Discurso do presidente João Ricardo na abertura do IX Congresso Estadual de
Magistrados*
Quero fazer desta fala um meio de reflexão sobre tema caríssimo para civilização. Refirome à democracia.
O ponto está na incógnita que envolve esta designação tida como democracia. Ela existe,
é efetiva, é substancial ou não passa de uma ilusão construída na dialética pasteurizada
da política subvertida, dos meios de comunicação de massa cooptados por um padrão de
informação limitador da adversidade? Será que a positivação do Estado Democrático de
Direito, em 1988, implementou automaticamente uma democracia plena, de fato e
substancial no Brasil? Receio que não. Enfrentamos muitos problemas com a nossa
democracia, a começar pelo que estamos aqui tratando neste Congresso: “O Pacto
Federativo” .
Podemos verificar, sem muita dificuldade, a existência de um sistema unitário nacional em
vários setores do Estado, que acabam contrapondo a orientação constitucional de
respeito à Federação. Um exemplo é o da ordem tributária que estabelece uma absurda
injustiça na distribuição dos encargos fiscais concentrando a receita na União. O ensino,
em outro âmbito, atende ainda um modelo emanado de Brasília com pouca consideração
às diversidades culturais que expressam a riqueza do nosso povo.
O Congresso Nacional, domina negativamente a cena pública, substituiu a representação
pelo sistema de barganha e negociatas, ora extorquindo do executivo, ora sendo
submetido pelo mesmo. Processo que é estabelecido pela despersonalização e
homogeneização partidária. Os partidos apresentam seus programas fabulosos
divulgando um país que pretendem construir. Na vida real, atuam desprovidos de
intenções republicanas e se apropriam do Estado numa disputa em que o poder é o bem
exclusivo a ser almejado.
No âmbito do Judiciário, um novo personagem: o CNJ, que trouxe a sua contribuição para
estremecer a nossa Federação de papel. Órgão central e com funções bem definidas,
passou a interferir na administração dos Tribunais e, pasmem, até na atividade
jurisdicional. Em plena polêmica sobre a sua atuação, ante as declarações da Ministra
Eliana Calmom, a nossa imprensa livre já definiu o padrão conceitual deste fato. Estão
esvaziando o CNJ, tudo isso sob a indignação da atual Corregedora nacional de Justiça,
que profetiza a existência de um Judiciário corrupto e reivindica plenos poderes ao
Reichstag para viabilizar a sua limpeza. Mas, até o momento, o CNJ não se ocupou da
maior demanda da Justiça brasileira, que é a democratização dos Tribunais. Ao contrário,
repete o modelo antidemocrático que está estruturada a Justiça brasileira, implementando
uma atuação verticalizada e avessa aos princípios da Federação.
Outro fator que emperra o nosso processo de construção democrática é o modelo como
transita a informação no Brasil. Mesmo com a expressa vedação constitucional, não
conseguimos abolir o complexo de monopólios que impera no sistema de comunicação
social. O jornalismo nacional está envolto pelas barreiras impostas pelas empresas de
comunicação e os seus interesses comerciais. Estes fatos consistem, na visão de Noam
Chomsky, no maior obstáculo à liberdade de imprensa.
O poder de comunicação de organismos tecnológicos e oligopolizados é imenso e se
revela na versatilidade de fabricar opiniões. Nós, juízes, sabemos muito bem disso. Basta
decidir de forma contrária aos interesses midiáticos e vem a pecha de censores. Com
perplexidade, observamos que, com rapidez e eficiência, a opinião publicada domina a
sociedade e consolida conceitos tão distorcidos e corrosivos à construção da autonomia
do cidadão, fenômeno determinante na elaboração da percepção social do fato político.
Outro dia tivemos um caso paradigmático aqui no Rio Grande do Sul. Um cidadão,
vereador de um pequeno município do Estado, resolveu entrar na Justiça para não ver
seu nome veiculado em matéria jornalística que noticiava má utilização de verbas
públicas. Em juízo, inegavelmente foram postos em confronto dois axiomas idênticos e de
muita grandeza. Liberdade de imprensa de um lado, direito à personalidade, integrado ao
princípio da dignidade, de outro.
Agora indago, de todos os agentes públicos e privados, quem têm as atribuições (ou
obrigações) constitucionais para dizer qual o valor preponderante? É a imprensa? A
empresa? Ou o juiz? Assim como não podemos escapar da obrigação de decidir, não
podemos admitir qualquer atentado a nossa independência, neste caso, praticado sobre a
bandeira nobre da liberdade de imprensa como meio eficaz de indução da opinião, com
sérias conseqüências na independência dos juízes ao direito à informação.
É teratológico, surreal e inadmissível qualificar como censura qualquer decisão judicial
emanada por um juiz livre, independente e imparcial, na plenitude do exercício de suas
obrigações constitucionais. Censura é conduta típica das ditaduras e não podemos nos
entregar a clichês utilitários para maquiar interesses obscuros. A utilização do imenso
poder de comunicação dos monopólios da mídia, com notória intenção de submeter o
Poder Judiciário, desvela um atentado à democracia. O potencial lesivo dos veículos de
comunicação monopolizados, atuando de forma coordenada, com o objetivo de impingir
uma idéia coletiva manufaturada atenta contra à independência judicial.
O padrão jornalístico imposto pelos oligopólios faz com que não tenhamos tantos
jornalistas livres no Brasil como temos juízes livres. E num sistema em que a informação
é pasteurizada, o único lugar que um cidadão pode se expressar com liberdade e exercer
a plenitude da defesa é na sessão de um Tribunal. Portanto, temos que preservar isso
para que um dia logremos a plena liberdade de informação e que os meios de
comunicação estejam nas mãos da sociedade civil como forma de abolirmos a verdadeira
censura imposta pela ditadura privada instituída pelas poderosas empresas de
comunicação. Não falo de um fenômeno brasileiro, mas mundial. Porém, a luta por uma
imprensa livre deve ser tarefa de todos os segmentos.
Sintomático é o fato de termos menos rádios comunitárias em funcionamento do que
durante a ditadura militar. Isso porque hoje elas não podem ser censuradas, portanto
consistem em um sério risco aos produtos embalados que são distribuídos aos
consumidores de informação. Melhor então é não lhes darem autorização para funcionar.
Fixo-me nesta questão, não só como afirmação da importância do jornalismo e pelo
respeito profundo aos jornalistas, mas também porque as consequências do dirigismo da
informação afetam, sabemos, questões fundamentais para o futuro da sociedade. A
mescla da imprensa com a empresa determina a ideologia da informação.
Neste âmbito, a única saída para a Previdência é a privatização, segundo a mensagem
oficial de alguns veículos. Nós, magistrados, por nossas Associações, resistimos a essa
ideia, o que motiva a imputação que nos dão de corporativos e privilegiados. Alguns
formadores de opinião desconsideram, de forma conveniente, o que denunciam
economistas liberais americanos sobre a ineficiência da seguridade privada, como o
Prêmio Nobel de Econômia Paul Krugman com suas verdades inconvenientes sobre o
modelo idolatrado pelas elites liberais brasileiras, e também o economista Jeremy Rifkin,
para quem a iniciativa privada não deveria atuar no âmbito previdenciário, somando sua
obra a de muitos que revelam os resultados da diminuição do Estado.
Não menos tendenciosos são os conceitos, maciçamente despejados na sociedade,
sobre a tributação no Brasil. Cria-se uma falsa percepção de que os ricos sustentam a
receita do Estado, quando, na verdade, são os que menos pagam impostos, isso quando
não são beneficiados por generosas isenções, algumas muitos suspeitas, quando
observamos com atenção a relação dos financiadores das campanhas eleitorais. Na
verdade, a carga tributária recai sobre o pobre e sobre os que recebem salários, porque o
lucro direcionado à pessoa física sequer é tributado.
A injustiça é de tal monta que superaria muitos dos escândalos que até aqui
presenciamos. Para termos a exata percepção do problema, os brasileiros e brasileiras
que ganham até dois salários mínimos pagam a metade em impostos. Isso faz do tal
impostômetro uma grande impostura. Imaginem que contribuição que dariam a imprensa
livre, os partidos, os legislativos e os governantes se estivessem dispostos a discutir, com
a sociedade, dentro dos parâmetros reais, a justiça tributária.
Mas falando em financiamento de campanha, eis aqui outro grave problema da nossa
democracia. A legislação brasileira permite o financiamento privado para as campanhas
eleitorais, isso, obviamente, possibilita que as contribuições sejam originadas dos que têm
condições econômicas. Sim, são os ricos que contribuem. Sem qualquer maledicência,
porque é uma realidade tão evidente. Basta estar atento ao mundo. O sistema gera uma
representação parlamentar censitária, com voto universal. Todos votam, mas elegem-se
os representantes de poucos. As consequências são naturais e decorrem do modelo: leis
que privilegiam os ricos, códigos processuais anacrônicos que engessam o Judiciário e
garantem a impunidade e a consequente desigualdade social.
Curiosa também é a predileção destas minorias privilegiadas em atacar as instituições
democráticas. Não somente por ser membro Poder Judiciário, mas, sobretudo por
presidir uma Associação de Juízes, posso bem perceber o tamanho dos danos que esta
concepção promove à instituição. Muitas vezes é lançado sobre o Poder Judiciário uma
visão enlatada, com aparência de um grande consenso, sem qualquer problematização e
compromisso com a realidade complexa do sistema judicial.
É o momento de encerrar. Acho que falei até aqui somente de democracia. Todas as
questões nos levam, compulsoriamente, à conclusão de que temos que cuidar da nossa
democracia. Ela está sendo construída e o simples fato de reconhecermos isso indica que
estamos caminhando em direção ao horizonte do Galeano, aquele que ele utilizou para
explicar a utopia. O primeiro passo para superarmos estas dificuldades é termos a
consciência de que não vivemos em uma democracia plena.
Jamais poderia esquecer de afirmar a importância do Judiciário do Rio Grande do Sul
neste contexto. Definitivamente, somos uma ilha de resistência nesta luta contra o
desmonte do Estado e na afirmação da nossa democracia. Contrariamos interesses
poderosos, o que justifica os constantes ataques à nossa instituição. Sem dispensar, é
claro, os clássicos filhotes da ditadura, que se promovem na política atacando as
instituições, acusando-as de serem a sua imagem e semelhança. Claro, sempre contando
com uma alienação popular, reminiscência mais importante da ditadura. Mas, felizmente,
não dependemos de um sistema de marketing para vender uma imagem positiva. A
satisfação com os nossos serviços são reveladas em pesquisas anuais de credibilidade e
de produtividade. Detemos a menor taxa de congestionamento do País e a maior
demanda proporcionalmente por habitante. Realidade que se repete a cada ano,
demonstrando que não nos abalamos com os ataques dos desconstrutores do Estado.
São dados indicativos de que temos uma instituição muito forte e capaz de fazer todos os
enfrentamentos necessários para consolidar a nossa democracia, mesmo aqueles mais
difíceis.
É com esta esperança que desejo a todos e todas que este evento torne-se mais uma
contribuição da nossa Magistratura para consolidar a nossa democracia.
Muito Obrigado
* Gramado, 29 de setembro de 2011.
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