“Quanto vale ou é por quilo?”: relíquias machadianas de um Brasil antigo?
Tatiana Sena
RESUMO: A partir da articulação entre o conto Pai contra mãe, de Machado de
Assis, e a livre adaptação cinematográfica deste texto no filme Quanto vale ou é por
quilo? (2005), de Sérgio Bianchi, a pesquisa analisa, mediante uma leitura
intersemiótica, como as obras em questão dialogam com a história do Brasil,
enfatizando os impasses da formação sócio-econômica e cultural do país, marcada pelo
escravismo e pela exclusão social. Ao atualizar o roteiro machadiano, Bianchi costura
dois planos temporais, mostrando o quanto dos séculos XVIII e XIX persiste e
ressignifica-se no século XXI do tempo brasileiro.
Palavras-chave: literatura; cinema; história do Brasil
A história do Brasil encontra na literatura um espaço privilegiado de reinvenção,
no qual a rememoração ficcional de episódios consagrados ou esquecidos da história
nacional frequentemente possibilita a reativação diferencial dos imaginários que
plasmam a memória cultural do país, visibilizando conflitos e impasses recalcados nas
versões oficiais do discurso brasileiro. Para o escritor e crítico literário Silviano
Santiago, “a memória histórica no país é uma planta tropical, pouco resistente e muito
sensível às mudanças” (2004, p. 148), citando como exemplo dessa falta de memória
nacional o narrador de Dom Casmurro, o lacunar Bentinho. Nas obras machadianas, a
rememoração é uma busca não apenas subjetiva, mas também social, como podemos
notar pelo cinismo corrosivo com que o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas
explicita as máscaras sociais da elite nacional no século XIX. Justamente pelo talento
com que realiza esse entrelace entre narradores esquecidiços e memorialistas, o escritor
Machado de Assis é o autor que melhor evidencia, através de um foco narrativo oblíquo,
os elementos contraditórios que compõem a história brasileira no século XIX.
Descerrando múltiplos significados desse século, em que grandes embates ideológicos
foram travados em torno da formação racial e escravocrata brasileira, Machado de Assis
traz à cena a formação ética de uma elite parasitária e pouco propensa a discussões mais
aprofundadas sobre a cidadania.
Conforme a antropóloga Lilia Schwarcz, no seu artigo “Raça como negociação”,
no Brasil, durante o século XIX, os intelectuais da época “entendiam a questão nacional
a partir da raça e do indivíduo, mascarando uma discussão mais abrangente sobre a
cidadania” (2000, p. 22). A introdução da questão racial no cenário brasileiro permitiu a
naturalização de diferenças sociais, políticas e culturais, sendo as teorias dos darwinistas
sociais bastante difundidas, contudo deixava inquietações sobre qual poderia ser o
futuro de um país reconhecidamente miscigenado. O Brasil particularizou o modelo
racial, selecionando das teorias os trechos que eram convenientes ao projeto nacional.
Os centros acadêmicos da sociedade brasileira, apesar dos diferentes enfoques e
atuações, contribuíram para a naturalização das diferenças. Enquanto na Escola de
Direito do Recife se processava a adequação das teorias de raça à realidade brasileira, a
Escola de São Paulo foi responsável pela adequação prática das teorias, promovendo
uma política imigratória seletiva. Houve uma complementariedade nas atuações desses
centros acadêmicos. As escolas de Medicina também tiveram atuações complementares.
Na Bahia, as teses de medicina legal, sob orientação de Nina Rodrigues, afloraram,
repercutindo as idéias de Lombroso. Os médicos baianos criticaram o que seria um jusnaturalismo no Código Penal, ao prever uma igualdade jurídica para seres racialmente
(“essencialmente”) desiguais. Por sua vez, os médicos cariocas vinculavam pobreza à
mestiçagem e estas à falta de higiene, por isso preconizavam drásticas intervenções
higiênicas, nas camadas mais pobres, a fim de sanear, via eugenização, a densidade
populacional dos negros, então entendidos como estrangeiros, no contexto nacional. As
teorias raciais, no Brasil, serviram para solapar o debate pela cidadania, visto que
tornaram indesejada a parcela negra da população. Embora, nas duas primeiras décadas
do século XX, tenha ocorrido uma reconfiguração crítica das teorias raciais no ambiente
acadêmico, houve uma disseminação dessas teorias na prática cotidiana da existência
social brasileira, tornando-se senso comum expressões de cunho racista. Somente na
década de 1930 ocorreu uma mudança paramétrica do conceito de miscigenação: o que
era negativo foi realçado como traço positivo de identidade. Nesse contexto, reemerge o
“mito das três raças”. Gilberto Freyre, em seu Casa Grande & Senzala (1930), procura
consolidar essa imagem mítica, abrindo espaço para um outro famoso mito brasileiro: o
da democracia racial. Contudo, ao priorizar o discurso mítico da formação racial
brasileira, como assinala Schwarcz (2000), Freyre expôs o quanto a questão racial é
importante entre os brasileiros e que se fazia necessário refletir sobre tal importância no
processo de socialização e formação nacional. O “mito da democracia racial” continua
repercutindo nas representações que o país faz de si, demonstrando o quanto o Brasil
ainda se identifica pela raça.
Por seu memorialismo implacável, que deixa entrever um pessimismo latente com
a realidade nacional e com a condição humana, ou ainda com a condição subumana, as
obras de Machado de Assis têm sido constantemente revisitadas e recriadas, ao longo de
mais de um século, por diversos autores que procuram rediscutir a realidade social
brasileira. Nas últimas décadas, muitos cineastas se propuseram à transposição fílmica
de narrativas machadianas. A partir da articulação entre o conto Pai contra mãe, de
Machado de Assis, e a livre adaptação cinematográfica deste texto no filme Quanto vale
ou é por quilo? (2005), de Sérgio Bianchi, analisarei como as obras em questão
dialogam com a história do Brasil, enfatizando os impasses da formação sócioeconômica e cultural do país, marcada pelo escravismo e pela exclusão social.
O conto Pai contra mãe, publicado em 1906, no livro Relíquias da Casa Velha,
aborda um desses esquecimentos mais sintomáticos da memória nacional: a escravidão
como a instituição social que organizou a vida sócio-econômica brasileira desde o
século XVI. Para o historiador Luiz Felipe Alencastro (2005), em palestra na
Association Lacanienne Internationale, “a instituição forma uma tela de fundo, um
elemento do cenário em que se desenrola a trama. Nesse conto a escravidão é o próprio
centro da história”. O conto narra uma história de fuga e perseguição, destacando
estranhas simetrias que constituem a ordem repressiva escravocrata, à qual se ligaram
Cândido Neves, caçador de escravos foragidos, e Arminda, uma jovem mulata foragida,
apresentando como a escravidão envolvia aparelhos, ofícios e pessoas. Pressionado pela
má condição financeira e pela iminência de ter que deixar o filho recém nascido na
Roda dos enjeitados, Candinho seleciona o anúncio de recompensa pela captura de
Arminda, e passa a procurá-la pelas ruas do Rio de Janeiro. No dia em que entregaria o
filho, Candinho consegue capturar Arminda, que está grávida e implora pela liberdade.
Diante da inclemência do caçador, ela luta até o limite de suas forças, mas, ainda assim,
é devolvida ao dono, abortando na frente deste e do caçador de escravos. Candinho
volta para casa com o filho e pondera que “nem todas as crianças vingam”. Como
salientou Luiz Felipe Alencastro, o conto Pai contra mãe apresenta “uma situação
extravagante: um proletário que ganha sua vida capturando escravos fugidos, pessoas
que são tão pobres quanto ele. Mas esse proletário possui uma profissão que reforça a
escravidão. Seu trabalho propaga o terror entre os negros e constitui uma lembrança
permanente da presença da instituição.” (Alencastro, 2005).
Através de um narrador dissimulado, o conto se inicia enfatizando que “a
escravidão levou consigo ofícios e aparelhos” (Assis, 1982, p. 200). O verbo no
pretérito perfeito e a minuciosa descrição que se segue dos aparelhos da escravidão,
como se estes fizessem parte de um passado muito remoto, parecem encenar um
distanciamento temporal excessivo. Esse recurso irônico apenas enfatiza os
esquecimentos estratégicos da memória nacional, haja vista que da Abolição da
escravatura até a data de publicação do conto decorrera menos de duas décadas.
Entretanto, o autor simultaneamente inscreve na memória cultural brasileira, de forma
indelével, a crueldade da escravidão; afinal, como o narrador considera ao rememorar a
máscara de folha-de-flandres, “era grotesco tal máscara, mas a ordem social e humana
nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”. O conto Pai contra mãe
pode ser considerado como um memorial literário que ajuda na recomposição revisão
crítica dos arquivos da escravidão e do racismo no Brasil.
O ferro ao pescoço, o ferro ao pé e a máscara de folha-de-flandres são os
aparelhos com que o terror escravista instaurou uma pedagogia que subjugava os
escravos e os fixava numa condição subumana de existência, pois, como o narrador
assinala, era “menos castigo que sinal” (Assis, 1982, p. 2000). As justificativas
apresentadas para o uso de tais aparelhos, assim como a venda destes à porta das lojas
de funilaria, acentuam a naturalidade com que aquela sociedade vivenciava a tortura,
agenciando valores sociais distorcidos por uma lógica de exploração fria e
desumanizante. Afinal, para expurgar os “vícios” e os “pecados” dos escravos,
assegurando a “sobriedade” e a “honestidade” da ordem social, era preciso a dor e a
mutilação, cuja dosagem não era mensurada pelo aspecto humano, mas pelo valor
monetário, já que, como ressalta o narrador, “o sentimento da propriedade moderava a
ação, porque dinheiro também dói” (Assis, 1982, p. 2000). O Código Penal Brasileiro
de 1838 possibilitava que se transformasse qualquer penalidade contra os escravos em
pena de açoites. Dessa forma, “legaliza-se e perpetua-se, até 1888, a tortura em um
segmento específico da população, os escravos, que eram sempre negros e mulatos.
Essas deformações do sistema penal deixarão, é claro, profundas seqüelas no Brasil de
hoje.” (Alencastro, 2005).
A máscara de folha-de-flandres aparece então como um signo da sociedade
brasileira até o século XIX, pois traduzia a mentalidade predatória que procurava não
apenas silenciar, mas também aniquilar as subjetividades dos escravos, emudecendo
suas vozes e apagando suas faces. A máscara de folha-de-flandres não era, pois, um
disfarce social, era uma marca, um estigma, a máscara mais explícita de interdição no
jogo social dissimulado do Brasil, pois, longe de esconder uma identidade, ressaltava-a.
Embora o narrador do conto advirta, “mas não cuidemos de máscaras” (Assis, 1982, p.
2000), o escritor Machado de Assis parecia ter uma obsessão por máscaras. Não para
“desmascarar” socialmente, como o poeta Gregório de Matos, no século XVII, fazia
com suas sátiras aos “fidalgos caramurus”, a partir de um local social de quem se
considerava merecedor legítimo das regalias sociais que estavam sendo “usurpadas”
pelos de “sangue de tatu”, mestiços filhos de portugueses com as índias, mas para
perscrutar o drama moral dos que, conseguindo participar do jogo social, aproveitavam
as brechas do poder instituído para ascender socialmente. Não raro, a história moral dos
personagens machadianos evidencia “a passagem, a ruptura e a consciência da ruptura”
(Bosi, 1982, p. 440) dos que cruzaram fronteiras sociais, à custa de máscaras.
Para o crítico literário Alfredo Bosi, o signo da máscara é uma chave de leitura
muito produtiva para compreender como Machado de Assis disseca as ambigüidades da
subjetividade entre o ser e o parecer, já que “a vida em sociedade, segunda natureza do
corpo, na medida em que exige máscaras, vira também irreversivelmente máscara
universal” (Bosi, 1982, p. 441). A máscara adere à face, tornando-se, mais do que mera
aparência, a única possibilidade de ser no jogo instituído pela mise-en-scène do
escravismo “paternalista”. A simulação não é apenas estratégia, é regra moral de uma
sociedade ambivalente, em que o jogo ardiloso com as máscaras que forjamos no espaço
público demarca nosso local dentro de posições sociais assimétricas e rigidamente
hierarquizadas, excluindo e subalternizando os que não se adequarem à regra. Alfredo
Bosi, ressaltando os estudos da crítica literária Lúcia Miguel Pereira, acredita que o
signo da máscara longe de ser apenas um recurso estilístico seria a “chaga existencial do
homem Machado que passou de uma classe para outra cortando os laços que o
amarravam à infância pobre” (Bosi, 1982, p. 440).
É justamente enfatizando a simbologia da máscara, especificamente a crueldade
coisificante da máscara da folha-de-flandres, que o cineasta Sérgio Bianchi pretende
fazer a junção e a transição temporal entre passado e presente na narrativa de Quanto
vale ou é por quilo?. Através de uma construção híbrida, em que são entrecruzadas
múltiplas linguagens, discursos, tempos, locais de enunciação e memória diferenciados,
o filme desenvolve um jogo articulador de micronarrativas, que recriam e atualizam os
dilemas inscritos no conto Pai contra mãe, acrescido de problematizações oriundas de
intersecções historicizantes, baseadas nas crônicas do Brasil no século XVIII, coligidas
por Nireu Cavalcanti no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e reunidas no livro
Crônicas históricas do Rio colonial, lançado em 2004.
Nesta transposição fílmica, Arminda é moradora de uma favela carioca, envolvida
na implementação de um projeto de informática na comunidade, em parceria com uma
organização não-governamental, a Stiner, uma empresa especialista em marketing
social. Candinho é um desempregado que, se colocando a serviço de pequenos
comerciantes, transforma-se numa espécie de “justiceiro” no bairro popular em que
mora, matando jovens acusados de furtos. Quando Arminda denuncia as irregularidades
na compra superfaturada de computadores pela Stiner, um dos sócios da empresa a
sentencia de morte. Candinho é então contratado. O desfecho do filme apresenta duas
possibilidades de conclusão. Na primeira, Arminda é sumariamente executada por
Candinho. No segundo final, Arminda propõe a Candinho uma sociedade numa central
de seqüestros, na qual os dois redistribuíssem a renda compulsoriamente.
Ao atualizar o roteiro machadiano, Bianchi nos incita a perceber que, se a
escravidão levou consigo aparelhos e ofícios, bem mais duradouros se mostram os
valores e as práticas que estruturavam aquela instituição social, visto que, extinta por
decreto, seus códigos e sistemas não deixaram de lastrear o cotidiano brasileiro nos
contextos pós-abolicionistas, reemergindo em formas ressignificadas. A atuação dos
mesmos atores protagonizando cenas em épocas distintas, mas adotando práticas
análogas, enfatizam uma estranha e persistente lógica de dominação. Quanto vale ou é
por quilo? deixa muito nítido a construção do discurso e da ética dominante na
sociedade brasileira em diferentes séculos, explicitando a ferocidade com que a elite
atua na manutenção da cadeia de exploração social, mas também assinalando a
frivolidade de seus relacionamentos com as camadas menos favorecidas da população.
A cena em que uma socialite, Marta Figueiredo, meticulosamente coreografa
lugares e expressões, a fim de produzir uma fotografia com crianças pobres, tendo as
casas de alvenaria da favela ao fundo, evidencia o tom caricatural dessas relações. Ao
ocupar o centro da fotografia, a socialite desliga-se do cenário, demonstrando sua
imiscibilidade com este. Durante a cena, uma narração em off explica que “doar é um
instrumento de poder”, mesmo diante de cenas que causam “nojo, espanto, piedade,
carinho, felicidade e, por fim, alívio. E ainda faz uma boa dieta na consciência”.
O filme critica a elite nacional, cuja ojeriza e medo ao contato com as camadas
populares ficam explícitos. Denuncia os conchavos e as alianças com os quais a elite
mantém o controle sobre os postos estratégicos e sobre o capital nacional, utilizando
inclusive as ONG’s para a lavagem de dinheiro de operações ilícitas das empresas
nacionais. O poder simbólico é exercido de forma sub-reptícia, mas com uma eficiência
ímpar, como podemos perceber na cena em que, durante a recepção do “Prêmio
Inovação Solidária”, o personagem Ricardo Pedrosa, um dos sócios da Stiner,
desarticula um protesto contra ele, convidando os manifestantes a adentrarem no Teatro
Municipal e a participarem do evento. Diante do misto de deslumbre e acanhamento, em
vista do requinte e suntuosidade do local, Ricardo Pedrosa indaga aos manifestantes:
“vocês já estiveram aqui antes?”, apresentando-se como o anfitrião histórico
preferencial, hábil para promover a conciliação entre regras sociais que escapavam ao
universo dos manifestantes, postos à margem das estruturas do poder cultural no país.
Bianchi monta um mosaico sócio-racial em que o Brasil marcadamente
hierarquizado explicita seus paradoxos e conflitos, estigmatizando prioritariamente
negros, mulheres e pobres. Talvez por isso, observar a trajetória de Arminda, que
entrelaça as três identidades historicamente mais fragilizadas em nossa nação, permitanos compreender uma dimensão importante da formação social do Brasil. No conto Pai
contra mãe, a fuga de Arminda marca sua resistência na luta pela sua libertação.
Quando recapturada e reconduzida ao cativeiro, percebemos como eram quase
impossíveis as possibilidades de fugir à sua condição de aniquilamento social, já que ela
quis gritar, mas “entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário” (Assis, 1982,
p. 204). Diante da iminência dos açoites que o senhor lhe daria pela fuga, Arminda
suplica a Cândido Neves que a liberte devido a sua gravidez, ao que o caçador faz
questão de ressaltar: “Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir
depois?” (Assis, 1982, p. 204). A falta de perspectivas sociais e existenciais da
personagem culmina com a cena do aborto, como narrado: “no chão, onde jazia, levada
do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou” (Assis, 1982, p. 205),
em que se aborta não apenas o fruto do seu ventre, mas, sobretudo a possibilidade de
uma descendência, de um outro futuro, de uma outra história.
No filme Quanto vale ou é por quilo?, Arminda busca melhorias para o projeto de
informática da comunidade, mas encontra apenas equipamentos sucateados, descaso e
morte por parte dos responsáveis pelo empreendimento “solidário”. Também podemos
perceber a mesma subalternização na história emudecida e posta sempre em segundo
plano da personagem Fátima, uma menina negra, com cerca de dez a doze anos. Ela é
“dada” por tia Mônica à personagem Noêmia, para pagar uma dívida não apenas
financeira, mas de gratidão, pelo favor recebido. Quando Mônica “pega” a menina para
“criar”, ressalta que ela terá “comida boa todo dia” e seria tratada “como filha”, mas,
quando vai ser “repassada” para dona Noêmia, Mônica enfatiza as qualidades de Fátima
como “prendada”, “limpinha” e que “não come quase nada”.
O título do conto Pai contra mãe concentra uma tensão não apenas de gênero, mas
também racial, se levarmos em consideração as dinâmicas opressivas derivadas do
patriarcalismo racialista. Do ponto de vista matrilinear, a ascendência brasileira é
majoritariamente constituída por negras e índias, cujas heranças culturais são sempre
invisibilizadas. Ainda no século XVII, o poeta Gregório de Matos considera que
“milagres do Brasil são” (Matos, 1989, p. 46) mascarar a ascendência materna nãobranca, motivo de estigma e vergonha, que deveria ser camuflada inclusive pela
falsificação da própria linhagem. Um outro exemplo lapidar de tais posturas é o
personagem Amleto Ferreira, do romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo
Ribeiro. Mulato e sarará, quando ascende socialmente, Amleto Ferreira apressa-se tanto
em falsificar a certidão de nascimento, como também tenta apagar as marcas simbólicas,
vincadas no próprio corpo, de uma ascendência desprivilegiada, utilizando-se de várias
máscaras sociais e ideológicas. Dessa forma, percebemos que, do ponto de vista
patrilinear, a reprodução do modelo patriarcal e embranquecedor mostra-se quase
indispensável para a mobilidade social dos setores subalternizados pela racialização.
Embora não seja apresentada nenhuma informação sobre as características raciais
de Candinho no conto Pai contra mãe, podemos inferir duas possibilidades: ou o
personagem é um branco pobre ou é um mestiço de tez clara. Para o crítico Alfredo
Bosi, Cândido Neves é “pobre, mas branquíssimo até no nome” (Bosi, 1982, 455).
Entretanto, parece-me instigante considerar como a transgressiva ironia machadiana
pode nos abrir outros espaços interpretativos para essa dúbia caracterização, sinalizando
através desses nomes, digamos, “alvejantes” um trabalho de compensação
“branqueadora” protagonizado por Cândido e Clara, tendo em vista mascarar a condição
de mestiços na qual mais possivelmente ambos se situavam, tal como sugere o seguinte
trecho: “O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objetos de trocados,
Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se
sem esforço” (Assis, 1982, p. 201). A lógica deslocadora do embranquecimento na
sociedade brasileira fica assim ironicamente indicada e questionada, já que os
significados sócio-culturais para a “brancura” não estão associados à pobreza. Talvez
por isso o casal consumasse nos nomes, máscaras patronímicas, um sentido que lhes era
negado socialmente.
Na releitura do cineasta Sérgio Bianchi, Candinho aparece como um mestiço. Já
Clara é uma jovem que aposta na tintura loira do cabelo como um investimento na
imagem. Como ela considera ao folhear uma revista de celebridades, é preciso “se sentir
que nem eles, para ser que nem eles”. Nota-se em todo o filme a preocupação do diretor
em discutir como a manipulação dos signos corpóreos e estéticos, pautada
contemporaneamente nas máscaras publicitárias e midiáticas, que reforçam a lógica da
simulação racial como regra básica da construção do valor social na realidade brasileira,
lógica acentuada pelo consumismo globalizante.
Outro momento importante nessa problematização identitária no filme verifica-se
na seqüência em que uma propaganda de uma ONG é gravada: os profissionais se
esforçam por cumprir as exigências do contratante, que estipulou um percentual de 75%
de crianças negras na peça publicitária. Os traços corporais, como pele e cabelo, são os
critérios de identificação usados, a fim de buscar o “mais preto” nas crianças
envolvidas. Quando o produtor de elenco olha para um menino de pele escura, exclama
“ah, esse é 100%, tem até pedigree!”, ao que a representante da ONG, uma personagem
negra, reclama, fazendo um discurso exaltado sobre “dívida histórica” e representação
midiática. Arminda, que assiste a cena de longe, vê naquelas crianças a imagem de
crianças escravas enfileiradas, amarradas, defronte a uma mesa farta.
Penso que tais questões são sintetizadas de forma bastante produtiva numa
seqüência que não foi incluída no filme, mas que foi disponibilizada nos extras da
versão para DVD de Quanto vale ou é por quilo?. Nesta cena que ficou de fora, após
uma discussão de teor racial durante uma apresentação de teatro de rua, a personagem
de Arminda questiona: “como é que se cobra uma dívida histórica? É mostrando que o
negro é bom, o negro é lindo? Ou é mostrando o saldo podre de tudo isso com uma faca
encostada na garganta do devedor?”.
A violência urbana tem sido um dos aspectos mais dilemáticos da sociedade
brasileira nas últimas décadas. O escritor Zuenir Ventura, em seu ensaio “A cultura da
violência” (2001), considera que a história do Brasil é marcada por uma violência
exacerbada, sempre exercida de cima para baixo, enfatizando que não são apenas os
pobres que respondem às tensões sociais com violência que é muito mais abrangente e
não se resume à criminalidade. Para Ventura, “a cultura da violência é um padrão de
relacionamento entre pessoas, que estamos absorvendo e reproduzindo opressivamente
em nosso cotidiano” (2001, p. 346). Em Quanto vale ou é por quilo?, o presidiário,
representado Lázaro Ramos, dispara: “esse é nosso navio negreiro”, estabelecendo
paralelos temporais ao fazer uma analogia entre o sistema carcerário e o sistema
escravocrata no Brasil. Dos escravos, que “eram tudo máquina” desde e século XVI, até
os presos que são “escravos sem dono”, na contemporaneidade, o personagem chama a
atenção para uma história de objetivação. E se o Estado brasileiro aceita custear um
presidiário por mais de três salários mínimos, na época, o personagem provoca: “isso
diz alguma coisa sobre nosso país”. Considero que essa “coisa” se relaciona com a
estrutura dicotômica forjada desde o período colonial, marcada pelo escravismo, que a
classificação de Gilberto Freyre traduz magistralmente: Casa Grande & Senzala. O
desrespeito ao outro não é apenas circunstancial em nossa cultura, é um traço cultural, o
modo como “repartimos nossa compreensão de mundo entre nós e os outros” (Ventura,
2001, p. 349).
Durante uma visita da mãe, o presidiário vocifera: “acho que eles têm que sofrer
um pouco, para passar um pouco de opressão, para ser mais justo”. Para a psicanalista
Maria Rita Kehl, nos extras do filme em DVD (2005), essa é a “revanche possível” dos
que “não têm esperança de reverter para si” a expectativa de uma vida melhor. O quadro
de desesperança com a realidade nacional, delineado pelo cineasta Sérgio Bianchi, tem
seus tentáculos fincados não apenas no presente, mas também no passado brasileiro. O
pessimismo de Bianchi parece reativar a visão pessimista inscrita no conto machadiano.
Os discursos que sublimavam o “cruel” e o “grotesco” das desigualdades sócio-raciais
no imaginário brasileiro encontram-se erodidos frente a uma realidade que impõe o
consumo, mas que não fornece condições de efetivá-lo. Como o presidiário de Quanto
vale ou é por quilo? provoca: “O que vale é ter liberdade para consumir, essa é a
verdadeira funcionalidade da democracia”.
Tanto o conto quanto o filme dialogam com a história de discussões democráticas
podadas, postergadas e contemporizadas, devido às pressões políticas que visavam,
apenas, interesses momentâneos e, via de regra, da elite nacional. O debate sobre a
cidadania, que desde o século XIX ficara obstruído, encontra no campo cultural um
espaço produtivo que questiona não apenas o presente, mas também o passado histórico
da nação. Na “memória tropical” brasileira, constantemente rebrota todas as
contradições da formação sócio-histórica nacional. Se aguçarmos nosso olhar para os
códigos que estruturam o cotidiano do país, perceberemos o quanto dos séculos
passados está presente, de forma ressignificada, na contemporaneidade brasileira, como
o cineasta Sérgio Bianchi demonstrou com a transposição do conto Pai contra mãe,
uma das narrativas machadianas mais cruéis com a realidade social brasileira, mas que
ainda mantém sua pertinência. Dessa forma, se entendermos que a casa velha não se
refere apenas à própria vida do autor, mas é também uma metáfora para o Brasil,
perceberemos que as relíquias são antigas, pois remontam à formação do país, mas que
não foram superadas. As relíquias plasmadas por Machado de Assis parecem resguardar
traços culturais que foram, e ainda são, caros à sociedade brasileira.
Referências:
ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Pai contra mãe”: o terror escravagista em um conto de
Machado
de
Assis.
2005.
Disponível
em:
http://www.freud-
lacan.com/articles/article.php?url_article=lpdealencastro141105. Acesso em: 28 set.
2007.
ASSIS, Machado. Pai contra mãe. In: BOSI, Alfredo. et al. Machado de Assis. São
Paulo: Ática, 1982.
BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: BOSI, Alfredo. et al. Machado de Assis. São
Paulo: Ática, 1982.
MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. Organização, seleção e notas: José Miguel
Wisnik. São Paulo: Cultrix, 1989.
QUANTO vale ou é por quilo?. Direção: Sérgio Bianchi. Produção: Paulo Galvão.
Roteiro: Sérgio Bianchi, Eduardo Benaim, Newton Canitto. Intérpretes: Ana Carbatti,
Herson Capri, Cláudia Mello, Caco Ciocler, Ana Lúcia Torres e outros. [S.I]:
RIOFILME, Petrobras e Agravo Produções, 2005. Cor (107 min). Site oficial disponível
em: http://www.quantovaleoueporquilo.com.br/
SANTIAGO, Silviano. A democratização no Brasil (1979-1981). In: O cosmopolitismo
do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
SCHWARCZ, Lilia K.Moritz. Raça como negociação: sobre teorias em finais do século
XIX no Brasil. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares. Brasil afro-brasileiro. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
VENTURA, Zuenir. Cultura da violência. In: AGUIAR, Luiz Antonio (org.). Para
entender o Brasil. São Paulo: Alegro, 2001.
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