modernidade, ao dividir a cristandade entre católica e protestante
destruiu a unidade religiosa da Europa e enfraqueceu a Igreja, principal instituição da
sociedade medieval. Ao fortalecer o poder dos monarcas em detrimento dos órgãos
religiosos, a Reforma estimulou o crescimento do Estado moderno, secular e
centralizado.
Ainda como consequência da Reforma Protestante, ocorreu a Guerra dos Trinta
Anos (1618-1648), que contrapôs católicos e protestantes. A paz de Westfalia
representou o fim deste conflito e teve como resultado prático o reconhecimento
mútuo, ou múltiplo já que várias partes integraram os tratados Westfalianos, da
soberania como elemento basilar da estrutura estatal. Os acordos também instituíam
4
Aliança de cidades mercantis entre o século XIII e XVII que mantinha o monopólio comercial sobre
quase todo norte da Europa e Báltico.
15
um novo princípio, o da não intervenção em assuntos internos de outros Estados
(DIAS, 2007).
Sendo assim, com a quebra da relação entre Estado e Igreja, no campo da
Ciência Política, surge uma nova corrente teórica, os contratualistas. De acordo com
esses pensadores, dos quais irei destacar Hobbes, a legitimidade do governo tem como
base o consentimento daqueles que serão governados, ou seja, em troca de algumas
garantias os cidadãos concediam seu poder unitário ao soberano, que exerceria o
comando do Estado.
O ponto de vista externo ao território do Estado, ou seja, do sistema
internacional, encarado por Hobbes, é o ponto de exemplo por excelência do estado
de natureza, que segundo o teórico era de anomia e do estado da guerra de todos
contra todos. O homem é o lobo do próprio homem, e os Estados, no sistema
internacional, também. Dessa maneira, a política internacional seria a política do
poder, caracterizados por dois atores – o diplomata e o soldado, que são os
representantes da soberania (LAFER, 1995).
No entanto, é necessário destacar que existem outros modelos clássicos de
convivência internacional distintos do realismo tradicional que deriva da tradição de
Hobbes. Inclusive em vista do atual estágio das relações internacionais, os modelos
propostos por Grócio e Kant podem se adequar melhor a realidade contemporânea.
Na interpretação de Celso Lafer (1995) Grócio realça que a sociedade internacional
tem um potencial de solidariedade e sociabilidade, não sendo assim um estado
anárquico. A política internacional não é um jogo de soma zero e é possível a criação
de instituições jurídicas e de um direito internacional que pode ser provado
racionalmente e comprovado na prática. Os desdobramentos contemporâneos da
visão grociana são basicamente a ideia da interdependência e do funcionalismo, que
limitam o alcance da soberania por força da construtiva reciprocidade de interesses
comuns.
Outro modelo clássico de convivência internacional é o de Kant, que nas
palavras de Lafer “procura transcender o subjetivismo das soberanias e dos seus
interesses, introduzindo a razão abrangente do ponto de vista da humanidade e do
16
indivíduo como fim e não meio, tendo como horizonte a possibilidade de uma paz
perpétua” (1995, p.3). Já os desdobramentos contemporâneos da visão de Kant seriam
os chamados “temas globais” cuja primeira afirmação jurídica é o artigo 11 do Pacto da
Sociedade das Nações. Tal artigo postula a indivisibilidade da paz, explicitando que a
guerra ou ameaça de guerra diz respeito não apenas às partes diretamente envolvidas,
mas a toda sociedade internacional.
Estes três modelos de convivência internacional foram elaborados levando em
conta a estrutura de uma sociedade interestatal como concebida na paz de Westifalia
de 1648 e do direito internacional que tinha por objetivo regular uma sociedade
internacional que, à época, era constituída de poucos membros. Porém, está lógica já
não é mais compatível com a realidade atual, no caso de Hobbes, que comporta, em
tese, a noção de soberania absoluta e igual para todas as nações, o que não se
comprova na prática. Outro fator importante é a impossibilidade de isolamento, que
vem levando à interdependência dos Estados e ao trasnacionalismo dos atores da vida
mundial – transnacionalismo que não se reflete apenas dos mercados e dos agentes
econômicos, mas também aos meios de comunicação, a opinião pública, as
organizações não-governamentais e as pessoas (LAFER, 1995).
Dessa maneira, em seu livro Introdução às relações Internacionais, os autores
Jackson e Sorensen (2007) colocam a questão da soberania como uma “nova questão”
das relações internacionais. Segundo eles, há um número cada vez maior de
pesquisadores que consideram a visão realista de soberania, na qual os governos
soberanos possuem o direito de controlar seu próprio território e de ser
independentes de outros países, ultrapassada. Os desafios à soberania emergem
continuamente oriundos de frentes variadas. Seriam as forças de mercados globais
que atravessam as fronteiras com mais facilidade e afetam as economias nacionais de
forma sem precedentes; as preocupações ecológicas; sistemas de comunicação global;
armas nucleares; terrorismo; comércio de drogas; alguns exemplos de forças que
ignoram limites territoriais e questionam antigas noções de Estados soberanos
autônomos com total controle de suas terras (CAMILLERI e FALK, 1992 apud JACKSON
e SORENSES, 2007).
17
Um segundo ponto de desafio à soberania na atualidade, ponto central deste
tópico, é o desenvolvimento de normas sobre a proteção dos direitos humanos, que
seriam vistos, por alguns teóricos, como infrações à soberania, pois desafiam o
principio da não intervenção – como o direito dos Estados de governar seus cidadãos
sem a interferência externa. Inclusive, Jackson & Sorensen destacam a postura de
vários secretários-gerais da ONU que defendem um distanciamento da norma de não
intervenção. É o caso de Javier Perez de Cuellar que em 1991 declarou que todas as
nações têm a responsabilidade de cumprir os requisitos de direitos humanos e de
democracia da Carta da ONU, ou estariam sujeitos a uma intervenção das Nações
Unidas. Em 1992, Boutros Boutros-Ghali afirmou que “a época da soberania absoluta e
exclusiva....passou. Sua teoria nunca foi compatível com a realidade” (HELMAN e
RATNER, 1992 apud JACKSON e SORENSEN, 2007).
Kofi Annan em um artigo para o The Economist5 em 1999 escreveu:
Soberania estatal- em sua forma básica, tem sido redefinida – sobretudo pelas
forças da globalização e cooperação internacional. Estados são agora
amplamente entendidos como instrumento a serviço do seu povo, e não viceversa. Ao mesmo tempo soberania individual - na qual me refiro à liberdade
fundamental de cada indivíduo, assegurada na Carta das Nações Unidas e
subsequentes tratados internacionais – tem sido reforçada por uma
consciência renovada de direitos individuais, e a sua difusão. Hoje quando
lemos a carta, estamos mais do que nunca conscientes de que seu objetivo é
proteger os seres humanos individuais, não para proteger aqueles que
abusam deles. (tradução nossa; THE ECONOMIST, 1999).
É irrefutável que decretar o “fim da soberania” é uma ilusão, ela ainda
permanece uma instituição extremamente importante na política mundial, porém é
necessário um mútuo reconhecimento das soberanias, reconhecimento também da
soberania individual, as exigências de cooperação através das organizações
internacionais e o multilateralismo das normas de mútua cooperação. Com isso em
mente encaminho o trabalho à temática dos direitos humanos, sua relação com a
5
Do original: State sovereignty, in its most basic sense, is being redefined—not least by the forces of
globalisation and international co-operation. States are now widely understood to be instruments at the
service of their peoples, and not vice versa. At the same time individual sovereignty—by which I mean
the fundamental freedom of each individual, enshrined in the charter of the UN and subsequent
international treaties—has been enhanced by a renewed and spreading consciousness of individual
rights. When we read the charter today, we are more than ever conscious that its aim is to protect
individual human beings, not to protect those who abuse them.
18
soberania e o seu papel na contemporaneidade, na concepção kantiana de “temas
globais” que considera o indivíduo como fim e não meio da razão de Estado.
II
De acordo com Lafer, “os direitos humanos, no plano jurídico, representam
uma inversão da figura deôntica, ou seja, significam uma passagem do dever do súdito
para o direito do cidadão” (1995, p.4).
Piovesan (2006), afirma que o Sistema
Internacional de direitos humanos é o maior legado da chamada “Era dos Direitos”,
que permitiu a internacionalização dos direitos humanos e a sua humanização. O
governo, dessa maneira, passa a ser para o indivíduo e não o indivíduo para o governo.
Bobbio (1988) realça que os direitos humanos não nascem todos de uma vez e
nem de uma vez por todas. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um
dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de
construção e reconstrução (1979, apud Piovesan 2006). Sendo assim, percebe-se que a
definição de direitos humanos tem múltiplos significados, dessa maneira destaca-se a
chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que foi introduzida com a
assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e reiterada pela
Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Na qual os direitos passam a ser
concebidos como uma unidade interdependente e indivisível.
Tais declarações são frutos do movimento de internacionalização dos direitos
humanos, que surgiram a partir do pós-guerra, como uma resposta as atrocidades e
horrores cometidos durante o nazismo, o Estado foi o grande violador dos direitos
humanos na Era Hitler, já que condicionava a titularidade dos direitos, ou seja, a
condição de sujeitos de direitos, à pertinência de determinadas raças, no caso a ariana
(PIOVESAN, 2006).
Para Piovesan (2006), foi a partir deste cenário que se desenha o esforço de
reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a
ordem internacional contemporânea. E foi sobre este prisma que ocorreu a
emergência, de um lado, do sistema “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, e
do outro a nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e
19
valores. Tais direitos estão ligados ao modelo Kantiano, de acordo com Lafer (1995),
uma vez que é de uma razão abrangente da humanidade, tendo como horizonte a
preocupação com a “paz perpétua”.
No âmbito do Direito Internacional, Piovesan afirma que:
começa a ser delineado o sistema normativo internacional de proteção aos
direitos humanos. É como se se projetasse a vertente de um
constitucionalismo global, vocacionado a proteger direitos fundamentais e
limitar o poder do Estado, mediante a criação de um aparato internacional
de proteção de direitos. (PIOVESAN, 2006, p.7)
Já no âmbito do Direito Constitucional ocidental, “percebe-se a elaboração de
textos constitucionais abertos a princípios, dotado de elevada carga axiológica, com
destaque ao valor da dignidade humana.” (PIOVESAN, 2006, p.7).
A partir disso nota-se a primazia da dignidade humana, como paradigma e
referencial ético, o superprincípio que orienta o constitucionalismo contemporâneo,
nas esferas local, regional e global, dotando-lhes especial racionalidade, unidade e
sentido (PIOVESAN, 2006).
Dessa maneira se consolida a ideia de que a proteção dos direitos humanos não
é reduzida ao domínio do Estado, já que revela tema de legítimo interesse
internacional. Por sua vez, Piovesan elenca duas consequências dessa concepção
inovadora:
1ª) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que
passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são
admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos
humanos; isto é, transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania
centrada no Estado para uma concepção “kantiana” de soberania centrada
na cidadania universal;
2 ª) a cristalização da ideia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos
na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito. (PIOVESAN, 2006,
p.8)
No entanto, é necessário destacar os desafios que ainda regem uma política
internacional baseada em direitos humanos. O primeiro desafio se concentra no
debate entre o universalismo e o relativismo cultural, em que seria baseada essa
política internacional? Em conceitos universais que decorrem da dignidade humana
universal, criadas, sobretudo a partir de uma vertente ocidentalizada, ou através de
20
políticas relativistas, ligada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral
vigente em determinada sociedade. Como congregar em uma política comum Estados
tão culturalmente distintos, sem interferir em suas culturas e práticas tradicionais. A
este problema, se soma a questão da anarquia do sistema internacional, de que
maneira a efetivação destes direitos, ainda que se chegue a um consenso, seria
cumprida se não há no campo internacional uma organização supranacional com meio
coercivos que possa garantir o cumprimento destes deveres? São desafios, ainda sem
respostas, que permeiam a efetivação de um direito internacional a partir dos direitos
humanos.
Por fim, conclui-se com as palavras de Celso Lafer “os direitos humanos são e
devem ser um tema legítimo da agenda internacional, que não pode ser excluído com
base na alegação de ferir o princípio da não-intervenção, por estar na esfera de
domínio reservado da soberania do estado” ( 1995, p.9). Ou seja, por mais complexo e
cheio de desafios, ainda é um tema de relevância no sistema internacional, que
merece ser discutido e aprimorado, em um caminho de constante evolução. Dessa
maneira, seguindo as bases da soberania estatal e dos direitos humanos nas relações
internacionais contemporâneas, este trabalho entra em seu tema central: migração.
1.2 Migrações internacionais: uma questão de securitização estatal ou de direitos
humanos?
Em seu livro, Security: a new framework for analysis (1998), Buzan afirma que a
segurança já não pode ser considerada somente estatal, mas que é expandida para
outros setores como o militar, político, societal, econômico e ambiental. A segurança
nacional, que por excelência busca pela sobrevivência, acarreta na expansão militar
visando conservar a soberania- território, povo, instituições frente aos demais. No
entanto, o legítimo interesse estatal de segurança, tem levado a securitização da
questão migratória. A outrora mão de obra imigrante tão útil aos países desenvolvidos
é substituída por um caráter ameaçador e vista sobre um ponto de vista político,
21
soberano, cuja principal forma de combate é a adoção de medidas restritivas e
unilaterais.
De acordo com Brancante e Reis (2009), a conexão entre migrações
internacionais e segurança tem desempenhado um papel cada vez mais importante na
vida política e social de diversos países, seja pela presença cada vez mais frequente em
disputas eleitorais, pelos tipos de reformas nas políticas migratórias de importantes
países receptores, como pela tendência, a exemplo da União Europeia, de se lidar com
a questão da imigração no mesmo grupo de trabalho que discute ameaça transacional,
ou, ainda mais, a aprovação da Diretiva do Retorno 6, em Julho de 2008 pelo
parlamento europeu, que reforça, por meio de mecanismos coercivos, o viés
criminalista no tratamento dos imigrantes ilegais.
Segundo Weiner, em sua obra The Global Migration Crises, a migração pode ser
percebida como uma ameaça por governos tanto de populações migrantes quanto de
governos de populações receptoras, porém, o que constituiria uma ameaça é uma
questão de percepção. Dessa maneira, qualquer tentativa de classificar os tipos de
ameaça levanta a questão, ameaças a quem? Ou a distinção entre ameaças ‘reais’ e
ameaças ‘vistas como tal’, até mesmo a noções paranoicas de ameaça ou ansiedade
em massa, melhor descritas como xenofóbicas e racistas. Tais noções extremas são
elementos na reação de governos à imigração e refugiados. Sendo assim, é preciso
encontrar uma postura analítica que, por um lado, não descarte os medos e, por outro,
não considere todas as ansiedades quanto à imigração e aos refugiados justificativas
para a exclusão (WEINER, 1993).
Weiner também elenca, e desmistifica, as razões pelas quais Estados e seus
cidadãos relacionam imigrantes e refugiados a potenciais ameaças. Na sua concepção
algumas explicações aparentes da questão são de utilização limitada, como por
exemplo: a) capacidade de absorção econômica, um país com pouco desemprego, alta
demanda por trabalho, e recursos financeiros para promover habitação e serviços
sociais requeridos pelos imigrantes deveriam tratar a imigração como benéfica, ao
passo que um país com dimensões inversas a essas apresentadas, trataria a imigração
6
Ver página 58
22
como economicamente e socialmente desestabilizantes, a partir dessa visão, é de se
esperar que um país como o Japão acolhesse imigrantes e um país como Israel os
rejeitasse, quando na realidade o caso é oposto; b) outra plausível, no entanto
insatisfatória explicação é o volume de imigração, um país que enfrenta um influxo em
larga escala deve se sentir mais ameaçado do que um país que enfrenta um pequeno
afluxo de imigrantes, o que não se comprova ao analisar o recebimento de refugiados
por países da África em relação a países europeus; c) Por fim, Weiner elenca o que
seria uma explicação mais plausível sobre o desejo de aceitar ou rejeitar imigrantes:
afinidade étnica. O governo e seus cidadãos são mais prováveis a receber aqueles que
compartilham da mesma linguagem, etnia e religião. Ainda que, nas palavras de
Wainer “o que constitui afinidade étnica é, de novo, construção social que pode mudar
no decorrer do tempo....Quem é ou não é ‘um de nós’ é historicamente variável. Para
muitos protestantes americanos do século XIX, Judeus e Católicos não eram ‘um de
nós’, e hoje, para muitos Europeus, Muçulmanos não são ‘um de nós’.”.
Por fim, como simplificado por Weiner nessa passagem:
economia importa, é claro. Um país disposto a aceitar os imigrantes quando
sua economia está crescendo pode ser mais inclinados a fechar suas portas
em uma recessão. Mas a economia não explicam muitas das diferenças
entre os países, nem explica os critérios que os países utilizam para decidir
se um determinado grupo de imigrantes ou refugiados é considerado como
aceitável ou ameaçador. A magnitude do fluxo pode importar, mas,
novamente, depende de quem está à porta. (tradução nossa; WEINER,
1995, p. 136).7
Buzan, autor da Escola de Copenhague, afirma que “é intelectualmente e
politicamente perigoso simplesmente se acrescentar a palavra segurança a um
conjunto cada vez mais amplo de questões’’ (BUZAN, 1998 apud BRACANTE e REIS,
2009 p. 79)”. No entanto o próprio autor propõe uma chamada segurança societal, que
é definido como “a capacidade de uma sociedade em persistir em seu caráter essencial
sob mudanças de condições e possíveis ou atuais ameaças8” (tradução nossa, BUZAN
7
Do original: Economics does matter, of course. A country willing to accpet immigrants when its
economics is booming may be more inclined to close it doors in a recession. But economics does not
explain many of the diferences between countries, nor does it explain the criteria that countries employ
to decide whether a particular group of migrants or refugees is regarded as acceptable or threatening.
The magnitude of the flow may matter, but again, it depends on who is at the door.
8
Do original: the ability of a society to persist in its essential character under changing conditions and
possible or actual threats
23
et al ,1998 p. 74). Ou ainda “diz respeito à sustentabilidade, dentro de condições
aceitáveis de evolução, de padrões tradicionais de língua, cultura e identidade e
costumes religiosos e nacionais” (BUZAN, 1998 apud BRACANTE e REIS, 2009 p.81).
A segurança societal é entendida como uma atitude essencialmente defensiva.
Para Brancante e Reis (2009) se um número significativo dos membros da comunidade
receptora encarar a entrada do imigrante ou a crescente influência de outra cultura
como ameaça existencial, houve securitização. Bracante e Reis resumem o perigo e as
limitações dessa abordagem:
A diversidade cultural de um país não pode ser “solucionada” com políticas
públicas orientadas para a resolução de crises; antes, merece ser objeto de
iniciativas de longo prazo que não usem a lógica maniqueísta da segurança
(aliado vs. Inimigo), mas procurem resolver conflitos entre diferentes sem
entendê-los como ameaça indentitária ao resto da sociedade. Assumir a
proteção de uma identidade societal qualquer- considerando a realidade
multicultural da maioria dos Estados- provavelmente vai alimentar uma
espiral de percepções negativas entre comunidades. (BRACANTE E REIS,
2009, p.82)
Samuel Huntington, em sua famosa teoria sobre o Choque das Civilizações,
defende a ideia de que a cultura é hoje elemento fundamental na política mundial, e
que os grandes conflitos do futuro se darão em torno das linhas de fratura da
civilização. Por conseguinte, Huntington considera as migrações internacionais como
uma ameaça à segurança do Ocidente. “Uma continuada imigração substancial
provavelmente produzirá países divididos em comunidades cristã e muçulmana. Esse
resultado pode ser evitado caso governos e povos europeus estiverem dispostos a
arcar com o preço de se restringir esse tipo de imigração...”(HUNTINGTON, 1998, p.
255).
Nos últimos anos devido à ascensão do terrorismo na agenda dos estudos de
segurança, abordagens que enxergam a questão migratória sobre o viés da segurança
nacional, como as propostas por Huntington e Buzan, no sentindo de aumentar o
controle migratório, que é visto como parte do problema, têm sido feitas. No entanto,
as adoções de tais políticas de repressão constituem uma clara violação aos direitos
humanos, uma vez que criminalizam o indivíduo migrante em razão de uma suposta
ameaça ou na defesa da homogeneidade cultural, que hipoteticamente levaria a uma
maior estabilidade democrática. Dessa maneira, Bracante e Reis (2009) afirmam que
24
deve ocorrer uma politização da questão migratória, não uma securitização. A questão
da securitização deverá ser focada no que tange ao combate aos crimes transnacionais
e não na exclusão violenta do culturalmente diferente.
Jacqueline Bhabha, em seu artigo Reforming Immigration Policy (2005), relata o
aumento da utilização de empresas ilegais para realizar a imigração nos EUA, como
decorrência do aumento do controle das fronteiras, em especial após os
acontecimentos de 11 de setembro de 2011. Como resultado, a indústria de
assistência à imigração irregular ou não documentada move cerca de US $10 bilhões
por ano no mundo, especialmente pressionado pelas pressões contraditórias que
conduzem as políticas migratórias. Ou seja, a pressão pelo controle somada à
demanda por trabalhadores tem significado na prática, não uma diminuição dos níveis
de imigração, e sim, o aprofundamento da vulnerabilidade dos imigrantes ilegais, tanto
em termos do acesso ao território quanto das condições de trabalho. Nesse sentindo,
Bhabha escreve:
Mesmo para os governos, essas políticas anti-imigrante não funcionaram de
fato. Se por um lado a exclusão é eleitoralmente popular e a disponibilidade
de trabalhadores baratos e vulneráveis é útil, por outro, políticas que
resultam na entrada irregular do país em grande escala e de maneira
altamente visível – e em sérias violações dos direitos humanos, mortes,
afogamentos, escravização, super exploração- não são. Os Estados precisam
mostrar que têm suas fronteiras sob controle, mas também que a vida
humana, de quem quer que seja, é uma preocupação sua. Precisa-se de uma
estratégia nova, e princípios de direitos humanos que abordem a total
impotência do migrante devem ser uma parte essencial dela9 (tradução
nossa; BHABHA, 2005).
Por fim, segundo Giuliana Redin (2013),para a garantia dos direitos
humanos do imigrante, uma vez que o Estado é detentor do dever de agir para garantir
uma
‘pseudoigualdade’
material,
orientada
por
valores
positivados
internacionalmente, é necessário escolhas públicas. Tais escolhas, demandam um alto
grau de participação do indivíduo na vida pública, “sob pena da apropriação do próprio
indivíduo em estruturas organizacionais de dominação e disciplinamento” (REDIN,
9
Do original: Even for governments, these anti-immigrant policies have not worked in fact. On the one
hand the exclusion is electorally popular and the availability of cheap and vulnerable workers is useful,
on the other, policies that result in illegal entry of the country on a large scale and highly visible way and in serious human rights violations, deaths, drowning, enslavement, super exploração- are not.
States must show that they have their borders under control, but also that human life, of anyone, is your
concern. They need a new strategy, and human rights principles that address the complete
powerlessness of the migrant should be an essential part of it
25
2013, p.32). Portanto, além do reconhecimento Estatal do direito do migrante a ter
direito, é necessário uma participação da vida pública, que para o contratualismo é
deter um vínculo de nacionalidade ou cidadania formal.
1.3 Imigrações, cidadania e nacionalidade
O monopólio de legitimidade e controle da mobilidade é considerado como um
dos elementos de soberania do Estado, de acordo com Rossana Reis (2004), a
autonomia do Estado no campo das migrações é uma das principais características do
direito internacional tradicional. O indivíduo, dentro desse paradigma, é considerado
um não-sujeito, não existe. Já que internacionalmente são os Estados que se
relacionam entre si, e não indivíduos. Somando-se a isso, segundo Redin (2013), uma
vez já dentro do Estado de Direito, os movimentos de migração humana econômica
internacional constituem uma realidade social que denuncia seus limites estruturais.
Faz parte de um modelo de racionalismo de Estado e sociedade que vela uma violência
legitimada, no qual “a pessoa do imigrante econômico está confinada: um “não
sujeito”, isto é, um objeto de produção econômica” (REDIN, 2013, p. 21).
Redin (2013) classifica a atual concepção de direitos humanos e políticas
migratórias adotadas pelos Estados, como aniquilantes e que reduzem o estrangeiro a
uma vida nua, constituindo, dessa maneira, uma minoria sem voz e sem ação. Os
Estados tratam as complexidades ligadas aos fluxos humanos migratórios econômicos
internacionais de forma reducionista, vinculados aos conceitos de “interesses de
Estado” quando o migrante é voluntário e regular, e principalmente quando seus
interesses convergem com os do Estado receptor e “proteção dos nacionais” ao se
tratar das questões de ordem política, social e cultural.
Dentro desse paradigma o estrangeiro é incluído pela exclusão. Tal condição é
direcionada, nas palavras de Redin, “pelas legislações estatais que restringem o
ingresso de imigrantes às condições de “interesse nacional”, bem como pela política
estatal de segurança contra o ingresso e a permanência de estrangeiros fora das
26
condições reguladas pelo Estado” (2013, p.30). Ainda que o Estado reconheça o
estrangeiro como um sujeito de direitos humanos, o impede de participar do espaço
público, como sujeito de seu próprio destino (REDIN, 2013).
Os Estados além de deterem o monopólio sobre a mobilidade, detêm o
controle sobre a própria identidade do indivíduo, a sua nacionalidade. Para Reis (2004)
a imigração subverte a relação povo/Estado/território e obriga o Estado a formalizar,
por meio de políticas de imigração e cidadania, as regras de acesso ao território e a
nacionalidade.
O acesso à nacionalidade, de acordo com Reis (2004), é importante, uma vez
que a própria legitimidade da ordem mundial pós-Westphalia é dada pelo principio da
autodeterminação nacional que, para Maria Angélica Ikeda,
estabelece que a um povo deve ser oferecida a possibilidade de conduzir
livremente a sua vida política, econômica e cultural segundo princípios
democráticos. A condução livre de sua vida política demanda, em primeiro
lugar, que o poder político esteja sob o controle daquele povo e que tal
controle seja exercido sobre bases igualitárias e democráticas (a chamada
autodeterminação interna, equivalente à democracia) e, em segundo lugar,
que o controle seja exercido livre da independência de terceiros (a
autodeterminação externa equivalente à independência). (IKEDA,2001,apud
REIS,2004, p. 155).
No entanto, Reis destaca os problemas em relação à utilização do princípio de
autodeterminação nacional como forma de definir unidades políticas, pois “não existe
nada dentro dos limites da fórmula de autodeterminação que sirva como guia na
definição ou concretização do que seja esse auto” (WHELEN, 1994 apud REIS, 2004,
p.155). Ou ainda mais, de quem tem o direito de participar deste “auto”. Os
defensores do princípio de autodeterminação defendem uma conotação étnica ao
conceito de nação, pretendendo com isso estabelecer entidades políticas soberanas as
mais homogêneas possíveis. Porém, a ligação entre Estado e uma nação homogênea, é
muito mais um conceito do que um fato concreto.
Uma pesquisa feita entre 132 entidades políticas em 1971, revelou que
apenas doze Estados (9,1%) podiam ser identificadas como Estado-nação, no
sentido de um Estado representando apenas uma nação, 25 entidades
(18,9%) continham uma nação que representava mais de 90% da população,
mas tinham também pelo menos uma grande minoria, 25 Estados
continham uma nação que representava mais de 90% da população , mas
27
tinham também pelo menos uma grande minoria, 25 Estados (18,9%)
continham uma nação que representava mais de 90% da população, mas
tinham pelo menos uma grande minoria, 25 Estados (18,9%) continham uma
nação que representava 75 e 89% da população, 31 Estados tinham uma
nação que representava 50 a 74% da população e em 39 Estados a maior
nação era menor que metade da população (REIS,2007, p.36)
A ligação entre Estado e nação, construída na modernidade, implica a formação
de um laço entre nacionalidade e cidadania, a cidadania, dessa maneira, passa a ser
atribuída em função da nacionalidade. Ou seja, o acesso aos direitos de cidadania esta
condicionado à posse da nacionalidade. (REIS, 2004).
Segundo Reis (2007), antes da década de 1980, para os Estados identificar a
parcela da população que teria direito à nacionalidade não era, de modo geral, um
problema. No entanto, a partir da década de 1970, com o aumento da imigração e
fixação dos estrangeiros no território, geraram a necessidade de repensar as políticas
de nacionalidade e também de imigração. A partir de então, os principais países
receptores de imigrantes vêm, sistematicamente, alterando as suas políticas nessa
área. Dessa maneira, percebe-se que as políticas de imigração e nacionalidade estão
intimamente ligadas, para se definir quem é o estrangeiro o Estado precisa definir o
nacional. “Além disso, o Estado tem de definir se quer que o imigrante se torne
nacional ou não, que tipo de imigrantes pode tornar-se nacional, e quais são os
critérios adequados para esse processo.”(REIS,2007, p.38).
Portanto, Reis retoma a ideia de que a cidadania, na modernidade, está ligada a
nacionalidade, pois os direitos dos cidadãos estão subordinados à posse da
nacionalidade. Para Redin (2013), citando Balibar, na democracia formal está contida a
ideia primeira e determinante de que o poder constituinte é soberania popular, que
por sua vez se reduz ao conceito de cidadania. No entanto, o conceito de cidadania é
tão limitado que representa múltiplas individualidades portadores de demandas, que
são regidas pelas autoridades da sua escolha e sob seu controle. Há a tendência de
olharmos em direção a uma antropologia individualista, que deixa de compreender o
conceito de responsabilidade, portanto o enfoque mais importante do momento
deveria ser nas formas de exclusão (exclusão da cidadania, ou ainda, exclusão da
condição humana) que são inerentes à definição intrínseca do universalismo dos
direitos humanos. (REDIN, 2013).
28
Redin propõe uma filosofia dos direitos humanos que vá além da compreensão
de que a relação entre “homem” e “cidadão” é uma perspectiva que dissolve a ideia da
constituição, já que a cidadania é feita pelo “homem” e não o “homem” pela
cidadania. A constituição cria um “sujeito constitucional”, que “exclui todo um
conjunto de pessoas, através das categorias que criam e da estrutura que são criadas”.
Na citação de Clavero: “O indivíduo constitucional tem-se afirmado pela posição de
uma categoria de propriedade como forma de liberdade que por si mesma produz
tanto a discriminação interna como a segregação externa” (CLAVERO, 2007 apud
REDIN, 2013, p.59).
A imigração humana é compreendida como algo patológico, anormal,
excepcional pela “normalidade” das políticas de contenção, restrição e criminalização
dos movimentos humanos migratórios. O migrante econômico internacional ou está
em situação de legalidade, de acordo com o interesse do Estado que o compreende
como um fator econômico “saudável”, ou é encarado como um mal econômico e social
dentro de uma percepção reducionista funcionalista do Estado. Até mesmo o diálogo
internacional e regional a respeito da mobilidade humana internacional, segue a
mesma regra: à pessoa humana migrante se reconhece, quando muito, um direito
humanitário, que não abrange o direito de ação no espaço público que ocupa. A
compreensão do homem como objeto produtivo é a ênfase das políticas migratórias
estatais, revestidas de políticas restritivas ou de mecanismos de criminalização.
(REDIN, 2013).
Baraldi (2014) afirma que os direitos dos imigrantes “assemelham-se mais a
benefícios concedidos pelo Estado, do que direitos, sendo muitas vezes
instrumentalizados a serviço dos objetivos de uma política seletiva” (2014, p.72).
Segundo a autora para a efetividade da garantia do direito dos migrantes é necessário
uma mudança de paradigma, na qual os imigrantes passam a ser reconhecidos como
sujeitos e não objetos do direito e da política. Além da rejeição à criminalização da
migração, é necessária uma proposta que vá além de um simples tratamento
humanitário que é vitimizador e não emancipatório. “As migrações como terreno de
luta pela liberdade, prática de cidadania e dos direitos humanos implicam o
reconhecimento da autonomia destes sujeitos na construção de sua própria
identidade”(BARALDI, 2014, p.74).
29
Por fim, essa mudança atinge as bases do sistema internacional westfaliano,
constituído por Estados nacionais soberanos definidos pelo conjunto de território,
governo e povo. Trata-se da superação do conceito moderno de cidadania, que é
formal, limitado, nacionalista e excludente. A cidadania hoje é uma prática de
liberdade e de busca por igualdade e dignidade, muito mais que um status formal de
pertencimento (BARALDI, 2014).
30
2. MIGRAÇÕES NO BRASIL: UMA NOVA POLÍTICA BASEADA NOS
DIREITOS HUMANOS?
Nos últimos anos o Brasil tem se tornado um destino atrativo para um número
cada vez maior de estrangeiros, de acordo com dados do último Censo (IBGE, 2010)
são 960 mil migrantes vivendo em situação regular no país 10, e o número tende a
crescer ainda mais. Os imigrantes que aqui chegam, em especial os latino-americanos,
buscam melhores condições de vida, atraídos pela alta taxa de crescimento econômico
da última década e a grande oferta de empregos no setor privado. Em face disso, o
debate acerca de política migratórias adotadas pelo Brasil é crucial, especialmente
quando priorizamos um tratamento consoante com os direitos humanos, dessa
maneira, nesse capítulo apresento as atuais políticas migratórias brasileiras, a
realidade da migração do país, efeito da atual legislação, e quais são os debates e
perspectivas futuras sobre o tratamento dado ao migrante pelo Estado brasileiro.
A história das políticas e leis de imigração no Brasil é intrinsecamente ligada à
história da cidadania brasileira. Em 1889 com a abolição da escravatura o Estado
passou a promover a imigração de colonos europeus para trabalhar nas fazendas do
país e povoar áreas ainda não habitadas. No artigo 1º do Decreto 528 de 1890 era
estipulada a livre entrada de trabalhadores, com exceção aos indígenas da Ásia ou da
África, que necessitavam autorização do congresso nacional. Já no primeiro marco
regulatório da questão na república brasileira se estabelecia uma política restritiva que
tinha o intuito de promover o branqueamento da população brasileira. (BARALDI,
2011)
As seguintes constituições de 1934 e 1937 ampliaram as medidas restritivas. A
concentração de imigrantes de mesma nacionalidade e isolados em grupos coloniais
foram vedadas, pois geravam o temor do governo central no desenvolvimento de
comunidades paralelas. Em especial a presença de imigrantes em fábricas, que foi
reduzido ao percentual mínimo, regulamentado pela lei de sindicalização de 1931, já
10
Disponível em: http://migramundo.com/2014/10/04/a-eleicao-e-a-luta-pelo-direito-ao-voto-doimigrante-no-brasil/
31
que havia o receio de que novas ideias, práticas políticas e de organização social
pudessem ser introduzidas pelos imigrantes. Decretos como o Decreto-Lei 406 de 1938
e o Decreto-Lei de 7967 de 1945, que formavam as primeiras normativas a tratar de
imigração, corroboravam as medidas restritivas adotadas pelo Estado brasileiro com
relação à imigração, o primeiro determinava a não existência de núcleos coloniais
constituídos por apenas uma nacionalidade e a segunda reiterava o objetivo de
branqueamento das constituições anteriores e estabelecia a defesa do trabalhador
nacional como objetivo (BARALDI,2011).
Até, aproximadamente, 1950 o Brasil foi destino das migrações de além-mar
(principalmente de italianos, portugueses, espanhóis, japoneses e alemães), no
entanto, a partir da década de 1960 essa prática se inverte e se inicia no país a
emigração com destino aos países desenvolvidos, em especial países Europeus e
Estados Unidos (PATARRA, 2011). Tal inversão justificaria a ausência de objetivos
migratórios definidos nas duas últimas Constituições, tanto na de 1967 como na de
1988, que passou a ser regulamentada pela Lei 6185 de 1980, conhecida como
Estatuto do Estrangeiro (BARALDI, 2011).
A discussão sobre as migrações internacionais começou a retomar a relevância
no Brasil somente na última década. Dessa maneira, em virtude de tal
desmerecimento, as políticas migratórias brasileiras ainda são baseadas em uma ótica
de segurança nacional, datadas do período militar, no qual o paradigma da soberania e
do interesse nacional mantém o controle das migrações, através de uma política
centrada na irregularidade (BARALDI,2014). Tais políticas, além de não se aquedarem a
realidade atual da migração brasileira e não estarem harmonizadas a uma perspectiva
de direitos humanos, apresentam um texto contraditório e defasado quando
comparado com a Constituição de 1988, que já em seu preâmbulo afirma ser uma
defensora de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica de controvérsias”.
32
2.1 Marco jurídico nacional
2.1.1 Constituição de 1988
Ainda que não haja artigos regulatórios de políticas migratórias em seu texto, a
Constituição de 1988, em seu artigo 4º, determina que o país busque a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação
de uma comunidade latino-americana de nações. A Constituição, ainda, garante em
seu artigo 5º , que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Já no tocante aos
direitos políticos, a Constituição determina que os estrangeiros não podem alistar-se
como eleitores; compete privativamente à União legislar sobre emigração e imigração;
os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos estrangeiros que preencham
os requisitos estabelecidos em lei; aos juízes federais compete processar e julgar os
crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiros; é facultado as
universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei
(PATARRA, 2011).
2.1.2 Lei nº 6.815, de 1980
Como já dito anteriormente, a Lei dos Estrangeiros em vigor é a nº 6.815, de 19
de agosto de 1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil e é marcada
pela preocupação com a defesa nacional. A lei criou o Conselho Nacional de Imigração
(CNIg), que funciona junto ao Ministério do Trabalho e Emprego. Para Patarra (2011),
dentre as principais críticas que podem ser feitas ao texto desta lei, está a
desconsideração dos tratados internacionais e dos direitos fundamentais da pessoa
humana, além de permitir que a política de imigração possa ser traçada pelo Poder
Executivo, sem o consentimento do Parlamento.
33
O cerne dessa legislação é a defesa do mercado de trabalho e da segurança
nacional. Para Baraldi (2011) as dinâmicas migratórias, assim como o Brasil e o mundo,
mudaram muito, porém, “a lei vigente para a matéria continua a mesma. Nem mesmo
a redemocratização brasileira e a promulgação de uma nova Constituição
representaram
de
plano
uma
mudança
no
tratamento
jurídico
dos
migrantes”(BARALDI, 2011, p. 5). Somando-se a isso, na última década, nota-se uma
retomada dos fluxos de imigrantes para o Brasil, com significativa presença de sulamericanos. Uma grande transformação social como essa, somada a um esquema
normativo arcaico e ultrapassado, “têm o cordão de produzir tensões sociais e
políticas”(BARALDI, 2011, p.5) uma vez que a realidade de muitos migrantes não
encontra respaldo na legislação vigente, tampouco respostas compatíveis com a nova
ordem social, política e jurídica vigente.
Camila Baraldi, já em sua tese de doutorado, resume as consequências da
presente lei de migração aos estrangeiros:
A restritividade à imigração estabelecida pelo Estatuto do Estrangeiro, da
mesma forma que acontece com as outras legislações restritivas do mundo,
não tem a capacidade de evitar a entrada de imigrantes, mas favorece o
tráfico de pessoas, a exploração laboral e diversas outras violações de
direitos humanos que decorrem da falta de documentos, além de permitir o
estabelecimento de hierarquias e a seletividade (BARALDI, 2014, p.85).
Até mesmo a inserção social dos migrantes é dificultada pela não
documentação, consequência frequente do excesso de burocratização do Estatuto do
Estrangeiro, precisando recorrer a outras formas de solidariedade privada quando seus
direitos são restringidos. Apesar disso, já no território nacional, reconhecidos ou não,
desenvolvem as suas vidas. Nesta realidade que lhes é imposta- ou as que são criadas
por eles, praticam a cidadania – com todas as contradições e implicações para a
democracia que possa ter uma cidadania não reconhecida (BARALDI,2014).
Ventura e Illes, em artigo publicado pelo jornal Le Diplomatique, em 2012,
destacam a vigência do Estatuto do Estrangeiro como triste herança do regime militar,
assim como o Projeto de Lei apresentado pelo Ministério da Justiça em 2009 (PL
5.655/2009) que deveria modifica-lo, porém que mantém em sua essência o
paradigma da segurança nacional. Ainda que ressalte que a migração deva ser tratada
como um direito do homem e que a regularização migratória é necessária para a
34
inserção do imigrante na sociedade, além de reconhecer a contribuição do migrante
para o desenvolvimento do país, seu texto apresenta diversos retrocessos, como a
ampliação de quatro para dez anos o prazo mínimo de residência permanente no país
para que seja requerida a naturalização, assim como a manutenção de mecanismos de
expulsão que contradizem seus textos introdutórios.
2.2 Marco jurídico internacional
Atualmente, a migração é uma prática frequente em um mundo globalizado,
porém não existe um instrumento internacional amplo capaz de regular a conduta dos
Estados no que tange às variáveis presentes no processo de migração. O que existe são
normas internacionais que regulam questões como segurança, nacionalidade,
liberdade de circulação de pessoas, dentre outras. (PATARRA, 2011)
Dentre os principais tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, Baraldi
(2014), destaca como a experiência mais inovadora em termos de política migratórias
no Brasil as que ocorrem no âmbito do processo de integração regional. Para a autora
os Estados reagiram às politicas restritivas dos países do hemisfério Norte 11, agravados
por problemas econômicos, políticos e sociais que os países enfrentam atualmente.
Por sua vez os países sul-americanos promovem o discurso do direito à migração, do
respeito aos direitos humanos da pessoa migrante e do objetivo de construir uma
cidadania sul-americana.
Nesse sentido, Redin (2013), destaca o papel da União das Nações SulAmericanas, organização constituída em 20/05/2008, em Brasília, pela Argentina,
Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e
Venezuela, como um espaço de integração e união no âmbito cultural, social,
econômico e político entre os povos, e do propósito contido no art.3 do Tratado
Constitutivo, de consolidar ”uma identidade sul-americana através do reconhecimento
progressivo de direitos aos nacionais dos Estados-membros, com o fim de alcançar
11
Em especial medidas que criminalizam a imigração, como a Diretiva de Retorno, adotada pela União
Europeia.
35
uma cidadania sul-americana” (Art. 2º, Tratado de Brasília, 2008). Para isso, a UNASUL
cooperará em matéria de imigração “com um enfoque integral, sob o respeito
irrestrito aos direitos humanos e laborais para regularização imigratória e
harmonização de políticas”. Dessa maneira, é expressamente reconhecida por parte da
organização a importância da cidadania sul-americana, que, no entanto, não está
imune aos vícios e condicionantes do processo de integração, que são econômicos,
sociais e políticos e “que mascaram as rugosidades produzidas pelo fenômeno da
migração intrarregional” (REDIN,2013,p.130).
É importante destacar, por parte da UNASUL, a nota de rechaço público a
adoção, na União Europeia, da Diretiva de Retorno, chamada “diretiva da vergonha”:
(...) os países membros da UNASUL expressam sua oposição à aprovação por
parte da União Europeia (UE) da chamada “Diretiva de Retorno”, e de
qualquer tentativa de criminalização dos migrantes que possa envolver a
aplicação desta normativa, e salienta que os direitos humanos de que são
titulares estão garantidos por diversos instrumentos internacionais
assinados pelos Estados de ambas as regiões. A UNASUL está convencida
que a livre mobilidade é um direito inerente ao ser humano, e neste sentido
a ordem internacional deve incluir a livre circulação de pessoas. Dessa
maneira, consideramos importante garantir as pessoas que estão realizando
uma contribuição econômica, social e cultural em outro país tenham um
tratamento digno e acesso a elementos mínimos que lhes deem segurança e
tranquilidade a si mesmos e a suas famílias (UNASUL, 2008 apud BARALDI,
2014)12
Ainda que, como acentuado por Baraldi (2011), para ter sentindo e dar
coerência a esse discurso é necessário, por parte dos países sul-americanos, que olhem
para si mesmos, e aprimorem o tema dos direitos humanos à âmbito nacional. Não
basta apenas a fala retórica de abertura e uma prática tolerante com relação à
migração, é fundamental uma tradução jurídica, nas legislações dos países da América
do Sul.
12
Do original: los países membros de UNASUR expresan su rechazo a la aprobación por parte de la
Unión Europea (EU) de la llamada “Directiva de Retorno”, y cualquier intento de criminalización de los
migrantes que pueda implicar la aplicación de esta normativa, y subraya que los derechos humanos de
que son titulares están garantizados por diversos instrumentos internacionales suscritos por los Estados
de ambas regiones. Em UNASUR estamos convencidos que la libre movilidad es un derecho inherente al
ser humano, y en ese sentido el orden internacional debe contemplar la libre circulación de las
personas. Asimismo, consideramos importante garantizar que las personas que están haciendo una
contribución económica, social y cultural em outro país tengan um tratamiento digno y acesso a los
elementos mínimos que les den seguridade y tranquilidade a si mismos y a sus famílias
36
Em relação ao MERCOSUL, constituído pela Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai
e Venezuela, Ventura e Illnes afirmam que tem constituído um espaço fundamental
para que um novo paradigma da política migratória seja efetivado na região. O
“Acordo sobre residência para nacionais dos Estados partes do MERCOSUL, Bolívia e
Chile”, que recentemente foi aderido também pelo Peru, “tem beneficiado centenas
de migrantes, o que poderia ser o principio de uma futura cidadania sul-americana”
(VENTURA e ILLNES, 2012).
Ainda sobre o Acorde de Residência, Baraldi (2011), acentua a exigência
somente da apresentação de um documento de identificação; certificado e declaração
de ausência de antecedentes criminais e pagamentos de taxas (art.4) para a
regulamentação do imigrante. O número de documentos exigidos é reduzido, além da
possibilidade do imigrante de fazer o requerimento tanto em uma representação
consular do Brasil no seu país de origem, quanto diretamente à autoridade brasileira
quando já presente no território nacional. O pedido de residência é possível
independentemente da condição migratória do requerente quando entrou no país, e
haverá isenção de multas ou de outras sanções administrativas, o que representa um
claro avança quando comparado com a lei migratória nacional. O Artigo 5º prevê,
também, que o pedido de residência temporária de dois anos possa ser transformado
em permanente mediante a comprovação de posse de meios de subsistência lícitos.
Por mais que a legislação brasileira para os estrangeiros pouco tenha avançado
no reconhecimento de direitos para os imigrantes nos últimos trinta anos, a normativa
regional do MERCOSUL trouxe grandes conquistas nesse sentindo. Ainda mais quando
se analisa que no processo de anistia migratória de 2009, foram regularizados cerca de
43 mil migrantes, dos quais 31.562 residentes em São Paulo, e que em sua maior parte
eram sul-americanos, ou seja, os imigrantes sul-americanos constituem a maior parte
dos estrangeiros do país (BARALDI, 2011). Fica evidente que tais iniciativas são
pontuais no reconhecimento de direitos aos cidadãos sul-americanos regionalmente
ou bilateralmente. “São iniciativas fragmentárias, porém de grande valor para os
indivíduos e possivelmente inspiradoras para outras no campo social”(BARALDI,2011,
p.10).
37
No entanto, ainda que iniciativas importantes é necessário realizar uma crítica
aos textos dessas organizações internacionais, já que não representam uma orientação
do ponto de vista regional, “dos estigmas que recaem sobre a pessoa do estrangeiro,
dentre os quais os de ‘não sujeito’”(REDIN, 2013, p.133). Uma vez que, a exigência de
certidões relativas à comprovação de conduta e certificado médico, por exemplo,
“demonstram que o tema não esta fora das amarras que não permitem ao estrangeiro
sair da condição de “provisoriedade” onde não é sujeito (já que o ir e vir e participar
do espaço público não pertence a esse indivíduo, mas ao interesse do Estado-nação)”
(REDIN, 2013, p.134). Sendo assim, ainda que essas organizações de integração
regional expressem preocupação com a mobilidade urbana intrarregional, ainda o
fazem através de ações institucionais tímidas no que tange ao reconhecimento do
espaço público comunitário decorrente da imigração. O imigrante continua como não
sujeito em um espaço político de ação (REDIN, 2013, p. 135).
2.3 Realidade migratória brasileira
Atualmente no Brasil acredita-se que há em torno de quase um milhão de
estrangeiros vivendo em território nacional. Ainda que seja um número considerado
baixo, em virtude da dimensão populacional do país, a concentração de alguns grupos
em cidades específicas traz maior visibilidade a questão. A comunidade de bolivianos e
chineses na cidade de São Paulo, libaneses em Foz do Iguaçu e a presença de
senegaleses em cidades do sul do país, como Curitiba, Passo Fundo e Caxias do Sul,
ilustram essa questão (REIS, 2011).
Apesar disso o Brasil não dispõe de um serviço de migração. Para requerer a
regulação de sua situação os migrantes devem dirigir-se à Polícia Federal, cujos
serviços são em grande parte terceirizados, desprovido de formação adequada e mal
remunerados. Inclusive a necessidade de se dirigir a um departamento policial já
denota a conotação securitária da migração, no qual o polícia tende a ter uma
interpretação restritiva das normas que beneficiam os migrantes. Dessa maneira, ao
buscar sua regularização o migrante costuma encontrar um calvário, com a exigência
38
de documentos que sabidamente ele não tem condições de apresentar. Num círculo
vicioso, a constância da irregularidade gera mais precariedade. (VENTURA e ILLES,
2012).
Concomitante a isso, de acordo com a Lei de Estrangeiros vigente não é
permitido aos imigrantes à busca de empregos quando não há a posse de um visto de
trabalho. Como este visto só poder ser concedido antes da chegada dos estrangeiros
ao país, quando já vêm com um contrato de trabalho, muitos deles são levados a
solicitar refúgio apenas para ter algum documento (até mesmo o protocolo de
serviço), esperando conseguir um emprego até a esperada resposta negativa do
Estado brasileiro. (VENTURA e REIS, 2014).
Uma medida adotada pelo país para solucionar esses entraves é a concessão de
anistias. O Brasil realizou três anistias, a primeira em 1988, depois em 1998 e
finalmente em 2009. Ainda que essas anistias demonstrem boa vontade por parte do
governo para lidar com a questão dos indocumentados, por outro lado revela a
persistência do problema ao longo dos anos e a necessidade de uma política mais
abrangente, já que não é procedente que a pessoa migrante espere por uma prática
que ocorre a cada dez anos para a sua regulamentação (REIS, 2011).
O país vai ficando isolado no continente em que o direito ao voto dos migrantes
já foi reconhecido por Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, México e Peru, de acordo
com Ventura e Illes, o que leva os autores a questionar se efetivamente temos uma
política migratória, “Ou temos aqui, (...) a ambiguidade que resulta da disputa entre os
que pensam uma política de migrações respeitosas com os direitos humanos e outras
vertentes que concebem o Estado a serviços das necessidades do mercado” (VENTURA
e ILLES, 2012) com políticas concebidas através de modelos migratórios que não são o
nosso, levando os autores a inquirir se “o preço do sucesso econômico for repetir aqui
o que a Europa e os Estados Unidos têm feito em matéria de migrações, é preciso,
enfim, perguntar para que e para quem vale a pena que sejamos potência”(VENTURA e
ILLES, 2012).
É importante reconhecer a atuação de entidades não governamentais e da
sociedade civil nas políticas públicas e programas de migrações, com especial destaque
39
a Igreja Católica no Brasil, que desde o início têm sido uma das principais críticas da
legislação brasileira para estrangeiros, já que a elaboração do Estatuto do Estrangeiro
se deu em um momento do regime militar no qual havia o descontentamento por
parte destes “com a “interferência” de religiosos estrangeiros em assuntos
considerados de foro interno e buscava um mecanismo que facilitasse a expulsão de
estrangeiros envolvidos em atividades políticas no país”. Ainda hoje continua como
base para muitas das organizações de defesa dos interesses e dos direitos dos
estrangeiros no Brasil, como, por exemplo, a Cáritas Brasileira 13(REIS, 2011).
Movimentos sociais, organizações não governamentais e pesquisadores do
Brasil, além de realizar um trabalho importante de auxílio a essa população migrante
do país, também adotam uma postura crítica com relação às disposições presentes na
lei de 1980, que “estão em flagrante descompasso com as disposições relativas ao
respeito dos direitos humanos presentes na Constituição de 1988” (ACNUR, 2007 apud
Reis, 2011, p.59). O coordenador do Centro de Apoio ao Migrante de São Paulo, Paulo
Illes, inclusive enviou uma carta a então candidata à presidência Dilma Rousseff, em
2010, pontuando suas críticas e dando sujeitos para uma nova política migratória:
[...] ao defender uma política de migração integral, a qual contempla tanto
as migrações de brasileiros e brasileiras para o exterior, o retorno de
emigrantes e a imigração em nosso país, sempre sob o enfoque dos direitos
humanos, percebemos a necessidade da construção de uma Secretaria de
Políticas Migratórias, vinculada ao Gabinete da Presidência da República que
possa articular e promover a implementação de uma política migratória
coordenada entre estes órgãos e outros da administração pública. [...]
Superando-se a dispersão de competências que por vezes dificulta o avanço,
uma das principais tarefas desta nova instituição seria, sem dúvida,
fortalecer ainda mais a postura do Brasil como um país exemplo de acolhida
para imigrantes e livre da discriminação e da xenofobia. (REIS, 2011, p. 60)
Atualmente em termos institucionais, a movimentação de pessoas através das
fronteiras do Brasil envolve um conjunto variado de Ministérios e autarquias: O
Ministério das Relações Exteriores, o Ministério do Trabalho, o Ministério da Justiça, a
Polícia Federal, entre outros (REIS, 2011). Baraldi (2014) salienta que a questão da
13
A Cáritas Brasileira é uma entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos
humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. Sua atuação é junto aos
excluídos e excluídas em defesa da vida e na participação da construção solidária de uma sociedade
justa, igualitária e plural. Vinculada a Igreja Católica, desempenha um papel essencial na assistência a
população migrante.
40
distribuição de competências é tema central nos debates acerca da política migratória
no Brasil, uma vez que não há órgão e Ministério que centralize a política, que fica por
conta do CNIg (Conselho Nacional de Imigração), órgão ligado ao Ministério do
Trabalho e Emprego, com participação de todos os ministérios interessados no tema
das migrações, assim como representantes dos empregadores e dos trabalhadores
responsável pela elaboração dos objetivos da política migratória.
2.3.1 Casos Emblemáticos: Imigrantes bolivianos e haitianos
Dentre os fluxos migratórios recebidos pelo Brasil há dois casos que são
emblemáticos e que ganham atenção especial do governo brasileiro, não apenas por
ser tratar de um volume expressivo, mas também pelo cenário enfrentado pelos
imigrantes já em território brasileiro: a imigração de bolivianos e de haitianos. Na
América do Sul, os dois maiores polos receptores de imigrantes de baixa renda são o
Brasil e Argentina, pois, em geral, possuem fronteiras extensas com os países de
origem dos imigrantes e um baixo custo de deslocamento. No entanto, com o atual
quadro de sucessivas crises econômicas da Argentina, o Brasil tem atraído cada vez
mais parte desses imigrantes (PATARRA, 2011). No caso da migração de bolivianos as
razões pelas quais os imigrantes continuam deixando país são múltiplas, porém os
fatores de ordem econômica são preponderantes, assim como a estrutura social, a
instabilidade política e a miséria que afeta diversas regiões do país. (SILVA, 2006)
Uma vez que o Estatuto do Estrangeiro só permite a entrada de mão de obra
especializada, com vínculo empregatício e visto de trabalho, grande parte dos
imigrantes bolivianos entram em situação irregular e acabam sofrendo exploração
econômica em território brasileiro (PATARRA, 2011). Estes imigrantes, em sua maioria,
se dedicam a atividades de costura, por ser um segmento de mercado que não exige
experiência prévia, nem idade mínima para o trabalho, ao qual, muitas vezes, são
incorporados menores de idade.
Os trabalhadores se submetem a condições
insalubres de emprego, pois é um setor em que não há nenhuma regulação
trabalhista, estando sujeitos a patrões exploradores e que praticam um terror
psicológico nos imigrantes ante a possiblidade destes de serem detidos pela Polícia
41
Federal, que determinava, de acordo com os patrões, um “tempo de reclusão, para
indocumentados, segundo ele [patrões], seria de quinze anos” (SILVA, 2006, p.3).
Desta forma a partir de pressões de órgãos humanitários preocupados com a
exploração econômica dos bolivianos, em especial na cidade de São Paulo, o governo
brasileiro adotou medidas para a regularização destes e de outros imigrantes. A
primeira delas foi à assinatura de um Acordo bilateral com a Bolívia para a
regularização de imigrantes em 2005 (nº 5541/2005), no qual os imigrantes residentes
no país poderiam solicitar visto de trabalho e permanência prorrogável por mais dois
anos, a já citada Anistia de 2009 promulgada pelo Decreto nº 6.893/2009, que
concedia anistia aos estrangeiros que entraram no país até 1º de fevereiro de 2009 e
aqui residiam de forma regular. Ainda no mesmo ano a entrada em vigor do acordo de
livre trânsito de pessoas na área do MERCOSUL, ao qual também aderiram Bolívia e
Chile (Decretos nº 6.964/2009 e nº 6.975/2009). Dados apontam que até o final de
2009 foram realizadas aproximadamente 42mil solicitações e destas, 17 mil tinham
como solicitantes imigrantes bolivianos (PATARRA, 2011).
Outro caso representativo dos limites da atual configuração institucional e
normativa da questão migratória no Brasil é o da imigração haitiana (BARALDI, 2014).
A partir de 2004 quando o Estado brasileiro se prontificou a auxiliar o Haiti em seu
período de estabilização, liderando a MINUSTAH14, que a presença de haitianos
começou a ser sentida no país. Durante esse período o Estado haitiano era
praticamente inexistente, suas instituições encontravam-se desestruturadas. (VALLER
FILHO, 2007).
Este quadro de fragilidade estatal foi fortemente agravado pelo terremoto que
assolou o Estado haitiano em janeiro de 2010, a capital Porto Príncipe foi duramente
atingida, e estima-se que 80% das construções foram seriamente danificadas. Além
dos danos materiais, estima-se que aproximadamente 230 mil haitianos tenham
perdido suas vidas e 1,5 milhão ficaram desalojados. O país, nos dias de hoje, ainda
encontra-se com o sistema político desorganizado, a economia destroçada e a
população desnutrida, sofrendo de doenças como a AIDS e a cólera. Diante de uma
14
Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti, liderado pelo Brasil, a missão de paz foi criada
pelo conselho de segurança da ONU em 2004, tem por objetivo estabilizar o país, pacificar e desarmar
grupos guerrilheiros e rebeldes, promover eleições livres e informadas e formar o desenvolvimento
institucional e econômico do Haiti.
42
conjuntura tão negativa e de desesperança, muitos haitianos optam por deixar o seu
país, seus principais destinos são o Canadá, os Estados Unidos da América, a França, as
Antilhas Francesas, a República Dominicana e o Brasil. (MORAES, ANDRADE e MATTOS,
2013).
Por isso, a partir de 2010 observa-se um aumento no fluxo de imigrantes
haitianos com destino ao Brasil, em julho de 2010 ultrapassou as 2.000 pessoas, as
novas entradas contabilizam, aproximadamente, 200 pessoas por mês. Estes
imigrantes entram no país através da fronteira com o Peru e o estado do Acre. Ao
chegar à fronteira, os imigrantes apresentam uma solicitação de refúgio, alegando a
impossibilidade de se continuar vivendo no Haiti após o terremoto. Já que o Brasil é
signatário das convenções sobre o acolhimento de refugiados, as autoridades da
fronteira registram a solicitação e a encaminham ao órgão competente: o Conselho
Nacional de Refúgio – CONARE. (PATARRA, 2011).
Por não se enquadrar nos dispositivos previstos nos acordos internacionais
para a concessão de refúgio, o pedido é recusado e a documentação
encaminhada ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg), do Ministério do
Trabalho. Este órgão tem a competência legal para avaliar se a solicitação
de permanência no país poderá ser atendida considerando a legislação em
vigor. Até julho de 2011, foram encaminhados ao CNIg 736 solicitações de
refúgio negadas pelo CONARE. Após analise da documentação pelo
Conselho, na maioria dos casos, foi fornecida a permissão temporária de
residência no Brasil a estes imigrantes com base na legislação pertinente,
considerando razões humanitárias para a concessão do visto (PATARRA,
2011, p. 191)
.
Em virtude do contínuo aumento de imigrantes haitianos chegando ao
Brasil, o Ministério da Justiça lançou uma política conhecida como “visto humanitário”,
por meio da resolução 97 do CNIg, em janeiro de 2012 15, a princípio destinado à
15
A Resolução Normativa CNIg nº 97, de 12 de janeiro de 2012, resolve: Art. 1º Ao nacional do Haiti
poderá ser concedido o visto permanente [...], por razões humanitárias, condicionado ao prazo de 5
(cinco) anos [...],circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro. Parágrafo único.
Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes do
agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido
naquele país em 12 de janeiro de 2010. Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem
caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada
do Brasil em Porto Príncipe. Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos
por ano, correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais
modalidades de vistos [...]. Art. 3º Antes do término do prazo previsto no caput do art. 1º desta
Resolução Normativa, o nacional do Haiti deverá comprovar sua situação laboral para fins da
convalidação da permanência no Brasil e expedição de nova Cédula de Identidade de Estrangeiro [...].
Art. 4º Esta Resolução Normativa vigorará pelo prazo de 2 (dois) anos, podendo ser prorrogado. Art. 5º
Esta Resolução Normativa entra em vigor na data de sua publicação.
43
concessão de 1200 vistos anuais. Porém, em abril de 2013, após pressões de
organizações humanitárias, foi aprovada a revisão da política migratória para haitianos
no Brasil, com a determinação do fim do limite de 1200 vistos por ano e da
exclusividade por parte da Embaixada Brasileira em Porto Príncipe para concedê-los
(CONECTAS, 2013). Estima-se que até hoje cerca de dez mil vistos humanitários
tenham sido emitidos até hoje.
O discurso que embasou a resolução 97 do CNIG era, além de humanitário, o da
garantia dos direitos humanos dos imigrantes e da sua proteção contra os perigos da
imigração regular, em especial os serviços de coyotes. Essa medida, porém, não foi
suficiente e ainda nesse ano o abrigo de Brasiléia no Acre, que recebe grande parte
dos imigrantes haitianos que chegam ao país, chegou a uma situação calamitosa e que
foi levada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em virtude da ausência de
condições dignas aos imigrantes. Em consequência disso o abrigo de Brasiléia foi
fechado e outros dois abertos, um em Rio Branco, onde os imigrantes aguardarão
documentação, e outro em São Paulo (SANT’ANNA, 2014; ANDRADE, 2014).
Por fim, a assinatura de tratados bilaterais e a concessão de vistos humanitários
nos casos de imigração boliviana e haitiana no país, de fato representam benevolência
por parte do Estado brasileiro, por outro lado evidenciam as consequências da
aplicação de uma política de migração restrita à resoluções normativas, como no caso
de Brasiléia, e, mais uma vez, a necessidade de substituição das normas vigentes,
como na questão boliviana, que não podem ficar restritas a concessões de anistias.
2.4 Perspectivas e debates atuais sobre a questão migratória
Como vimos observa-se um debate crescente em favor da mudança de
parâmetro das políticas sociais de migração no Brasil, como consequência desse
debate, pode- se destacar a formulação do Anteprojeto de uma nova lei de
estrangeiros. Criado por meio do Ministério da Justiça, contou com uma comissão de
especialistas, que depois de um ano de trabalho e de diversas reuniões abertas a
instituições internacionais, instituições públicas e entidades sociais, elaborou um
44
anteprojeto de lei de migrações, encaminhado para o Congresso Nacional na metade
do ano (VENTURA e REIS, 2014).
O Anteprojeto propõe a substituição da palavra estrangeiro por migrante, o
ideário de segurança social dá lugar ao alinhamento com a Constituição de 1988 e os
tratados de direitos humanos em vigor no Brasil. A regularização migratória passa a ser
realizada por uma autoridade migratória civil, facilitando a desburocratização, torna-se
possível que o migrante permaneça no país por até um ano, regularmente, em busca
de emprego. Os direitos entre nacionais e migrantes passam a ser equiparados, ainda
que nos limites da constituição (VENTURA e REIS, 2014).
Nas palavras das autoras, “caso prospere, o anteprojeto honra uma divida
histórica do Brasil para com os migrantes que contribuíram, de modo decisivo, com
seu desenvolvimento”. (VENTURA e REIS, 2014). A democracia também seria honrada,
já que mais um “entulho autoritário” que parasita o presente e hipoteca o futuro do
país, seria eliminado.
Inclusive há um reconhecimento por parte de entidades e especialistas em
migrações da importância da aprovação do texto do Anteprojeto, como foi exposto na
Carta Aberta aos órgãos do Executivo, Legislativo e do sistema de Justiça 16,
encaminhado no dia 16 de outubro de 2014, apoiando a proposta de reforma da
legislação migratória brasileira. De acordo com a carta, é necessário um “paradigma de
respeito aos direitos humanos dos imigrantes e do reconhecimento de sua
contribuição cultural, social e econômica (...) Consideramos que este é o espírito de
que está imbuído o anteprojeto de lei elaborado pela Comissão de Especialistas’’
Ainda no seu texto de apresentação o Anteprojeto de Lei de Migrações declara:
Porém, a inclusão social dos migrantes só será possível quando a cidadania
brasileira for acessível a todos que aqui vivem e trabalham. Dada à limitação
imposta pelo texto da Lei Maior, essa Comissão roga ao governo federal que
envide esforços para que as Propostas de Emenda Constitucional hoje em
tramitação consigam, em breve, suprir tal anacronismo. (Anteprojeto de Lei
de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, 2014, p.9).
O Brasil é o único país da América do Sul que não permite de forma alguma a
participação dos imigrantes no processo eleitoral. Pelas regras da Constituição Federal
16
Elaborada pelo CONECTAS, em Outubra de 2014. Disponível em:
<http://conectas.org/arquivos/editor/files/Atualizada_CARTA%20ABERTA%20DE%20APOIO%20A%20M
UDAN%C3%87A%20DA%20LEI%20ATUAL%20SOBRE%20MIGRA%C3%87%C3%95ES.pdf>
45
apenas brasileiros natos podem votar e ser votados. Contudo, já existe no Congresso
Nacional a Proposta de Emenda Constitucional, (PEC) 347/2013, de autoria do
deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que prevê a possibilidade de imigrantes
participaram do processo eleitoral, votando e sendo votados. Nesse sentindo, vale
destacar iniciativas como as da Prefeitura de São Paulo, que no dia 30 de março de
2014, permitiu as comunidades migrantes participar dos processos de escolha de
representantes em 19 dos 32 Conselhos Participativos das subprefeituras da capital
paulista. Com uma participação expressiva, ao todo foram 1710 votantes, serviu como
um recado à sociedade brasileira mostrando o interesse dessas comunidades em fazer
parte também do processo oficial (DELFIM, 2014).
Rossana Reis salienta a percepção das migrações internacionais como um tema
estratégico nas relações internacionais do século XXI, assim como, o papel de destaque
do Brasil nessa abordagem. Segundo a autora já que o aumento de circulação de
pessoas é uma característica incontornável do mundo contemporâneo a administração
das tensões e dos conflitos que surgem a partir da prática migratória se torna uma das
grandes questões políticas do nosso tempo. É partir desse contexto que as escolhas e
políticas do Brasil em termos de migração crescem em importância (REIS, 2011).
Para a autora a gestão da questão migratória oferece ao governo brasileiro, ao
longo dos últimos anos, uma plataforma única para criticar o posicionamento dos
países ricos:
Assim, em sua fala no Conselho de Direitos Humanos na ONU em junho de
2009, o presidente Lula destacou os efeitos perversos da crise econômica
sobre os migrantes, criticou o crescimento de manifestações xenófobas na
esteira da crise e destacou que: “No Brasil, nós acabamos de legalizar
centenas de imigrantes que viviam ilegalmente no país. Para dar uma
resposta, um sinal aos preconceituosos, aqueles que imediatamente
querem encontrar os responsáveis pela sua própria desgraça, o seu
desemprego” (REIS, 2011, p.62).
De mesmo modo, quando foi anunciada a mais recente anistia aos imigrantes
indocumentados no Brasil, em julho de 2009, o Presidente Lula publicamente solicitou
ao
Ministro
da
Justiça
que
levasse
o
tema
à
reunião
do
G8,
para
“mostrar aos líderes dessas grandes economias a contrariedade do Brasil com a
política dos ricos com os imigrantes (...) Trabalho e dignidade para o imigrante é a
resposta que o Brasil dá a intolerância dos países ricos”(LULA, 2009 apud REIS, 2011).
46
Segundo a autora trazer o tema das migrações e dos direitos dos migrantes
para os fóruns internacionais, reforçou as diretrizes mais amplas da política externa
brasileira, que tem buscado questionar a hierarquia dentro dos organismos
internacionais, fortalecer a cooperação Sul-Sul e reforçar obrigatoriedades iguais a
todos os Estados, no que tange direitos humanos e desenvolvimento. O Brasil tem
procurado marcar a sua posição denunciando a incompatibilidade entre o discurso de
direitos humanos proferidos pelos países ricos e o tratamento que tem sido oferecido
por eles aos imigrantes, especialmente diante da crescente securitização da questão
na União Europeia e nos Estados Unidos. (REIS, 2011).
Por fim, percebe-se que a questão migratória está cada vez mais em voga, seja
pela sociedade civil, através de diversas reportagens sobre o assunto que vêm sendo
veiculados pela mídia atualmente17, pelas organizações humanitárias que realizam um
trabalho essencial no auxilio e regulamentação dos imigrantes, assim como pelo
governo, que tem visto na questão migratória uma maneira de contestar a hierarquia
da sociedade internacional, ao adotar uma postura mais humanitária se comparado
com os países desenvolvidos. É importante destacar, porém, a necessidade de se
aprovar uma nova lei de imigração no país, o Anteprojeto já foi encaminhado ao
Congresso Nacional para votação, e a adoção de políticas que não se restrinjam a
normas, para que de fato se consolide uma política migratória brasileira consoante
com os direitos humanos.
17
Com destaque para a reportagem de dez minutos exibida pelo Fantástico na Rede Globo em setembro
de 2014.
47
3. POLITÍCAS MIGRATÓRIAS FRANCESAS: DA SÍNTESE REPUBLICANA A
DIRETIVA DO RETORNO
A relação entre nacional e estrangeiro tem sido bastante conflituosa na história
recente da França. A intensa onda migratória de trabalhadores que chegavam ao país
durante e após os conflitos mundiais da primeira metade do século XX, período no
qual desempenhavam um papel crucial para o desenvolvimento e crescimento
econômico do país no pós-conflito, se seguiu de um aumento das manifestações
racistas e xenófobas a partir da década de 1970. A imigração até então considerada
uma solução para o país, passa a ser vista como um problema (REIS, 2007). A partir
desse contexto o presente capítulo objetiva descrever as políticas migratórias
francesas, desde a chamada síntese republicana até o enfoque principal para as atuais
políticas migratórias francesas e a sua consequência para a população migrante do
país.
A política migratória francesa historicamente foi influenciada pelo que se
chamou de síntese republicana. Para o demógrafo Hervé Le Bras, a ideia da ‘síntese
republicana’ é resumida na afirmação de que “O único critério que permite definir a
França e os franceses é de natureza política, o contrato que associa cada um de nós à
República fundada sobre os princípios da democracia” (LE BRAS, 1993 apud REIS,
2007). Ou seja, de acordo com a tradição republicana francesa, a ideia de nação é
fundada na escolha política, os direitos políticos são considerados indissociáveis da
nacionalidade (REIS, 2007).
De acordo com Reis, esta ideia tem sua origem na Revolução Francesa. “A
primeira constituição pós-revolucionária define como francês praticamente todo
aquele que jurar fidelidade aos ideais da Revolução, independente de sua origem
étnica, racial ou nacional” (REIS, 2007, p. 114). Dessa maneira, os estrangeiros durante
a maior parte do século XIX gozavam dos mesmos direitos civis dos franceses. Porém,
desde essa primeira constituição, ao longo da história do país, diversas outras
constituições foram criadas, no entanto, nenhum delas retomou essa primeira posição
dos revolucionários ao pé da letra.
48
Já no século XX, durante o período dos grandes conflitos mundiais, o Estado
francês envolveu-se consideravelmente com a questão migratória, que passou a ser
estratégica para o país diante da falta de mão-de-obra provocada pela guerra. A
iniciativa privada realizava os recrutamentos e o Estado limitava-se a ditar as regras e
exercer certo controle sobre a execução das normas (REIS, 2007). Após a Segunda
Guerra Mundial, o primeiro ato legal através do qual o Estado francês coordenou a
questão migratória em seu país foi a “Portaria nº 45-2658 do dia dois de novembro de
1945, que diz respeito à entrada e residência de estrangeiros na França e a fundação
do Escritório Nacional de Migração” (KOFMAN, ROGOZ e LÉVY, 2010).
Durante o período da Trente Glorieuses18, que se seguiu ao final da Segunda
Guerra Mundial, as políticas migratórias foram determinadas pelo desejo de
reconstrução econômica e de aumentar a população francesa. Após a independência
dos países do Magrebe, trabalhadores desta região ainda vinham em grande número
para a França, especialmente da Argélia, pois gozavam de um status de quasecitizens19. No entanto, a crise econômica decorrente da Primeira Crise do Petróleo
levou a um aumento do desemprego e a ondas de xenofobia no país (KOFMAN,
ROGOZ e LÉVY, 2010).
A partir de então, os cidadãos franceses viam nos imigrantes a principal razão
pela falta de empregos, em consequência disso os políticos começaram a agir com a
intenção de acabar com a imigração. Dessa maneira, foram adotadas medidas para
terminar com o recrutamento de trabalhadores estrangeiros, assim como, introduzidos
vistos e permissões de trabalho (KOFMAN, ROGOZ e LÉVY, 2010). No entanto, tais
medidas não levaram ao retorno de imigrantes para o seus países de origem, nem a
diminuição dos fluxos migratórios para a França. Do contrário, muitos imigrantes
permaneceram no país e foram buscar suas famílias para se juntar a eles. A partir de
então o reagrupamento familiar passou a ser a mais importante via para a imigração
no país (ENGLER, 2007).
18
Título cunhado pelo demógrafo francês, Jean Fourastié, refere-se aos 30 anos de 1945 a 1975 de
grande prosperidade econômica e crescimento populacional do país.
19
Um conjunto de direitos para grupos específicos de cidadãos estrangeiros que lhes concede privilégios
especiais em comparação com outros estrangeiros e o que os aproxima dos direitos de cidadania.
49
No início de 1980, a imigração se tornou uma importante questão política na
França com a ascensão do partido de extrema-direita Front National que tinha em seu
discurso a retórica de que a questão da segurança e do desemprego no país estava
ligado à presença de imigrantes na França (REIS, 2007). Ainda que o discurso antiimigratório não fosse exclusivo da extrema direita, era também utilizado pela direita
regular, como o político Jacques Chirac, que em 1991 declarou que a França tinha
muitos imigrantes do tipo errado (muçulmanos e negros) e que eles poderiam deixar
de receber os benefícios sociais em virtude do tamanho de suas famílias (KOFMAN,
ROGOZ e LÉVY, 2010). A partir de então, já na década de 1990, o Ministro do Interior
Charles Pasqua tinha por objetivo a política de imigração zero (immigration zéro) que
previa entre outras coisas a reforma do código de nacionalidade, mudanças profundas
na legislação, que envolviam o código civil, as políticas de reunificação familiar, a
seguridade social, a legislação de saúde e o código penal. A lei, conhecida como Lei
Pasqua, também previa o fim da possibilidade de estrangeiros nascidos fora do país,
pedirem a nacionalidade para os filhos menores nascidos na França, a nacionalidade
passaria a ser concedida nesses casos apenas quando houver manifestação da vontade
entre dezesseis e vinte e um anos de idade e a eliminação da possibilidade de
regularização a posteriori. O estrangeiro que entrar na França regularmente não tem
mais nenhum direito à regularização. (REIS, 2007).
O projeto de lei assumiu as idéias difundidas pelo Front National, de uma
França que era ameaçada pela invasão de estrangeiros. “E que estaria usando o seu
direito de comunidade para se defender, mediante a escolha de imigrantes com uma
origem e uma qualidade adequada” (REIS, 1999, p.126).
A introdução das Leis Pasqua foi, no entanto, uma fonte de grande controvérsia
na sociedade francesa. Organizações humanitárias pró-migrantes e a própria
população migrante se organizavam em protestos, os quais tiveram seu ponto alto em
1996, durante a ocupação de uma igreja em Paris por Africanos e Chineses que viviam
há muitos anos na França sem uma autorização de residência permanente e que
queriam chamar a atenção para a situação precária em que viviam. Milhares de
50
pessoas apoiaram as campanhas de protestos dos então chamados sans papiers20
(ENGLER, 2007). As Leis Pasqua não contribuíram no sentido de acabar com a migração
ilegal, no entanto, tornou clandestina a vida de muitas famílias que já habitavam a
França. (REIS, 1999).
Já sobre o governo de centro-esquerda do primeiro-ministro Lionel Jospin,
muitas das medidas restritivas adotadas durante o governo de Pasqua foram retiradas
ou atenuadas a partir de 1997. Neste mesmo ano, um programa de legalização foi
elaborado para os estrangeiros que residiam no país sem autorização.
Por fim, a partir dessa pequena descrição histórica das medidas políticas
adotadas por diversos governos franceses, percebe-se a importância que essa questão
tem não apenas na realidade da, enorme, população migrante diretamente por ela
afetada, mas também no cenário político francês. Não é a toa que entre 1945 e 2003 a
legislação francesa sobre imigração tenha sido modificada vinte e sete vezes, isso se
não contarmos as chamadas políticas de integração, que envolvem ações na área de:
habitação, saúde e educação.
3.1 Marco normativo nacional
O Marco Nacional atualmente vigente é marcado por alguns acontecimentos
ocorridos durante os anos 2000. Mais precisamente durante a eleição de 2002, esta se
tornou notável por algumas razões: em primeiro por que a questão migratória tornouse um tema central da disputa eleitoral e em segundo lugar por que o partido de
extrema direita Frente Nacional habilmente soube utilizar isto em sua vantagem. Em
uma votação que surpreendeu o país, o ex-primeiro-ministro de esquerda Lionel Jospin
20
A Lei Pasqua criou uma categoria de estrangeiros que não podiam ser regularizados, mas que também
não podiam ser expulsos, conhecidos como sans papiers. Uma vez que a nova legislação proibia a
regulação a posteriori e a Declaração dos Direitos Humanos impede a separação de uma família,
estrangeiros que entraram irregularmente ou que tiveram seus vistos expirados, e não conseguiram
renova-los, não podiam ser regularizados, mas também não podiam ser expulsos caso tivessem filhos
franceses.
51
ficou de fora do segundo turno de votação, quando o representante da Frente
Nacional, Jean-Marie Le Pen recebeu 16,68% dos votos (CLUVER, 2007).
Já no segundo turno das eleições, após um clamor de parte da sociedade civil,
de organizações humanitárias e até mesmo reações de entidades internacionais em
choque com o resultado eleitoral, Jacques Chirac ganhou as eleições com 82% dos
votos. No entanto, o fato de Le Pen ter ganhado tanto espaço na disputa eleitoral
significa que muitos franceses acreditavam em sua retórica, segundo o qual os
imigrantes eram culpados pelo lento crescimento da economia (CLUVER, 2007). A
partir de então, o retorno de uma política migratória restritiva pôde ser observado
(ENGLER, 2007).
Nicolas Sarkozy, então Ministro do Interior, afirmou em 2003, antes da primeira
de suas reformas nas leis de migração, que a imigração legal consistia apenas sob as
formas nas quais a França era obrigada a aceitar, ou seja, a imigração familiar e o asilo
político (KOFMAN, ROGOZ e LÉVY, 2010). Em 2005, em uma convenção do seu partido
dedicada à imigração, Nicolas Sarkozy afirmou “Pretendo que passemos de uma
imigração sofrida a uma imigração escolhida” (LE MONDE, 2005).
O presidente
decretava que a escolha pertence ao Estado e não aos imigrantes. “O mínimo é que a
França decida quem tem o direito de se instalar em seu território e quem não tem” (LE
MONDE, 2005).
Em junho de 2006 uma nova lei de imigração foi adotada pela França, esta
instituiu uma série de reformas na questão migratória e nas políticas de integração. A
lei estabeleceu um recrudescimento para as políticas de reagrupamento familiar,
origem da maior parte do fluxo migratório ao país, a criação de uma autorização nova
especialmente para trabalhadores qualificados, além de um contrato de integração
obrigatória chamado “contrato de acolhimento e integração” (contrat d’accueil et
d’intégration) para estrangeiros que desejam fixar residência permanente no país. Tal
contrato exige a participação dos imigrantes em aulas sobre a sociedade civil e cursos
de idiomas. A nova lei aboliu também a legalização automática de imigrantes que
viviam na França sem autorização por pelo menos dez anos (ENGLER, 2007).
52
A partir da nova lei foi estabelecida uma divisão entre a imigração “escolhida”
que é do desejo do Estado e a imigração “sofrida”, no entanto, como apontado por
Fassin (2009), tal divisão representa uma contradição fundamental, uma vez que é
uma construção política que não tem lógica coerente, nem é fundamentada
empiricamente. De acordo com o autor:
a primeira [escolhida] é, por definição, uma imigração de trabalho,
enquanto a segunda [sofrida] visa, sobretudo, a imigração familiar.
Entretanto, a oposição entre as duas se desfaz logo que examinamos a
realidade. De um lado, os trabalhadores têm a intenção de ter uma família,
pois sua conduta não é ditada apenas por interesses financeiros. De outro,
as famílias têm a tendência a procurar trabalho, já que as relações humanas
não impedem a lógica econômica. Não se trata, entretanto, apenas de
humanidade, mas também de racionalidade: é absurdo considerar que
família e trabalho existam em mundos paralelos, sem nenhuma relação. A
proposta de Sarkozy não chega, portanto, a ser uma solução: não se poderia
em um mesmo movimento encorajar a imigração “escolhida” e desencorajar
a imigração “sofrida”(FASSIN, 2009, versão online).
Anteriormente em 2005, Sarkozy já havia declarado que a política se baseava
no combate a “fraude nos procedimentos do sistema” (détournements de procedure
systématiques) dos últimos anos, tais como aplicações infundadas de asilo, casamentos
fictícios e vistos de turistas expirados. O então ministro ainda afirmou: “É preciso
entender que se a França pretende continuar a ser um país generoso e acolhedor,
deve demonstrar a sua firmeza para aqueles que abusam e minam a sua
generosidade” (2005, aos executivos da UMP apud KOFMAN, ROGOZ e LÉVY, 2010). Já
em uma entrevista ao Jornal Réforme em maio de 2006, Sarkozy declara:
depende do governo, do legislador, decidir sobre quais circunstâncias o
direito a vida familiar e pessoal se aplica a França. Não haverá um direito
absoluto e incondicional para todas as famílias do mundo se estabeleceram
na França, sem planos para a integração, sem trabalho, sem moradia
adequada, sem futuro. É dentro dessa perspectiva que eu vejo a reforma do
reagrupamento familiar (Jornal Réforme, 2006 apud KOFMAN, ROGOZ e
LÉVY, 2010).
As recentes mudanças nas leis de imigração francesa (2003, 2006, 2007)
refletem o desejo do governo em se afastar das migrações familiares (KOFMAN,
ROGOZ e LÉVY, 2010). É importante lembrar, no entanto, que o direito à vida familiar
tem valor constitucional na França, de acordo com a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem que em seu artigo 8, garante a cada um o direito “ao respeito de sua vida
privada e familiar”. Porém, a partir das mudanças de lei em 2006, o período mínimo de
53
permanência antes de um imigrante poder solicitar o reagrupamento familiar
aumentou de um ano para 18 meses. Além disso, no futuro o candidato a
reagrupamento familiar deverá ser capaz de comprovar renda e que esta seja
equiparada com o salário mínimo legal.
A lei também pretende evitar os casamentos por conveniência. Dessa maneira,
casamentos entre franceses e não-franceses devem agora durar, no mínimo, três anos
antes que uma autorização de residência por um período de dez anos seja concedida.
O cônjuge estrangeiro, além disso, deverá mostrar um conhecimento na língua e um
desejo real de integração. O cônjuge estrangeiro, ademais, deverá esperar por quatro,
ao invés dos anteriores dois, para poder aplicar para a cidadania francesa (ENGLER,
2007).
Em janeiro de 2008 foi realizada a Comissão Mazeaud, presidido por Pierre
Mazeaud, e que foi apresentada ao Ministro da Imigração, sobre o quadro
constitucional da nova política migratória. O relatório observava, que “Se o respeito à
vida privada e familiar é um direito, a reunião das condições às quais está subordinado
seu exercício pode ser objeto de um controle mais firme” (COMISSÃO MAZEAUD, 2008
apud FASSIN, 2009). Através de medidas validadas pelo Conselho Constitucional e a
Corte de Justiça da União Europeia.
A comissão detalhava um programa de luta contra a imigração “sofrida”:
Pela aproximação dos esposos, verificação mais rigorosa da realidade do
casamento, da continuidade da vida comum; apreciação atenta das condições
de benefício e de habitação para o recebimento das crianças; verificação mais
exigente da realidade das relações familiares e educativas antes de conceder a
um estrangeiro o benefício de cuidar das crianças residentes ou francesas;
estudo mais atento dos documentos de estado civil; veto intransigente e
efetivo dos reagrupamentos de famílias polígamas; verificação efetiva do
caráter ‘desigual’ do atentado ao respeito à vida privada e familiar à qual o
Ceseda [Código de entrada e da autorização de residência dos estrangeiros e
do direito ao asilo] submete o reagrupamento familiar (COMISSÃO MAZEAUD,
2008 apud FASSIN, 2009).
Por fim, a comissão confirmava, dessa maneira, a imigração familiar como um
problema ser reduzido (FASSIM, 2009). Diversas, organizações de direitos humanos,
partidos de esquerda e membros da sociedade civil, tem duramente criticado o texto
das leis de 2006 e 2007. O conceito de immigration choisie (imigração escolhida) é
54
descrito como immigration jetable (imigração descartável), uma vez que apenas os
interesses econômicos, e não as próprias pessoas têm prioridade. Inclusive, vários
partidos de oposição propuseram uma ação legal em protesto contra a lei. Porém o
Tribunal Constitucional julgou a ação improcedente em julho de 2006 (ENGLER, 2007).
3.2 Marco normativo internacional
Para a França, no âmbito da normativa internacional, as práticas e experiências
mais relevantes sobre a questão imigratória são as políticas elaboradas pela União
Europeia. Oriundo da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) e da
Comunidade Econômica Europeia (CEE), a União Europeia teve sua criação formalizada
pelo Tratado de Roma em 1957. Porém, foi apenas com a assinatura do Tratado de
Maastricht em 1992 que foi ultrapassado pela primeira vez o objetivo econômico
inicial da CEE de instituições de um mercado comum, conferindo-lhe ambições de
unidade política. Dessa maneira, foi instituída de fato a União Europeia, que permitiu
alargar a cooperação entre políticas nacionais dos Estados Membros, a nível europeu,
à atividade política (FIGUEIREDO, 2005). O Tratado de Maastricht deu origem,
também, à cidadania europeia que abriu uma nova etapa a circulação de pessoas.
A partir da assinatura do Tratado de Maastricht, incorporou-se no sistema
jurídico comunitário a necessidade de desenvolver a tutela dos direitos e interesses
dos cidadãos dos Estados-membros, instituindo-se uma cidadania europeia. A
cidadania é o marco político na construção da UE, e a partir de então os cidadãos que
tenham a nacionalidade de um dos Estados-membros, possuem cidadania
supranacional e passam a ser, efetivamente, cidadãos da União Europeia (FERREIRA,
2005). O Artigo 18 do TCE determina que o direito de circulação e residência não
deriva mais da realização de uma atividade econômica, mais ao status de cidadania
reconhecido aos nacionais dos países membros. No entanto, esse progresso,
especialmente no que se refere à residência, é mais simbólico do que concreto, uma
vez que as condições anteriormente previstas continuam a ser vigentes, como a
55
comprovação de renda mínima e a posse de seguro saúde, ainda como limitações
admitidas pelo próprio tratado (BARALDI, 2011).
Negar a participação política a pessoas que decidiram viver e trabalhar em um
determinado território, e que, dessa maneira, tem interesse no governo ao qual estão
subordinados cria um verdadeiro déficit democrático. É um problema de definição da
comunidade política. Dessa maneira, os direitos políticos conquistados a partir da
Cidadania Europeia, de fato reforçam sua legitimidade democrática e garante, para os
cidadãos europeus, um mínimo de direitos, independente do seu lugar de residência.
Porém, nesse sentido, é importante destacar que o mesmo direito ao voto está
subordinado a decisões estatais, em casos como, o art.14 da Diretiva 109 que permite
aos Estados-membros, cuja proporção de cidadãos europeus em idade de votar supere
os 20% do total do eleitorado, reservar o direito ao voto para os cidadãos com
residência mínima de cinco anos e o direito a elegibilidade aos cidadãos com uma
residência mínima de dez anos. Assim como, a Diretiva 80 de 1994 que regulamenta o
direito ao voto nas eleições municipais, mas que se limita afirmar a possibilidade de
que a participação nas eleições municipais seja estendida também aos nacionais de
países fora da União Europeia que residem legalmente no seu território, caso um
Estado-Membro considere oportuno (BARALDI, 2011).
Já em 1999 foi assinado o Tratado de Amsterdã, no qual as políticas migratórias
voltadas a países terceiros passaram a ser comunitárias no âmbito da União Europeia.
Foi a formalização do até então terceiro pilar 21 da UE, que passou a ter competência
sobre o controle de fronteiras, imigração e asilo, que pertencem ao chamado espaço
de liberdade, segurança e justiça. A questão migratória se centrou em quatro
elementos: associação com os países de origem dos migrantes, uma política de asilo
em comum, tratamento equitativo para os nacionais de países terceiros e uma gestão
mais eficaz dos fluxos migratórios. Era uma política com enfoque multilateral, no qual
se levava em consideração os Estados de origem e uma política de integração.
(FERNANDÉZ, 2013).
21
Os três pilares da União Europeia eram os elementos que constituíam a arquitetura institucional da
UE desde o tratado de Maastricht, em 1992, até o Tratado de Lisboa em 2009. O Terceiro Pilar constituía
na cooperação político e jurídico em matéria penal.
56
No entanto, tal enfoque foi alterado com a emergência do Programa de Haia
em 2004, substituto do Tratado de Amsterdã, que marcava as prioridades nos cinco
anos seguintes para o desenvolvimento de um espaço de liberdade, segurança e
justiça na UE, uma parte fundamental deste programa versa sobre a questão
migratória (FRATTTINI, 2005). Assinado em um momento no qual os atentados
terroristas ocorridos em 11 de setembro em Nova Iorque e em Madrid no dia 11 de
Março, marcavam os debates sobre imigração e segurança, os diversos programas e
diretivas criados desde então tinham um especial enfoque na prevenção e repressão
ao terrorismo, o que acarretou, como definido por Fernandéz (2013), na “A luta contra
o terrorismo e à luta contra a imigração ilegal foram unidos sob o mesmo teto, com
isso corria-se o risco de associar os dois termos, criminalizando a imigração ilegal ” 22
(tradução nossa,p. 161).
É o que ocorreu com o atual programa responsável pela questão migratória, o
Programa de Estocolmo, (2010-2014). Este dá continuidade as medidas adotados pelo
Programa de Haia, de legislar unilateralmente um fenômeno global, a imigração, e a
partir de um único ponto de vista a segurança e o interesse exclusivamente econômico
da UE. “Com esse Programa a UE diz adeus a uma política migratória holística,
multilateral e com base nos direitos fundamentais” 23 (tradução nossa, FERNANDÉZ,
p.163).
Foi nesse contexto, sob o jugo do Programa de Estocolmo e tendo a França na
presidência da UE entre julho e dezembro de 2008, que a União Europeia criou a
chama Diretiva de Retorno. A Diretiva de Retorno, 2008/115/CE, estabelece em seu
Artigo 1º “normas e procedimentos comuns a serem aplicados pelos Estados-membros
para o regresso de imigrantes ilegais de países terceiros”. Residência ilegal é definida
como a presença no território de um Estado-membro, de um nacional de um país
terceiro que não preenche as condições de entrada definidas pelos Códigos de
Fronteira da Área Schengen (Artigo 5º), ou as condições de entrada, estádia ou
residência de um estado-membro. Desde então, imigrantes indocumentados podem
22
Do original: lucha contra el terrorismo y la lucha contra la imigración ilegal se unían bajo um mismo
techo, com lo que se corría el riesgo de asociar ambos términos, criminalizando la inmigrácion ilegal
23
Do original: Con ese Programa la UE dice adiós a una política migratoria holística, multilateral y com
base en los derechos fundamentales
57
ser deportados para o seu país de origem, um país transitório ou outro terceiro país,
no qual o migrante a ser deportado voluntariamente decida ir e que seja aceito. O
imigrante é considerado pessoalmente responsável pelo seu status ilegal, dessa
maneira a deportação sem o seu consentimento é considerada justificada (BERTIN,
FONTANARI e GENNARI, 2013).
Para os autores, Bertin, Fontanari e Gennari (2013), a Diretiva de Retorno não
resulta em um melhor tratamento para os então chamados ‘migrantes irregulares’,
muito pelo contrário, o texto final evidencia o triunfo de uma abordagem baseada na
securitização da questão migratória e que identifica os nacionais de países terceiros
com residência irregular como um risco a segurança de seus países. Assim sendo, de
acordo com os autores:
Tem havido muitos casos problemáticos de repatriação onde muitas vezes
pareceu que o respeito, a dignidade e os direitos humanos fundamentais
das pessoas envolvidas não foram prioridade. Desde sua implantação, esta
nova diretiva europeia tem sido duramente criticada de vários lados pelo
seu enorme impacto sobre o tratamento e os direitos humanos dos
imigrantes em situação irregular no território europeu, até mesmo sendo
definida como "a diretiva da vergonha".24 (tradução nossa, BERTIN,
FONTANARI e GENNARI, 2013, p. 5).
O artigo de maior controvérsia no texto da Diretiva de Retorno é o Art. 16 que
estabelece a detenção de imigrantes. As condições nas quais os Estados possam
ordenar o internamento são: a ausência de uma medida menos lesiva e que o
internamento cumpra a finalidade de preparar o executor para a expulsão.
(FERNANDÉZ, 2013). Essa detenção deverá ocorrer em centros especializados, no
entanto, se o Estado-membro não tiver condições para assegurar aos nacionais de
países terceiros a sua detenção em um centro especializado poderá recorrer a um
estabelecimento prisional, ainda que os nacionais de países terceiros colocados em
detenção fiquem separados dos presos comuns, se possível. A situação dos
estrangeiros nesses centros é de privação de liberdade, semelhante a que se impõe a
presos condenados penalmente. Ao admitir que se recorra à detenção de imigrantes
24
Do original: There have been many problematic cases of repatriation where it has often seemed that
respect, dignity and the fundamental human rights of the people involved have not been given priority.
Since its implementation, this new European directive has been much criticized from many sides for its
huge impact on the treatment and human rights of undocumented migrants in the European territory,
even being defined as “the directive of shame”.
58
em estabelecimentos prisionais a UE dá mais um passo claro a criminalização da
imigração irregular (BARALDI, 2010). Especialmente ao gerar certas dúvidas sobre a
proporcionalidade da medida, já que para assegurar uma possível sanção
administrativa, como estabelecido pelo Art.15.2 que prevê que a internação poderá
ser ordenada por uma autoridade administrativa ou judicial, se utilize do mecanismo
mais grave do código penal, o encarceramento (FERNANDÉZ, 2013).
Ainda que a Corte de Justiça da UE tenha deixado claro que o período de
detenção seja de seis meses, este pode ser prorrogado por mais doze meses caso o
procedimento de expulsão não tenha sido concluído em menos tempo, apesar dos
esforços, em razão da falta de cooperação do estrangeiro ou de atrasos na obtenção
da documentação necessária junto a países terceiros. (BARALDI, 2010).
Por fim, percebe- se um grande recrudescimento das políticas migratórias da
UE na última década, de uma política multilateral com enfoque na integração adotada
pelo Tratado de Amsterdã, a uma política que criminalização o imigrante
indocumentado, como exemplificado pela Diretiva de Retorno (que gerou diversas
críticas por parte de organizações humanitárias internacionais e uma nota de repúdio
da UNASUL, como já citado). Inclusive, de acordo com Fernandéz (2013), a maneira
como a EU aborda a questão migratória é duplamente contraditório, se por um lado
assinou diversos textos vinculantes, como a Carta Europeia de Direitos Fundamentais
ou o Convênio Europeu de Direitos Humanos, assim como a vinculação por ela mesma
comprometida com o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, parece
ficar no papel quando se necessita colocar em prática. A UE não garante o nível de
proteção que a normativa exige e nesse sentido não esta à altura do novo panorama
mundial.
A União Europeia não parece estar atenta às vítimas de uma política restritiva,
como as 1400 pessoas que perderam suas vidas ao tentar cruzar o Mediterrâneo na
sua tentativa de fugir da Líbia, e sim aos seus interesses econômicos, caindo assim na
sua segunda contradição. A UE legisla em atenção a seus interesses econômicos, de tal
maneira que os imigrantes que não são altamente qualificados dificilmente
conseguirão cruzar as fronteiras europeias (FERNANDÉZ, 2013).
59
3.3 Realidade migratória francesa
Atualmente, segundo dados do Institut National d’Études Démographiques25,
8,3% da população francesa é constituído por imigrantes, (5,1 milhões de pessoas),
mas apenas 5,8% (3.6 milhões de pessoas) são estrangeiros sem nacionalidade
francesa.
Ainda de acordo com o mesmo instituto, a parcela de imigrantes na
população tem se mantido estável desde os anos 70, com a chegada de imigrantes
sendo compensada pelas partidas e mortes. No entanto, a composição da população
de imigrantes está mudando. A proporção de imigrantes nascidos na Espanha e Itália
que chegam ao continente tem diminuído, enquanto a parcela de imigrantes norteafricanos hoje em dia é bastante significativa. A proporção de imigrantes da África
subsaariana, Turquia e Ásia vêm aumentando nos últimos anos.
As medidas restritivas adotadas pelo Estado francês ao longo dos anos tem
gerado diversas tensões na população migrante do país, como evidenciado pelos
acontecimentos de Novembro de 2005, que começaram pela morte de dois jovens de
origem magrebina e se transformaram em um palco de contestação política por parte
dos imigrantes. Os distúrbios puseram abaixo a cortina que existe entre as cidades
ricas e os subúrbios que abrigam em sua maioria imigrados do magrebe e
da
África
Ocidental, que nunca puderam se integrar à sociedade francesa, e se transformaram
em uma subclasse acostumada com a discriminação e falta de esperanças. (THE
GUARDIAN, 2005).
Em 2010, com o intuito de demonstrar a importância da população migrante na
economia do país, organizaram o La journée sans immigrés (dia sem imigrantes). Uma
campanha que chamava a atenção para o direito dos imigrantes e que foi organizada
justamente para coincidir com o aniversário da introdução de restritivas leis francesas
de migração, em 1º de Março de 2005. Os organizadores pretendem demonstrar que a
25
Disponível em: <https://www.ined.fr/en/everything_about_population/demographic-factssheets/faq/how-many-immigrants-france/>
60
imigração não é um fardo, nem um peso para se carregar e sim uma oportunidade
para a França.26
Por fim, as perspectivas sobre questão migratória na França assumiram um
papel ainda mais retrógrado com a eleição do Front National ao Parlamento Europeu,
com cerca de 26% dos votos, que lhe concede o direito de ocupar 20 cadeiras no PE.
Com uma retórica nacionalista e xenófoba, enxergam no imigrante o maior problema
da França, responsável por dificuldades econômicas e sociais do país. O discurso
xenofóbico do presidente de honra do partido Jean-Marie Le Pen, de que o ebola pode
resolver o problema da imigração na França em apenas três meses 27, exemplifica as
posições do partido com relação à migração.
26
Disponível em: <http://www.english.rfi.fr/economy/20100301-france-spends-24-hours-withoutimmigrants>
27
Disponível em: <http://www.publico.pt/mundo/noticia/ebola-pode-resolver-o-problema-deimigracao-da-europa-considera-jeanmarie-le-pen-1636950>
61
CONCLUSÃO
A tradição do Estado-nação, com suas concepções de cidadania vinculada ao
status de nacionalidade, colocam o migrante internacional em uma condição apolítica.
O qual, como conceituado por Redin (2013), se torna um “não-sujeito”,submetido a
condição de objeto de produção econômica.
Ao longo deste trabalho foi realizado um diagnóstico de como as políticas
migratórias se estruturam em torno da irregularidade, o que caracteriza a migração
como um problema, abre caminho para a criminalização e a implementação de
políticas seletivas. Assim como, a violência que o status de irregularidade trás a pessoa
migrante, seja ao força-la a adotar medidas drásticas para ingressar em um país, ou já
dentro do Estado a negação de direitos como, por exemplo, participar do processo de
decisão política, o de negação a alguns serviços públicos básicos, e até mesmo a sua
criminalização.
O direito a migração internacional não é apenas mais um direito a se
acrescentar ao rol de direitos de todo o ser humano, na realidade faz parte de um
incentivo ao respeito dos direitos já existentes no âmbito internacional. Como por
exemplo, o direito à livre escolha do emprego (art. 23 da Declaração Universal dos
Direitos Humanos), ou o direito a um adequado padrão de vida (art. 25 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos). Dessa maneira, pode-se falar em um paradigma da
mobilidade aplicado às migrações, que leve em conta a implicação de direitos ligados à
cidadania, a segurança e a diversas outras políticas a essa relacionadas.
A necessidade de uma cidadania não excludente a partir do paradigma da
mobilidade reflete-se em diversos níveis e práticas políticas. Inclusive a concepção de
cidadania como prática e não como status ligado a nacionalidade, deriva do
atendimento a determinados requisitos, como a superação das fronteiras como
barreiras ao acesso à cidadania, a partir da qual passa a existir uma integração efetiva
do migrante, e não mais uma dominação. A experiência do Brasil, no âmbito do
MERCOSUL, com o Acordo de Residência, como já visto, possui traços iniciais que
62
podem vir a ser uma transformação da cidadania a partir do tratamento das
migrações. (BARALDI, 2014).
Já com relação à cidadania europeia, que à época de sua criação foi festejada
como uma inovação, no entanto, os seus limites não demoraram a aparecer.
Refletindo os limites do próprio processo regional, que apesar de suas modificações,
nunca perdeu a centralidade comercial. Como sabe- se atualmente, a cidadania
europeia, é uma cidadania a critério nacional e economicamente fundamentada, ou
seja, é duplamente excludente. (BARALDI, 2014).
Somando-se a isso existe o receio dos países de serem invadidos por hordas de
migrantes, que como definido por Baraldi (2014), “é a fantasia do medo que
acompanha a rejeição ao paradigma da mobilidade” (p. 118). Na França havia a
expectativa de migrações em massa a cada novo alargamento, o que não ocorreu. No
Brasil, muitos migrantes bolivianos e paraguaios passam grandes temporadas em seus
países de origem, e retornam ao país para outras temporadas de trabalho.
A dinâmica das migrações internacionais atualmente é bastante afetada pelo
fortalecimento do regime internacional de direitos humanos. No entanto, diversos
Estados ainda adotam medidas que condicionam a questão migratória como um
problema de segurança estatal, do qual a segurança e a integridade dos Estados devam
ser defendidas. Sendo assim, esse trabalho procurou responder de que maneira o
Brasil e a França abordam a questão migratória, através de uma política condizente
com os direitos humanos e o paradigma da mobilidade ou como uma prática a ser
combatida e criminalizada.
O Brasil ainda em seu marco normativo nacional possui um estatuto que trata
da questão migratória a partir da ideia de defesa do mercado de trabalho e de
segurança nacional. Tal norma, que data do período da ditadura militar, na prática
promove uma grande irregularidade, pois seus dispositivos já estão desatualizados
com a nova realidade brasileira de retomada dos fluxos imigrantes. Dentre estes,
destaca-se por não possibilitar a regularização do status do imigrante quando já dentro
do Estado brasileiro. Ou seja, se entrou com um visto de turista e conseguiu um
trabalho e decidiu ficar, não conseguirá a obtenção do visto específico de trabalho. A
63
atual norma prevê um excesso de burocratização, demora e dificuldade na obtenção
de documentos.
No entanto, é necessário reconhecer medidas positivas no tratamento do
imigrante pelo Estado brasileiro. Nas três últimas décadas o Estado realizou três
grandes anisitias, ainda que a necessidade destas anistias demonstre o problema do
atual Estatuto do Estrangeiro, demonstra também, certa boa vontade do Estado
brasileiro em lidar com a questão. É importante destacar as políticas migratórias que
ocorrem no âmbito de integração regional, como inovadora e positivas, o exemplo
mais claro é a regulamentação do, já citado, Acordo de Residência do Mercosul.
Por fim, os maiores avanços do Brasil em relação a uma política migratória
baseada em direitos humanos, se encontra nas perspectivas e nos debates atuais
acerca da imigração. Após discursos proferidos pelo então Presidente Lula, no qual
clamava o tratamento da questão migratória, como mais um exemplo que o Brasil
gostaria de dar para o mundo, especialmente quando se tem como paralelo a política
de dos países mais desenvolvidos pela questão. Esta posição de exemplo, só será
formalmente estabelecida com a aprovação do Anteprojeto de Lei de Migrações, que
alinharia a política migratória com a Constituição de 1998 e com os tratados de direitos
humanos em vigor no Brasil.
No caso do Estado francês, o debate sobre migrações ocupa um papel de
destaque no âmbito político do país. Tendo, inclusive, um importante papel nos
enfrentamentos políticos de partidos de direita e esquerda durante as campanhas
eleitorais e no Parlamento. Dessa maneira, os marcos normativos sobre a questão
migratória estão em constante mudança e reformulações. Os marcos atualmente em
vigor são extremamente rígidos e enfocam especificamente o combate a imigração
familiar, que passa a ser um problema que precisa ser reduzido.
A nova lei estabelece uma divisão entre a imigração “escolhida” que vai de
encontro ao desejo do Estado e a imigração “sofrida”, que deve ser combatida e
reduzida. Porém, como já apontado tal divisão representa uma contradição
fundamental, uma vez que é uma construção política que não tem lógica coerente,
nem é fundamentada empiricamente.
64
No âmbito jurídico internacional, mais uma vez notam-se políticas altamente
restritivas, como exemplificado pela chamada Diretiva de Retorno que em seu texto
evidencia o triunfo de uma abordagem baseada na securitização da questão migratória
e que identifica os nacionais de países terceiros com residência irregular como um
risco a segurança de seus países, além de na prática, criminaliza-los.
Por fim, o caso francês no âmbito de perspectivas futuras e atuais debates
sobre a questão migratória, comprova o enrijecimento das medidas migratórias. Os
protestos que ocorreram no ano de 2005 e as greves da população migrante não
foram suficientes para promover um clamor popular, que nas eleições ao Parlamento
Europeu, elegeu o partido de extrema-direita Front National com 26% dos votos, se
tornando o maior partido francês no Parlamento. O partido além de nacionalista e
xenófabo, prega a saída da França da União Europeia e a adoção de medidas, que não
são apenas restritivas na questão migratória, e sim um verdadeiro afronte aos direitos
humanos. Além de já contar com medidas restritivas e de securitização, as
perspectivas futuras do país na questão migratória são ainda mais retrógradas e
contraditórias com ideal de direitos humanos.
65
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