Por que a crise no transporte?
Os problemas no transporte são estruturais e não têm solução sem
mudança radical no sistema de transportes
Você que está na rua tentando impedir o aumento da
passagem e parou para ler este boletim: tem alguma idéia da
história desse aumento? E sabe qual a raiz de todo esse
problema com os transportes? Aqui vão algumas coisas para
refrescar sua memória, e outras para esclarecer a situação. Em
agosto de 2003 o prefeito Antonio Imbassahy anunciou um
aumento de 15,38% na passagem de ônibus de Salvador, que
passou de R$ 1,30 para R$ 1,50; ninguém agüentaria isso,
mesmo há dois anos. Desde que o aumento foi anunciado, em
meados de agosto, até fins de setembro de 2003, milhares de
estudantes ocuparam as ruas da cidade em protesto contra o
aumento de transporte. Você pode ter participado disso, mas
nem todo mundo sabe que estes protestos ficaram conhecidos no
país inteiro como Revolta do Buzu, e inspiraram manifestações
de estudantes em Florianópolis (SC), Vitória (ES), Caxias do
Sul (RS), Fortaleza (CE),
João
Pessoa
(PB),
Campinas (SP), Natal
(RN), Porto Alegre (RS),
Belém (PA), São Paulo
(SP)...
Você pode não
ter prestado atenção, mas,
durante o período de
protestos, representantes
de
duas
entidades
estudantis (ABES e UBES
– essas mesmas que hoje
querem tomar a frente do
movimento)
assinaram
com a Prefeitura um
acordo que conseguiu, dentre outras coisas, a meia passagem
durante o ano inteiro, em troca de garantir que os estudantes
saíssem das ruas. Foi um cala-a-boca que ninguém engoliu, pois
o acordo não reduziu o preço da passagem, e os estudantes
continuaram nas ruas ainda por várias semanas. A passagem foi
mantida em R$ 1,50, mas nem o SETPS nem a Prefeitura
tiveram coragem de aumentá-la até hoje; mesmo o SETPS, que
dizia que o aumento para R$ 1,50 não resolvia seu prejuízo,
ficou quieto até quando pôde agüentar.
REPETINDO A DOSE – Em dezembro de 2004, o
SETPS fez o mesmo que está fazendo hoje: entrou na justiça
para conseguir o aumento de passagens e conseguiu,
provisoriamente. O prefeito Antonio Imbassahy – em fim de
gestão, marcado pela experiência da Revolta do Buzu e doido
para largar o problema nas mãos de João Henrique, seu sucessor
– ameaçou cassar a concessão das empresas que aumentassem o
transporte e acertou com o presidente do Tribunal de Justiça a
derrubada da decisão que autorizou o aumento de passagens. O
SETPS desistiu do aumento como prova de “boa vizinhança”, e
a passagem continuou custando R$ 1,50.
No primeiro ano da gestão de João Henrique, a
Prefeitura chegou a apresentar na Câmara dos Vereadores
(espaço burocrático e sem participação popular) um projeto
chamado Novo Sistema de Transportes de Salvador (NSTS),
apoiado rapidinho pelo presidente do SETPS, Horácio Brasil –
que está lá desde antes de 2003 até hoje. A Prefeitura e o SETPS
organizaram vários eventos com a “sociedade civil” para discutir
a questão dos transportes em Salvador – mas para eles
“sociedade civil” são só os empresários e os patrões. Estudantes,
movimentos sociais, sindicatos, associações de bairro, etc., não
têm que se meter na história.
O SETPS apresentou como soluções para o problema
dos transportes uma série de propostas que resolvem só o lado
das empresas, sempre a fim de manter seu lucro em alta. Propôs
primeiro dar um jeito de deixar de pagar impostos sobre
carrocerias de ônibus, peças, pneus e combustíveis – e nem
pensaram nos trabalhadores do Sistema Complementar de
Transporte ou os motoristas e cobradores de vans que fazem
transporte na periferia. O SETPS pensou também em reduzir as
gratuidades “socialmente desnecessárias” – que só o SETPS
sabe dizer quais são. Quer
ainda dar um jeito de
pedir dinheiro do Fundo
de
Amparo
ao
Trabalhador (FAT), da
Contribuição
de
Intervenção no Domínio
Econômico (CIDE) e do
Banco
Nacional
de
Desenvolvimento
Econômico
e
Social
(BNDES) a fundo perdido
– sem que haja controle
social sobre o uso desse
dinheiro, que é público.
COLAPSO DO
SISTEMA - O presidente do SETPS chegou a dizer, em julho
deste ano, que o sistema de transportes entraria em colapso do
num prazo de 60 dias – e o prefeito João Henrique disse que não
aumentaria a passagem, porque passagem de ônibus, para ele, é
“questão de inclusão social”. Dito e feito: agora que bateram os
sessenta dias, o SETPS entrou novamente na justiça para forçar
o aumento de passagens, e conseguiu uma liminar autorizando o
aumento a partir do dia 16 de setembro (sexta-feira). Não
contente com isso, ameaça parcelar o pagamento do valerefeição dos rodoviários e reduzir progressivamente a frota de
ônibus, prejudicando os trabalhadores do setor e também os
usuários. Sem contar a dificuldade de transporte para os usuários
com a frota reduzida – mais tempo de espera nos pontos de
ônibus, possível redução no período do dia coberto pela frota,
etc. – cada ônibus fora de circulação, segundo o próprio SETPS,
causa a demissão de quatro a cinco rodoviários, e o presidente
do Sindicato dos Rodoviários, José Carlos da Silva, já disse que
a categoria não aceita ficar com o prejuízo e pode inclusive
paralisar a frota inteira para garantir seus direitos.
Ou seja: empurraram de um lado, empurraram do outro,
mas ninguém quer resolver o problema dos transportes sem bulir
no próprio bolso. Mas o que está por trás disso? O que é que faz
com que o sistema de transportes seja tão complicado? E,
principalmente, quem é que vai dar um jeito nessa merda toda?
TRANSPORTES E CAPITALISMO
UMA DAS PRINCIPAIS FUNÇÕES do transporte é levar e trazer os
trabalhadores de suas casas para o lugar onde trabalham, e vice-versa. O
transporte ainda pode ser usado para fazer compras, ir à praia, voltar da
casa do namorado, dar um pulo na escola, resolver problemas na rua.
Acontece que, do jeito que o transporte e a sociedade são organizados
hoje – o que não quer dizer que seja a melhor forma de se organizar as
coisas – ninguém faz nada disso sem trocar seu trabalho por dinheiro, que
é considerado necessário para fazer todas essas coisas, e inclusive para se
conseguir o transporte para fazê-las. Para complicar, o próprio transporte,
como quase todo o resto da sociedade, é feito por empresas que
funcionam como não poderia deixar de ser num sistema capitalista:
querendo lucro.
Temos aí um problema. Se o sistema de transporte não der lucro,
as empresas quebram. O próprio SETPS anuncia que, das dezessete
empresas de transporte de Salvador, quatro fecharam ou mudaram de
ramo de 2003 para cá. Mas se o sistema der lucro, isso significa que a
passagem será mais cara, menos pessoas poderão usar ônibus e mais
pessoas usarão outros meios de transporte (bicicleta, carona, carro, moto,
etc.) ou simplesmente andarão a pé. Pior: se a passagem fica mais cara,
isso aumenta as despesas dos 72% da população da cidade que, segundo
dados da Prefeitura, depende de ônibus para seu transporte diário –
principalmente trabalhadores de baixa renda. Para uma família com
quatro pessoas, o aumento das passagens para R$ 2,20 eleva as despesas
da casa em R$ 134,40 por mês, considerando que cada pessoa da família
faça duas viagens de ônibus por dia, seis dias por semana. Num momento
em que ninguém se arrisca a pedir aumento de salário pra não perder o
emprego, um aumento nas despesas dos trabalhadores significa corte de
“supérfluos” como lazer, vestuário, etc. Pode chegar mesmo à demissão,
se os patrões acharem que estão gastando demais com transporte. Quem
mora na periferia passa a ter problemas para encontrar emprego por causa
do aumento dos transportes – situação grave numa cidade em que pelo
menos um em cada quatro habitantes está desempregado.
Nenhum político quer assumir o risco de aumentar os transportes
diante da revolta da população; isso colocaria em risco sua carreira. Foi
assim no fim da gestão Imbassahy, está sendo assim na gestão João
Henrique. A Prefeitura se fecha em copas para não aumentar as
passagens, pois sabe que isso é cutucar onça com vara curta. O SETPS
fica de mãos atadas, pois sabe que tem dois grandes adversários a encarar
quando quer aumentar as passagens – o povo em revolta e a Prefeitura
acuada – e ainda um terceiro quando quer aumentar seu lucro sem pedir
aumento de passagem: os rodoviários, que não vão admitir perder direitos
conquistados em anos de lutas. E a crise prossegue: as empresas vão
quebrando, os transportes vão piorando, o povo vai se revoltando, e
nenhuma solução aparece à vista.
Nenhuma solução, claro, se se pensa que apenas a Prefeitura ou
o SETPS podem interferir no sistema de transportes. Em 2003 os
estudantes e a população mostraram que não têm medo de parar a cidade
inteira se for preciso para acabar com tudo o que piore sua condição de
vida. Os estudantes, principalmente, se organizaram por fora das
entidades de representação estudantil que queriam frear o movimento, e
chegaram mesmo a renegar esta representação em assembléia. Para
conseguir a vitória neste momento em que voltam a se mobilizar contra o
aumento das passagens, e preciso aprender com os erros de 2003. Não
confiar em quem quer que queira fazer qualquer tipo de acordo que
termine em aumento de passagem, por menor que seja. Formar
assembléias nas escolas para decidir os rumos do movimento, unir estas
assembléias com outras assembléias de escolas vizinhas e formar comitês
locais de luta estudantil para decidir os rumos do movimento com
controle total dos estudantes em suas próprias escolas. E, principalmente,
ter bastante claro que o problema dos transportes é estrutural, não se
resolve com um simples aumento, mas com uma total mudança da
política, não só dos políticos. O problema dos transportes só terá solução
quando os rodoviários e usuários de transportes controlarem o sistema
inteiro, sem obtenção de lucro, numa perspectiva anticapitalista.
ALGUMAS PROPOSTAS:
Barrar imediatamente o aumento das tarifas: ao contrário do que
diz o secretário de transportes, Nestor Duarte, não existe
aumento justo quando um em cada quatro habitantes de
Salvador está desempregado. A Lei Orgânica de Salvador, que
é a maior lei do município, à qual tanto a Prefeitura quanto a
Câmara Municipal têm que se submeter, obriga o sistema de
transportes a “ter uma tarifa condizente com o poder aquisitivo
da população” (artigo 238 da Lei Orgânica) e que os planos de
transporte “devem priorizar o atendimento à população de
baixa renda” (artigo 241 da Lei Orgânica), mas isso não está
sendo respeitado já faz muitos anos. Esse aumento não
respeita esses limites, da lei, é completamente ilegal; além de
ser ilegal, é injusto com a população, e precisa ser barrado.
Reformular o Conselho Municipal de Transportes: a Lei Orgânica
de Salvador criou um Conselho Municipal de Transportes
(CMT) para fiscalizar o sistema de transportes e criar políticas
para o setor, mas ele não tem poder deliberativo; suas decisões
são apenas indicações, que são seguidas apenas se se quiser. É
preciso reformular a estrutura do Conselho, dando a ele poder
de decisão e administração sobre o sistema de transportes, e
submetendo o mandato de seus membros à revogação a
qualquer tempo em caso de irregularidade ou insatisfação da
população com seu desempenho.
Abrir as contas do sistema de transportes à fiscalização popular: as
contas da prefeitura e dos governos estadual e federal ficam à
disposição dos cidadãos para verem se há qualquer tipo de
irregularidade; por que não fazer o mesmo com as contas do
sistema de transportes?
Instituir o passe livre estudantil: o passe livre é direito dos
estudantes, garantido pela Constituição (artigo 208, inciso VII)
e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (artigo 10, inciso
VII, e artigo 11, inciso VI). A Prefeitura e o Governo do
Estado têm a obrigação de pagar as passagens dos estudantes
das redes estadual e municipal de ensino, mas até agora não
tem dado nenhuma indicação de que farão isso. Pressão neles!
Inverter a lógica do sistema de transportes: quem hoje paga por
tudo no sistema de transportes de Salvador é o passageiro que
paga inteira. É ele quem paga a metade da sua meia-passagem,
a passagem dos policiais, dos idosos, dos carteiros, dos oficiais
de justiça... Esse jeito de manter o sistema funcionando se
chama “paga quem usa”: o usuário de transportes paga por
tudo no sistema. Isso já está completamente ultrapassado; as
cidades mais modernas hoje adotaram um outro sistema, que
pode ser chamado de “paga quem se beneficia”. Neste sistema,
aqueles que se beneficiam do sistema de transportes, como
industriais, comerciantes, e o próprio poder público passam a
pagar pelo transporte do qual se beneficiam: os industriais
passam a pagar o transporte dos trabalhadores que vão para
suas empresas, o poder público passa a pagar pelo transporte
dos trabalhadores que fazem algum tipo de serviço público
(carteiros, oficiais de justiça, etc.), e por aqueles com os quais
tem o dever de prestar assistência (idosos, deficientes físicos,
etc.). É preciso implementar medidas práticas para transformar
a lógica do sistema de transportes de Salvador da lógica do
“paga quem usa” para a lógica do “paga quem se beneficia”.
Municipalizar os transportes: o sistema de transporte é dominado
por uma quantidade de empresas que ninguém sabe de quem
são, a quem respondem, nem nada, e pensam apenas no lucro.
Se o prefeito acha mesmo que passagem – e transporte público
– é questão de “inclusão social”, ele tem que expropriar todas
as empresas sem indenização, e deixar a administração do
sistema de transportes com um conselho composto por
trabalhadores rodoviários e usuários de ônibus. Qualquer outra
solução é falsa, e só fará empurrar o problema com a barriga
para que outro prefeito o resolva; enquanto a própria
população não tiver total controle sobre os transportes, será
inviável um transportes verdadeiramente democrático.
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