A essência revolucionária em Abayomi:
Uma boneca negra de pano em movimento1
Giane Vargas Escobar e Marjorie Edianez dos Santos Göttert
A boneca de pano Abayomi surgiu no final da década de 1980, no Brasil, dentro de
uma conjuntura de acirramento das relações capitalistas com a introdução da política do
neoliberalismo, aonde o mercado tornava-se o ditador da ordem mundial. Essa política
capitalista, ao mesmo tempo em que elevou profundamente os lucros da classe
hegemônica, acelerou radicalmente a pobreza e a criminalização dos povos
historicamente discriminados, como negros e indígenas.
Os movimentos sociais nunca deixaram de se organizar, além do mais a política
econômico-social do lucro mostrou-se incompatível com o uso renovável dos recursos
naturais. E será no contexto da efervescência dos movimentos sociais de negritude, do
feminismo, de mulheres negras e de meio ambiente que Abayomi nasce, como um grito
do povo que não pode e não irá se calar (SILVA, 2008).
Boneca Abayomi: uma pessoa, uma boneca, uma teoria, uma história?
Abayomi não é uma pessoa ou apenas uma boneca de pano, não é somente
uma técnica ou simplesmente uma teoria, ela é movimento daqueles que com ela
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ESCOBAR, Giane Vargas; GOTTERT, Marjorie Ediznez dos Santos. A essência
revolucionária em Abayomi:uma boneca negra de pano em movimento. In: SOARES,
A. L. R. (org). Anais do I Congresso Nacional Memória e Etnicidade, Casa Aberta Editora,
Itajaí, 2010. ISSN: 21784981
Mestre em Patrimônio Cultural pela UFSM, Especialista em Museologia pela Unifra.
Diretora Técnica do Museu Comunitário Treze de Maio.
Estudante do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Historia da UFSM, voluntária do
Museu Comunitário Treze de Maio.
conhecem e interagem com a sua própria história e a do seu povo, ou conforme nos
explica a criadora:
(...) pra mim, Abayomi ela é uma bandeira poética, eu como militante, eu, eu
defino ela dessa forma, porque é um objeto singelo, mas que tem uma, alguma
coisa impactante de ser uma boneca totalmente negra que não tem desenho de
olho, de boca, nem de nariz. E o objetivo do meu trabalho, é fortalecer a autoestima da população afrodescendente e, dessa forma, por mais simples que
seja, estar contribuindo pra eliminação do racismo, essa é a, é a meta principal
do meu trabalho, essa é a minha forma de estar interferindo na sociedade de
alguma forma com o que eu sei fazer. E aí eu vou deixar aqui mais alguma outra
coisa que eu gosto de usar bastante, que é, assim, é fazer arte com o que a vida
oferece. (MARTINS, 2010)
Waldilena Martins, popularmente conhecida como Lena Martins, artesã de São
Luiz do Maranhão, educadora popular e militante do Movimento de Mulheres Negras criou
a Boneca Abayomi, “este objeto lúdico e afetivo”, que logo despertou outras mulheres
para a experiência do trabalho artesanal de criação dessas bonecas. Vindas de várias
gerações, dos movimentos sociais e de diferentes experiências, aprenderam juntas e
recriaram as suas vidas, juntaram-se e fundaram no Rio de Janeiro a Cooperativa
Abayomi, em dezembro de 1988, dando mais (e outros) significados ao trabalho que
foram desenvolvendo em cumplicidade e harmonia, entre chuvas e sóis que a vida lhes
dava e que davam a vida, em profundo movimento (SILVA, 2008).
Figura 1 - Lena preparando material para a oficina, 15/05/10
Fonte: Acervo fotográfico do Museu Treze de Maio,
Santa Maria-RS
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A cooperativa caminhava para estimular as relações de cooperação e
generosidade, para o fortalecimento da auto-estima e reconhecimento da identidade afrobrasileira de negros e descendentes, buscando superar as desigualdades de gênero e
integrando a memória cultural brasileira.
A técnica Abayomi: “uma forma de cantar, brincar, falar poesia, interferir
com o público, no meio do espetáculo nasce um neném negro”
A técnica foi criada em 1987 e batizada pela própria artesã, Lena Martins,
recebendo o nome de Abayomi, que na língua africana Yorubá, significa “meu presente”.2
As Artesãs Livres Associadas-Associação Abayomi é um grupo de mulheres que
se organizou em função da confecção das bonecas negras Abayomi. Atualmente
participam do grupo Lena Martins, Luiza Borba, educadora e artesã e Sonia Santos, arteeducadora.
Desenvolvida pelo grupo, se traduz em bonecas negras com estética afrobrasileira feitas com materiais reaproveitados, tecidos e malhas. Na técnica Abayomi, as
bonecas são confeccionadas sem uso de cola e costura ou qualquer estrutura rígida
interna (madeira arame, etc...). Nas indumentárias as fitas, os bordados, restos de
bijuterias e miudezas, definem o requintado acabamento. A boneca não possui
demarcação de olho, nariz nem boca, propositalmente, para favorecer o reconhecimento
da identidade das múltiplas etnias africanas.
A oficina é uma dinâmica de sensibilização que promove o fortalecimento da autoestima e a identidade afro-brasileira. Durante a oficina cada participante confecciona um
bebê negro sem usar cola ou costura. Além das oficinas o grupo desenvolveu outras
ações repletas de criatividade, conforme relatos de Lena (2010):
E aí depois o grupo cresceu, ficamos em torno de oito, dez mulheres, e nós
éramos, éramos assim, um grupo com muita criatividade, porque a gente não só
fazia bonecas, mas a gente criou umas exposições temáticas, uma que é Ritmos
do Brasil, a outra que é Retalhos do Brasil levou 30 mil pessoas ao Museu do
Folclore no Rio de Janeiro. Criamos um cortejo, que foi o Cortejo... Abayomi, né,
que é uma forma de cantar, brincar, falar poesia, interferir com o público, no
meio do espetáculo nasce um neném negro, né. (MARTINS, 2010)
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DIÁRIO DE SANTA MARIA. Protagonistas culturais: Exposição “Retalhos do Brasil” deixa
ensinamentos na cidade. Diário de Santa Maria, Santa Maria, 13 de julho de 2010.
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Brincando, cantando, trocando idéias e sentimentos, cada participante confecciona o
Bebê Abayomi, reaproveitando sobras de malharias, costuras e confecções. Os retalhos
são dispostos em forma de círculo na ordem a serem utilizados, facilitando o acesso dos
participantes ao material e dando uma forma estética e colorida que remete à apreciação
de uma Mandala, que é imensamente utilizada por diversas culturas africanas para
simbolizar o útero, e aqui também ela significa a vida, a integridade.
Palestras e oficinas de bonecas negras no mês de aniversário da Sociedade
Cultural Ferroviária Treze de Maio de Santa Maria-RS
No dia 13 de maio de 2010, o Clube Treze de Maio completou 107 anos de
existência e de resistência. Espaço de sociabilidade negra, criado em 1903 por
trabalhadores da extinta Viação Férrea, de importância singular para a história do povo
negro no sul do país, no limiar no século XXI se re-significou como um Museu
Comunitário.
Uma das finalidades do Museu Treze de Maio, conforme Art. 3°, parágrafo VIII do
seu Estatuto (2003, p. 4) é “articular-se com atividades de pesquisa e ensino das
universidades públicas e privadas”.
Nesta perspectiva é que o Museu promoveu em parceria com o Núcleo de Estudos
Contemporâneos, os Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Ciências Sociais, o
Mestrado em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) a
palestra Movimento de Mulheres Negras: as bonecas de pano Abayomi. A atividade
aconteceu no dia 14 de maio de 2010, no Centro de Ciências Sociais e Humanas-Campus
UFSM, das 19h às 21h e contou com a presença de alunos, professores e comunidade
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interessada. A palestrante foi a educadora e artesã Waldilena Serra Martins, que de
maneira informal e lúdica abordou a sua trajetória de vida que se confunde com a própria
“vida da boneca Abayomi”.
Oficina de bonecas negras Abayomi no Projeto Esperança e no Museu Treze de
Maio
Outra finalidade do Museu Treze de Maio, conforme Art. 3°, parágrafo XVIII do seu
Estatuto (2003, p. 5) é “promover oficinas culturais que visem o lazer e a geração de
trabalho e renda, bem como a autosustentabilidade do MUSEU TREZE DE MAIO, como:
cursos de artesanato afro-étnico, culinária afro, música, dança-afro, percussão, capoeira,
teatro, coral, etc”.
Nesse sentido, na manhã de sábado, dia 15 de maio de 2010, a artesã e
educadora Lena Martins ministrou oficina para mulheres, homens e crianças que fazem
parte do Projeto Esperança, junto ao terminal da Avenida Medianeira. A oficina foi um
sucesso e rendeu um convite para que a artesã retornasse no mês de julho de 2010,
juntamente com a exposição “Retalhos do Brasil”, por ocasião da 17ª Feira do
Cooperativismo de Santa Maria.
Um público significativo se fez presente também na tarde de sábado, dia 15 de
maio de 2010 para participar da oficina de bonecas negras de pano Abayomi no Museu
Treze de Maio.
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Figura 2 – participantes da oficina no Museu Treze de Maio
confeccionando o bebê Abayomi, 15/05/10
Fonte: Acervo fotográfico do Museu Treze de Maio, Santa Maria-RS
Ao final do evento Lena Martins assistiu a apresentação do Grupo Vocal de
Mulheres Negras do Museu Treze de Maio. A artesã recebeu ainda material gráfico
informativo, camiseta e a primeira publicação do Museu Treze de Maio “Os Problemas de
Júnior”, literatura infanto-juvenil com corte racial negro de autoria da escritora Maria Rita
Py Dutra. O evento foi encerrado com confraternização entre todos os participantes.
Retalhos do Brasil na 17ª Feira do Cooperativismo 2010 de Santa Maria-RS
O retorno de Lena à Santa Maria foi para participar da 17ª Feira do
Cooperativismo, realizando a exposição e oficinas durante os dias 9, 10 e 11 de julho de
2010. A mostra veio do Rio de Janeiro adequadamente embalada e foi organizada pela
equipe do Museu Treze de Maio, sob os olhos atentos e cuidadosos da artista.
Mais de 60 bonecas negras de pano Abayomi medindo entre 3cm e 1m fizeram
parte da exposição Retalhos do Brasil que retratou alguns aspectos da cultura brasileira.
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Figura 3 – Trabalhadores do Brasil. Vitrine com bonecas Abayomi
inspiradas na imagem de Victor Frond – A partida para a roça, século XIX
Litografia a partir de fotografia
Fonte: Acervo fotográfico do MTM
Focalizada por cinco temas: cotidiano, cenas do dia-a-dia de milhares de
brasileiros; trabalho, mostra os primeiros trabalhadores do Brasil; floresta mitológica,
representa o imaginário popular com seus mitos, lendas e seres fantásticos; sagrado,
enfatizando a mistura religiosa do cidadão comum e o profano/festas populares, a alegria
e a brincadeira do bumba-meu-boi, do carnaval e a festa junina.
Figura 4 – Profano/festas populares. Exposição de bonecas
Abayomi na 17ª Feira do Cooperativismo em Santa Maria, 2010
Fonte: Acervo fotográfico do MTM
Esta exposição foi elaborada no ano 2000 pelas mãos de: Lena Martins, Regina
Oliveira, Flavia Berton, Shirley Brito, Maria Luiza, Sonia Santos, Maria José e Cristiane
Ferraz e o trabalho objetivou fortalecer a auto-estima da população afro-descendente,
contribuindo para a eliminação do racismo.
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Considerações Finais
A essência revolucionária em Abayomi está na práxis da sua construção e
contínua reconstrução, pois ela não está restrita ao passado, pelo contrário, é movimento,
entende-se dentro do processo histórico no qual a transformação concreta das relações
sociais é o seu caminho. Expressão da sabedoria popular, da fusão dos conhecimentos
dos nossos povos, ela expressa a resistência e luta dentro de um modo de viver e
produzir que é opressivo e insustentável. Parte da arte que é única, aonde a teoria e a
técnica andam juntas, e não existem sem aquele que a produz. O trabalhador possui suas
ferramentas, o conhecimento e os meios necessários à elaboração do seu trabalho. Tratase de outro modo de produção, aonde as relações entre os que trabalham são de
solidariedade, cooperação e autogestão.
Abayomi não só sugere, mas contém em si um outro modo de vivenciar e
entender a vida, revolucionando as relações presentes dos que se entendem sujeitos
ativos do processo histórico, ela não pode partir do raciocínio ou do afeto de alguém, pois
é fruto desse processo, que envolve muitas pessoas, aonde as mãos que a fazem não
podem trabalhar sem o coração que palpita dentro de cada um.
Nesse sentido, ao propor a oficina de bonecas negras de pano Abayomi, no mês
em que a Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio de Santa Maria/RS completou
107 anos, o Museu Comunitário Treze de Maio foi ao encontro daquilo que se propõe, de
ser um veiculo para reflexão, integração, educação e elevação da autoestima e
autoimagem de homens e mulheres negras, através do emponderamento desses sujeitos
históricos, trazendo a comunidade para dentro deste lugar e este para a realidade
concreta da comunidade, valorizando os atores que constroem o dia a dia do “Treze” e,
assim, projetando um outro mundo possível.
REFERÊNCIAS
DIÁRIO DE SANTA MARIA. Protagonistas culturais: Exposição “Retalhos do Brasil”
deixa ensinamentos na cidade. Diário de Santa Maria, Santa Maria, 13 de julho de
2010.
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ESTATUTO. Estatuto do Museu Treze de Maio. Santa Maria, 20 de novembro de 2003.
Registrado em 30 de setembro de 2005.
MARTINS, Waldilena. Waldilena Martins: depoimento [maio 2010 . Entrevistadores:
Matias Rempel e João David Minuzzi. 1 DVD. Entrevista concedida ao Banco de Memória
do Museu Treze de Maio. Santa Maria – RS.
_____. Release da Exposição Retalhos do Brasil [mensagem pessoal . Mensagem
recebida por <[email protected]> em 9 de julho de 2010.
SILVA, Sonia Maria da. Experiência Abayomi: cotidianos: coletivos, ancestrais,
femininos, artesaniando empoderamentos. Orientadora: Regina Leite Garcia. NiteroiRJ/UFF, 2008. Dissertação (Mestrado em Educação). 147 p.
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