Vida Selvagem-Ecologia-Televisão Uma combinação “ganhadora” na era da informação-espectáculo Por Pedro Oliveira Jornalista da RTP, coordenador do “Planeta Azul” Na pequena história da criação e lançamento do “Planeta Azul” há um episódio que ilustra bem aquilo que pretendo dizer nesta comunicação e até mesmo o que nos traz todos aqui. Estavam já seis programas praticamente prontos, tratava-se de definir uma data de estreia e o canal. O segundo canal era a opção “assumida” mas o director de informação José Rodrigues dos Santos combinara um visionamento com Jaime Fernandes que dirigia a programação do 1ºCanal. E eu preparara uma compilação desses seis primeiros programas um “Best-off”, um “trailer”. Sentámo-nos pois na sala de visionamento, e arrancámos com o genérico do programa- que acabava de sair do videografismo – e com um “compacto” da primeira reportagem que era sobre o Rio Mondego, as cheias, os diques, os aterros nas margens, a poluição… Havia boas imagens mas nada que impressionasse para já os dois directores. Mas eis que surgens algumas imagens subaquáticas, dentro do rio Mondego, num local idílico…numa pequena queda de água a câmara afunda-se e …uma rã nada em direcção à câmara, olhando mesmo a objectiva ali a dois palmos, com as suas manchas amarelas, surpreendida, e depois afasta-se como se a nadar bruços. O director Jaime Fernandes inclinou-se para a consola da sala de visionamento conseguiram isto?” e disse … “Pára aí… como é que vocês Rebobinámos a cassette e passámos de novo as imagens da rã a nadar frente à objectiva… “Eh pá que giro, bestial!”, exclamou aquele que ia afinal decidir o destino do “Planeta Azul” na grelha da RTP. O repórter António Marques levara a reportagem para o curso superior do Mondego, já ao pé da Guarda- e fomos lá de propósito, à terceira vez, para mostrar o Mondego ainda não domesticado- e teve a ideia de trabalhar dentro de água com uma câmara à prova de água: as trutas e bogas mal se viam, o curso estava agitado e lamacento, mas aquela rã “pintou”. Jaime Fernandes e Rodrigues dos Santos viram depois com mais interesse o retrato dos habitats a submergor no Alqueva e as imagens de aves de rapina a serem cuidadas no centro de Évora: o olhar fixo do Bufo Real, as contorsões de uma águia de asa redonda…e uma gineta atropelada na beira-da estrada, no contexto da polémica sobre as cotas de enchimento da barragem. E às tantas, ainda o visionamento não chegara a meio, Jaime Fernandes que não tinha muito tempo a perder, levantou-se e decidiu, “pronto, vamos meter isto no Primeiro Canal”, e começou a afastar-se e eu ainda disse “Ó Jaime, tens de ver os abutres do Douro Internacional!”. E ele responde “Não é preciso, já percebi, está comprado”. Não tenho dúvidas: aqueles breves segundos de uma simples rã a nadar em direcção à câmara tiveram um impacto decisivo na decisão de pelo menos não esconder o “Planeta Azul” num nicho do segundo canal. Ficámos aos domingos de manhã, antes do Jornal da Tarde. As reportagens que tínhamos nesses compactos eram várias: em todas dávamos atenção à fauna e flora. As imagens da rã, como o bando de flamingos no meio de um montado alentejano, como o primeiro plano do Bufo Real, como o abutre do Egipto em voo planado nas encostas do rio Águeda internacional – demonstravam que podíamos registar a nossa própria riqueza natural, com métodos simples, meios ligeiros de reportagem de informação, condimentando e ilustrando reportagens por vezes bem duras de investigar como por exemplo a história, feita por Sofia Leite, das urbanizações que condenam os sobreiros na margem sul do Tejo, à revelia das leis de protecção. Essas imagens são belas, têm significado e poder emocional- enfim são carismáticas, emblemáticas ou como queiramos chamar-lhes, e esse é um dote valioso na televisão dos tempos que correm. O facto do “Planeta Azul” ter desde o início feito tudo para conseguir captar estas imagens- mas nossas, da flora e da fauna portuguesas, protegidas, no e ambiente que nos dos são nossos parques mostradas por ou regiões biólogos, botânicos,ambientalistas de ONG’s e vigilantes portugueses e que trabalham entre nós e nas nossas condições – isto teve um impacto muito importante senão mesmo fundamental na implantação do “Planeta Azul” , junto do público que foi conquistando, mas também nos meios que se preocupam com as questões ambientais e de Conservação da Natureza, e também ( o que não é menos importante )dentro da própria RTP, como produto de televisão. A minha ideia para o “Planeta Azul” fora transportada no meu regresso a Portugal vindo de Bruxelas, por ter percebido que existia um grande interesse e motivação por questões ambientais, ao mesmo tempo que a situação sobretudo em ordenamento do território e valorização de zonas e protegidas e do mundo, parecia deteriorar-se. Eu imaginara, quem sabe se estimulado muito à portuguesa pela saudade, um programa do Território, do Ambiente, da Paisagem, da Naturteza e da Conservação, do Urbanismo e do Património. Não pretendíamos nem pretendemos ser um programa de Vida Selvagem no televisão.Mas seu sentido quase mais naturalmente restrito de passámos disciplina a incorporar de a atenção à vida selvagem ou semi-selvagem em todas as nossas deslocações e na análise dos nossos “dossiers” jornalísticos. Esta fórmula- mostrar e valorizar aspectos natural que podem e seres da vida ser postos em causa por más decisões ambientais, projectos estapafúrdios ou simples incúria- tem dado bons resultados em termos de impacto de televisão. E é importante pensarmos um pouco no porquê, ou que inovação está aqui associada ao ofício de televisão que praticamos com o Planeta Azul. PROXIMIDADE Primeiro temos o aspecto da proximidade, do falar e do ver português. Quando recebemos a nossa segunda nomeação no Prémio Nacional do Ambiente, o porta-voz da Federação das Organizações Ambientais sublinhou – para nossa honra – a satisfação em ver programas sobre ambiente, feitos em Portugal por produtores portugueses para um público portugês. Na verdade, e por muitos globais que sejam os problemas, (e que problema global de grande dimensão é a extinção das espécies e a conservação da biodiversidade!) em termos de eficácia de intervenção tem de haver uma “identificação”. É essa a “arma” de que o “Planeta Azul” se serviu para fazer frente à concorrência (que os nossos programadores impõem e isso é questionável) com programas estrangeiros de Vida Selvagem, nomeadamente os grandes programas da BBC que passam também ao domingo de manhã. Eles podem mostrar-nos os abutres em todas as dimensões da sua existência e dos seus habitats, nos Alpes, ou na Escócia, ou nos Andes. Mas os abutres e todas as espcécies que nós filmámos modesta e rapidamente, com um orçamento de reportagem ligeira, são nossos. São ameaçados por nós próprios; podemos ir vê-los; conhecemos ou passamos a conhecer as pessoas que os estudam; se há soluções para os defendermos, passam por nós. Uma consideração deontológica importante no jornalismo ambiental é prever, debater e antecipar soluções e não deixar o leitor ou espectador bloqueado num pessimismo sem saída. Para isso o próprio espectador deve sentir que pode fazer uma diferença. Que está ao seu alcance fazer qualquer coisa, agir, esclarecer, exigir. O que depende de nós, podemos mudar. A proximidade é pois essencial e cria um poder “identitário”, que se aplica às nossas riquezas naturais como à nossa história, ao Património edificado, aos costumes rurais, á paisagem modelada pelo homem ao longo de séculos ou milénios. VISÃO INTEGRADORA E isto leva-nos à segunda reflexão: a documentação da fauna e da flora que vive no ambiente e no território de Portugal, apresentamo-la no Planeta Azul de forma integrada com essa visão mais lata daquilo que constitui a nossa riqueza e património colectivos, como Terra e como Povo. Procuramos sempre povoar as nossas reportagens e as nossas histórias não só com paisagens (tantas vezes já visivelmente destruídas ou ameaçadas) e com as plantas, animais e até as pedras que nos rodeiam, mas também ou sobretudo com as pessoas: homens e mulheres que conhecem e defendem a natureza, mas também aqueles que a agridem, ou outros que nem têm consciência da natureza; ou com gentes do campo que, com a desertificação de amplas zonas do interior, são hoje os fiéis depositários de saberes, tradições e ancestralidades que têm a ver com essa relação que queremos repôr em termos saudáveis entre Homem e Natureza. Não queremos ser o programa dedicado aos passarinhos, ou que só fala de bichos e não de pessoas… críticas por vezes justificadas em acções demasiado parcelares dos problemas da Conservação da Natureza. Eu próprio assisti – lembro-me, em Londres – a debates sobre os inconvenientes de centrar campanhas emblemática retratada ambientais até á numa exaustão. única Lembro-me espécie disto a propósito dos pandas, o emblema do World Wildlife Fund: não seria que as autoridades chinesas acederam finalmente a trabalhar para salvar a espécie mas esgotando a sua boa-vontade nesse emblemático panda? E todos os outros problemas de conservação que há na China? Centenas de outras espécies ameaçadas? Hoje mesmo pergunto-me por vezes ao ver documentários extremamente bem produzidos sobre espécies raras: não será isto “voyeurismo”, o novo “jardim zoológico” virtual, a documentação de espécies e de paisagens cada vez mais raras, cada vez mais longínquas, cada vez mais… perto do fim? Uma memória, um arquivo do que está prestes a desaparecer? Espero bem que não. Por isso nós, no “Planeta Azul”, que é um programa de informação e de jornalistas, pensamos que é importante não ceder à tentação de nos especializarmos nessa actividade de “élite” que é a televisão de natureza. Nós queremos tudo: o jornalismo de investigação, as imagens de choque, as “caxas” e as imagens ou informações em primeira-mão, a aventura, as paisagens belas mas também os gravíssimos problemas políticos que hoje se levantam em torno do ordenamento ou do “desordenamento” do território. Afinal a única diferença é que, em cada reportagem, olhamos para a fauna e para a flora com a atenção que merecem e que no contexto actual deve ser uma atenção privilegiada. É a pequena planta que consolida as dunas; a espécie endémica que poucos conhecem; a gaivota que se recorta numa linha costeira marcada por hotéis, prédios, gruas; os exemplares maravilhosos que se acolhem em jardins botânicos com orçamentos miseráveis; os peixes que nos Açores tentam escapar às artes artesanais ou aos grandes arrastões; as abetardas e a erosão da estepe alentejana; as pedreiras da Arrábida que ameaçam uma jóia única da paisagem mediterânica em todo o mundo. EFICÁCIA O terceiro aspecto …é para provar que também não somos idealistas, nem filosóficos… o programa é capaz de algum “cinismo premeditado” para obter resultados: ou seja temos plena consciência que a fauna e a flora, e certas espécies mais emblemáticas, têm um valor próprio enquanto seres carismáticos de televisão… e são muitas vezes a chave para uma sensibilização pública, para uma chamada de atenção aos decisores. Os jovens e estudantes- que têm reagido muitíssimo ao nosso programainteressam-se pelas estórias que contamos, pedem informações, querem fazer trabalhos para as suas escolas: até sobre uma tarântula que filmámos nas Ilhas Desertas, a “lycosa ingens”- o nome científico permitiu à jovem estudante fazer o seu trabalho. Os programadores da RTP puderam até aqui assegurar domingo de manhã a transição de um público mais jovem para o público adulto do Jornal da Tarde, adoptando essa capacidade de sensibilização do “Planeta Azul”. E em termos de estratégia de implantação do programa e de impacto jornalístico, a combinação ganhadora passa não só por esta atenção sistemática à vida selvagem, ou semi-selvagem, mas por programas mais dedicados só a essa contemplação: as fontes hidrotermais do fundo do Atlântico, fonte de micro-organismos; os cavalos do Sorraia e os de Prezevalski que vieram visitar o nosso Alentejo; as aves ribeirinhas do Minho e do Coura. Pelo menos descansa a vista: porque é preciso descansar depois de ver também no Planeta os restos esquecidos de urânio que poluem a Urgeiriça e tantos outros locais da Beira sem uma simples vedação ou um guarda que resguarde crianças incautas; a violação de todas as leis em milhares de projectos de construção que invadem e subvertem tantas áreas que até têm protecção legal; actividades de extracção de areias a torto e a direito e sem controlo deixando cicatrizes indeléveis por eese país fora. E até mesmo – sublinho agora- os nossos animais mais domésticos ou domesticados. Ao documentar a forma frequentemente desumana como são transportados e abatidos os animais que se destinam às nossas mesas; ao filmar as lutas de cães e debater a nossa relação com os animais de jardim zoológico ou de circo – a repórter Paula Colaço e o “Planeta Azul” tocaram um nervo sensível da nossa sociedade. Usámos a justa medida de imagens de choque – as lutas de cães- para através desse choque fazer reflectir as pessoas sobre a forma como se relacional com os outros seres vivos deste planeta, até aqueles que lhes estão mais próximos. SE É BOM PARA O GOLFINHO, É BOM PARA O HOMEM Porque a verdade é esta – e vou concluir: na gestão do ambiente, na resolução da crise ecológica que atravessamos, nas acções que tomamos todos os dias – os animais e em especial certas espécies superiores mais ameaçadas – antecipam os problemas que vão afectar o homem, homem e vida selvagem estão no mesmo barco, e pôr a biodiversidade em risco é afinal pôr em risco a próprias Humanidade. O que eu não sabia é que esta constatação hoje óbvia- seja qual for o ponto de vista, económico, científico, ou qualquer outro- tinha também aplicações como ferramenta jornalística. Eu dera luz verde ao repórter Mário Lino para avanaçar com uma reportagem sobre os golfinhos do Sado, esses mesmos 30 golfinhos que jovens biólogas estão a estudar (ganharam um prémio), que muitos turistas vão ver, que estão na capa das revistas. E nós também filmámos e estudámos esse seu habitat: e esse “Planeta Azul” descobriu- guiado afinal pela vida dos golfinhos- as montanhas de resíduos poluentes que se acumulam nas margens do Sado, junto à Lisnave e à antiga Setenave; descobrimos o problema das tintas e dos decapantes; o do esgotamento das docas secas; descobrimos as resoluções europeias sobre a introdução das melhores práticas disponíveis para a indústria, e dos licenciamentos de actividade à luz das novas leis ambientais; lembrámo-nos dos outros tempos em que o Sado produzia ostras para as mariscarias de Paris, as famosas “portugaises”. A sobrevivência destes 30 golfinhos representa a manutenção da própria saúde do Sado como reserva natural, como atracção turística, como sítio onde se possa viver. Esta reportagem, o “Triste Sado” foi seleccionada para a mostra competitiva do festival EKO Film 2002, na República Checa. Porquê? Talvez porque se pressente ali a inteligência dos golfinhos e … a estupidez dos homens, digamo-lo mesmo assim. A eficácia do nosso trabalho jornalístico foi multiplicada pela atracção exercida por aqueles seres tão mágicos. Os nossos interesses são os mesmos do que aqueles golfinhos. Salvá-los é defendermo-nos a nós próprios e à beleza da nossa existência. E se eles desaparecerem- esses 30 golfinhos do Triste Sado , e daqui a uns quantos anos ,com os atrazos que nos caracterizam , lá para 2015 ou 2020, quando as empresas forem obrigadas a aplicar as melhores tecnologias, a tratar e despoluir os seus resíduos, a pagar as multas dos descuidos e dos desrames – quando finalmente as coisas começarem a recuperar, então alguém desenterrará nos arquivos da RTP, dos jornais e das revistas a estória dos golfinhos , desejará o seu regresso e concluirá: “Não conseguimos salvá-los. Mas foram eles que salvaram o Estuário do Sado.” (Pedro Oliveira,15-09-02)