DIÁLOGO, COMUNICAÇÃO E COMUNHÃO: CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE PARA O FAZER PESQUISA COM MULHERES QUE EXERCEM PROSTITUIÇÃO Fabiana Rodrigues de Sousa [email protected] Agência de fomento: FAPESP RESUMO Neste artigo, discorro sobre as contribuições da obra de Paulo Freire para o fazer pesquisa junto a mulheres que exercem prostituição. Teço comentários sobre conceitos postulados pelo autor diálogo, comunicação e comunhão – procurando analisar como os mesmos favorecem o desenvolvimento da comunicação entre pesquisadores que investigam práticas sociais e os sujeitos participantes de pesquisa possibilitando a intersubjetividade. As reflexões, aqui, apresentadas foram formuladas a partir do desenvolvimento de pesquisa de doutorado em educação, na qual investiguei saberes de experiência consolidados nas relações estabelecidas por prostitutas que prestam serviços sexuais em casas noturnas de São Carlos/SP. Palavras-chave: Diálogo – Paulo Freire - Prostituição ABSTRACT In this article, i talk about the contributions of the work of Paulo Freire to do research with women engaged in prostitution. I discourse about concepts postulated by the author and analyze how they promote the development of communication between researchers investigating social practices and subject research participants enabling the intersubjectivity. The reflections here presented were made from the development of doctoral research in education with intent of to investigate knowledge of experience consolidated in the relationships established by prostitutes providing sexual services in nightclubs in São Carlos / SP. Keywords: Dialogue. Paulo Freire. Prostitution. Existem distintas formas de exercer e compreender a prática da prostituição, por isso pesquisadoras destacam a relevância de que a mesma seja analisada a partir de sua pluralidade (AGUSTÍN, 2005, RAGO, 1991, SOUSA, 2007). Essa pluralidade não se refere apenas à diversidade de serviços, pessoas e locais que a atividade engloba, mas também as distintas realidades vivenciadas pelas pessoas que se ocupam dessa prática. A fim de especificar alguns vocábulos utilizados nesse artigo, ressalto que o termo prostituição será empregado para aludir à prestação voluntária de serviços sexuais por parte de mulheres adultas que oferecem os chamados “programas” aos clientes, mediante negociação prévia acerca de preço, tempo e 38 modalidade de serviço a ser prestado. Como sinônimo de prostituição, emprego o termo trabalho sexual, tendo em vista que as participantes da referida pesquisa assim denominam sua prática, já que a compreendem como estratégia de inserção socioeconômica e, portanto, como forma de trabalho. O meu convívio com prostitutas teve início por meio do desenvolvimento de uma atividade de extensão, nos anos de 2002 e 2003, na qual realizava encontros semanais em casas noturnas da cidade de São Carlos a fim de debater a temática dos direitos humanos com mulheres que prestavam serviços sexuais nesses estabelecimentos. Nos encontros, debatíamos documentos e notícias que abordavam os direitos humanos e conversávamos sobre a realidade vivenciada por prostitutas nos contextos de exercício do trabalho sexual. A convivência com essas mulheres descortinou a dimensão educativa que também caracteriza a prática da prostituição, à medida que elas narravam suas histórias, seus modos de ser e estar no mundo e sua maneira própria de interpretar a realidade. Surge dessa experiência a motivação para investigar processos educativos na prática da prostituição. Durante desenvolvimento de pesquisas de mestrado investiguei processos educativos consolidados nas relações entre prostitutas e seus clientes e, ao longo de pesquisa de doutorado, tenho investigado saberes de experiência consolidados na prática da prostituição buscando analisar como tais saberes são empregados por essas mulheres no processo de significarem a si e a sua prática. Objetivo, com essas investigações, desvelar experiências vivenciadas por prostitutas que têm sido impelidas à invisibilidade1 pela ordem hegemônica, procurando dessa forma transformar ausências em presenças tal como nos fala Santos (2008), ao discorrer sobre a sociologia das ausências. Destarte corroboro a assertiva de Amaral e Souza (2009, p. 100), os quais ressaltam que pesquisadores voltados a investigar processos educativos e práticas sociais buscam desmitificar a invisibilidade de grupos impelidos à marginalização social, por isso o fazer pesquisa em práticas sociais “se realiza por diálogos respeitosos com grupos e/ou comunidades colocadas à margem da sociedade. Desvelam-se nesses diálogos os processos educativos por meio dos quais seus indivíduos significam, ordenam e realizam criativamente sua expressividade cultural.” 1 Invisibilidade é atributo dos invisíveis, isto é, mulheres e homens oprimidos pelo desrespeito à sua relevância histórica, social ou cultural a quem é negada a possibilidade de reconhecimento de sua identidade fora de seus grupos e comunidades de origem (AMARAL; SOUZA, 2009). 39 No interior do grupo e linha de pesquisa “Práticas Sociais e Processos Educativos” do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSCar, o diálogo também se desenvolve entre pesquisadores iniciantes e pesquisadores mais experientes caracterizando uma comunidade de trabalho2, os quais realizam trabalhos e estudos no campo da educação. Com base nas contribuições do educador Paulo Freire (1970, 1975), o diálogo é compreendido, nessa comunidade de trabalho, como o encontro de seres humanos que tendo ciência de seu inacabamento visam a pronunciar e a transformar o mundo. Ao compreender que a realidade social é fruto das ações humanas e que, portanto, pode condicioná-lo, mas não determiná-lo, o ser humano pode engajar-se na busca pela transformação da realidade que lhe oprime. Influenciado pela leitura de Jaspers, Freire (1975, p. 107) afirma que o diálogo configurase como “relação horizontal de A com B” que “nasce de uma matriz crítica e gera criticidade”. Segundo o autor, a diálogo “nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica”. O diálogo é, portanto, o indispensável caminho”, diz Jaspers, “não somente nas questões vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença de que somente chego a ser eu mesmo quando os demais também cheguem a ser eles mesmos (FREIRE, 1975, p. 108). Compreendo, assim, que o diálogo não se constitui em mera conversa ou técnica que permite a transmissão de conhecimentos (científico ou experiencial) de A para B. Em sua obra intitulada Extensão ou Comunicação, Freire (1977) ressalta que o diálogo não visa a estender algo (conhecimentos ou técnicas) a alguém, mas sim promover a comunicação entre os seres humanos, uma vez que o que se pretende com o diálogo “é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível reação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la (p. 52).” O diálogo é, portanto, uma forma de comunicação que visa a problematizar os mitos disseminados pelos opressores com intenção de negar a humanização de certos grupos sociais, dificultando, dessa forma, a organização dos oprimidos e seu engajamento na busca por Ser mais3 e pela transformação da realidade. Comunicação diverge da extensão, isto é, da ação de 2 Uma comunidade científica de trabalho se constitui em torno de objetivos comuns que ultrapassam a ordem pessoal, os quais se situam e enraízam em compromisso com a construção de uma sociedade justa e pautada na igualdade de direitos (SILVA e ARAÚJO-OLIVERA, 2004, p. 2). 3 O termo refere-se à inconclusão do ser humano e sua vocação ontológica de buscar permanentemente sua humanização (FREIRE, 1970). 40 estender/transmitir algo a alguém o que caracteriza a prática da educação bancária e se efetiva por meio da invasão cultural4. Pelo contrário, a comunicação se pauta no diálogo, na disposição para estar com o outro, conhecer sua realidade e suas formas de ser e estar no mundo que são elementos essenciais para a co-laboração (FREIRE, 1970, 1977). Na co-laboração, os sujeitos dialógicos significam a si e ao mundo, ao passo que problematizam a realidade e criam novas respostas para solucionar os desafios percebidos, como bem destaca Ernani Fiori: O dinamismo significante deste mundo comum (...) não é intencionalidade da consciência pura: é práxis transformadora. Significar existencialmente o mundo, num comportamento corpóreo, equivale a construí-lo. Sua elaboração, em intersubjetividade, é colaboração (FIORI, 1986, p. 5). A intersubjetividade é compreendida como a comunicação das consciências que se encontram mediatizadas pelo mundo. Para Fiori (1986, p. 9) “a elaboração do mundo só é cultura e humanização, se intersubjetiva as consciências”, ou seja, se postula a colaboração-participação na construção de um mundo comum por meio da comunicação das consciências. Nesse sentido, o diálogo e a comunicação das consciências (intersubjetividade) são elementos essenciais na busca pela libertação, pois conforme nos alerta Freire (1970, p. 36) a superação da contradição opressores-oprimidos “traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se” em comunhão com os outros. Corroborando essa compreensão, Oliveira (2009, p. 319) afirma que o “outro não é a incidência passiva do meu pensar” e que, portanto, o “o trabalho em comunhão não é um trabalho “sobre o outro”, ou “sem” o outro, ou “para” o outro”, mas configura-se como um fazer “com” o outro. Para nós - pesquisadores que investigam práticas sociais – comunhão é compreendida como a disponibilidade para estar com o outro no fazer pesquisa, isto é, buscar apreender as visões de mundo dos sujeitos participantes da pesquisa, compreender a lógica que empregam para fazer sua leitura da realidade buscando conhecer suas formas de ser/estar/atuar no mundo. Por meio do diálogo, comunicação e comunhão com prostitutas participantes da pesquisa, observei que seus modos de perceber e significar a prostituição são influenciados pela forma como atribuem sentido às experiências vivenciadas na noite 5 e se modificam em função dos objetivos que essas mulheres se propõem ao longo do exercício dessa atividade. Nesse processo 4 5 Ação de penetrar em contexto alheio com intenção de impor sua visão de mundo (FREIRE, 1977). Termo empregado pelas prostitutas para aludir a contextos de prestação de serviços sexuais. 41 de significação, elas lançam mão de saberes consolidados por meio do contato sensível com o mundo, pois no exercício da prostituição as prostitutas aprendem ao observar o comportamento dos clientes, funcionários e demais prostitutas, ao escutar os discursos proferidos no salão e nos quartos, ao ler os gestos e ao interpretar os silêncios, ao conversar com os clientes e demais pessoas que convivem nas casas noturnas, ao vivenciar distintas práticas sexuais, etc. Considero, ainda, que o convívio e o estabelecimento de amizade com prostitutas certamente modifica a visão preconceituosa, comumente, associada à figura da prostituta e disseminada em diferentes meios de comunicação e estudos científicos. No desenvolvimento dessa investigação foi possível problematizar alguns mitos associados a essas mulheres tais como “elas não têm querer e são obrigadas a sair com qualquer tipo de cliente”, “são mulheres encrenqueiras, competitivas e brigam muito entre si”, “não ligam para seus familiares”, dentre outros. Observei que essas mulheres, em sua maioria, possuem filhos e vínculos familiares com quem convivem e, frequentemente, enviam parte dos recursos financeiros que angariam no trabalho sexual para custear despesas de filhos e outros parentes. Vi também que, ao menos no contexto da prestação de serviços sexuais em casas noturnas da cidade, essas mulheres não são obrigadas a fazer programa com todos os clientes que solicitam seus serviços, podendo recusarse a atender o cliente. Também foi possível relativizar a noção de competitividade entre as prostitutas, pois embora exista certa disputa por clientes ou por melhores quartos na casa noturna e, por vezes, até mesmo por quem possui o corpo mais bonito, quem faz o melhor show ou quem dança melhor, vimos que as relações entre essas mulheres, nem sempre, são marcadas pela competição. Há também muita solidariedade e camaradagem entre elas, as prostitutas costumam trocar informações sobre casas noturnas e cidades que apresentam boas condições para exercer o trabalho sexual, conversam sobre o perfil da clientela e as características de pessoas proprietárias de boates, dentre outras. Dessa forma elas estabelecem uma rede permanente de comunicação – efetivada por contatos telefônicos ou na internet – na qual além de trocar informações para garantir sua segurança e melhores condições de trabalho, também conversam sobre suas vidas, suas famílias, criam vínculos de amizade e combinam atividades de lazer. Termino o artigo ressaltando que o desenvolvimento de investigação com base na dialogicidade, na intersubjetividade e na comunhão com os sujeitos participantes da pesquisa favorece o questionamento de ações antidialógicas (como disseminação de mitos e estereótipos, negação de direitos, manipulação, etc) que impelem alguns grupos à marginalização e 42 invisibilidade social, bem como possibilita a co-laboração e engajamento de pesquisadores e participantes da pesquisa no processo permanente de busca por sua humanização. Referências AGUSTÍN, Laura. La industria del sexo, los migrantes y la familia europea. Cadernos Pagu, n. 25, Campinas, jul/dez. 2005, p. 107-128. AMARAL, Débora; SOUZA, Paulo César Antonini. Caminhando com os invisíveis: a pesquisa em processos educativos e práticas sociais. In. Revista Políticas Educativas. Porto Alegre, v. 3, n. 1, 2009, p. 96-113. FIORI, Ernani Maria. Conscientização e educação. In. Educação e Realidade. 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Apresentado no VI ENCUENTRO – CORREDOR DE LAS IDEAS DEL CONO SUR“Sociedad civil, democracia e integración”. Montevidéo, 12 de mar., 2004. SOUSA, Fabiana Rodrigues. Saberes da vida na noite: percepções de mulheres que prestam serviços sexuais sobre o educar-se nas relações com seus clientes. 2007. 163p. Dissertação (Mestrado) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2007. 43