anatomia patológica
Anatomopatologista,
o médico “invisível”
Não está diante dos doentes, não está “patente ao público”,
é antes um “médico de médicos”, e, como tal, muitos
desconhecem o valor real e a importância da anatomia
patológica no diagnóstico de numerosas doenças
Texto Pedro Oliveira Fotografias Estúdios João Cupertino
pedro oliveira
Infelizmente, uma parte importante da população portuguesa terá
um diagnóstico de cancro feito durante a sua vida.
Essa informação é transmitida, na
maior parte das vezes, pelo médico
assistente, seja cirurgião, médico de
medicina familiar, internista ou mesmo um oncologista médico. O que a
maior parte das pessoas não sabe é que
esse diagnóstico foi, de facto, feito,
não pelo médico assistente, mas por
outro, que não trabalha em qualquer
consultório e que nunca viram – o
médico anatomopatologista.
O anatomopatologista (não confundir com “patologista clínico” – ver
caixa) não está diante dos doentes,
não está “patente ao público”, é antes
um “médico de médicos”, e, como
tal, muitos desconhecem o valor real
e a importância da anatomia patológica no diagnóstico em oncologia,
mas também em numerosas outras
doenças.
Pode dizer-se, grosso modo, que
70% dos diagnósticos médicos feitos
para um leque muito variado de doenças, que vão desde glomerulonefrites
até doenças oncológicas, passando
por processos degenerativos, como
a doença de Alzheimer, ou rejeição
de transplantes, entre outros, necessitam da intervenção do anatomopatologista para confirmação ou
exclusão diagnóstica. Este médico é
o responsável pela análise de material
humano colhido no doente e que pode
apresentar-se sob a forma de uma peça
operatória resultante de um procedimento cirúrgico major, como, por
exemplo, um estômago (gastrectomia),
um pequeno fragmento, uma biopsia
colhida pelo gastrenterologista duran-
Relatório
pormenorizado
O médico
anatomopatologista
não está “patente ao
público”, é antes um
“médico de médicos”
Médico anatomopatologista do departamento de anatomia patológica do Hospital da Luz.
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te uma endoscopia, uma observação
de células obtidas por uma punção
aspirativa por agulha fina de um nódulo da tiróide – a designada citologia
aspirativa, ou mesmo o corpo na sua
totalidade, no caso de uma autópsia!
O que é comum a estes procedimentos é que todos implicam a colheita e observação ao microscópico
de células ou tecidos humanos para
se chegar a um diagnóstico preciso,
fundamental para o esclarecimento
de uma situação em que os sintomas
clínicos e os exames radiológicos não
permitem chegar a uma conclusão
definitiva.
A observação ao microscópio pelo
anatomopatologista pressupõe um
conjunto de procedimentos técnicos
complexos prévios e que as amostras
de células e tecidos colhidos têm
de ser submetidas e que são realizados pelos técnicos de anatomia
patológica, profissionais de saúde
anatomia patológica
C
olheita
de fragmentos
e sua colocação
em cassettes de
plástico
imprescindíveis ao sucesso de um
serviço de anatomia patológica.
De uma maneira simplificada, os
procedimentos que, no seu conjunto,
se designam de técnica histológica consistem em retirar a água às
amostras colhidas (“cerca de 80% do
nosso corpo é água”, dizia o anúncio
de uma conhecida água mineral) e
substituir as moléculas de água por
parafina, de modo que os tecidos assumam uma rigidez tal que permita
o seu seccionamento em cortes muito finos (décimas de milímetro), de
maneira que a luz os atravesse e que,
uma vez corados (por corantes de
utilização histórica “emprestados”
Autópsias clínicas:
melhor que no CSI
Uma das funções do anatomopatologista
é a realização de autópsias com o objectivo
de elucidar a doença que causou a morte
e esclarecer dúvidas clínicas ou mesmo
avaliar terapêuticas em estudo. As autópsias
clínicas são distintas das médico-legais
(as que se vêem na série CSI). Com efeito,
trata-se de exames mais laboriosos, muitas
vezes de difícil aceitação por parte dos
familiares, mas que ajudam a compreender
o processo que motivou a morte e muitas
vezes eliminar dúvidas sobre se os actos
médicos realizados em vida foram, de facto,
os correctos. Trata-se, na verdade, de um
instrumento muito importante para auditar
a qualidade da prestação de cuidados
médicos numa estrutura hospitalar.
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anatomia patológica
i ndução das amostras após processamento
histológico e obtenção dos “blocos” de parafina
das tinturarias de tecidos), se possam
diferenciar os diversos constituintes
em observação ao microscópio.
Prontas as lâminas, são entregues
ao anatomopatologista, que as observa ao microscópio. Avaliam-se alterações, podendo, por vezes, solicitar-se exames adicionais, como outras
colorações ou imunocitoquímica ou
ainda testes de biologia molecular,
após o que o médico emite um parecer sob a forma de um relatório
escrito.
O relatório anatomopatológico
muitas vezes incorpora, além de
um diagnóstico, um conjunto de
dados adicionais, que vão ser mui22
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to importantes para o tratamento e
prognóstico. Por exemplo, num caso de cancro da mama, o relatório
não dirá apenas: cancro da mama!
O médico anatomopatologista vai
indicar o tipo histológico de cancro
(pode ser ductal, lobular, mucinoso, secretório, tubular, etc.), se tem
critérios morfológicos de menor ou
A anatomia patológica
é fundamental
em oncologia
maior agressividade (o designado
“grau de diferenciação”), a dimensão
do tumor (necessária para o correcto
estadiamento do mesmo), a presença de invasão vascular (indicador
de possibilidade de metástases), a
presença ou não de focos tumorais
metastáticos no gânglio ou gânglios incluídos durante a cirurgia
(os gânglios sentinela ou axilares),
a presença e quantificação de receptores hormonais de estrogénio e
progesterona, bem como o status do
c-erb B2 (fundamentais para eventual
resposta a determinados fármacos e
indicadores do prognóstico da doença), entre outros.
anatomia patológica
Quando há erros de diagnóstico…
Costuma dizer-se que errar é humano e, de facto, só não erra quem
não faz! Todos nós, médicos, temos, como humanos, a possibilidade
de errar. Só que ao anatomopatologista essa possibilidade não é,
teoricamente, permitida: não é suposto errar. E porquê? Porque é a
última linha num conjunto de médicos que intervêm num processo
diagnóstico e, sendo o seu relatório a decisão final, é baseado nele
que as propostas terapêuticas e os prognósticos futuros vão ser
elaborados. Tome-se o caso de um doente em que se diagnostica
um tumor numa biopsia actualmente, mas em que, ao rever-se uma
biopsia idêntica efectuada um ano antes, se constata que o mesmo
tumor já esteve presente. Qual não será o desespero ao descobrir
que o diagnóstico já estava presente na primeira amostra e que afinal
tinha escapado ao primeiro anatomopatologista…
Em suspenso fica a pergunta: será que o tempo decorrido entre a
primeira e a segunda observação faria alguma diferença em relação ao
tratamento ou ao prognóstico da doença?
Há, contudo, erros que não têm consequências: por exemplo,
num apêndice excisado por uma suspeita de apendicite, o
anatomopatologista pode confirmar o diagnóstico ou achar que as
raras células inflamatórias que observa não preenchem os critérios
morfológicos para tal diagnóstico.
Assim, o que escrever no seu relatório não terá grandes
consequências, pois a avaliação acontece após a excisão do órgão
cuja decisão cirúrgica foi realizada com base em parâmetros clínicos e
laboratoriais prévios, sem a sua intervenção.
Contudo, há casos em que o diagnóstico tem consequências
catastróficas, como um diagnóstico em biopsia de um tumor ósseo
maligno numa criança e que posteriormente, na observação da peça
de amputação, o diagnóstico seja apenas um processo reactivo ou
inflamatório! Estas situações podem ocorrer e raramente os doentes
pensam nelas quando recebem um relatório anatomopatológico.
Como o anatomopatologista não está diante do doente –
a anatomia patológica não é, de facto, uma especialidade “mediática”
–, muitos doentes não têm a noção da importância que o relatório
anatomopatológico traduz na realidade. Ficam, pois, sem saber
que o seu futuro pode depender de um simples papel.
Se o seu médico assistente não fizer uma criteriosa avaliação
do resultado anatomopatológico no enquadramento clínico,
pode-se decidir por um tratamento desajustado, com consequências
desastrosas para o doente. O erro em medicina é algo semelhante
a um acidente aéreo, ou seja, o resultar de um acumular de pequenos
erros que origina depois uma tragédia. Há que ser criterioso e
cauteloso em face de diagnósticos que comprometam decisivamente
o futuro do doente, sobretudo quando o diagnóstico proposto pela
anatomia patológica não se enquadra no contexto clínico. Quando
alguma coisa não bate certo, é preferível fazer STOP: parar, escutar
e olhar, isto é, rever o material anatomopatológico (vulgo “revisão de
lâminas”), rever todo o processo clínico e conferenciar com o médico
anatomopatologista, no sentido de se atingir um esclarecimento
definitivo. Por isso a maior parte dos hospitais, em particular os
de índole oncológica, têm normas de conduta que obrigam a revisão de
lâminas de diagnósticos realizados fora da instituição antes
de se proceder a qualquer terapêutica.
C
orte dos “blocos” e colheita
das secções em lâminas de vidro
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anatomia patológica
C
oloração das lâminas
Boas práticas e manual de procedimentos
diminuem erro
Porque se erra em medicina? É curioso que os doentes pensam muitas vezes
que os erros são todos realizados por negligência ou por desconhecimento por
parte dos médicos. Pode ocorrer que um diagnóstico esteja correctíssimo mas
se, por um erro informático ou de transcrição, for atribuído a outro doente terá
resultados idênticos aos de um diagnóstico errado.
Os hospitais e serviços de anatomia patológica têm de ter manuais de
procedimentos e de boas práticas para minimizarem estas situações que
são passíveis de acontecer. Além deste tipo de erro, há outros que derivam
da dificuldade intrínseca de determinados processos patológicos. Há áreas
cinzentas, sobretudo em oncologia, especialidade onde a anatomia patológica
tem a maior relevância.
Acontece mesmo em alguns casos que um anatomopatologista estabeleça um
diagnóstico e que outro, observando a mesma lâmina, possa ter outra opinião –
sendo ambos experts na matéria.
Há, no entanto, algo que deve estar sempre presente: o doente. Quando há uma
dúvida, uma incerteza, ela deve ser esclarecida e deve ser explicado ao doente
o porquê, bem como a metodologia para a resolver.
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Quando a doente volta ao médico depois de o cancro ter sido
diagnosticado, este vai estabelecer
uma orientação terapêutica traçada pelo relatório do anatomopatologista. Veja-se, pois, a enorme
responsabilidade que recai sobre o
médico anatomopatologista, esse
desconhecido dos doentes, mas que,
nos bastidores, manobra a sua terapêutica! Ele não pode, ou melhor,
não deve errar (ver caixa).
Perguntar não ofende…
É também responsabilidade do anatomopatologista o exame citopatológico, isto é, o exame comummente
anatomia patológica
designado de Papanicolaou para prevenção do cancro do colo do útero
e o exame das células retiradas por
punção aspirativa por agulha fina
da tiróide ou de outros órgãos, por
vezes realizado sob controlo de imagem pelos radiologistas, bem como
das células de derrames cavitários
(peritoneu, pleura, pericárdio) ou
de líquidos fisiológicos, como urina,
entre outros.
No caso da citologia, a metodologia é distinta e menos complicada que nas peças cirúrgicas ou nas
biopsias. Aqui, as células têm de ser
apenas fixadas, espalhadas numa
lâmina e coradas para observação.
As citologias cervico-vaginais, o
vulgar Papanicolaou, têm evoluído
muito em termos tecnológicos e neste momento já não se deve proceder
como antigamente, mas sim por um
escovado disperso num frasco com
líquido, que permite a obtenção de
uma lâmina em que as células se
dispõem em monocamada.
Apesar de mais dispendiosa,
esta técnica oferece uma qualidade incomparável e dá uma melhor
garantia de tratamento eficaz e de
diagnóstico precoce, além de possibilitar envio de amostra para genotipagem viral quando há suspeita
de infecção por vírus do papiloma
humano.
Por tudo isto, o trabalho do médico anatomopatologista é tão importante ou mais que o do médico
assistente, que depende do primeiro
(o anatomopatologista) para indicar
o melhor tratamento.
Assim sendo, não hesite em falar com o ‘seu’ anatomopatologista
quando tiver dúvidas ou questões,
porque muitas vezes ele é o profissional de saúde mais habilitado para
proceder ao seu esclarecimento.
ALIZAÇÃO de citologias ginecológicas em meio líquido e screening das mesmas pelas
RE
citotécnicas (em cima) e observação das lâminas ao microcópio (em baixo)
Anatomia Patológica e Patologia Clínica:
qual a diferença?
Muitos doentes confundem as análises de anatomia patológica com as análises de
patologia clínica. Nada mais errado! As análises clínicas, vulgo patologia clínica, têm
uma metodologia completamente distinta da realizada nas peças operatórias e nas
biopsias pelo médico anatomopatologista. O mais curioso é que esse papel impresso
por computador e entregue passado pouco tempo ao doente vai ser avaliado pelo
médico assistente do mesmo, e não propriamente pelo patologista clínico, ao invés do
que se passa na anatomia patológica. As análises de anatomia patológica são análises
bioquímicas, não identificam microrganismos, e de modo algum há a possibilidade de as
executar e responder com a mesma rapidez que a patologia clínica.
Por outro lado, entrega-se um documento escrito, como se se tratasse de uma consulta,
que diz respeito a tudo o que possa importar ao doente e que vem da observação das
lâminas referentes a determinada peça operatória ou biopsia. Apesar de também a
anatomia patológica ter beneficiado dos avanços da robótica em medicina, o tipo de
amostras que processa obriga a uma metodologia técnica demorada e mais complexa.
Não se pode retirar um estômago, colocá-lo numa máquina e esperar um resultado, ou
mesmo lâminas prontas a serem observadas em 30 minutos, como em grande parte das
análises clínicas.
Uma vez obtidas as lâminas para observar ao microscópio, há toda uma parte de análise
feita pelo anatomopatologista ao microscópio que tanto pode demorar segundos como
dias ou mesmo semanas, quando, em casos muito difíceis, há necessidade de consultar
outros colegas.
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Anatomopatologista, o médico “invisível”