UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS VIII PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ECOLOGIA HUMANA E GESTÃO SOCIOAMBIENTAL GLAIDE PEREIRA DA SILVA CRIANÇAS NA TERRA: A CAATINGA IMPRESSA NO IMAGINÁRIO INFANTIL Representações Sociais e Mapas Mentais Infantis sobre o Bioma Caatinga Paulo Afonso - BA PAULO AFONSO-BA MARÇO / 2012 GLAIDE PEREIRA DA SILVA CRIANÇAS NA TERRA: A CAATINGA IMPRESSA NO IMAGINÁRIO INFANTIL Representações Sociais e Mapas Mentais Infantis sobre o Bioma Caatinga Paulo Afonso - BA Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental da UNEB - Universidade do Estado da Bahia, Campus VIII, como requisito final para a obtenção do título de mestra, sob a orientação do Prof. Doutor Juracy Marques dos Santos. LINHA DE PESQUISA: Ecopedagogia PAULO AFONSO – BA MARÇO / 2012 Márcia Maria Feitosa Ferraz Moura – CRB/BA - 1609 Pereira-Silva, Glaide. Crianças na terra: A caatinga impressa no imaginário infantil. Representações sociais e mapas mentais infantis sobre o bioma caatinga – Paulo Afonso/ BA. /Glaide Pereira da Silva - Paulo Afonso: O Autor/ Universidade do Estado da Bahia – UNEB, 2012. 140f.: il. ; 30 cm. Orientador: Juracy Marques dos Santos. Dissertação (mestrado) – UNEB / Universidade do Estado da Bahia/ Departamento de Educação, 2012. Referências bibliográficas. 1. Ecologia Humana 2. Educação Planetária 3. Meio Ambiente 4. Caatinga I. Santos, Juracy Marques dos II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação III. Título CDD –370.115 GLAIDE PEREIRA DA SILVA CRIANÇAS NA TERRA: A CAATINGA IMPRESSA NO IMAGINÁRIO INFANTIL Representações Sociais e Mapas Mentais Infantis do Bioma Caatinga Paulo Afonso - BA BANCA EXAMINADORA Juracy Marques dos Santos – Orientador Doutor em Cultura e Sociedade UNEB - Universidade do Estado da Bahia Josemar da Silva Martins Doutor em Educação UNEB - Universidade do Estado da Bahia Luiz Antonio Ferraro Júnior Doutor em Desenvolvimento Sustentável UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana D edico a construção deste pequeno tributo à Mãe Terra e a umas tantas almas que descobri e reconheci nesta encarnação, por mim tão queridas e amadas, e que, juntas ou distantes, caminham, padecem, gozam sobre o solo e sob as benesses de Gaia. Condenso-as, todinhas, numa só: Elton Ivo Moura, amor ágape que transcendeu muitas vidas, reencontrado no seio exuberante da floresta amazônica. AGRADECIMENTOS Mais uma vez, e sempre, toda minha reverência a Gaia, útero e berço sagrados, matriz nutridora, alma mater! Aos orixás, forças divinas da natureza, que aprendi a conhecer e respeitar! A Regina Cely, Jailson Santana, Rosília, Luiza, Mãe Cícera e Reuber, que me ajudaram a perceber que eu também sou esta energia e ela está ao meu dispor, basta estender a mão e crer. Ao meu pai, Lourival, e minha mãe, Nilde, portos terrenos! A Flavinho e Paulinha, almas quais devo maior cuidado, por serem complacentes perante uma mãe que age de maneira pouco convencional, nem por isto lhes amando menos. Aos amigos e amigas, antigos e/ou reencontrados, novos e/ou redescobertos: Adelmo, Elis e Zé, Gabi, Joelma e Felipe, José Ricardo, Laura e Rafael, Luciana, Rosângela, Stella Maris, Ticiano, Ulysses, Ed-Valda, Cecília. Também aos não aqui citados, entretanto, com mesma intensidade, amados e amadas. Todos/as, pontos de luz colocados pelo Universo, na trilha – não raras vezes, nebulosa – desta minha encarnação. Aos colaboradores/as desta pesquisa, construtores substanciais e coautores nesta tarefa. Às professoras-guerreiras Eliane Nogueira e Cleonice Vergne, por não nos abandonarem à própria sorte e continuarem firmes na luta. Por fim a Juracy Marques, espírito que me faz acreditar ser possível estar na academia sem perder a conexão com o sagrado que há no Eu e no Outro, meu referencial terreno de pesquisador de almas, com alma grandiosa. Sara! Sara! Sara! Santa Sara tens minha devoção, por sentir me proteger nas estradas, caminhos e des-caminhos de uma vida gitana, astrolábio que me aponta a precisa direção, quando muitas vezes penso que já não tenho um rumo. "Porém, no sistema de civilização védica, considera-se o quanto a pessoa é avançada em auto-realização. Ela pode viver numa cabana e tornar-se muito avançada em auto-realização. Contudo, se ela desperdiça seu tempo transformando sua cabana num arranha-céu então, toda sua vida está perdida. A dita civilização moderna não passa de uma competição de cães. O cão corre com quatro patas, e as pessoas de hoje em dia estão correndo com quatro rodas. Quem for sábio e perspicaz usará esta vida para adquirir aquilo que deixou passar em inúmeras vidas anteriores – a saber, compreensão do eu e compreensão de Deus.". Sua Divina Graça A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupãda RESUMO A forma como nossas crianças compreendem natureza, ecologia, meio ambiente; a partir de quais representações elaboram seus mapas mentais; se somos adultos comprometidos com a educação das crianças, e por consequência, com o planeta e que tipo de ecologia estamos disseminando entre estas mentalidades que estão nos primeiros tempos de existência, foram algumas das preocupações que deram origem ao objeto desta dissertação. A problematização central diz respeito à forma como o Bioma Caatinga tem sido representado e discutido nas propostas pedagógicas em algumas escolas no Semiárido da região Nordeste do Brasil. Esta produção acadêmica teve a finalidade de realizar uma análise sobre as representações sociais e os mapas mentais construídos por meninas e meninos das Escolas de Ensino Fundamental I da rede pública municipal de Paulo Afonso – BA, em relação à natureza, ou ainda ao bioma no qual vivem, a Caatinga. Também foi averiguado se nas ilustrações dos/as participantes havia uma representação simbólica de elementos concernentes à corrente teórica do Ecofeminino. Tratou-se de uma pesquisa qualiquantitativa que tomou por base a teoria das representações sociais, tendo como categoria de análise os mapas mentais infantis simbolizados nos desenhos produzidos pelas crianças. Os resultados indicaram que as representações infantis atinentes ao bioma Caatinga trazem a marca de preconceitos e clichês, cujos habitantes do Semiárido são portadores e propagadores, assim como ratifica que meninos e meninas fazem leituras e se comportam de modo diferenciado em relação ao meio ambiente. Palavras-chave: 1. Ecologia Humana 2. Educação Planetária 3. Meio Ambiente 4. Caatinga ABSTRACT The way our children understand nature, ecology, environment; from which representations draw their mental maps; if we are adults committed to the education of children, and consequently, the planet and what kind of ecology are spread between these attitudes that are in the early days of existence, were some of the concerns that gave reason to the object of dissertation. The central problem regarding how the Caatinga has been shown and discussed in the educational proposals in some schools in the Semiarid Northeast of Brasil. This academic research was designed to perform an analysis of social representations and mental maps constructed for girls and boys from Elementary Public Schools in Paulo Afonso-BA, in relation to nature, or biome in which live, the Caatinga. We also examined whether the illustrations/participants had a symbolic representation of elements pertaining to the current theoretical Ecofeminine. This was a qualitative and quantitative research that was based on the theory of social representations, and as an analytical category children maps symbolized in the drawings produced by children. The results indicated that children´s representations relating to the biome Caatinga bear the imprint of prejudices and clichés, whose inhabitants are carriers of the SemiArid and propagators, and confirms that boys and girls do readings and behave differently in relation to the environment. Keywords: 1. Human Ecology 2. Planet Education 3. Environment 4. Caatinga SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11 CAPÍTULO PRIMEIRO - DE ALGUNS TEÓRICOS E SUAS TEORIAS .............. 18 1.1 Pensando e Refletindo a Ecopedagogia ..................................................... 19 1.2 Sobre a Pedagogia da Terra ......................................................................... 22 1.3 Educação Ambiental ..................................................................................... 24 1.3.1 Alguns números sobre Educação Ambiental .......................................... 27 1.4 O Cuidado Ecofeminino................................................................................ 29 1.5 Ecologia da Alma .......................................................................................... 34 1.5.1 Ecologia e Complexidade .......................................................................... 39 1.5.2 Sobre a Auto-Poiésis ................................................................................. 44 1.6 A Teoria das Representações Sociais ........................................................ 46 1.7 Mapas Mentais ............................................................................................... 51 CAPÍTULO SEGUNDO - ECOLOGIA E EDUCAÇÃO ......................................... 54 2.1 Educação Ambiental. É Possível? ............................................................... 55 2.1.1 Sobre Educação, Ecologia e Educadores ................................................ 58 2.1.2 Sobre Educação, Ecologia e Crianças ..................................................... 61 CAPÍTULO TERCEIRO - PEDAGOGIA "CAATINGUEIRA" ............................... 66 3.1 Semiárido e Caatinga: um Mapa Breve ....................................................... 67 3.2 A Caatinga na Pedagogia do Semiárido...................................................... 74 CAPÍTULO QUARTO - CONCEBENDO A METODOLOGIA ............................... 80 4.1 Da Pesquisa com Representações Sociais e Mapas Mentais Infantis ..... 81 4.2 Tipo de Pesquisa ........................................................................................... 87 4.2.1 Psicologismo/Fenomenologia .................................................................. 87 4.3 Da Natureza ................................................................................................... 88 4.3.1 Pesquisa Qualitativa .................................................................................. 88 4.4 Dos Métodos.................................................................................................. 89 4.4.1 Da Ética ....................................................................................................... 89 4.4.2 Dos Riscos.................................................................................................. 90 4.5 Sobre as Ferramentas Utilizadas ................................................................. 90 4.5.1 O Desenho Infantil ..................................................................................... 92 4.6 Como se deu a Coleta os Dados .................................................................. 94 4.7 Participantes da Pesquisa: o Porquê das Escolhas .................................. 95 4.8 Tentando Entender os Mapas ...................................................................... 98 CAPÍTULO QUINTO - ANÁLISE DE DADOS ...................................................... 102 5.1 Tentando Captar Compreensões ................................................................. 103 5.2 Sobre Meninas, Meninos e Seus Desenhos ................................................ 104 5.2.1 Sobre os Seres Humanos e Correlatos .................................................... 108 5.2.2 Das Edificações .......................................................................................... 114 5.2.3 Sobre Estrelas, Sol, Lua, Nuvens, Chuva e Rios ..................................... 115 5.2.4 Sobre Árvores, Flores e Frutos ................................................................. 117 5.2.5 Fauna: Dos Mamíferos, Ovíparos e Insetos ............................................. 120 5.3 Ilustrando Probabilidades ............................................................................ 125 CAPÍTULO SEXTO - ALGUMAS IMPRESSÕES SOBRE O QUE SE IMPRIMIU .............................................................................................................................. 132 6.1 Gente Grande, Meninas e Meninos: Do Que Não Está Impresso .............. 133 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 136 APÊNDICE............................................................................................................ 141 ANEXOS ............................................................................................................... 147 INTRODUÇÃO Eu sou a árvore Comovida e triste Tu és a menina que meu tronco usou Eu guardo sempre teu querido nome E tu? Que fizeste da minha flor? 1 CHICO BUARQUE Em tempos de mudanças paradigmáticas, mais que sempre, percebe-se a grande urgência de se modificar, transformar, muito mais investir numa nova visão e percepção de mundo, lançando mão de referências contemporâneas, tais como diversidade, alteridade, holismo, ecologia humana. As correntes sociointeracionistas rezam que o meio influencia o homem e o homem influencia, transforma e modifica o meio. Colocado este pressuposto, se compreende que uma das possíveis maneiras de operar estas transformações sociais é se construindo um novo processo educativo, onde a formação integral do ser seja uma premissa essencial, e não se priorize apenas a educação acadêmica formal, sistemática e pré-estabelecida. Urge e se faz premente buscar possibilidades criativas e inovadoras para a elaboração de novas bases nesta tarefa tão humana que é a ação de educar. George Snyders2 (1977), um dos teóricos da Pedagogia Progressista, lembra que a educação institucionalizada está sempre a serviço de uma elite dominante, todavia, é ainda, esta mesma educação que dá a condição dos cidadãos e cidadãs tomarem pé e consciência de suas capacidades e subverterem os padrões estabelecidos. 1 Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque ou ainda Chico Buarque de Hollanda, é músico, dramaturgo e escritor brasileiro. 2 George Snyders, professor honorário de Ciências da Educação da Universidade de Paris. 12 Comparando as LDB’s - Lei de Diretrizes e Bases, a Lei nº 4.024 de 20.12.61 e a Lei nº 9.394 de 20.12.1996 – praticamente trinta e cinco anos de diferença entre ambas – se constata que entre as duas leis, no que concerne à Educação Infantil, a mudança promovida foi apenas na redação do texto. Partindo do pressuposto que a educação institucionalizada é uma das vias sine qua non para uma possível mudança na percepção do mundo e do próprio ser, todavia as leis que a regem pouco se modificaram, pergunta-se: quais os rumos que poderão ter as crianças que ora estão em formação em nossas escolas? Em quais medidas os processos formativos educacionais das crianças interferem no destino da Terra? A relação seres humanos/natureza é uma história de dominação ao longo da presença humana na Terra. Os avanços tecnológicos alcançados, mormente nos últimos cinquenta anos, não têm sido suficientes para resolver questões que dizem respeito, muito mais que a provisão das necessidades básicas. Afinal, como diz a música da banda Titãs3: "A gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé." Ficam assim, homens e mulheres, diante do paradoxo desta contemporaneidade que, se em grande medida contribui para a qualidade de vida de uma parte dos seres humanos, contraditoriamente, vem igualmente destruindo recursos naturais imprescindíveis à sua sobrevivência. É claro e pouco questionável que as pessoas desfrutam hoje de tecnologias que garantem um estilo de vida bastante confortável – isto em se falando das camadas "incluídas" socialmente. E seria uma avaliação simplista, não atribuir aos tempos contemporâneos melhorias na qualidade de vida das sociedades. Resta delimitar quais seriam os limites deste desenvolvimento desenfreado diante da problemática socioambiental, tão emergente dos dias atuais. No atual estágio da humanidade, será possível conciliar desenvolvimento e cuidado? O mundo ultramoderno tem seus subprodutos indesejáveis: poluição ambiental, destruição da flora e da fauna e desequilíbrios socioecológicos de toda ordem. A raça humana se vê impelida ao progresso, ao consumo, mas ameaçada, sobretudo, por seus dejetos. Somos indiscutivelmente uma civilização tecnológica. Isto quer dizer, usamos o instrumento (techne) como forma primordial de relacionamento com a natureza. Fazemos dela e de tudo que há nela instrumento para nosso propósito de poder-dominação. [...] Desta forma se rompe a 3 Disponível em: <http://letras.terra.com.br/titas/91453/>. Acesso em: 01.11.2011. 13 solidariedade básica que nos une a tudo no cosmos e na Terra. O ser humano se arroga uma posição de soberania como quem dispõe a seu belprazer das coisas que estão ao alcance de sua mão, de seu braço, de seu olho, de seu desejo que é o instrumento. (BOFF, 2004, P. 103). Poluentes tóxicos, persistentes e bioacumulativos são encontrados atualmente em todo o planeta, desde países desenvolvidos - onde são produzidos em grande escala - até países em desenvolvimento, para onde o lixo tóxico é frequentemente exportado, lugares onde multinacionais abrem novas fábricas fugindo das fortes medidas de controle das nações industrializadas. Isto resulta numa equação perversa, ou seja: EXTRAÇÃO = EXPLORAÇÃO DE RECURSOS NATURAIS = DESTRUIÇÃO DO PLANETA. O vídeo, A História das Coisas 4, nos chama a atenção para o fato: "Cortamos as árvores; arrebentamos as montanhas para extrair os metais; consumimos toda água; exterminamos os animais, estamos ficando sem recursos naturais, estamos utilizando demasiado os materiais." Secas na Amazônia, enchentes no Sul e Sudeste do Brasil, inundações no Nordeste, expansão das desconhecidas e populares viroses, malária e dengue, derretimento de geleiras próximas aos polos e diminuição do habitat de pinguins e ursos polares são fenômenos cada vez mais presentes nos noticiários. Especialistas afirmam que estas são manifestações das mudanças climáticas provocadas por alterações na composição química da atmosfera planetária. A indústria, a produção de energia e o transporte queimam quantidades gigantescas de petróleo, carvão mineral e gás natural gerando anualmente bilhões de toneladas de gás carbônico, que são lançadas à atmosfera, alterando o seu delicado equilíbrio. Nos países pobres, crianças e adultos perecem sob o estigma da fome, sobrevivendo abaixo da linha de pobreza, em total estado de miserabilidade. "Deste modo, a natureza é subordinada ao homem; a mulher ao homem; o consumo à produção; o local ao global, etc." (MIES E SHIVA, 1993, p. 14). Diante das circunstâncias, se carece urgentemente buscar e encontrar soluções econômicas que sejam ecologicamente viáveis. 4 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ZpkxCpxKilI>. Acesso em: 30.jun.2010. 14 Embora, atualmente, o cuidado com o ambiente natural tenha se tornado preocupação e reflexão mais presentes, a ação correspondente não tem a mesma proporção. É desalentador constatar que, segundo estudiosos e cientistas, a humanidade alcançou o patamar de esgotamento do sistema. Para Capra (2005), formular políticas para um país sustentável significa introduzir uma nova dimensão ética na política. "Nossos líderes não só deixam de reconhecer como diferentes problemas estão inter-relacionados; eles também se recusam a reconhecer como as suas assim chamadas soluções afetam as futuras gerações. A partir do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções viáveis são as soluções "sustentáveis"." (CAPRA, 1997, p. 24) A ética ecológica é um padrão de comportamento que flui através da percepção de que todos/as pertencemos à comunidade global da biosfera. Homens e mulheres devem se comportar como os outros seres vivos: as plantas, os animais e os microorganismos que formam uma complexa rede viva, sem interferir na capacidade surpreendente desta rede de sustentar a vida. Há alguns caminhos que são probabilidades de se trilhar um novo percurso, e quando se cogita a respeito, naturalmente, uma destas alternativas se torna inequívoca – talvez uma das mais eficazes – a educação. Contudo, o que parece despontar como a contribuição tendencial da educação face à crise ambiental, é a criação de novas habilidades para uma intervenção humana ecologicamente prudente na natureza, evitando ou minimizando a geração de riscos e danos ambientais, causados por uma apreensão dicotômica, ao longo da saga humana. Moscovici (2007, p. 32), comenta: A maior parte das sociedades – e notoriamente as sociedades modernas – formou-se contra [grifo do autor] a natureza, determinada a explorá-la e a transformá-la pela violência. Uma violência no sentido estrito do termo, na medida em que se pensa e age para dominá-la, combatê-la ou forçá-la. Embora a perspectiva educativa biologizante esteja em forte sintonia com os demais sistemas sociais, na medida em que promove ações sinérgicas 5 com a ciência, 5 si.ner.gi.a - sf (gr synérgeia) 3 Sociol Cooperação entre grupos ou pessoas que contribuem, inconscientemente, para constituição ou manutenção de determinada ordem ecológica, em defesa dos interesses individuais. Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=sinergia>. Acesso em: 02.Fev.2012. 15 tecnologia, economia, política e direito, a criação de novas habilidades humanas ainda não se configura exatamente como a especificidade singular da educação. Se do ponto de vista sinérgico entre os sistemas sociais, a contribuição da educação ambiental para o enfrentamento da crise ambiental se situa na criação de cidadãos e cidadãs, que em última instância possuem habilidades necessárias para uma intervenção prudente no ambiente, isso quer dizer, provavelmente, que o sistema educativo se encontra subordinado aos demais sistemas sociais que demandam um novo perfil profissional no mercado ambiental, mas que não exigem reformulações profundas no processo de produção do conhecimento, muito menos nas condições sociais. Assim posto, fica compreendido que se continua vendo apenas uma parte da questão, há uma fixação no micro, ao tempo em que se esquece que ele faz parte do macro. James Lovelock (2006, p. 50), resume este comportamento com muito domínio. Passamos a nos preocupar tanto com o destino de uma árvore rara, especialmente se ela produz um remédio que poderia curar o câncer, e com animais e aves raros e bonitos, e a nos empolgar tanto com essas formas de vida colecionáveis, que acabamos perdendo de vista a própria floresta. Resgatar a ética ecológica, ou tão somente a ética – de acordo com Weil6 (1998), a espontânea ou essencial –, imbuir todos os pares do anseio e necessidade em se reconectarem com a mãe Terra na prática diária e permanente de uma real ecologia humana, nos dias atuais é uma questão de sobrevivência, pois somos seres integrais, diversos, mas também unos. Para tanto, é preciso lutar contra as ditaduras impostas às nossas necessidades, às nossas emoções e às nossas ações para recuperar o homem rico em necessidades; aberto à alteridade, expondo seu corpo ao outro, sem medo dessa exposição, para que desse encontro resulte um terceiro plural. (SAWAIA, 1998, p. 108). Quanto a Gaia7, quais ações e em quais preceitos e concepções se deve pautar para lhe causar males menores? Até quando a Terra irá suportar os maus tratos e desmandos sem uma reação brusca e violenta? A 3ª lei de Isaac Newton, também chamada de Princípio da Ação e Reação, reza que, a toda ação corresponde uma reação de igual intensidade, na mesma direção, em sentido contrário. Até o presente 6 Pierre Weil, doutor em Psicologia, fundador da Sociedade Brasileira de Psicoterapia de Grupo e Psicodrama, escritor fundador e vicepresidente da Universidade Holística Internacional de Paris, presidente da Fundação Cidade da Paz. 7 GAIA: “Hipótese formulada em 1999 por James Lovelock e Lynn Margulis, que considera a Terra um único e complexo organismo, capaz de se auto-regular e se auto-organizar. De acordo com a hipótese (cujo nome é uma referência a Gaia, deusa grega da Terra), os organismos vivos têm importante papel no equilíbrio climático da Terra: os elementos bióticos atuam na moderação do clima, gerando condições físicas e químicas favoráveis para todas as formas de vida no planeta” (MOUSINHO, 2003, p. 353) 16 momento esta lei não foi revogada nem contestada. Se não é levado a sério este princípio, probabilisticamente poucas pessoas, ou ninguém estará aqui para presenciar os estertores finais, ou os grandes cataclismos originados pelo processo de autorregulação do planeta, e eu prefiro acreditar na segunda hipótese. Este é o futuro legado aos descendentes das criaturas que hoje habitam o planeta? Eles sobreviverão? Estes são questionamentos que podem levar a uma reflexão mais detida a respeito das práticas humanas. A partir deste ponto se rememora o principal questionamento que norteará este trabalho: Qual a percepção das crianças que estudam nas escolas municipais de Paulo Afonso-BA, em relação à natureza, no Bioma Caatinga? De acordo com algumas teorias da educação e correntes da Psicologia, a personalidade infantil se molda nos primeiros anos da infância, portanto, uma educação libertadora, livre de preconceitos, provavelmente encaminhará para uma consciência ecológica mais ampla em cada educando/a, concomitantemente irá colaborar para um arcabouço ecológico igualmente digno e cidadão, no coletivo. Bateson (1986, p. 223) constata como nossos estabelecimentos de ensino funcionam. Funcionamos muito bem como uma escola técnica. Podemos pelo menos ensinar os jovens a serem engenheiros, médicos e advogados. Podemos conceder as habilidades que levam ao sucesso em ocupações cuja filosofia de trabalho é novamente o mesmo velho pragmatismo dualístico, e isso é muito. Talvez isso não seja a principal tarefa e função de uma grande universidade (...). Esta dissertação teve por finalidade analisar como crianças da Educação Fundamental I, estudantes de escolas municipais de Paulo Afonso-BA, tem construído as representações sociais e os mapas mentais em relação à natureza, ou ainda ao bioma no qual vivem, outrossim, se tentou compreender as significações dos mapas mentais infantis de crianças que vivem no Bioma Caatinga. O trabalho foi uma alternativa construída para buscar entender como elas percebem o ambiente onde vivem, verificando como se dá a compreensão de valores ético-ambientais por estes educandos/as, e, avaliando se e como, a compreensão do meioambiente por parte das meninas é diferenciada do entendimento dos meninos. O esforço para a sistematização desta dissertação também foi um desejo de perceber se as questões 17 de gênero estão, ou não, em algum ponto, conectadas e imbricadas, desde a infância, na concepção de mundo dos seres humanos. Na mesma proporção os dados encontrados poderão se tornar um balizador, tanto para os educadores/as como para todos os pares que fazem parte das escolas em questão, na compreensão das representações sociais infantis de crianças que moram no Bioma Caatinga, de como o universo feminino apreende, permeia e constrói seus conceitos e sentimentos em relação ás questões ambientais. Também, num processo dinâmico, tenciona sensibilizar para a elaboração de projetos pedagógicos que priorizem a ecologia humana e a educação ambiental como elementos primordiais e imprescindíveis na construção de uma relação salutar, sustentável e harmoniosa entre os seres humanos e o planeta. Os resultados importarão a todos os educadores e educadoras, homens e mulheres, independentemente da formação acadêmica que possuam, incitando-os/as a refletirem e a considerar o respeito profundo, num convívio pacífico de uma relação simbiótica com Gaia. CAPÍTULO PRIMEIRO DOS TEÓRICOS E TEORIAS DESTA DISSERTAÇÃO Você é filho do universo, irmão das estrelas e árvores, você merece estar aqui e, mesmo se você não pode perceber, a terra e o universo vão cumprindo o seu destino". ROBERT L. BELL 19 1.1 Pensando e Refletindo a Ecopedagogia Somos cidadãos e cidadãs do mundo, um mundo sem fronteiras onde as diferenças não são empecilhos para um convívio de respeito à alteridade!!! Em dias hodiernos, vivenciados pela humanidade, esta aspiração parece ser um sentimento muito forte, e todavia, apesar de se ansiar por um planeta assim, de todos e todas, pleno de vida, não há, efetivamente, uma prática que ratifique este anseio e, não raras vezes, parece que este ideal ainda se encontra no reino das utopias. Qual a compreensão que se tem pela expressão ”cidadão ou cidadã do mundo”? Ser cidadãos/ãs do mundo implica dizer que todos fazem parte de uma mesma comunidade global ou ainda que formam uma sociedade única, mundial. Gadotti (1999, p. 22)8 concebe: A noção de cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unificadora do planeta e de uma sociedade mundial. [...] A cidadania planetária supõe o reconhecimento e a prática da planetariedade, isto é, tratar o planeta como um ser vivo e inteligente [grifos do autor]. Ser um filho ou filha de Gaia, portanto cidadão/ã da Terra é reconhecer e tratar o mundo como um ser vivo e inteligente, um sentir e viver em consonância com os princípios de diversidade de todos os seres do globo, posto que estão todos/as atados, unidos numa mesma rede, por uma malha sutil, que qualquer ato de um ser, ou ainda, o que acontecer na rede afetará a todos, em maior ou menor amplitude, não importando em qual parte do mundo se esteja. Mesmo sentindo na pele ser desta maneira, a exploração e subjugação das classes menos favorecidas por parte dos que possuem o controle do poder econômico é cada dia mais evidente; possessão esta que, em nome de um ideal de consumo, sobrepõe-se às necessidades e à dignidade humana. Infelizmente, o domínio sobre a Terra acontece emparelhado com a transgressão. 8 GADOTTI, Moacir. In GUTIÉRREZ, Francisco e PRADO, Cruz. Ecopedagogia e cidadania planetária. São Paulo: Cortez, 1999. COLEÇÃO GUIA DA ESCOLA CIDADÂ – INSTITUTO PAULO FREIRE. 20 O item 2 da Carta da Ecopedagogia (1999) – Anexo A – lembra: A mudança do paradigma economicista é condição necessária para estabelecer um desenvolvimento com justiça e equidade. Para ser sustentável, o desenvolvimento precisa ser economicamente factível, ecologicamente apropriado, socialmente justo, includente, culturalmente equitativo, respeitoso e sem discriminação. O bem-estar não pode ser só social; deve ser também sócio-cósmico. Atualmente, as preocupações com a sobrevivência do planeta fizeram com que o controle da poluição parecesse aceitável e até imperativo, perante os quadros vulgarizados das hordas famintas do mundo. O que este empolamento dos números esconde é o diferente acesso aos recursos e o desigual fardo ambiental que eles colocam sobre a 9 terra. (MIES E SHIVA, 1993, p. 115). Um caminho viável para a resolução de muitas questões é o engajamento na busca de uma transformação mundial que assegure às gerações posteriores e à humanidade uma condição de vida pautada na igualdade e na justiça, onde todos e todas serão incluídos e inseridos socialmente. Excepcionalmente, a raça humana se tornou a maior predadora dela própria. “Rompemos o equilíbrio natural e, se não o recuperarmos com urgência, devemos nos ater as suas consequências: estamos jogando com a sobrevivência de nossa espécie.” (GUTIÉRREZ e PRADO 10, 1999, p. 31). Hoje a antropofagia mudou seus praticantes e métodos, contudo, continua devorando suas vítimas, muitas vezes de forma traiçoeira, sub-reptícia e através de estratagemas que torna a defesa quase impossível. E eis que aqui se volve a um dos pontos que permeiam toda a construção deste trabalho, a educação. Uma educação que priorize a edificação de um presente prenunciador de um porvir melhor, uma educação – será que utópica? – que forme e transforme todos os indivíduos em uma comunidade global, em uma coletividade planetária. Uma formação que seja efetivamente capaz de transpor as limitações das teorias se materializando numa prática viva e atuante. Um educador/a planetário, que se preocupa com a formação de pessoas também planetárias, 9 deve estar constantemente atento às suas construções de Vandana Shiva é doutora em física teórica, ecofeminista e ativista ambiental da Índia. Esta obra, Ecofeminismo, está traduzida para o português de Portugal. As citações tem a tradução da autora. N. A. 10 Francisco Gutiérrez – Doutor em educação com especialização em Pedagogia da Comunicação e Mediação Pedagógica. Diretor do Instituto Paulo Freire e consultor em educação e comunicação; Cruz Prado Rojas – Mestra em comunicação, coordenou projetos de comunicação e educação popular. 21 conhecimento e metodologias, para que se transformem num agir concreto, perene e natural, se refletindo na prática/aprendizado cotidianos. A Ecopedagogia não é uma apologia à massificação ou a uniformização a uma única cultura ou a uma única forma de pensamento, é uma via para que se leve em consideração as culturas locais, é uma alternativa de se fazer descobrir e aprender a conviver com as diversidades, em harmonia e tolerando as diferenças. Faz perceber que só haverá vida sustentável no globo se houver definitivamente inclusão social. A dimensão planetária da Ecopedagogia fundamenta-se na premissa que três aspectos devem estar em equilíbrio: a ecologia natural, a social e a ecologia humana, ou ainda, como afirma Guattari (1997), a ecologia ambiental, a ecologia social e a ecologia mental. Então, para transformar o perfil de pessoas receptivas num fator concreto para a construção de uma civilização planetária, Gutiérrez e Prado (1999) sugerem dois aspectos básicos: a ecologia do eu e a ecologia socioambiental. [...] a capacidade de compreender e recriar o novo contexto sócioambiental pelo reconhecimento de suas causas e conseqüências; a capacidade de relacionar a ecologia do eu com as exigências da nova cidadania ambiental; a capacidade de sentir e expressar a vida e a realidade tal qual e como deve ser sentida e vivida. (GUTIÉRREZ e PRADO, 1999, p. 45) Ainda resta uma retomada de consciência, consciência de nós próprios como parte integrante de Gaia e, por conseguinte, a compreensão do inverso: Gaia é parte de nós. Formamos todos e todas, pessoas e planeta, um complexo ecossistema, um superorganismo vivo. Não se deve esquecer que, quando Gaia é golpeada a raça humana também o é, e quando se investe contra os humanos/as, companheiros nesta jornada cósmica, também Gaia é agredida. Se esta ação for localmente benéfica para o meio ambiente, ela então poderá se difundir até que acabe resultando um altruísmo global. Gaia sempre opera assim para atingir seu altruísmo. Não há previsão ou planejamento envolvido. O inverso também é verdadeiro, e qualquer espécie que afete o meio ambiente desfavoravelmente está sentenciada, 11 mas a vida continua. (LOVELOCK, 1986) 11 LOVELOCK, James E. Gaia: a terra viva. Disponível em: <http://hps.infolink.com.br/peco/nage_03.htm>. Acesso em 07.jun.2006. 22 A Ecopedagogia ratifica, ao tempo que rememora, que a Terra e nós, humanos e humanas, somos um. Unos, porém indissociáveis. Individualidades, todavia complementárias. Ela é o conjunto de pressupostos teóricos para uma cidadania planetária, cujo objetivo é orientar ecologicamente homens e mulheres enquanto seres vivos que compartilham com outras vidas a experiência vivencial na Terra, ao tempo em que se constitui um movimento político e educativo que tem por finalidade maior transformar positivamente nossas relações ecológicas: ambientais, sociais e mentais. Talvez assim, de posse de nova orientação ecopedagógica, seja crível alterar de maneira positiva as representações sociais até então incrustadas nos adultos, que por sua vez, as repassam para as crianças. 1.2 Sobre a Pedagogia da Terra Diversas produções relevantes nos levam a um dado contundente: a globalização, ao invés do que sugere a terminologia, tem provocado – em grande escala – a cisão, a fragmentação dos povos. Em nome do global o local é o mais sacrificado, as maiores vítimas são sempre locais, principalmente as mulheres e as crianças. "Em nome de objectivos comuns e globais, que de facto reconhecem que todos estamos dependentes do mesmo planeta, proclamam, no entanto, o direito a explorar a ecologia, as comunidades, as culturas locais, etc.". (MIES E SHIVA, 1993, p. 19) Parte da degradação do globo é resultante dos conflitos sociais entre ricos e pobres, sendo os últimos os mais atingidos por não possuírem meios que os protejam, contudo, as pessoas e o mundo são unos não obstante suas individualidades, e não se pode salvar um enquanto se condena o outro. A operação deve ser uma proporção direta, um amplo projeto de resgate da Terra, ou seja, da própria humanidade. Diferentemente do pensamento darwiniano, viver socialmente pode não se resumir, não apenas a uma peleja ferrenha e inglória pela sobrevivência. A cidadania planetária compreende, entre outras ações, a superação da desigualdade e a abolição da cruel diferença econômica entre ricos e paupérrimos. A cidadania planetária é formada e construída por cidadanias em menor instância, nem por isto menos importantes, tais como a local e nacional. "Uma cidadania planetária é por essência uma cidadania integral, portanto, uma cidadania ativa e plena não apenas 23 nos direitos sociais, políticos, culturais e institucionais, mas também econômicofinanceiro" [grifos do autor]. (GADOTTI, 2000, p. 159) A cidadania planetária perpassa e transcende os limites das questões ambientais, é uma conquista diária e permanente, condição a qual está atrelada a democracia – na dimensão em que ela existe –, pois que dá a consciência que um ato nunca será um fato isolado e que tudo importa e afeta a todos e todas. A Pedagogia da Terra assim como a Ecopedagogia e outras categorias tais quais: Planetaridade, Sustentabilidade, Virtualidade, Globalização e Transdisciplinaridade (GADOTTI, 2000), são perspectivas atuais para uma educação do futuro que indica e aponta o próprio sentido do que somos, de onde viemos e para onde vamos, ou não, posto que do futuro se dispõe e ele será como nos aprouver e convier, sempre levando em consideração a 3ª Lei de Newton, da Ação e Reação. Pensando numa Pedagogia da Terra ou Ecopedagogia, naturalmente se remete a uma educação para uma civilidade planetária. Segundo Gutiérrez e Prado (1999, p. 65), uma pedagogia voltada para esta comunidade global, deve estar voltada para o desenvolvimento individual de uma aprendizagem com alvo bem definido, ou seja, ampliar as próprias competências que são muitas, e dentre elas: sentir, intuir, vibrar emocionalmente; relacionar e interligar-se, auto-organizar-se; buscar causas e prever consequências; criticar, avaliar, sistematizar e tomar decisões e, principalmente, pensar a totalidade holisticamente. Quando orientamos o coração para aprender? Não apenas para conhecer o mundo exterior e para, nele, atuar. Sobretudo para aprender a estar no mundo, navegar o encontro e florescer como seres humanos. Para tomar consciência do fio de ligação que conecta todos os nossos passos e todos os eventos no qual habitamos. Como afirma o estadista, Václav Havel, a educação, hoje, é a capacidade de perceber as conexões ocultas entre os 12 fenômenos. (CREMA, 2003) E aqui, novamente se está perante o referencial que permeia quase toda pesquisa, que está intrinsecamente em quase todos os parágrafos, tópicos, itens e contextos: a educação. Obviamente ela não poderá resolver sozinha todos os desatinos ou por fim às atrocidades cometidas neste planeta, porém “a educação, concebida não 12 CREMA, Roberto. A pedagogia do amor. Disponível em: <http://www.cuidardoser.com.br/a-pedagogia-do-amor.htm> Acesso em 13.jul.04. 24 como escolarização, pode e deve ter um peso na luta pela sustentabilidade econômica, política e social.” (GADOTTI, 2000, p. 87). A ecopedagogia como movimento pedagógico é nova, em processo, portanto é complexa e pode ser compreendida como um movimento social e político sujeito a mudanças. À revelia de pensamentos e correntes filosóficas, também além das terminologias – mundialização, globalização – um fato é evidente: o problema não é o processo de universalização, que possui aspectos positivo por sinal, mas a competição descomedida. É uma luta entre competição e solidariedade, entre o poder econômico e a ética, entre o consumo indiscriminado e a espiritualidade. Não se trata de falar da espiritualidade como dedução de certas doutrinas, dedução que podemos derivar ou não. Trata-se de captar a espiritualidade como uma experiência global de re-ligação de todas as buscas, dos encontros, das experiências de sentido, como aquele fio que une todas as pérolas para formar um colar. (BOFF, 2004, p. 253). A pedagogia da Terra é uma nova probabilidade, um esforço do ser planetário para o exercício de uma cidadania da mesma relevância, ela é uma provocação ao sentimento de pertencimento ao planeta azul, é um convite para vivenciar nossa filiação cósmica. Então, quando empoderados desta posição interna de filhos e filhas do cosmo, homens e mulheres se tornarão planetários e, certamente, as questões ambientais poderão ser resolvidas por um viés mais ético, íntegro. 1.3 Educação Ambiental A humanidade tende a uma desconexão com a Terra e suas culturas. Muitas das comunidades e povos tradicionais que ainda resistem, tem sofrido represálias e retaliações por impedirem o progresso e desenvolvimento necessários à maioria. Através da informática, cibernética, manipulação genética, reprodução assistida, – e tantas outras descobertas que podem fazer avançar muito mais – os seres humanos não notam que se encaminham para uma região pouco conhecida por seu conjunto de experiências. 25 Questões de grande importância, tais como, a conservação ambiental, ecologia de ecossistemas e sustentabilidade, ainda não ocupam nas preocupações da sociedade hodierna o espaço com a devida importância que merecem. Envolvidas com as novas tecnologias e os cenários urbanos, envoltas no fascínio que estes aspectos exercem, a população planetária se autoagride devastando o meio, indiscriminadamente. Atravessa-se uma crise global, cujos pressupostos de uma razão analítica, muitas vezes redutora e excludente, faz com que se percam valores fundamentais à espécie, contudo este ir ao extremo, ‘descer até o fundo do poço’, podem ser alavancas para uma retomada de consciência em direção a um novo conceito de existência. Se não é possível evitar a destruição em pleno curso, talvez seja provável se preparar para a tarefa de reconstruir. "Sobretudo, através de uma nova educação, centrada na consciência da inteireza, que cuide e facilite a atualização do potencial humano e o florescimento da inteligência integral, este patrimônio tão descuidado de nossa ferida humanidade." (CREMA, 1995). Apesar dos esforços empreendidos nos últimos quarenta anos, concretizados nas formas inúmeras, tais como conferências, colóquios, seminários e muitas outras, os sujeitos envolvidos não têm honrado os compromissos e acordos firmados, comprometendo seriamente o potencial de vida no planeta. Há uma grande discrepância entre teoria e prática, uma lacuna imensa entre o texto das leis e sua eficaz aplicação. Minimizar a distância entre a lei e o exercício dela, requer medidas efetivas, e uma destas medidas pode ser a de orientar as sociedades e populações para uma postura comportamental que se leve a um modo de viver sustentável, promovendo assim uma gestão responsável dos recursos da Terra, modificando o nível da qualidade de vida no orbe terrestre e resguardando os interesses das futuras gerações. A educação ambiental deve fomentar e remeter a uma cultura de respeito e valorização à diversidade e identidade do ser integral. Desde os meados da década de 60 a educação ambiental é assunto em pauta, contudo o seu reconhecimento internacional como uma perspectiva para a construção de uma sociedade sustentável é delegado à Conferência de Estocolmo, em 1972, sendo a Conferência de Tbilisi, em 1977 o marco que consolidou o PIEA – Programa Internacional de Educação Ambiental. 26 No Brasil, a institucionalização da educação ambiental é deflagrada no ano de 1973, com a criação da SEMA-Secretaria Especial do Meio Ambiente, criada no Poder Executivo e atrelada ao Ministério do Meio Ambiente. Em 1981 foi a vez da institucionalização da PNMA – Política Nacional de Educação Ambiental que estabeleceu a obrigação de se incluir a educação ambiental em todos os níveis de ensino, "incluindo a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para a participação ativa na defesa de meio ambiente, evidenciando a capilaridade que se desejava imprimir a essa prática pedagógica." (ProNEA, 2005, p.22). O MMA-Ministério do Meio Ambiente – foi criado em 1992, e o IBAMA-Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis instituiu no mesmo ano, os Núcleos de Educação Ambiental – NEA, em todas as suas superintendências estaduais. Ainda em 1992, no decorrer da Rio-92, foi produzida a Carta Brasileira para Educação Ambiental admitindo que a educação ambiental é um dos utensílios mais expressivos para tornar a sustentabilidade uma estratégia de sobrevivência do globo e para elevar a qualidade da vida humana a um patamar superior. Finalmente, depois de um longo tempo de discussões, em 1997, os PCN's - Parâmetros Curriculares Nacionais foram aprovados pelo Conselho de Educação e neles a ecologia humana veio inserida como tema transversal. A Diretoria do Programa Nacional de Educação Ambiental – ProNEA – foi criada em 1999, e por fim, em 27 de abril do mesmo ano foi aprovada a Lei nº 9.795, que dispõe sobre a Política Nacional de Educação Ambiental. Ela não faz acepção de pessoas, nem distingue entre educação formal e informal, outrossim, é inclusiva quando incita e convoca todos os cidadãos e a coletividade a fazerem parte de um processo educativo onde todos têm o mesmo direito. A lei nº 9.795 - de 27 de abril de 1999 (Anexo B), que dispõe sobre a educação ambiental, no capítulo I, entende por educação ambiental: [...] os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade. 27 Também a mesma lei contempla todos os segmentos da população, não importando a formação que possuem, e quando da educação formal, também todas as séries, desde a infância, são consideradas. As seções II e III do Capítulo II, anexo B tratam destes aspectos, fazendo compreender que a educação ambiental é uma prática ampla, geral e irrestrita. A lei entende que não se deve conceber uma educação ambiental que não seja fundamentada por uma abordagem sistêmica, que não agregue os diversos aspectos da problemática ambiental contemporânea, ainda que a educação ambiental deve ter enfoque humanista, holístico, democrático e participativo 1.3.1 Alguns números sobre Educação Ambiental De acordo com Crespo (2003), o Brasil está entre os países tradicionalmente democráticos, então a pesquisa de opinião é um instrumento usado naturalmente para a formulação de políticas públicas, quanto consulta à população a respeito dos mais diversos assuntos. Contudo, diferentemente de outros países, a exemplo do Canadá, Inglaterra e França, entre outros, as pesquisas brasileiras na área de meio ambiente só começaram a acontecer há apenas vinte anos, e de um modo muito elementar. Doutora Samyra Crespo13, autora de um dos principais trabalhos na área de meio ambiente, intitulado: O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, base de dados nesta temática no Brasil, através de uma pesquisa séria e reveladora constatou: Após dez anos de pesquisa, podemos dizer com segurança que o perfil do brasileiro ambientalista, ou simpatizante, é o seguinte: ele é homem ou mulher, tem entre 22 e 45 anos, possui alta escolaridade (superior incompleto ou mais), mora em centros urbanos e vê televisão, seu principal meio de informações sobre o assunto. Aliás, este é um dado a ser considerado com atenção: 90% da população brasileira se informam sobre o meio ambiente [...] através da televisão. (2003, p. 65). Esta afirmação trás grande preocupação com as escolas, quando se compreende que as pessoas se inteiram melhor das questões ambientais, muito mais, depois de 13 SAMYRA CRESPO – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, é pesquisadora titular do Departamento de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins – Ministério de Ciências e Tecnologia e desde 1993 coordena o Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento do ISER – Instituto de Estudos da Religião. 28 ter cursado, pelo menos parte do 3º grau (Figura 1). Mais preocupante se torna este dado sabendo-se que, segundo o censo 2006 do IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apesar do crescimento de estudantes com maior nível de escolaridade, eles ainda representavam apenas 10,7% do total de estudantes brasileiros. Ou seja, grande parte da população deste país não acessa este patamar de informações e a condição de frequentar uma universidade. Naturalmente que houve um avanço na aquisição destes informes a respeito do que se passa com o planeta, e de acordo com os dados da pesquisa de Crespo (2003), em 2003, 25% foram incapazes de identificar um problema ambiental. Segundo a mesma autora, nos anos anteriores o índice era bem maior: “[...] em 1992, quase metade da população (47%) não era capaz de identificar, espontaneamente (em uma pergunta aberta), um problema ambiental na sua cidade ou no Brasil. Em 1997, esse percentual baixou para36% [...]” Este número é alto e significa que um quarto da população não é capaz sequer de perceber, na sua experiência cotidiana, um problema ambiental. Ainda sobre a mesma questão, Crespo (2003) afirma que entre os indivíduos que não conseguem identificar problemas ambientais, 35% estão concentradas na região Nordeste. Este quadro se torna mais inquietante quando, também através da mesma pesquisa, os dados indicam que os mais insensíveis e ignorantes perante as questões ambientais são os que possuem baixo nível de escolaridade. Os cidadãos/ãs ainda não são muito instruídos, a educação ecológica é bem menor que a ideal. Segundo estudiosos e observadores atentos, os padrões de consumo no mundo estão mudando, “[...] não tanto por fatores ligados à ‘consciência ambiental’, mas à expansão da ideia de que qualidade de vida implica hábitos mais saudáveis.” (CRESPO 2003, p. 69). Talvez nem tudo esteja perdido, posto que, mesmo com pouca velocidade, os avanços acontecem. Ainda com base em Crespo (2003, p. 71): “Além disso, são animadores os que declaram estar dispostos a ajudar com trabalho voluntário (64% [dos entrevistados], predominando disposição entre os mais jovens) ou até com contribuições em dinheiro...”. Todavia, a maior parte dos que se dispõe a colaborar com dinheiro não o possui. 29 Figura 1 - Pessoas com Superior Completo Diante do quadro atual, tomando como pressuposto uma educação de qualidade, talvez se torne possível fazer despertar as consciências para uma nova ecologia humana, onde o ser seja considerado essencialmente, integralmente, e compreenda que não é necessário degradar, destruir o planeta para viver confortavelmente. Que as gerações atuais compreendam que o futuro existirá se, e somente se, mudarem o atual pensar e transformarem o agir em prol da edificação de um mundo ecologicamente humano, ambientalmente sustentável e socialmente referenciado. 1.4 O Cuidado Ecofeminino O mundo hoje discute as questões de gênero. Na saga da mulher ao longo da história humana, talvez o sofisma mais bem construído, assaz persistente, foi a sua 30 classificação como ser inferior ao homem, suposição que aos poucos tem sido abandonada por falta de fundamentações mais precisas e cientificamente plausíveis. Vandana Shiva (1993), na obra Ecofeminismo, discorre sobre a estreita relação entre as formas de dominação e exploração do gênero feminino e da natureza, posto que ambas são fontes geradoras de vida. Depois de um longo caminhar, têm acontecido situações e oportunidades para que esta problemática seja discutida de maneira mais justa, aberta e claramente. Seminários, congressos, simpósios, enfim existe a promoção de uma série de eventos onde são postos à mesa problemas antes escondidos sob a mesma. Não que tudo tenha se resolvido num piscar de olhos e não aconteçam mais entraves neste aspecto, entretanto percebe-se um esforço contínuo na resolução de alguns impasses aos quais não se podia sequer fazer alguma referência a respeito. Um enfoque de gênero não se refere somente às medidas utilizadas para incorporar a mulher no processo de desenvolvimento. Questiona, tal como conceito de desenvolvimento sustentável, o fim e o conteúdo do desenvolvimento, assinalando a necessidade de buscar novas políticas que contribuam para a mudança das estruturas de desigualdade existentes e o uso sustentável de meio ambiente. (CASTRO E ABRAMOVAY, 2005, p.38). Homem versus Mulher! A antiga e tão contemporânea questão. Por que não Homem e Mulher? As diferenças existem, entretanto, poderiam ser vividas sem dores ou traumas. O respeito à alteridade e o ser integral são novos paradigmas para a compreensão de muitas questões até então causadoras de grandes celeumas. Esquecendo ou tentando ignorar sua dimensão essencial e divina, os homens e a as mulheres se corromperam e romperam consigo próprios, construindo seus valores a partir, apenas, de referenciais mecanicistas. Os resultados desta ruptura são imensamente trágicos, tais como: a degradação ambiental, exacerbação da violência, as guerras constantes, a exclusão perversa e desumana, a injustiça crônica, a corrupção, entre outros são sinais evidentes de uma civilização que se desconectou da alma, da consciência, da ética e do espírito. Em se falando de mulher, à tona ressurgem adjetivos como: sentimento, subjetividade, emoções. E o que seria amor, entre tantas terminologias contemporâneas? Verbete tão desgastado por uma prática de desamor diário, 31 contudo, valor necessário, independentemente do gênero ao qual se sinta pertencer. E aqui tomo como explicação para amor, o sinônimo de cuidado, zelo, carinho. “O amor é um fenômeno cósmico e biológico. Ao chegar ao nível humano, ele se revela como uma grande força de agregação, de simpatia, de solidariedade.” (BOFF, 1999, p. 111). Neste amor cósmico, universal está incluso o amor à natureza, e este amor implica sensibilidade suficiente para captar o que o planeta carece, o que sente, por quais situações passa e dos cuidados que necessita. Para as mulheres do Terceiro Mundo que lutam pela conservação da sua base de sobrevivência, [...] o divórcio entre o espiritual e o material, é incompreensível para elas, o termo Terra-Mãe não precisa de ser colocado entre aspas, porque elas consideram a Terra um ser vivo que garante a sua própria sobrevivência e a das criaturas suas semelhantes. (MIES E SHIVA, 1993, p. 31). Boff (2004), sobre a contribuição do Ecofeminismo, afirma que o tema da complexidade, da interconexão de todas as coisas e da centralidade da vida evocam a mulher. A mulher capta todos estes aspectos citados por instinto, de uma maneira singular, posto que está ligada ao que mais complexo existe, a própria vida, sendo sua geradora mais imediata. É sabido que a mulher ficou na caverna, desta feita, cuidou da cria. O homem foi à caça, à luta pela comida como provedor. Embora, disto discordem alguns autores. Seria preconceituoso dizer, por exemplo, que a relação entre gênero e meio ambiente se dá fundamentalmente porque as mulheres são mais sensíveis, são mais cuidadosas com o meio ambiente e preocupam-se mais com os afazeres domésticos [...] Esta abordagem reproduz a clássica relação entre o pai provedor, criador da cultura e da civilização, e a mãe responsável pelo cuidado dos filhos e da casa. (GADOTTI, 2005, p. 7). Todavia, a luta feminina pode ter se dado contra as feras mais poderosas, os medos e temores. Talvez por, também ter cuidado dos filhos, filhas e seus companheiros/as – ainda fazem isto, mesmo sendo chefes de famílias e provedoras, (Figura 2) – aprendeu a perceber sinais, sensações e sentimentos, que ao homem caçador não foi possível. A mulher, ou o homem que é portador desta feminilidade e dela tem consciência, possui em seu âmago a ética do cuidar e é através desta ética que a mulher interage com o mundo e com o sagrado. 32 É principalmente a mulher, embora não exclusivamente, desempenhando os mais diversos papéis, nos mais variados âmbitos da vida, que lida com a "arte e esta técnica do complexo, que constituem, sabiamente, a técnica e a arte do próprio processo evolucionário cosmogênico." (BOFF, 1999, p. 47) Até os dias atuais não há alternativas para habitação que não o mundo, pois, nenhum planeta do sistema solar se mostrou adequado à sobrevivência do seres humanos – todos “hostis” – com exceção da Terra. Talvez tenham, todos e todas, que frequentarem escolas nos moldes da criada por Fritijof Capra, onde aprenderemos, alfabeticamente, a conviver com uma nova dimensão. Também, o feminino pode ser uma atitude inspiradora para um convívio de integração e harmonia com a natureza. Figura 2 – Mulheres no Mercado de Trabalho Fonte: IBGE 2009 Majoritariamente, a consciência feminina, num estado mais profundo, fundamenta-se no conhecimento existencial que as mulheres têm do fato de que todas as formas de vida são conectadas, de que a existência humana está sempre arraigada nos 33 processos cíclicos da natureza. Por isso, a consciência feminina tem por foco a busca de satisfação nos relacionamentos e sentimentos que os permeiam, e não na acumulação de bens materiais. A concepção holística do ser feminino conduz à compreensão de que isto deve acontecer em todas as áreas do saber, posto que, daí se deriva novos valores, transformando-os 14 "holocentrada" . de autoafirmativos Ao gênero para masculino, integrativos, Capra (2003) uma compreensão associa atributos autoafirmativos, tais quais: expansão, competição, dominação, além de outros. A partir do arcabouço teórico de cientistas e pensadores como Capra, Boff, Morin, Shiva, pode-se inferir que a mulher é inteira, aberta e receptiva ao que, num primeiro momento não se explica através da lógica positivista. Não carrega em si o medo de chorar por eventos que seus cinco sentidos não compreendem, não se importa por emocionar-se diante do que foge à “inteligibilidade”. Boff (1999) entende que as mulheres possuem uma conexão holística com a razão e o universo arquetípico do inconsciente pessoal, coletivo e cósmico, e por isto, detêm a condição de melhor superar as dicotomias estabelecidas pela cultura patriarcal e androcêntrica. A masculinização da terra-mãe envolve a eliminação de todas as associações da força ao feminino e à diversidade. A força e o poder são definidos nas formas de identidade militarizada, enquanto a tolerância da diversidade é definida como efeminada e fraca. [...] No entanto, está a revelar-se que a liberalização e a modernização estão na base da ruptura de todos os laços com a mãe-terra. A masculinização da terra-mãe resulta no seu desaparecimento dos corações e das mentes das pessoas. (MIES E SHIVA, 1993, p. 149). Assim como Gaia, a mulher também é portadora e geradora da vida. Quem poderia compreender melhor o significado real, na mais profunda acepção do termo, o que seria ecologia humana? "É mérito do ecofeminismo ter articulado de forma crítica [...] e de maneira construtiva o novo padrão de relacionamento para com a natureza no horizonte de uma fraternidade/sororidade e sacralidade planetária e cósmica." (BOFF, 1999, p.48). Amar Gaia é algo mais complexo que a emissão de um jato verborrágico inconsequente, ou ainda uma relação onde se busque apenas as vantagens, amar 14 Segundo Pierre Weil (1987), "uma pessoa Holocêntrica ou Holocentrada é, pois, um “ser humano” que busca restabelecer-se como Ser, quer dizer, alguém que entrou numa via de desenvolvimento holístico." 34 Gaia é um dar-se sem querer em troca, muito mais do que ela já dá, é algo livre de sentimentos dominadores, porque somos um, e se a ela a humanidade tenta sobrepujar é à mesma humanidade que se está debelando. Amar o planeta é ter para com ele, nosso próprio corpo, uma atitude amorosa que se refletirá no cosmo. 1.5 Ecologia da Alma É um fato que a educação formal não ensina muito da natureza, do ser inteiro, de entender as palavras, muito menos as ações dos sujeitos, de nós; compreender motivos, emoções, enfim, a base subjetiva do agir e pensar. As relações sociais também são de cunho cognitivo, têm carga afetiva, assim como os sentimentos são representações sociais que expressam construções mais complexas. Os humanos, as humanas, diferentemente da máquina, possuem a capacidade subjetiva de modelar, remodelar, desconstruir, reerguer, o objeto a ser conhecido nas relações interpessoais. Para tentar compreender a ecologia profunda – ou da alma – de maneira sucinta, se pode lançar mão da definição apresentada por Bateson (2006, p. 107): “En otras palabras, la teoría del espíritu aquí presentada es "holística", y, como todo holismo serio, tiene como premisa la diferenciación e interacción de las partes.” Numa ecologia da alma, educar não é apenas o processo pelo qual uma pessoa adquire conhecimentos gerais, sejam eles científicos, artísticos, técnicos ou especializados, com o objetivo de desenvolver sua plena capacidade ou suas aptidões, isto é instruir. Educar para a ecologia da alma, no sentido mais profundo do termo, é orientar o homem e a mulher, é aperfeiçoá-los, é proporcionar condições para que natural e livremente construam objetivos e se permitam por eles serem guiados ao progresso e equilíbrio social, psíquico e espiritual da humanidade. Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Esta revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis em grande escala mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. (GUATTARI, 1997, p. 9) 35 Os países desenvolvidos se veem submersos cada vez mais em conflitos provocados pelo desespero de populações assoladas pela fome, desemprego crônico e outras pestes tais como a marginalização de seus jovens, velhos/as, trabalhadores/as cujos salários são miseráveis, fazendo vivê-los abaixo da linha de pobreza. No mundo sob as condições biossocioambientais atuais, a distância entre progresso e desenvolvimento se torna cada vez maior em relação ao humano, à natureza. E assim há uma confrontação com os contrassensos, tão comuns aos seres humanos: tecnologias e conhecimentos científicos capazes de resolverem questões ecoambientais, contudo incapazes de resolverem demandas urgentes como a mortalidade infantil nos países denominados de Terceiro Mundo. A humanidade é detentora do conhecimento, todavia ainda não foi capaz de se empoderar deste conhecimento para reverter sua hodierna condição de vida e a da Terra. O planeta não voltará a ser como dantes, sobretudo levando em consideração as mudanças causadas pela informática, robótica, genética e a globalização de todo este cabedal de transformações. Sem fazer apologia a um retrocesso, o quadro se apresenta irreversível, restando às pessoas reaprenderem e desenvolverem políticas sustentáveis para o convívio com todos estes avanços, pois agora eles já fazem parte intrínseca do processo. No mundo das ideias, para que ocorram mudanças, necessário se faz entrar em contato e se relacionar com outras fontes de ideias que serão originárias de sujeitos diferentes, ou ainda se deparar com as próprias ideias em momentos diferenciados, pois muito certamente elas terão mudado. Observando, avaliando, questionando pensamentos e conceitos, próprios e também de outros indivíduos, se tem resultados diversos num processo chamado vida, sendo assim, talvez, capazes de mudar. Todavia, o ser humano encontra dificuldade para perceber, assimilar e incorporar as mudanças, e esta dificuldade pode se dá pela gradação como estas alterações acontecem. É notório depois de algum tempo, diante de uma análise minuciosa, que alguns eventos e fenômenos naturais, por exemplo, sofreram mudanças marcantes, entretanto, é como se os humanos se acostumassem a elas por ocorrerem de forma gradual e continuamente; e sendo a memória apenas imediata, a mesma não consegue abarcar as transformações emitidas por largos 36 períodos de tempo, ignorando desta feita todo o contexto que deu origem ao quadro presente. Análogamente, nos es muy difícil percibir câmbios en nuestras propias relaciones sociales, em la ecología que nos rodea, etc. ¿Cuántas personas se percatan de la asombrosa merma em el número de mariposas que vuelan por nuestros jardines, o del número de pájaros? Estas cosas sufren un cambio drástico, pero nos acostumbramos AL nuevo estado de cosas antes de que nustros sentidos puedan decirnos que es nuevo. (BATESON, 2006, p. 110) Gregory Bateson (2006) afirma ter uma preocupação: entender como o espírito e o processo espiritual devem trabalhar necessariamente. Busca verificar se o fato do espírito só conseguir receber informações de diferença dificulta a destreza em distinguir entre uma mudança sutil e uma circunstância já estabelecida. Isto posto, se pode formular as seguinte questões: As pessoas têm que ir à bancarrota para perceber as mudanças ocasionadas por um comportamento equivocado em relação ao planeta? Há de se chegar à derrocada final para compreender que se deve mudar uma conduta perversa e que ela é revertida também contra os próprios sujeitos/as causadores e disseminadores da destruição? Em contrapartida há outra cogitação que pode ser feita. Diferentemente de outros animais, homens e mulheres conseguem estabelecer a diferença entre dois contextos. Contrariamente à fábula científica da rã, que permanece na panela com água quente se a água for aquecida gradativamente, a humanidade tem conhecimento que se continuar na “panela” será cremada, portanto possui o livre arbítrio para pular fora e apagar o fogo, mudando o contexto antes que morra “cozida”. Mas, as mudanças são assombrosamente temidas. As pessoas não se dão conta ou preferem ignorar que a vida acontece de maneira cíclica e não linearmente. Talvez o pavor à ausência da lógica faça com que os sujeitos se agarrem com tanta força ao vigente e aos arcaísmos. Bateson (2006, p. 139), diz que “[...] la historia del largo coqueteo de la civilización con la idea de causa circular parecería estar conformada por la fascinación parcial y el terror parcial, con el problema da la tipificación lógica." Conclui que a lógica é um modelo deficiente de causa e efeito. 37 É natural inferir que o pensamento predominante na estrutura atomista, cartesiana que perpassa o paradigma científico atual seja: tudo funciona separado de tudo, inclusive os indivíduos, seus grupamentos e culturas. Diante desta catalepsia cartesiana, se ver, se ouve, se incomoda, mas se termina movendo apenas em direção a algo que sinalize o mínimo de mudanças, pois as drásticas e/ou definitivas aterrorizam. O medo da mudança assusta, e por isto, ou coisas e fatos se encaixam em crenças e superstições ou naturalmente se abandona quaisquer possibilidades de ver algo com outro olhar, sem sequer tentar compreender o que de original as situações podem oferecer. Então, fica penoso alterar a ordem dos destinos se, só em pensar na possível mudança do eu, tremem as bases do ego. “O conforto e desconforto individuais [grifo do autor] tornam-se os únicos critérios de escolha da mudança social...” (BATESON, 1986, p. 228). O homem e a mulher – comprovadamente – são os únicos seres que possuem uma “consciência criativa”, e conseguem pensar em termos de abstrações como a beleza, a bondade, a esperança, e cultivar ideais de enobrecimento. Por meio de seu sistema mental são capazes de propósito e de escolha através de suas possibilidades autocorretivas. Difícil se torna compreender o fato dos seres humanos serem portadores desta capacidade singular – pensar – e continuar com práticas tão duvidosas. A despeito de refletir e ponderar, continuam a agir com Gaia como se nunca nada a respeito tivesse ocorrido. Sequer se dignam a imaginar o que com ela se passa, como se o planeta fosse apenas um adendo, uma reles minudência. Assim como num jogo em que se estabelecem as regras previamente, toda relação deve ser discutida entre os envolvidos, e a humanidade não tem sido uma jogadora honesta, burlando num crescendo, as regras e leis durante quase toda a sua existência na Terra. É duro constatar, entretanto, que a humanidade não tem se mostrado muito empenhada no desenvolvimento desta relação entre o sistema social e o mundo natural. Diante do contexto atual de destruição, ao invés de se apropriar do ecopensamento e tentar minorar as causas do aniquilamento planetário, as 38 sociedades se distanciam de sua origem primeira, tomando para si algo que não lhe pertence, o destino do globo terrestre. Ao longo de sua jornada na face do planeta, as sociedades foram apagando sua ligação com o natural, acontecendo uma perda do foco, uma desvinculação gradativa com a inteireza cósmica e voltaram-se para uma única parte envolvida no processo. O que poderia ser um simples vínculo holístico na ecologia da alma se tornou um hiato diante das necessidades e carências humanas. “Hoje, despejamos um pouco de história natural nas crianças junto com um pouco de ‘arte’ de forma que elas esqueçam a natureza ecológica e a estética de estarem vivas e cresçam para se tornarem bons homens de negócios”. (BATESON, 1986, p. 150). Ora, diante do exposto há de se convir que a humanidade deva vislumbrar novas probabilidades, outros rumos; entrever meios alternativos no convívio equilibrado e sustentável com o planeta. Firmeza e determinação são adjetivos que deveriam ser utilizados para a resolução desse “calcanhar de Aquiles” contemporâneo e coletivo, a degradação progressiva da Terra, causada por ímpetos de consumo conjugados a uma visão religiosa, edênica, que incita a dispor de tudo da maneira que bem aprouver – todos são proprietários designados por Deus –, originando daí os arroubos de invencíveis “donos” de tudo, inclusive do planeta. A reconstrução de uma nova humanidade pode ter como pressuposto um ideário originado na antiga Grécia, promulgado há mais de dois mil anos: o conhecimento profundo do próprio ser homem/mulher e não a “intelectualização” efetuadas em instituições de ensino. Evidências e teorias ecoambientalistas e eco-humanas apontam em uma mesma direção: o autoconhecimento do ser humano. Desta maneira se poderá descobrir e divisar até que ponto os direitos são apenas da humanidade; se deve compreender o que é peculiar, o que faz parte do orbe terrestre e o que pertence a todos. Este achado provavelmente evidenciará e ratificará que em instante algum se está dissociado do planeta; que unidades são componentes de um conjunto, destarte somos individualidades diversas pertencentes a um macro-organismo vivo chamado Gaia. Uma proposta para reflexão é tentar descobrir em qual época se dissociou de Gaia, em qual época da história planetária se fez a opção por Tanatos em detrimento de 39 Eros15. Será que com o surgimento da ciência positivista também se deu início a uma maior fragmentação dos indivíduos? Tantas especialidades que se perdeu a transdisciplinaridade. Para compreender o mundo se optou, e se fixou pertinazmente, pelo axioma cartesiano que professa: não conseguiu entender, divida. Se não conseguiu ainda, divida muito mais, até chegar à menor parte. Compreender o mundo era tarefa tão difícil quanto montar um quebracabeça do tamanho do planeta. [...] A teoria de Gaia vê a biota e as rochas, o ar e os oceanos como existência de uma entidade fortemente conjugada. Sua evolução é um processo único, e não vários processos separados estudados em diferentes prédios de universidades. (LOVELOCK, 1986). Uma ecologia profunda, numa lógica contrária, sugere: se não entender uma pequena parte amplie o foco, se ainda assim não conseguir, adicione todas as partes e as mergulhe no contexto. E eis que a ecologia da mente convoca a restabelecer o contato primordial e primitivo com a vida, com a mãe Terra e com os iguais; concita a este reencontro com Eros, com a inteireza. 1.5.1 Ecologia e Complexidade Todos, pessoas, bichos, plantas, terra e tudo que no planeta há, estão intrincados numa dimensão tal que, com os conhecimentos dos quais se dispõem, é inimaginável mensurar. Uma pequena parte da população planetária usufrui – os pobres ou paupérrimos ficam à margem, apesar de pagarem um valor bem elevado – das maiores benesses proporcionadas pelos avanços tecnológicos. Contudo, é comum uma sensação de desconforto, posto que estes avanços e progressos também trouxeram as desvantagens da degradação planetária, que de acordo com as propriedades desta complexidade, a vida fará com que se colha seus frutos. Quando se volta para a produção desenfreada e o aumento do capital, a economia tradicional e os meios de produção renegam o custo ambiental que este comportamento terá, fazendo crescer e precipitando a destruição indiscriminada do ambiente do globo com tudo e todos/as que nele existem. Os indivíduos agem como 15 “TANATOS: Termo grego (a Morte) às vezes utilizados para designar as pulsões de morte, por simetria com o termo Eros. EROS: Termo pelo qual os gregos designavam o amor e o deus Amor. Freud utiliza-o na sua última teoria das pulsões para designar o conjunto das pulsões de vida em oposição às pulsões de morte.” Ambos os verbetes definidos por Jean Laplanche, extraído do livro Vocabulário da Psicanálise: Laplanche e Pontalis, 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 40 se todos os atos da espécie humana estivessem acima de qualquer julgamento e os atos de natureza material e concreta pudessem ser separados de outros fatos imateriais, subjetivos, não influindo em acontecimentos futuros. Mais do que uma crise ecológica, a problemática ambiental diz respeito a um questionamento do pensamento e do entendimento, da ontologia e da epistemologia pelas quais a civilização ocidental tem compreendido o ser, os entes e as coisas; da ciência e da razão tecnológica pelas quais temos dominado a natureza e economicizado o mundo moderno. (LEFF, 2002, p. 194). Tradicionalmente estudiosos das ciências naturais lidam apenas com a matéria e cientistas sociais exclusivamente com a estrutura social. As academias organizam suas estruturas de tal forma que o currículo de um especialista em determinada área de conhecimento não faz conexão com o outro, como se cada disciplina fosse estanque e se resumisse a ela própria. O racionalismo científico, com elegante base disciplinar, gerou o especialista, exótico sujeito que de quase-nada sabe quase-tudo. (CREMA, 1995). A multi, interdisciplinaridade, ainda não são práticas generalizadas, nem tão pouco compreendidas pelos seres humanos, criaturas vitimizadas da desconexão natureza/humanidade. Contudo, esta dissensão não é consonante com os novos paradigmas do milênio, pois para a construção de uma humanidade ecologicamente sustentável e viável carece que todos os entes pensantes – cientistas naturais, sociais e cidadãos/as "comuns" – que compõem a vida do planeta, se agrupem num esforço conjunto e se envolvam na manutenção da “teia da vida”16. A complexidade ambiental inaugura uma nova reflexão sobre a natureza do ser, do saber e do conhecer, sobre a hibridação de conhecimentos na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade; sobre o diálogo de saberes e a inserção da subjetividade, dos valores e dos interesses nas tomadas de decisão e nas estratégias de apropriação da natureza. Mas questiona também as formas pelas quais os valores permeiam o conhecimento do mundo, abrindo um espaço para o encontro entre o racional e o moral, entre a racionalidade formal e a racionalidade substantiva. (LEFF, 2002, p. 195). O receio da ciência se envolver com os fenômenos subjetivos pode remontar o paradigma cartesiano, quando Descartes cindiu mente e matéria. A partir da interpretação deste enunciado positivista, o observador/a humano está dissociado do do objeto de sua observação, enquanto a teoria quântica argumenta que o 16 CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1997. 41 observador/a influi invariavelmente na construção dos resultados, ou seja, não é possível separar uma coisa da outra. Por volta de cinquenta anos não precisos, algumas mudanças significantes têm acontecido nas ciências ditas exatas. O espaço para o dualismo cartesiano entre mente e matéria tem se tornado mais estreito. Apesar das negativas de alguns adeptos, os paradigmas científicos vigentes até então estão sendo gradativamente reavaliados e substituídos por uma visão de realidade em que a vida é o próprio eixo. Ramos como a Química e a Biologia tem afirmado que a origem da vida na Terra resultou de uma cadeia de acontecimentos químicos, “sujeitos ás leis da física e da química e à dinâmica não-linear dos sistemas complexos”. (CAPRA, 2003, p. 34). A crise ambiental, entendida como crise de civilização, não poderia encontrar uma solução por meio da racionalidade teórica e instrumental que constrói e destrói o mundo. Apreender a complexidade ambiental implica um processo de desconstrução e reconstrução do pensamento; remete-nos às suas origens, à compreensão de suas causas; implica considerar os “erros” da história que se enraizaram em certezas sobre o mundo com falsos fundamentos; descobrir e reavivar o ser da complexidade que foi “esquecido” com o surgimento da cisão entre o ser e o ente (Platão), do sujeito e do objeto (Descartes), para apreender o mundo coisificando-o, objetivando-o, homogeinizando-o. (LEFF, 2002, p. 191-192). A ecologia profunda e a visão sistêmica da vida são voltadas para os processos e organização dos sistemas vivos, ou seja, leva em consideração todos os veios e nuances que permeiam estes fenômenos, por mais sutis que sejam, entendem que mente e consciência não são coisas, mas sim, processos. “A visão sistêmica da vida [...] não era uma teoria coerente dos sistemas vivos, mas uma nova maneira de pensar sobre a vida, que incluía novas percepções, uma nova linguagem e novos conceitos.” (CAPRA, 2003, p. 15). Aliada a esta visão sistêmica, cientistas e matemáticos desenvolveram uma nova teoria que respalda a mesma: a teoria da complexidade – dinâmica não-linear. Ela é composta por um conjunto de conceitos e métodos matemáticos que é usado para descrever e analisar a complexidade dos sistemas vivos. Na ciência ortodoxa, alguns/as membros se dispuseram a fazer o que antes era inimaginável, concorrendo para a elaboração de novas considerações e técnicas e ampliando substancialmente a compreensão dos fundamentos da vida. 42 A nova compreensão de o que é a vida – baseada nos conceitos da dinâmica não linear – representa um divisor de águas conceitual. Pela primeira vez na história, dispomos de uma linguagem eficaz para descrever e analisar os sistemas complexos. (CAPRA, 2003, p. 16). A teoria da complexidade entende que a vida é sistêmica e unificada, se organizando em extensa e emaranhada rede, desde as redes metabólicas celulares até redes maiores, assim como os complexos sistemas de comunicações das sociedades humanas, e estas conexões são tão efetivas que perturbações de grandes proporções podem detonar o estopim de múltiplos processos de realimentação surgindo desta forma uma nova ordem. Também nos alerta a mesma teoria que, estes pontos instáveis podem desencadear não uma transformação inovadora, mas o mero colapso de estruturas vigentes. Há outro paradigma que faz parte da teoria da complexidade, ainda não muito aceito no meio científico: a subjetividade. Na sua compreensão, posto que todas as partes compõem um todo maior e nenhuma partícula pode ser negligenciada na compreensão da complexidade vital do planeta, a subjetividade não pode ficar de fora, os fenômenos subjetivos devem compor qualquer ciência que se volte para a cognição, não sendo necessário que se renuncie ao rigor científico. A noção de ecossistema significa que o conjunto das interações entre populações vivas no seio de uma determinada unidade geofísica constitui uma unidade complexa de caráter organizador: um ecossistema. A Ecologia, que tem um ecossistema como objeto de estudo, recorre a múltiplas disciplinas físicas para apreender o biótopo e às disciplinas biológicas [...]. Além disso, precisa recorrer às ciências humanas para analisar as interações entre o mundo humano e a biosfera. Assim, disciplinas extremamente distintas são associadas e orquestradas na ciência ecológica. (MORIN, 2004, p. 28) Uma ecologia complexa ou profunda – como se queira – será constituída por uma associação das ciências naturais aliadas às ciências das subjetividades. Percebendo atentamente o mundo em torno de nós, se contata que todas as partes e pessoas estão integradas e compõem uma organização mais ampla, como um enorme e infindo fractal. Não só as moléculas da vida que temos em comum com o restante do mundo vivente, mas também a nossa mente é encarnada, nossos conceitos e metáforas estão profundamente inseridos nessa teia da vida, junto com o nosso corpo e o nosso cérebro. Com efeito, nós fazemos parte de universo, pertencemos ao universo e nele estamos em casa; e a percepção desse pertencer, desse fazer parte, pode dar um profundo sentido à nossa vida. (CAPRA, 2003, p. 82) 43 As pessoas são portadoras de todo o material necessário para a vida no planeta, porém, ao mesmo tempo parecem separadas de tudo por causa dos conceitos, consciência e cultura. É certo que nenhuma individualidade – apesar de carregar no seu âmago uma completude – consegue viver isoladamente. Há uma interdependência entre os seres, portanto não é possível dissociar uma vida de outra. ”Conhecer o ser humano não é separá-lo do Universo, mas situá-lo nele.” (MORIN, 2004, p. 37). Assim, o mundo é um imenso organismo vivo do qual todos os seres fazem parte e dele carecem inteiro e saudável para continuarem vivendo, pois afinal, o corpo não funciona apenas com o cérebro, ele não pode prescindir das microscópicas células. De acordo com a hipótese Gaia – alguns cientistas já a compreendem como teoria – de James Lovelock e Lynn Margulis, a evolução dos primeiros organismos vivos processou-se juntamente com a transformação da superfície planetária, passou de um ambiente inorgânico para uma biosfera autorreguladora. Assim incidindo, escreve Harold Morowitz17, “a vida é uma propriedade dos planetas, e não dos organismos individuais.” (CAPRA, 2003, p. 23) A complexidade nos conduz a um vivenciar cíclico, a saber: o desenvolvimento de uma consciência humana e ética que se completa com o sentimento da maternidade terrena para a vida e a proeminência desta vida para a humanidade. A Terra não é soma de um planeta físico, de uma biosfera e da humanidade. A Terra é a totalidade complexa físico-biológica-antropológica, onde a vida é uma emergência da história da Terra, e o homem, uma emergência da história da vida terrestre. [...] À maneira de um ponto de holograma, trazemos, no âmago de nossa singularidade, não apenas toda a humanidade, toda a vida, mas também quase todo o cosmo, incluso seu mistério, que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza humana. (MORIN, 2004. p. 40-41). Enfim, a teoria da complexidade não prescinde de nenhum aspecto para a construção de um planeta sustentável, seja ele físico, social, mental ou espiritual, sabendo-se que todos eles estão enredados numa trama, cuja urdidura é inextrincável. Puxando um fio se desordena toda a rede. 17 MOROWITZ, Harold. Beginnings of celular life. Yale University Press, 1992. 44 1.5.2 Sobre a Auto-Poiésis Na busca de conhecimentos para uma melhor convivência com a Terra e maior compreensão deste gigantesco e complexo organismo vivo que somos, têm surgido algumas teorias interessantes que nos conduzem a um entendimento mais amplo a respeito da origem e do ser humano. A auto-poiésis, teoria científica dos biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela18, induzem a uma reflexão que recupera a ideia de autorreferência, aplicando-a a toda ciência. Refere-se principalmente às dinâmicas geradas num sistema que conduzem à sua circularidade, autorreprodução, autossustentabilidade ou autorreferencialidade. A auto-poiésis é nada mais que a autogeração das redes vivas. O sistema autopoiético sofre mudanças estruturais contínuas, mas, em paralelo mantém seu padrão de organização em rede. Estes componentes, por sua vez, produzem e transformam uns aos outros de maneiras diversas e modo continuado. A mudança estrutural de autorrenovação reza que todo organismo vivo se renova constantemente, todavia mesmo perante uma mudança cíclica permanente, o organismo conserva sua identidade global, seu padrão de organização, enquanto que a criação de novas estruturas não são cíclicas, mas seguem uma ordem de desenvolvimento, acontecendo também de maneira continuada em face às influências ambientais ou resultante de uma dinâmica interna do sistema. A autopoiesis admite que os sistemas vivos se atrelam estruturalmente ao seu ambiente através de interações recursivas, alterações que por sua vez deflagram mudanças estruturais no sistema. Deve-se levar em consideração que os sistemas vivos são autônomos, enquanto o ambiente meramente desencadeia as mudanças estruturais; não as determina, muito menos as dirige. Organismos vivos, por sua natureza, respondem às influências ambientais com mudanças estruturais não previsíveis e independentes, e estas mudanças, em 18 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A árvore da vida. A base biológica do entendimento humano. Campinas, SP: Editorial Psy II, 1955. 45 consequência e naturalmente alteram seu comportamento futuro. Ou seja, um sistema conectado ao meio através de um liame estrutural é um sistema que aprende. Sucessivas mudanças estruturais provocadas pelo contato com o ambiente, sendo estas mudanças seguidas de procedimentos tais como: adaptação, aprendizado e desenvolvimento também continuados, são características fundamentais de todos os seres vivos. Diante do exposto podemos afirmar que no processo de interação com o ambiente um organismo vivo se torna o resultado individual e peculiar de uma série de mudanças estruturais, ou ainda, o acúmulo de todas as experiências anteriores que por sua vez significa uma história excepcionalmente singular. “Assim, o comportamento do organismo vivo é ao mesmo tempo determinado e livre” (CAPRA, 2003, p. 52). Portanto, por extensão também é correto entender que Gaia, como macro-organismo vivo, é uma estrutura que comporta todos os registros das estruturas de outros seres vivos, inclusive dos humanos/as. Os sistemas vivos respondem de maneira independente, definem e decidem o que percebem e aceitam como perturbações do ambiente onde se encontram. Isto implica que, se os organismos vivos respondem às mudanças ambientais com mudanças estruturais não programadas e autônomas, não se pode sequer supor quais serão as reações de Gaia frente aos comportamentos pouco afáveis dos organismos chamados seres humanos/as. Grandes cataclismos, catástrofes naturais, são muitas vezes respostas desencadeadas pelo globo terreno, ás perturbações provocadas por meio das criaturas vivas. Se as reações forem sempre proporcionais às ações, terão nada mais nada menos que o tamanho das atitudes e/ou ações que as deflagraram, sejam positivas, equilibradas ou negativas e insanas. Traduzindo em palavras simples, o mundo que se constrói é um reflexo dos sistemas que o construíram, inclusive as pessoas. “O fato é que, entre nós e o mundo existe, sempre, nós mesmos.” (MAGALHÃES, 2005) 19. 19 José Luiz Quadros de Magalhães – Reitor da Escola Superior Dom Helder Câmara e diretor da Faculdade de Direito Izabela Hendrix, em Belo Horizonte (MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5897> Acesso em 18.out.2005. 46 Muito distante está a visão convencional, que acredita ser a Terra um meio material, composto de elementos inertes, criada casualmente para habitação da espécie humana e satisfazer suas necessidades, para seu usufruto e bel prazer, Gaia não é o ambiente onde a vida se dá e desenvolve, ela é a vida. 1.6 A Teoria das Representações Sociais Conhecimento do senso comum e formada em função da sucessão dos dias dos indivíduos é a teoria da representação social. Sua abordagem é pertinente na proporção em que se tenta fazer pontes e vinculações entre as construções simbólicas e a realidade social dos sujeitos, sua visão epistemológica busca compreender como esta realidade erige a leitura dos símbolos que preenchem o cotidiano. O conceito das representações sociais, designado por Émile Durkheim como consciência coletiva e depois como representações coletivas, faz parte do pensamento sociológico, como uma via para análise da realidade coletiva, posto que era a expressão de conhecimentos, crenças e sentimentos do grupo social. Em sua compreensão, Durkheim acreditava que podia se separar a existência dos fatos sociais dos individuais, inclusive devendo se delegar a ciências distintas o estudo das duas modalidades. Quanto aos fatos sociais, Horochovski (2004, p. 94) interpreta Durkheim: [Os fatos sociais] são exteriores às consciências individuais, existem nas partes porque antes existem no todo. E é isso que os diferencia do objeto da psicologia. Cabe à sociologia analisar os estados da consciência coletiva, suas leis e representações, que são extremamente diferentes dos de natureza individual, com os quais deve preocupar-se aquela ciência. Por acreditar na distinção entre estas duas áreas do saber e, por conseguinte, no pensamento que a sociedade não pode ser explicada através de suas consciências individuais, Durkheim adota o conceito das representações coletivas. Para ele, a representação social se refere às representações coletivas, como uma forma de ideação social à qual se opõe a representação individual, e foi por ele aplicado em relação a sociedades estáticas, tradicionais, estabelecidas, sem inovação. Observase ainda que "Durkheim concebia as leis da ideação social no jogo que se mantém 47 entre elas, abstendo-se de discutir os aspectos cognitivos da representação e sua produção pelos grupos sociais." (ANADON e MACHADO, 2001, p. 10). Sob a lente de uma visão sistêmica, podemos entender que uma compreensão dá origem à outra, as concepções acontecem de forma cíclica, numa retroalimentação constante. A obra de Émile Durkheim é reconhecida pela contribuição que deu à Sociologia, a respeito das representações sociais, todavia neste trabalho se optou por adotar as concepções destas representações em dias atuais. Segundo Farias (2005), a maioria das produções desenvolvidas na área das representações sociais nos últimos trinta anos têm como base a produção científica pioneira desenvolvida por Serge Moscovici, representante da psicologia social que “promove a substituição do termo coletivo por social e lhe amplia o significado: não somente traduz [a representação social] como também produz conhecimentos” (HOROCHOVSKI, 2004, p. 92); num trabalho publicado em 1978, cujo título original da obra é La psychanalyse, son image et son public20. Na obra de Moscovici existe uma preocupação com as mudanças e permanências da vida social; tenta devassar o motivo das representações, das reações do grupo e do indivíduo. Moscovici percebe as representações sociais: [...] entidades “quase tangíveis”, presentes na realidade, que se manifestam em palavras e expressões, em produções e consumo de objetos, em relações sociais. Para ele, “correspondem, por um lado, à substância simbólica que entra na elaboração e, por outro, à prática que produz a dita substância, tal como a ciência ou os mitos correspondem a uma prática científica e mítica”. (MOSCOVICI, 1978, p. 22). Horochovski (2004, p. 99) dá continuidade à interpretação do pensamento de Moscovici (1985), refletindo que as representações sociais na sociedade atual são equivalentes aos mitos e crenças nas sociedades primitivas. Elas remetem-se, portanto, à maneira que os homens pensam, agem, procuram compreender o sentido de suas ações e pensamentos. Seu estudo se focaliza na maneira pela qual os seres humanos tentam captar e compreender as coisas que os circundam e resolver os ‘lugares comuns’ e quebra-cabeças que envolvem seu nascimento, seus corpos, suas humilhações, o céu que vêem, os humores de seu vizinho e o poder a que se submetem. 20 MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. RJ: Zahar, 1978. 48 Um pressuposto básico na psicologia social de Moscovici é que ela percebe as representações como fenômeno que possui mobilidade e circularidade. Longe de ser meramente um conceito a mais, as representações sociais são formas de interpretação e comunicação ao tempo em que produzem e elaboram conhecimento numa ordem permanente e dinâmica. Elas são um tipo de conhecimento característico que formula comportamentos e constitui a comunicação entre os indivíduos. “Esse conhecimento se nutre da ciência que, por sua vez, é apropriada pelos sujeitos pertencentes a determinados grupos.” (FARIAS, 2005, p. 34) Para Horochovski (2004), as representações sociais têm por objeto a transmutação do que não se conhece em algo manifesto, o não familiar em algo íntimo. Fazer com que algo estranho e intrigante se torne comum, próximo. “Esse processo transformador é determinado pela linguagem, imagem e idéias compartilhadas por um dado grupo.” (HOROCHOVSKI, 2004, p. 100). Em virtude do exposto, compreende-se que a representação social deve ser compartilhada e elaborada por um grupo determinado, posto que sua construção acontece na relação entre os sujeitos e com objetos. Dá-se a desconstrução de uma realidade singular e específica, porém que é compartilhada pela comunicação de indivíduos em influência mútua com o outro. Ou seja, a representação social só acontece com a presença de um objeto e um sujeito social, seja ele individual ou coletivo, pertencente a um determinado grupo. As pesquisas nos apontam pressupostos que podemos a partir deles reiterar o que elabora Farias (2004, p.34). [...] podemos dizer que a representação social, ao estudar a ação do homem comum, expressa uma espécie de saber prático {grifo do autor] de como os sujeitos sentem, assimilam, apreendem e interpretam o mundo, inseridos no seu cotidiano, sendo, portanto produzidos coletivamente na prática da sociedade e no decorrer da comunicação humana. Alves-Mazzotti (2000) comenta que na teoria das representações sociais de Moscovici elas não são meramente opiniões a respeito de algo ou as imagens de alguma coisa, em verdade elas são hipóteses de um grupo sobre o real, elas são sistemas que possuem uma lógica e linguagem peculiares, uma estrutura de consequências baseada em valores e conceitos que determinam o campo das 49 comunicações presumíveis, dos valores e das ideias compartilhadas pelos grupos e orientam, subsequentemente, os comportamentos desejáveis ou permitidos. Tanto para Horochovski (2004) como para Alves-Mazzotti (2000), a teoria proposta por Moscovici reconhece dois processos cognitivos fundamentais e imprescindíveis, os quais ele chama de dois processos maiores, dialeticamente relacionados, que atuam na formação das representações sociais promovendo a familiarização com o desconhecido, então atemorizante: a ancoragem e a objetivação. A ancoragem transfere o estranho para um referencial que possibilita sua interpretação e comparação, classificando, gerando nomes e rótulos e, por conseguinte, representando. Ela consiste em aditar elementos cognitivos estrangeiros aos conhecidos previamente. É a inserção orgânica de um conhecimento em um elenco de crenças existentes, ou seja, a ancoragem permite adicionar algo novo a alguma coisa que é antiga, para se conseguir interpreta-la e assegurar a orientação do comportamento e das relações sociais. A objetivação cria um cenário íntimo ao que antes se desconhecia, ela transforma em algo tangível o que anteriormente existia apenas no mundo da imaginação. Anadón e Machado (2001) assentem que para Moscovici a objetivação acontece em três fases: construção seletiva, esquematização estruturante e naturalização, nesta ordem. Na primeira fase ou construção seletiva, os elementos de um grupo social descontextualizam e selecionam o objeto diante do qual se encontram. Nesta situação, as informações que circundantes sobre o objeto sofrem uma triagem em função de condicionantes culturais e, sobretudo, de critérios normativos, de modo a proporcionar uma imagem coerente e facilmente exprimível do objeto da representação. (ALVES-MAZZOTTI, 2000). Prosseguindo, na esquematização estruturante o grupo social partindo de elementos retidos e apropriados, constroem o núcleo figurativo. Este núcleo, por sua vez, possui intenso cunho existencial, envolvendo tanto o consciente quanto o 50 inconsciente, sendo ambos confrontados sob uma atmosfera de complexa contradição. Finalizando, a terceira e última fase, ou naturalização, ocorre quando os elementos do pensamento são transpostos para a realidade, aí então, deixando de existir a lacuna entre a representação e o objeto representado. Os elementos do núcleo figurativo passam a ser concretos, sendo percebidos tanto em nos indivíduos quanto nas pessoas que pertencem ao mesmo grupo social. "Dá-se então uma integração dos elementos da ciência em uma realidade tida como de senso comum, realidade esta que orienta as percepções, juízos e condutas a partir de uma realidade socialmente construída." (ANADON e MACHADO, 2001, p. 23). Jodelet (1990)21 apud Alves-Mazzotti (2000, p. 61), assim sintetiza: [...] a interação dialética entre ancoragem e objetivação permite compreender: (a) como a significação é conferida ao objeto representado; (b) como a representação é utilizada como sistema de interpretação do mundo social e instrumentaliza a conduta; e (c) como se dá sua integração em um sistema de recepção, influenciando e sendo influenciada pelos elementos que aí se encontram. Em suma, as representações são um arquétipo de conhecimento formulado e partilhado socialmente que “ajuda a apreender os acontecimentos da vida cotidiana, a dominar o ambiente, a facilitar a comunicação de fatos e ideias e a nos situar frente a pessoas e grupos, orientando e justificando nosso comportamento.” (AlvesMazzotti, 2000, p. 62). Segundo Sá (1998), existe uma diversidade catalográfica de problemas ou fenômenos sociais pesquisados. Contudo, para facilitar o entendimento dos pesquisadores, ele agrupa os numerosos problemas analisados em sete temas substantivos gerais, que de acordo com a perspectiva dele “parecem configurar áreas mais consistentes de interesse dos pesquisadores: ciência, saúde, desenvolvimento, educação, trabalho, comunidade e exclusão social.” Ou seja, existem trabalhos produzidos praticamente em todos os campos que permeiam a condição humana no planeta. 21 JODELET, Denise. Représentation sociale: phénomène, concept et théorie. In: MOSCOVICI, Serge. (Dir.). Psycologie sociale. 2 ed. Paris, France: Presses Universitaires de France, 1990. 51 1.7 Mapas Mentais Sucintamente, os mapas mentais são o resultado de uma relação inerente entre as pessoas e o meio em que elas vivem. Anadón e Machado (2001) asseveram que segundo Fischer (1964) 22, a origem do estudo dos mapas mentais surgiu quando da introdução da ideia de comportamento territorial, dos animais, cujo principal pesquisador foi Tolman (1948), produzindo a obra de título Cognitive maps in rats and men (Mapas cognitivos em homens e ratos) e sendo o primeiro a usar a expressão mapa cognitivo. Os resultados das pesquisas em questão indicaram que o território, de acordo com a sua densidade, tem uma influência expressiva sobre a conduta dos animais. “Fazendo uma análise comparada, os pesquisadores concluíram que tanto os animais como os homens possuem aquilo que se pode chamar de ‘instinto territorial’.” (ANADÓN e MACHADO, 2001, p. 63-64). Há uma informação consensual que Kevin Lynch foi o primeiro pesquisador a utilizar em seus estudos o mapa mental como instrumento. O estudo de Lynch – A imagem da cidade23, que dizia respeito a três cidades norte-americanas – desvenda como os habitantes representavam mentalmente suas cidades. Nos anos sessentas, Estados Unidos e França se voltaram com extremo interesse para os estudos da psicologia do espaço ou do ambiente, mas depois, gradativamente, este interesse foi se ampliando em várias direções, a exemplo da geografia e urbanismo, entre outras. Notadamente existem duas tendências na conceituação e concepção do que seja mapa mental: uma adota a terminologia mapa cognitivo e a outra, a mais usual, adota a expressão mapa mental. 22 TOLMAN, E. C. Cognitive maps in Rats and Man. Psychological Review, 4, 1948, p. 189-208. Cité dans FISCHER, G. -N. Psycologie sociale de l’environnement. Saint-Laurent, Québec: Bo Pre; Toulouse: Privat. 1964, 240p. 23 LYNCH, Kevin. The image of the city. Cambridge: MIT Press. 1960, 194p. 52 Para uma definição breve e se constituir a diferença entre o que pensam as duas tendências sobre mapa cognitivo e mapa mental, lemos em Anadón e Machado (2001, p.65). [...] de uma parte uma tendência que incorpora o nome mapa cognitivo, e passa a conceber o mapa mental de forma restrita, evidenciando somente o processo individual de construção do conhecimento [...] De outra parte há uma tendência mais acentuada de utilização da expressão “mapa mental” (mesmo que muitos utilizam também a expressão mapa cognitivo) pelos pesquisadores que concebem a construção do conhecimento de uma forma mais larga. Segundo estes pesquisadores as propriedades do homem como ser social são sempre tocadas pela função e pelo valor do lugar no qual elas produzem. Comparando, uma tendência não nega a outra, naturalmente se complementam. A segunda tendência trás um elemento a mais, a visão contemporânea e holística de compreender dimensão cósmica da humanidade, posto que reconhece a interação entre os seres humanos e o meio no qual estão inseridos. Kurt Lewin foi um dos primeiros estudiosos, a abordar a interdependência entre o homem e seu ambiente, reconhecendo que todos os comportamentos humanos são resultados do meio, sendo o espaço vital o fundamento desta interação. Fischer (1964)24 apud Anadón e Machado (2001, p. 66), argumenta que a partir da teoria do espaço vital um novo quadro conceitual deveria ser construído, quando esta teoria “não pensa mais o homem de forma abstrata e desenraizada, mas o aborda como um ser encarnado em um meio [...] A experiência do mundo exterior é marcada sempre por noções apreendidas no meio em que as pessoas vivem.” Fischer traduziu de forma hodierna e holocêntrica a significação de espaço vital, significado primeiro e que daria origem à construção do esquema conceitual do que hoje se chama mapa mental. Continuando a explicitação, ainda recorremos à compreensão de Fischer: “toda situação é uma re-escrita simbólica do espaço, segundo a importância e o valor que o indivíduo dá àquilo que o cerca”. (FISCHER, 1964 apud ANADÓN E MACHADO, 2001, p. 66-67). Então, entendemos os sujeitos usam os espaços não e tão somente materialmente, mas criam um relacionamento imaginário que dotam os mesmos de sentido próprio e singular, assim sendo, ao falar dos seus espaços, os indivíduos 24 FISCHER, G. -N. Psycologie sociale de l’environnement. Saint-Laurent, Québec: Bo Pre; Toulouse: Privat. 1964, 240p. 53 manifestam eles próprios, revelando que um espaço representado é a somatória de processos cognitivos e subjetivos construído através de um mecanismo psicológico. Sabendo deste quadro conceitual, a correlação entre ele e os mapas mentais pode ser apreendida através da representação que os habitantes fazem de suas cidades, porque o que torna uma cidade o que ela é, não são suas casas, edifícios, pontes e/ou quaisquer outras formas concretas, ou mesmo a construção subjetiva de apenas um cidadão/ã, porém as configurações coletivas dos lugares, que acontecem “sob a interação de uma mesma realidade física, de uma cultura comum e de uma natureza física idêntica”. (LYNCH apud ANADÓN e MACHADO, 2001, p. 68). Sintetizando, poderemos dispor da definição de mapa mental em Anadón e Machado (2001, p. 69). O processo cognitivo pelo qual os indivíduos organizam e compreendem o mundo que os cerca, codificando, estocando, memorizando e decodificando as informações relativas às características de um ambiente.O mapa cognitivo é o produto desse processo: é a imagem mental que preside a maneira através da qual nós construímos nossa representação de um ambiente dado. Sobre o conjunto dos espaços nos quais nós vivemos: casa, escola, lojas, vias, disposições de ruas, se formam dos mapas mentais que nos informa não sobre o espaço tal qual ele é, mas sobre a maneira que nós cremos que ele é. A pertinência dos mapas mentais é evidente quando os pesquisadores que discutem a teoria não concebem a existência do sujeito num contexto isolado do ambiente, contrariamente, só compreendem o sujeito numa relação direta e inseparável com o meio onde vive, provido de um sentimento de pertencimento, pois afinal, o ser humano se completa no outro e nas outras coisas que existem no mundo que ele cria. CAPÍTULO SEGUNDO ECOLOGIA E EDUCAÇÃO "Só em nós mesmos podemos mudar alguma coisa; nos outros é uma tarefa quase impossível." CARL GUSTAV JUNG 55 2.1 Educação Ambiental. É Possível? É ponto de concordância entre diversos autores, pesquisadores e pensadores, que os humanos/as sofrem a influência do meio desde a hora em que nascem e entram em contato com o mundo que os rodeiam, por conseguinte com outros seres humanos. As correntes sociointeracionistas afirmam que o ser é construído através das interações sociais, assim acontecendo, o ambiente sócio-moral, através das interações proporcionadas, oferece ambiência propícia de desenvolvimento social e moral das crianças. Desta feita, de alguma sorte e em algum grau, todos nós somos responsáveis, se não pela educação – posto que educar é uma tarefa impossível sob a ótica freudiana25 –, mas, por influenciar, conduzir ecologicamente nossas crianças. Contudo, se não somos adultos/as conscientes ou sensíveis às questões socioambientais, não temos condições para mostrar e/ou tentar fazer os outro/as apreenderem fatos e situações que nós mesmos não conseguimos ver, compreender, muito menos sentir. O processo educativo não consiste em instruir ou ministrar conhecimentos prévios, muito mais vale lembrar, ajudar a trazer para o nível consciente o que os indivíduos já sabem, fazer com que coloquem em movimento e se empoderem dos arcabouços cognitivos – com toda a sua complexidade e subjetividade – dos quais são portadores, construídos desde os primeiros momentos de vida, em contato com o meio. A questão capital, quanto ideal, no processo de educar, é que o educador/a deveria ter consciência plena – sem perder o foco – do que ele está pretendendo fazer lembrar, e tomando como premissa que ensinar é relembrar, o educador/a, ao mesmo tempo em que desperta e facilita o processo de redescoberta aos seus educandos/as, consecutivamente rememora e reflete sua prática educativa. O verdadeiro aprender é um apreender muito notável, no qual aquele que apreende, apreende apenas aquilo que, no fundo, já tem. O ensinar corresponde a este aprender. Ensinar é um doar, um oferecer, mas no ensinar não se oferece o aprendível; ao aluno é oferecida tão-somente a indicação de tomar para si o que ele já tem. Quando o aluno adota unicamente algo oferecido, ele não aprende. Chega a aprender quando experimenta o que apreende como aquilo que ele mesmo já tem. Um 25 FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas. Vol. 23. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.. 56 verdadeiro aprender ocorre somente ali onde o apreender aquilo que já se tem constitui um dar-se a si mesmo e se experimenta como tal. Dessa forma, ensinar não é outra coisa senão deixar aprender aos outros, quer dizer, induzir-se mutuamente a aprender [grifos do autor]. (HEIDEGGER26 apud LEFF, 2002, p.226). De maneira genérica, os adultos/as são contraditórios, portanto, educar os/as pequenos para uma nova ética ecológica supõe um grande desafio. “Quando rotulamos a ética de ecológica, estamos pressupondo que o conjunto de atividades humanas que tornam viável a vida do homem em sociedade tenha como finalidade principal a integração homem-natureza.” (ROMARIZ, 1999, p. 533). Em princípio, para a humanidade trilhar um novo rumo, seria significativo superar os modelos usuais de ensino na atualidade, embasados e permeados pela descontinuidade e fragmentação, posto que a partir desta visão fracionada há uma tendência a se separar a ecologia de outros aspectos. Além de suplantar esta dualidade – humanamente compreensível – presente nas práticas educacionais, existe outro ponto crítico, que talvez seja um obstáculo de maior dificuldade e a origem dos outros, a ser trabalhado pelos humanos/as: o paradoxo de pensar de um modo e agir de outro, a incoerência entre o que se demonstra e acredita ser e o que realmente se é. "É preciso ousar desenvolver, com urgência, uma ecologia do Ser, [grifo do autor] em que o humano possa ser desvelado e cultivado em toda sua extensão, altitude e profundidade." (CREMA, 1995, p. 125). Romariz27 (1999) comenta que a efetividade das práticas de educação ambiental dependerá da nossa capacidade em lidarmos com duas grandes limitações: a dicotomia entre ecologia e desenvolvimento e o contrassenso inerente aos seres humanos. A convivência de comportamentos conflitivos num mesmo grupo: indivíduos que, supostamente, são “grandes defensores” do meio ambiente, mas que, na realidade, praticam as maiores barbaridades contra o mesmo em suas vidas privadas. (ROMARIZ, 1999, p. 534). Um educador/a poderá educar, senão, como todos os outros, transmitindo sua própria concepção, inclusive ecológica. Orientar, ser “ponte”, conduzir pela vida 26 Heidegger, 1962/1973: 69. Dora de Amarante Romariz – Bacharel e licenciada em Geografia e História pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Especialista em Biogeografia, pós-graduada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – Departamento de Geografia. 27 57 afora a alma de seres humanos, não se pode negar, é uma tarefa colossal, de imensurável responsabilidade, muito mais em se tratando de seres humanos na insipiência do processo de cognição. Se nós, os educadores, não compreendemos a nós mesmos, se não compreendemos nossas relações com a criança e apenas a entulhamos de conhecimentos e a fazemos passar em exames, de que maneira poderemos inaugurar uma educação de nova espécie? [...] A educação verdadeira começa com o educador, que deve compreender-se e estar livre dos padrões convencionais de pensamento. Porque o que ele é, ele transmite. (KRISHNAMURTI, 1980, p. 100) Um educador/a possui em suas mãos parcela dos destinos de seus/as estudantes, no entanto, geralmente não tem consciência deste compromisso, descuidando de sua tarefa como orientador/a e mediador/a no processo de aquisição e construção cognitiva. Analisando o processo pelo qual a educação passa, o que se percebe é, ou mudamos como seres humanos, tentando ser educadores/as mais conscientes e comprometidos com uma ecologia do Ser, ou não alcançaremos a alma de nossos educandos/as, futuros homens e mulheres que poderão dar continuidade a um paradigma de sociedade socioecossustentável. As pessoas desejam ser felizes aqui e agora e isto elas podem alcançar pelo empoderamento e utilização salutar e parcimoniosa dos princípios naturais. "O conhecimento dos princípios e leis da natureza torna-se o eixo central de um novo projeto de emancipação que tem na educação um de seus principais supostos de realização." (GOERGEN, 2001, p. 59). A ecologia humana, se vivenciada profunda e diariamente por estudantes e professores/as, pode se tornar num dos caminhos a serem trilhados para que estes novos indivíduos venham ser homens e mulheres plenos, com conhecimento de si próprios e, tendo posse deste conhecimento saibam respeitar o Outro, indivíduo com todas as suas peculiaridades e idiossincrasias. 58 2.1.1 Sobre Educação, Ecologia e Educadores Educadores, então, de alguma maneira, somos todos nós, adultos/as, em algum instante de nossas vidas, entretanto, a maneira como a família – não apenas e tão somente a biológica e convencional –, vive os valores ético-ecológicos no cotidiano, pode ser uma causa bastante relevante para a construção destes mesmos valores no imo dos futuros cidadãs e cidadãos planetários. “É necessário, pois, não só modificar certos padrões de conduta já bem estabelecidos, mas procurar ao mesmo tempo estimular a formação de outros, mais adequado à confrontação das ações consideradas mais nocivas ao meio ambiente.” (ROMARIZ, 1999, p. 534). Sendo a família o primeiro contato social primário e elementar, e exercendo uma conduta socioambiental pautada em princípios ético-ecológicos, tais como respeito à alteridade e ao planeta, mesmo que grande parte da sociedade tente rechaçar ou ignorar estes princípios, uma criança que tem um bom exemplo não os negará em absoluto. Já diz a sabedoria popular que um exemplo vale mais que mil palavras, portanto se os adultos/as familiares tiverem atitudes, basicamente coerentes com o discurso, poderão exercer influência positiva na vida de suas crianças, contribuindo desta forma para a formação integral de homens e mulheres, essencialmente e ecologicamente éticos. Crema (1995, p. 145) acredita que o jardineiro é a melhor metáfora para designar a excelência dos educadores e educadoras. Sobretudo, o bom jardineiro é o amante da planta. Jamais será tão tolo a ponto de querer doutriná-la com suas teorias e ideais, aceitando e admirando a beleza da biodiversidade. O bom jardineiro sabe que a planta só necessita de um solo fecundo, crescendo por si mesma, já que é dotada de um tropismo para ser o que é, buscando o que necessita no solo e direcionando-se para a luz do sol. Sejamos bons jardineiros então, permitindo que nossas crianças simplesmente acolham o que os seus educadores/as falam, fazendo uso, apropriando-se ou não dos conhecimentos transmitidos, sem tentarmos fazê-las à nossa imagem e semelhança. Que permitamos se manifestem livremente. Além dos conhecimentos necessários para vencer na vida no contexto de uma sociedade regida pela informação, o educando precisa adquirir a capacidade de orientar-se em meio ao cenário caótico e desdiferenciado, aprender a reconhecer quais são, efetivamente, as questões fundamentais 59 para o ser humano, para a vida e para a convivência. [...] O processo educativo não pode mais ser considerado como a introdução de crianças e jovens num mundo de valores eternos desde sempre definidos e com direito de serem impostos e nem pode ser um espaço vazio de valores. (GOERGEN, 2001, p. 78) A criança constrói seu campo cognitivo a partir de atividades de conhecimento físico, jogos, debates e atividades de leitura e de escrita, mas, também e nomeadamente através das relações inter, transpessoais. Educar, à vista disso, consiste muito mais que atividades materiais, organizadas na sala de aula, é também proporcionar condições para que as crianças construam seu entendimento a partir de suas interações cotidianas. Um ambiente humanamente ecológico não é garantido apenas pelas aulas, seminários de Biologia e a interação entre as crianças, papel fundamental para que esta prática obtenha sucesso é o do professor/a. Um bom educador/a jamais será tão somente um transmissor unilateral de informações, ele/a tem a função de mediar situações, promover, “criar um contexto para a construção de hábitos interpessoais, personalidade e caráter pelas crianças.“ (DE VRIES E ZAN, 1998, p. 34). As creches e escolas de educação infantil, majoritariamente, não se preocupam com o desenvolvimento global de suas crianças, e sim singularmente com o desenvolvimento intelectual preterindo o desenvolvimento sócio-moral e afetivo, negligenciando a totalidade do ser. "Educação é muito mais do que transmitir conhecimentos e habilidades por meio dos quais se atingem objetivos limitados. [...] Precisamos mostrar às crianças que suas ações têm uma dimensão universal." (LAMA, 2000, p. 197). A educação ecológica se dá quando os valores, no conteúdo e no exercício do ato de educar, são humanos e humanizadores, quando proporcionam o desenvolvimento incondicional das individualidades, objetivando o crescimento coletivo. Retornemos à tragédia [...] de um modelo educacional distorcido e esclerosado, infelizmente ainda dominante: a criança é forçada a ser o que não é, por meio do fórceps de um currículo estreito e rígido e do instrumento torturante da comparação. Comparar uma criança com outra ainda será considerado crime, num futuro não distante e mais saudável. (CREMA, 1995, p. 145). 60 Uma nova educação deve ser erigida, com a preocupação de fazer uma escola ecologicamente humana, voltada para a educação integral do ser, começar a empreitada de despertamento consciencial ecológico, ousar uma retomada de consciência nos adultos/as, e buscar compreender que educar ecologicamente não é o processo pelo qual uma pessoa adquire conhecimentos a respeito das ciências biológicas e se inteira do que seja ecologia, ecossistema, meio ambiente ou coisas do gênero, isto é instrução. Educar ecologicamente, no sentido profundo do termo é formar o homem e a mulher em seus cernes, é contribuir para o aperfeiçoamento dos seres, nos seus ajustes aos objetivos de progresso e equilíbrio social e espiritual da humanidade. Numa parceria ampla e irrestrita, a família, par de extrema importância, já que é o laboratório dos primeiros exercícios de relações interpessoais, e a escola, ambas devem buscar e investir na evolução de seus educandos, afinal, em maior ou menor grau, somos todos pedagogos/as, mesmo que não tenhamos consciência disto. Que permitamos nos deixar guiar pelo paradigma do princípio holográfico, quando admite que as leis ou princípios que regem o todo do universo se encontram também em cada uma de suas partes. Todos os sujeitos devem ser educadores/as ecologicamente éticos, profissionais instituídos ou não, pois, são corresponsáveis pelo despertar de valores universais. A Conferência de Tbilisi (1998, p. 40) indica duas características fundamentais que há de se levar em conta para uma educação ambiental responsável e comprometida. A primeira é de que a educação ambiental não seja apenas uma nova disciplina que se soma a outras existentes. [...] A segunda idéia é a de que o interesse dessa educação não se restrinja somente a provocar mudanças no ensino escolar. Sobretudo, ela deve suscitar novos conhecimentos fundamentais e novos enfoques dentro de uma política global de educação, que insista na função social dos corpos docentes e nas novas relações entre todos aqueles que intervêm no processo educativo. A pedagogia do futuro, que já é o agora, requer educadores/as e despertadores/as desta nova consciência ecológica, indivíduos propagadores da identidade terrena, fazendo com que os educandos/as compreendam a dimensão cósmica de seus espíritos, pois, mais do que sempre, urgem a coerência, comprometimento e responsabilidade. Relegando estes questões a planos secundários, Gaia, nós, 61 adultos, nossas crianças principalmente, podemos ter um amanhã planetário bastante conturbado. 2.1.2 Sobre Educação, Ecologia e Crianças Alguns conteúdos pertinentes às áreas das Ciências Naturais e Humanas, apesar de estarem presentes na composição das propostas curriculares e nos programas de educação infantil, não são tratados com profundidade e nem com a atenção merecida, propiciando poucos subsídios para a construção de conhecimentos sobre as diversas realidades, sejam elas sociais, históricas, culturais, geográficas, ecológicas. A Conferência de Tbilisi (UNESCO, 1998, p. 64-65), no item que trata sobre as “Características Metodológicas da Educação Ambiental nos Diferentes Níveis de Ensino Formal” orienta: A apresentação dos temas ambientais na educação infantil deve voltar-se para uma perspectiva de educação geral, dentro do programa de atividades de iniciação e em conjunto com as atividades básicas dedicadas ao idioma materno, às ciências exatas e à expressão corporal e artística. [...] Os conceitos básicos relativos ao meio ambiente podem ser adquiridos ao mesmo tempo que os conceitos da física, da biologia e das ciências humanas, que lhe servem de apoio, com a condição de que sua formulação se encaixe num enfoque ativo, voltado para a solução de um problema claramente colocado. Na educação infantil existe desvinculação entre o teor e sua integração com o dia-adia, entre os seres humanos e o ambiente onde vivem, pois que se acredita ser mais fácil que meninos e meninas tenham maior capacidade de pensar a respeito do que está mais próximo, outrossim, acessível e concreto, sendo difícil a criança apreender o que está mais distante. Os adeptos deste pensamento acreditam que, para a criança compreender certos conceitos e conteúdos se faz necessário ministrá-los de forma graduada, dependendo da complexidade que apresentam, esta complexidade fundamentada na compreensão dos adultos. 62 Propostas e práticas escolares diversas que partem fundamentalmente da idéia de que falar da diversidade cultural, social, geográfica e histórica significa ir além da capacidade de compreensão das crianças têm predominado em educação infantil. São negadas informações valiosas para que as crianças reflitam sobre paisagens variadas, modos distintos de ser, viver e trabalhar dos povos, histórias de outros tempos que faz parte de seu cotidiano. (REFERENCIAL CURRICULAR, 1998, p.165-166) Alguns estabelecimentos que trabalham com educação infantil, quando transmitem conteúdos referentes às Ciências Naturais, contentam-se em transmitir apenas certas noções que dizem respeito aos seres vivos e ao corpo humano, não levam em consideração os conhecimentos dos quais as crianças são portadoras, valorizando e dispondo de termos técnicos e propondo definições que se encontram fora do contexto infantil, dificultando a construção do conhecimento dos educandos/as a partir de suas próprias análises e conclusões. Outras escolas conduzem a uma formação moralizante, predominando nesta prática a transmissão de valores estereotipados e conceitos preconceituosos. Formar crianças não é condicioná-las para obedecerem a regras morais, através da autoridade. Crianças éticas são as que “[...] compreendem o espírito da regra, a necessidade moral para tratar os outros como gostariam de ser tratadas.” (DE VRIES E ZAN, 1998, p. 38), sem se sentirem obrigadas a isto por causa dos professores/as, ou dos possíveis castigos ou prêmios por eles prometidos. Ainda outros colégios existem, onde são realizadas experiências pontuais de observação, cujas etapas de desenvolvimento são previamente determinadas pelos educadores e em momento algum, a visão pessoal de cada estudante para explicar o fenômeno em questão é valorizada, dificultando deveras, o entendimento do problema investigado. O saber ecológico, assim como todos os saberes, deve ser extraído dos garotos e garotas e não neles inculcado28. Aprender a aprender a complexidade ambiental implica uma nova compreensão do mundo que problematiza os conhecimentos e saberes arraigados em cosmologias, mitologias, ideologias, teorias e saberes práticos que se encontram nos alicerces da civilização moderna, no sangue de cada cultura, no rosto de cada pessoa. (LEFF, 2002, p. 196). 28 O Dicionário Brasileiro Globo (1996, p. 351) define: INCULCAR, tr. dir. Apontar, citar; celebrar; demonstrar, dar a entender; repisar; fazer penetrar (uma coisa) no espírito, à força de repetir. [sem grifo no original]. 63 A Ecologia na educação infantil tem o marcante papel de fazer com que as crianças compreendam a diversidade do mundo que as cercam; fazê-las conhecer a pluralidade de fenômenos e acontecimentos, sejam eles concretos ou subjetivos e a partir desta compreensão ampla da inteireza, construir novos modos de pensar, ou seja, outros mapas mentais sobre os fatos que as cercam. A verdadeira reforma, aquela do entendimento, aquela do pensamento, deve começar no nível do ensino chamado elementar. Ao contrário daquilo em que se acredita, as crianças fazem funcionar espontaneamente suas aptidões analíticas; elas sentem espontaneamente as ligações e as solidariedades. [...] Nós ensinamos às crianças a conhecer os objetos isolando-os, ao passo que é preciso também reintegra-los a seu ambiente para conhecê-los e que um ser vivo pode ser conhecido somente em sua relação com o seu meio, de onde extrai energia e organização. Esquecemse os vínculos entre todos os fenômenos e isso se torna desastroso no âmbito das ciências humanas... (MORIN, 2003, p. 151). A ecologia complexa ou profunda não nega o valor do conhecimento científico que a raça humana produziu e acumulou ao longo de sua história, contudo se torna necessário reconhecer que ele não é o único; representação diferente do mundo existe, outro tipo de conhecimento há, além do científico, que seria o que se pode chamar conhecimento do senso-comum, e as crianças têm o direito de o saber, e os adultos, por sua vez, o dever de dá a conhecer. Construir junto às crianças a possibilidade/perspectiva de diferenciação, alteridade, e não de negação e desrespeito a qualquer tipo de conhecimento. Trabalhar ecologia na educação infantil significa, portanto, entre tantas outras perspectivas, é proporcionar "experiências que possibilitem uma aproximação ao conhecimento das diversas formas de representação e explicação do mundo social e natural para que as crianças possam estabelecer progressivamente a diferenciação" (REFERENCIAL CURRICULAR, 1998, p. 168), distinção entre as diversas explicações provenientes das variadas fontes. O que os educadores/as devem orientar às crianças é que no planeta Terra existem múltiplas relações e todas elas estão conectadas entre si, relação sistêmica permeada por alguns princípios fundamentais. Capra (2003) sugere que estes princípios podem ser intitulados de princípios da ecologia, princípios da sustentabilidade ou princípios da comunidade. 64 Um dos pressupostos capitais para melhor se conduzir os educandos/as na direção mais salutar de convívio harmonioso e saudável com/em Gaia é a elaboração de um currículo que priorize a vida e seja esclarecedor quanto à condição de cidadania cósmica. Capra (2003, p. 25) enfatiza que “Precisamos de um currículo que ensine a nossas crianças estes fatos fundamentais da vida” e lista os mesmos abaixo: nenhum ecossistema produz resíduos, já que os resíduos de uma espécie são o alimento de outra; a matéria circula continuamente pela teia da vida; a energia que sustenta estes ciclos ecológicos vem do sol; 29 a diversidade assegura a resiliência ; a vida, desde o seu início há mais de três bilhões de anos, não conquistou o planeta pela força, e sim através de cooperação, parcerias e trabalho em rede. A educação infantil é uma das vias condutoras às mudanças requeridas para um novo homem/mulher planetário, portanto, se faz premente educar ecologicamente a partir de um currículo renovador, formulado a partir dos paradigmas da ecologia profunda, que também corresponde a transmitir e compreender o saber já constituído e construído, de maneira processual desde seus primórdios. Urge que se elaborem currículos que ensinem às crianças sobre conceitos essenciais que façam compreender os padrões e os processos pelos quais a natureza sustenta a vida. Não foi a intenção fazer neste trabalho um tratado sobre a aplicação dos conhecimentos ecológicos na educação infantil, muito menos traçar regras de como isto pode se estabelecer, o intuito foi, através de algumas ideias provocadoras, fazer refletir a respeito desta prática nos dias atuais. Vale salientar que a empreitada de educar ecologicamente é uma das diversas funções dos educadores/as, que carecem para esta tarefa “reconhecer a multiplicidade de relações que se estabelecem e dimensioná-las, sem reduzi-las ou simplificá-las, de forma a promover o avanço na aprendizagem das crianças.” (REFERENCIAL CURRICULAR, 1998, p. 172). Necessário se faz reconhecer que na 29 RESILIÊNCIA: “Capacidade de um sistema de absorver as tensões criadas por perturbações externas sem que sua estrutura e função sejam alteradas. Um ecossistema resiliente é capaz de retornar às suas condições originais de equilíbrio dinâmico após sofrer estresses como incêndios e descargas de poluentes, por exemplo. Conceito da Física ( capacidade de um corpo de, após ser submetido a uma tensão até seu limite de elasticidade recuperar sua forma e tamanho originais quando cessada a pressão) há muito utilizado na Ecologia, hoje amplamente adotado na Psicologia e na análise de sistemas econômicos e sociais.” (MOUSINHO, 2003, p. 361). 65 infância, diversos fenômenos, dada a sua complexidade, não poderão ser compreendidos de modo imediato, mas, nem por isto devem ser alijados do currículo. Na infância a aprendizagem é processual e nem sempre rápida, portanto o educador deve ser sábio para despertar uma percepção mais dilatada nas crianças e também deve entender que a não conclusão da compreensão de determinado fenômeno ou processo não sinaliza falta de apreensão ou a ausência de conhecimento, mas um contexto de construção e organização do saber. "Muitas relações só se tornam evidentes na medida em que novos fatos são conhecidos, permitindo que novas idéias surjam. [...] Contudo o professor precisa ter claro que esses domínios e conhecimentos não se consolidam nesta etapa educacional." (REFERENCIAL CURRICULAR, 1998, p. 172-173). Aliás, quando e quais conhecimentos são consolidados? Depois de toda certeza surgem as indagações, também no universo dos adultos. Os conhecimentos, naturalmente, são construídos, gradativamente, na medida em que as crianças desenvolvem atitudes de curiosidade, de crítica, de refutação e de reformulação de explicações para a pluralidade e diversidade de fenômenos e acontecimentos do mundo social e natural. Em face da variedade temática oferecida pela ecologia, o ideal é se estruturar um trabalho educativo, cujos assuntos mais relevantes a serem abordados sejam baseados prioritariamente nas escolhas infantis e não unicamente a partir da ótica do educador. Agindo de acordo com estes parâmetros, os educadores/as estarão trilhando um caminho propício para uma educação ecológica de indivíduos conectados com sua inteireza e total pertencimento planetário. CAPÍTULO TERCEIRO PEDAGOGIA "CAATINGUEIRA" [...] uma boa parte do que é tido como conhecimento é pouco mais do que uma pilha de abstrações, desvinculadas da experiência concreta, dos problemas reais e dos lugares onde vivemos e trabalhamos. Nesse sentido, ele é utópico, o que significa literalmente "lugar nenhum". DAVID W. ORR 67 3.1 Semiárido e Caatinga: um Mapa Breve Caatinga é uma definição de ambiente natural que descreve o bioma 30 que predomina no sertão, enquanto que Semiárido, por sua vez é um clima específico da mesma região, sendo uma de suas principais características a baixa e concentrada precipitação pluviométrica. Ver Figura 3. Caatinga e Semiárido são termos que designam ocorrências diferentes, apesar de geralmente acontecer certa confusão no momento de utilizar uma denominação ou outra, posto que se costuma adotar o “uso incorreto de regiões geográficas como sinônimos de unidades de vegetação [e] a ‘caatinga’ tem sido muito usada para a região geográfica no nordeste do Brasil”. (CASTELLANOS31, 1960 apud PRADO, 2003, p. 5). O senso comum, pesquisadores e estudiosos, associam o Semiárido e a Caatinga a algo sem vida, sem graça e quase morto. O simples pronunciar do termo Caatinga remete a uma construção preconceituosa, de paisagem e biodiversidade pobres, habitadas por indivíduos esquálidos e desprovidos de vitalidade, vigor mental e intelectualidade. Estigmatizada, é vista como a região mais sofrida e pobre do país. “Falar do Nordeste e do seu semi-árido tornou-se quase a mesma coisa que falar de pobreza e de exclusão.” (FAVERO e SANTOS, 2002, p. 82). Provavelmente, a vida de condições difíceis – que induz as populações assoladas pelos longos períodos de estiagem e muita precipitação pluviométrica em pouco tempo, a migrarem constantemente de seus espaços originários – faz com que os moradores e moradoras associem sua pobreza à seca, não valorizando a Caatinga, sendo estas representações sociais reforçadas por outros setores tais como o de alguns ambientalistas e governantes. Durante muito tempo, sobretudo até 1950, a seca a foi considerada a grande causadora da pobreza na região, de modo que os projetos governamentais e não-governamentais destinavam-se essencialmente a combatê-la. Imaginava-se que através do combate à seca se combateria a 30 “BIOMA: Unidade ecológica de grande extensão de área modelada pela interação entre os climas, seres vivos e solo de uma determinada região. Os biomas possuem fisionomia homogênea e um tipo de formação vegetal predominante, sendo facilmente identificáveis. ECOSSISTEMA: Sistema aberto que inclui todos os organismos vivos presentes em uma determinada área e os fatores físicos, químicos e biológicos com os quais eles interagem. É a unidade fundamental da Ecologia” (MOUSINHO, 2003, p. 338-349). 31 CASTELLANOS, A. Introdução à Geobotânica. Revista Brasileira de Geografia, 1960, p. 585-617. 68 pobreza. Em seguida, no período desenvolvimentista (que era também economicista), predominou a idéia de que a origem da pobreza estava na existência de relações sociais fundadas na dominação (com fortes traços culturais), através das quais se produziriam as várias formas de desigualdade. Ultimamente, tende-se a considerar que a origem da pobreza no semi-árido encontra-se na combinação entre secas e determinadas relações de produção. (FAVERO e SANTOS, 2002, p. 79-80). Algumas pesquisas e estudos realizados sobre a Caatinga e o Semiárido ampliam a percepção de que a pobreza, a desigualdade social e a exclusão são processos históricos, cuja complexidade tem aumentado perante a diversidade de situações que permeiam estes processos, promovidos “pelas novas dinâmicas econômicas no contexto da chamada globalização e pelas mudanças no nível dos paradigmas ou das formas de sua representação, exigindo, portanto, novas formas de combatê-la.” (FAVERO e SANTOS, 2002, p. 86). Entretanto, com a estiagem no Semiárido, assim como a neve nos frios polos da Terra, aprende-se a conviver e não a combater. Figura 3 – Biomas no Brasil Numa perspectiva atual, a teoria das representações sociais assegura que não apenas a ciência aborda a pobreza, mas o próprio senso-comum cria significados e concorre para a inventividade e construção dos mapas mentais de pobreza. 69 Não são apenas os estudos científicos e os discursos políticos que falam de pobreza e de miséria no semi-árido do Nordeste do Brasil. A própria pobreza fala. Ela grita. No entanto, a sua voz só tem sentido, ou é escutada, e só pode ser escutada, na medida em que é inserida como um problema ao mesmo tempo social e político em mapas ou em representações sociais. É neste sentido que todo mapa é uma forma de distorcer a realidade, dando-lhe um sentido. (FAVERO e SANTOS, 2002, p. 86). Assim, cada sujeito alimenta e fortalece as representações sociais do outro, juntos numa ação cíclica, difícil de romper e reverter, o que dificulta a compreensão real do que seja viver no Semiárido. E a este quadro ainda se adita o pouco conhecimento técnico-científico sobre o potencial biológico e paisagístico do bioma Caatinga. O estudo e a conservação da diversidade biológica da Caatinga é um dos maiores desafios da ciência brasileira [ ! ]. A Caatinga é proporcionalmente a menos estudada entre as regiões naturais brasileiras, com grande parte do esforço científico estando concentrado em alguns poucos pontos em torno das principais cidades da região. (LEAL, TABARELLI e SILVA, 2003, p. XIII). A despeito de todos os entendimentos, os biomas dos ambientes áridos e semiáridos – assim como os de outros climas – possuem características próprias e peculiares, espécies únicas, têm belezas e encantos como também as pessoas que neles habitam são possuidoras de suas idiossincrasias e representações resultantes de um processo vivido e experenciado nestes ambientes. “Numa perspectiva sociológica, mapear uma região é uma forma de falsificar, distorcer, representar ou simbolizar as suas redes de sociabilidades. É também abordar as experiências vividas e faladas pelas suas gentes.” (FAVERO e SANTOS, 2002, p. 79-80). Caatinga, segundo a maioria das fontes pesquisadas, é um vocábulo de origem tupiguarani que significa floresta ou mata branca, característica adquirida por sua vegetação em épocas de estiagem que, perdendo as folhas, faz aparecer os troncos e galhos brancos e espinhentos de suas árvores e arbustos. Branco (1994, p. 7) dá alguns esclarecimentos a respeito de outras visões. [...] na verdade, caa não se refere ao mato propriamente dito, mas aos morros e sua vegetação. Sendo ela rala e despida de folhas na época de seca, dá origem a uma paisagem clara e desértica. Finalmente, outros atribuem origem diferente ao termo. Alegam que ele surgiu da combinação abreviada de caa (mato) e tininga (seco), isto é, “mato seco”. [grifos do autor]. 70 É um bioma único no mundo e restrito ao território brasileiro. Cobre uma área de 734.478 Km² e em sua maior parte ocupa a região Nordeste do Brasil, com algumas áreas no norte do estado de Minas Gerais. Seus limites são inteiramente restritos ao território nacional. Malgrado singularidade, a posto sua que relevância possui e grande biodiversidade e importância biológica, o bioma Caatinga é um dos mais ameaçados do Brasil, carecendo de medidas urgentes e efetivas para diversidade. infelizmente, a Vale conservação32 salientar de ainda proporcionalmente à sua que, sua importância é o bioma menos estudado e é a região natural brasileira menos protegida. (SILVA, TABARELLI, FONSECA E LINS, 2004). Concomitantemente é uma região de profunda degradação ambiental, provocada Figura 4 - Raso da Catarina Foto: TENÓRIO, 2002. pelo uso indiscriminado de seus recursos naturais, conduzindo o bioma “à rápida perda de espécies únicas, à eliminação de processos ecológicos chaves e à formação de extensos núcleos de desertificação em vários setores da região.” (LEAL, TABARELLI e SILVA, 2003, p. XIII). Na Caatinga do Semiárido, o índice pluviométrico é relativamente baixo, entre 700 e 1000 mm por ano e as precipitações ocorrem de forma irregular variando de época. Num número maior de vezes se passa um ano inteiro, ou mais, sem chover uma única gota, noutras – mais esporádicas – chove torrencialmente ao extremo de 32 “CONSERVAÇÃO: Conceito desenvolvido e disseminado nas últimas décadas do século 19 como um relacionamento ético entre pessoas, terra e recursos naturais, ou seja, uma utilização coerente destes recursos de modo a não destruir sua capacidade de servir às gerações seguintes, garantindo sua renovação. A conservação prevê a exploração racional e o manejo contínuo de recursos naturais, com base em sua sustentabilidade. PRESERVAÇÃO: Estratégia de proteção dos recursos naturais que prega a manutenção das condições de um determinado ecossistema, espécies ou área, sem qualquer ação ou interferência que altere o status quo [grifo da autora]. Prevê que os recursos sejam mantidos intocados, não permitindo ações de manejo.” (MOUSINHO, 2003, p. 346-360). 71 causar inundações. A questão, possivelmente, não é quantidade de chuva na região, mas a distribuição no tempo. Reis33 (1976) apud Prado (2003, p. 10-11): As Caatingas semi-áridas, comparadas a outras formações brasileiras, apresentam muitas características extremas entre os parâmetros meteorológicos: a mais alta radiação solar, baixa nebulosidade, a mais alta temperatura média anual, as mais baixas taxas de umidade relativa, evapotranspiração potencial mais elevada, e sobretudo, precipitações mais baixas e irregulares, limitadas, na maior parte da área, a um período muito curto do ano. Tricart (1961) e Ab’Sáber (1974)34 apud Prado (2003, p. 8) explicam que por ser o “resultado da origem do substrato das Caatingas, os solos são pedregosos e rasos, de profundidades exíguas e muitos afloramentos de rochas maciças”. Simplificando, Branco (1994, p. 16) comenta que o solo da Caatinga é composto por muitas pedras soltas, cujos tamanhos variam de pequenos cascalhos a enormes blocos isolados, estando os pedregulhos geralmente misturados com uma argila avermelhada ou com uma areia de cor amarelada. O termo Caatingas, no plural, é usado pelo fato da mesma se apresentar diversamente, variando de acordo com as condições geo-ambientais. Distintamente do pensamento dominante, as Caatingas não são compostas apenas de ralos arbustos e espinheiros. A partir de Prado (2003), compreende-se que elas aparecem sob as variações de floresta arbórea alta, média ou baixa, com vegetações arbustivas densas ou abertas, sendo compostas, mormente, por árvores e vegetação arbustiva baixa, que podem possuir espinhos, pouquíssima folhagem ou diminutas folhas, muitas vezes se utilizando da queda destas, sendo todos estes aspectos mecanismos de adaptação para a sobrevivência no ambiente semiárido. As plantas da Caatinga, quase todas, produzem flores belíssimas e frutos saborosos, a exemplo do mandacaru que além de uma flor vistosa produz frutos excelentes. 33 34 REIS, A. C. Clima da Caatinga. Anais da Academia Brasileira de Ciências. 1976, p. 325-335. AB’SÁBER, A. N. O domínio morfoclimático semi-árido das Caatingas brasileiras. Geomorfologia. 1974, p. 1-39. TRICART, J. As zonas morfoclimáticas do nordeste brasileiro. Notícia Geomorfológica. 1961, p. 17-25. 72 Figura 5 - Flor de bromélia Encholirium brachypodum Foto: TENÓRIO, 2002. Figura 6 - Caraibeira Tabebuia caraíba Foto: PEREIRA-SILVA, 2011. Podemos listar árvores de grande potencial madeireiro e frutífero: araticum, mangada, licuri, juá, jatobá, etc. Vejamos o umbuzeiro, uma das árvores mais célebres, que além dos frutos maravilhosos usados na gastronomia, possui a particularidade de armazenar água em suas raízes, sendo propícia ao consumo humano e animal. Além disso, vários vegetais, entre palmeiras e plantas arbustivas, oferecem excelentes fibras para tecelagem, para a confecção de cordas e finalidades diversas. É o caso do ouricuri e do catolé, que são palmeiras de pequeno porte, cujas folhas, depois de secas, tanto servem para a cobertura de casas como para a fabricação de esteiras, chapéus, abanos, etc. A macambira e o caroá, ambos da família dos abacaxis e gravatás, também são bons exemplos dessas plantas. (BRANCO, 1994, p. 42). Com a fauna não acontece diferente. Ela também teve que se adaptar às condições adversas do semiárido, mas, longe do que se imagina, é bastante diversificada. Segundo as pesquisas compiladas por Leal, Tabarelli e Silva (2003), na fauna da região semiárida foram catalogadas cerca de, 97 espécies de répteis, 45 de anfíbios, espécies endêmicas de aves, podendo uma mesma localidade ter a rica cifra de mais de 200 espécies. Foram relacionadas 187 espécies de abelhas, pertencentes a 73 77 gêneros. Quanto aos mamíferos, 115 espécies foram registradas nos municípios melhor inventariados. No bioma Caatinga uma das principais atividades é a pecuária, representada pela criação de bovinos e caprinos, e a pesca para os habitantes que vivem às margens dos rios e açudes. Também é praticada a agricultura – milho, feijão, mandioca, jerimum – como uma atividade secundária, geralmente de uso familiar. Apesar dos dois principais rios que cortam a Caatinga, a saber, o Rio São Francisco e o Rio Parnaíba, serem perenes, muito provavelmente, o maior entrave para o desenvolvimento pleno das áreas de Caatinga no nordeste do Brasil é sua diminuta rede hidrográfica. Esta condição natural é a principal conseqüência da abrangência do clima semi-árido, característico da Caatinga, sobre as bacias hidrográficas da região. As condições climáticas, associadas à natureza impermeável do subsolo cristalino da porção oriental do escudo brasileiro, são os fatores determinantes que caracterizam a rede hidrográfica do nordeste. [...] As bacias hidrográficas sob o domínio da Caatinga apresentam características peculiares, como o regime intermitente e sazonal dos rios, reflexo direto das precipitações escassas e irregulares, associadas à alta taxa de evaporação hídrica. (ROSA et al., 2003, p. 138-139). Um dado que chama a atenção na região semiárida do Nordeste do Brasil ainda é a pobreza de sua gente. Milhões de crianças morreram de fome e desnutrição nos últimos 100 anos e grande parte da população rural se situa abaixo da linha de pobreza. Apesar das inúmeras e diversas tentativas para erradicar a pobreza nos últimos 50 anos, ela continua existindo. Favero e Santos (2002, p. 84-85) colocam que a questão da pobreza no Semiárido, atualmente, tem sido abordada através de três principais enfoques: primeiro: “como fenômeno histórico e objetivo, quantitativamente mensurável”. É válido ressaltar que nenhum enfoque anula o outro, estando a questão permeada pelos três, contudo o segundo enfoque é o viés que em algum momento perpassou este trabalho. De acordo com o segundo enfoque, a pobreza consistiria essencialmente num fenômeno histórico, mas mais particularmente subjetivo, fundado na forma como os sujeitos, indivíduos e grupos sociais representam a pobreza, 35 a si mesmos e o seu mundo (ALBUQUERQUE JR., 1999) . 35 ALBUQUERQUE Jr., Durval Diniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. 74 O terceiro e último enfoque na visão de Favero (2000)36: “...a pobreza (enquanto carência material e simbólica) seria talvez a expressão menor da iniqüidade social numa região como o semi-árido, onde predominaria de fato a exclusão, ou, como alguns denominam, a ‘pobreza invisível’.” Isto posto, entende-se que além dos fenômenos naturais de características extremas, naturais ao Semiárido, tais como as enchentes e as secas, há também fatores subjetivos que, juntos aos determinantes concretos contribuem para a configuração que possuem a vida vegetal, animal e humana, nas Caatingas do Semiárido. A representação da seca e da região como uma coisa homogênea tem servido de base inclusive para justificar a homogeinização das ações do estado na região e para acusar o seu povo de incapaz, já que lá as ações e os programas oficiais não rendem resultados positivos. (FAVERO E SANTOS, 2000, p. 75). A Caatinga não é um deserto, árido e sem vitalidade, e a vida que nela está contida apenas se transmuta para proteger-se das intempéries do meio. Também é fato que milhões de pessoas – o Nordeste é a segunda região mais populosa do país – dependem dos recursos naturais encontrados na região do Semiárido, direta ou indiretamente, e ele tem condições de manter dignamente a qualidade de vida destas pessoas, talvez o maior obstáculo que impeça este fato seja a falta de políticas públicas que fomentem e promovam um aproveitamento econômico sustentável de sua biodiversidade. 3.2 A Caatinga na Pedagogia do Semiárido Uma reivindicação pertinente dos educadores/as brasileiros sérios e comprometidos com suas práticas, é que cada região tenha uma proposta pedagógica voltada para sua realidade, posto que num país de extensões continentais a diversidade também é de mesma proporção. Entretanto a realidade ainda está distante da ideal, muito embora, tentativas e avanços venham acontecendo. O que se conhece são propostas 36 pedagógicas deslocadas das realidades onde são utilizadas, FAVERO, Celso Antonio. Divertimento e sofrimento: a exclusão social na era da globalização. In: Revista da FAEEBA. Educação e Contemporaneidade. Ano 9 – n. 14 – Jul/Dez. 2000. 75 descontextualizadas e inseridas nas crianças “goela abaixo”. Esta prática pode ser utilizada também por profissionais responsáveis e preocupados, porém, sem autonomia e uma estrutura metodológica que lhes deem subsídios. A inquietação com estes aspectos está presente na carta do Ministro da Educação e Cultura do expresidente Fernando Henrique Cardoso, Paulo Renato Souza, quando da publicação do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Considerando a fase transitória pela qual passam creches e pré-escolas na busca por uma ação integrada que incorpore às atividades educativas os cuidados essenciais das crianças e suas brincadeiras, o Referencial [grifo do autor] pretende apontar metas de qualidade que contribuam para que as crianças tenham um desenvolvimento integral de suas identidades, capazes de crescerem como cidadãos cujos direitos à infância são reconhecidos. (REFERENCIAL CURRICULAR, 1998, p. 5). Transformações se fazem necessárias para que a sociedade possa enraizar em seu seio uma cultura ecologicamente humana, que priorize uma educação pautada no respeito à alteridade. [...] uma cultura de respeito e de valorização da diversidade e da identidade (de ser humano, de ser brasileiro, de ser do município X, da raça Z, do gênero Y, da classe social W etc.), ou seja, de ser diferente e gostar disto, sem deixar de lutar para superar aquelas diferenças que incomodam e oprimem, mas valorizando o outro em suas especificidades e com ele dialogando no sentido de trabalhar os conflitos, visando não sua supressão, mas ao seu equacionamento democrático. (ProNEA, 2005, p. 18). A realidade na região do Semiárido e bioma Caatinga não difere da conjuntura de outras regiões do país, no que concerne à elaboração de currículos que não contemplam as demandas das realidades locais; a ausência quase total de livros didáticos que abordem estas mesmas demandas com métodos apropriados às crianças e adolescentes, e se, ou quando existem, não são de fácil acesso; fora o fato de que o material disponível não possui a transdisciplinaridade desejada, muito menos proporciona a vinculação entre as áreas dos saberes. Uma série de meias verdades é divulgada através de uma preleção arcaica sem a menor deferência à realidade. Os currículos e material didático adotados, distorcidos e desarticulados dos contextos locais, são propagadores de outras paragens, distantes, bonitas, mágicas e “melhores”, capazes de resolverem definitivamente todos os problemas dos moradores e moradoras do ‘feio e ressequido’ Semiárido, onde, nas representações sociais, só existem problemas, predominando fome, seca e miséria; nenhum potencial, qualquer que seja e a inviabilidade de quaisquer 76 projetos. Associado a este quadro está o alheamento das pessoas às questões da educação, do meio ambiente, pior ainda ao que tange o Semiárido e à Caatinga. Trazendo novamente à tona os dados da pesquisa de Dra. Samyra Crespo, eles apontam que “para os nordestinos, as prioridades para a proteção devem ser dadas à Floresta Amazônica e à Mata Atlântica”. (CRESPO, 2003, p. 67). Após tão longo período de internalização destes conceitos e entendimentos, mudanças neste quadro demandam ações constantes e processuais, sob o olhar atento de educadores e educadoras persistentes e comprometidos com uma proposta inovadora de educação voltada para as peculiaridades locais, para as especificidades do Semiárido, assim como do bioma Caatinga, que dê origem à percepção de novos saberes e conduza à redescoberta e/ou manutenção da identidade de todos os indivíduos envolvidos. É bom ressaltar que os conceitos de meio ambiente, bem como o de realidade local, foram sendo processualmente re-elaborados. Deixam de ter o enfoque apenas nas questões climáticas e naturais, como inicialmente se desenhavam, passando a abranger os aspectos socioculturais locais. O termo “realidade local” deixa de ser compreendido como limite para ser visto como ponto de partida para discussões mais amplas. (SOUZA, 2005, p. 25). Faz-se premente desmistificar os símbolos negativos e equivocados a respeito da Caatinga e do Semiárido brasileiro, fortalecidos por “um modelo de educação colonialista que sempre privilegiou a cultura externa e desconsiderou os potenciais locais” (SOUZA, 2005, p. 25), e a partir desta desconstrução do imaginário de seca, destruição e morte, se construa e se dê origem a outro tipo de representação social, mais harmônica com a realidade. O Semiárido deve adotar um processo de valorização, onde todos os aspectos sejam levados em conta: o saber acadêmico e as experiências adquiridas através de práticas educativas contextualizadas que respeitem a sabedoria do senso-comum. A implementação de uma política educativa pública inclusiva, contextualizada, com acesso e respeito à diversidade e especificidades do Semiárido. Na vida, tudo muda todo o tempo, dialeticamente. Depois de passado um espaço de tempo assombroso se divulgando, pregando e absorvendo ideias preconcebidas e disformes, desconexas com a realidade, alguns esforços têm sido despendidos para 77 a constituição de novos paradigmas nas relações com o Semiárido, dando origem a uma nova ecologia humano-ambiental, onde seus moradores creiam nos próprios potenciais e percebam que existem soluções viáveis e exequíveis, evitando assim a necessidade de migrarem para outras regiões. Alguns bons exemplos deste empenho são: o Caatinga, em Ouricuri-PE; o CEFAS - Centro Educacional São Francisco de Assis, Floriano-PI; a RESAB - Rede de Educação do Semiárido Brasileiro; o IRPAA - Instintuto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada e a AGENDHA – Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecológico, entre outros. O IRPAA, instituição reconhecida nacionalmente, também no exterior, tem efetuado um trabalho extremamente produtivo para o convívio harmonioso com o Semiárido. [...] produzido inúmeros materiais educativos, produtos das aprendizagens construídas junto às comunidades [...] Um trabalho educativo que se espalhou para praticamente todo o Semi-Árido e, hoje, o discurso da Convivência chega consideravelmente a âmbito nacional, mesmo que a proposta contida nos vários discursos não seja essencialmente a mesma para todos, considerando que são muitas as entidades que também militam na perspectiva da Convivência com o Semi-Árido. (SOUZA, 2005, p. 22) A Educação no Semiárido pode deflagrar algumas iniciativas que serão postas em prática, testadas, depois, se aprovadas, definitivamente efetivadas. Uma ação de peso seria imprimir uma nova formatação nos currículos escolares do Semiárido, que poderiam ser constituídos com propostas apropriadas para o convívio no Semiárido e na Caatinga, tornando-se instrumentos fortalecedores da perspectiva do desenvolvimento sustentável e da possível melhoria da vida dos povos e comunidades da região. "A gestão do currículo escolar para o desenvolvimento humano sustentável não pode perceber-se apenas como gerador de discussões dentro da escola. Ele deve transcendê-la". (SOUZA, 2005, p. 125). Todavia, para que a ação anterior – currículo diferenciado – se faça exequível, outra haverá de antecedê-la: uma mudança na formação dos educadores/as e nas políticas educativas da região. Aos educadores/as do Semiárido, bioma Caatinga – não tão somente – se deveria fazer entender, quando em seu exercício de educar, “que a construção de conhecimentos se processa de maneira integrada, global e que há inter-relações entre os diferentes eixos sugeridos a serem trabalhados com as crianças.” Não esquecer que o planejamento, desenvolvimento e avaliação de práticas educativas devem levar em consideração alguns aspectos inolvidáveis tais 78 quais: “pluralidade e diversidade étnica, religiosa, de gênero, social e cultural das crianças brasileiras, favorecendo a construção de propostas educativas que respondam às demandas das crianças e seus familiares nas diferentes regiões do país.” (REFERENCIAL CURRICULAR, 1998, p. 7). Para se atingir estas melhorias, algumas medidas podem ser tomadas. Souza (2005, p. 27), a partir de um documento produzido no I Encontro de Formação Continuada de Coordenadores e Diretores Municipais37 enumera o que estes profissionais consideraram que seja uma “Educação para a Convivência com o Semiárido”. Transformação para o reconhecimento. Despertar no cidadão o interesse de valorizar a região em que vive, buscando sempre superar as dificuldades existentes. Mudança de atitude das pessoas, partindo do real para o ideal. A arte de valorização de sertão: viver e conviver com a realidade. Educação significativa. Educação mais próxima, possível, do contexto em que está inserido o aluno. Busca de um novo olhar sobre a vida de homens e mulheres e o SemiÁrido. Contextualização. Uma educação que valorize as particularidades do meio, como ponto de partida para todo o processo ensino-aprendizagem. Dificuldades existem. Não se poderá desconstruir num piscar de olhos o que se constrói há anos, mas esforços devem ser empreendidos na tentativa de derrubar por terra os equívocos. A escassez de recursos e a ausência de um acompanhamento pedagógico permanente devem ser superadas com o empenho das pessoas envolvidas e comprometidas, juntamente com as organizações pertinentes, na tomada de consciência construtora de uma educação contextualizada, assim, libertadora. Os currículos do Semiárido devem dar conta de algumas questões, tais como a responsabilidade de pensar as problemáticas sociais e que compreende a historicidade dos sujeitos a quem se destina, mas que está estritamente comprometido com a superação das desigualdades e reconhece que, para isto, é preciso alterar significativamente a lógica do que nela se vivencia, se ensina. (SOUZA, 2005). 37 “O I Encontro de Formação Continuada ocorreu no período de 19 a 22 de maio de 2003 no Centro de Formação do Irpaa, em Juazeiro, e contou com a presença de cinco municípios: Canudos, Uauá, Curaçá, Juazeiro e Lagoa de Dentro.” (SOUZA, 2005, p. 27). 79 Assim sendo, devemos encetar uma nova probabilidade não determinista, não fatalista e dilatarmos a visão na direção de pensar e estabelecer uma educação que priorize o contexto, cultura e história do Semiárido e suas Caatingas, fazendo aparecer o seu ‘ser’ e perpetrando mudanças significativas, majoritariamente nos currículos, que são tão direcionados a outras culturas e biomas que não o nosso. CAPÍTULO QUARTO CONCEBENDO A METODOLOGIA A poesia e a arte continuam a desvendar lógicas profundas e insuspeitadas do inconsciente coletivo, do cotidiano e do destino humano. A ciência é apenas uma forma de expressão desta busca, não exclusiva, não conclusiva, não definitiva. CECÍLIA MINAYO 81 4.1 Da Pesquisa com Representações Sociais e Mapas Mentais Infantis Apesar de a ciência tentar e conseguir explicar muitos fenômenos, suas causas e seus efeitos, a humanidade continua com dúvidas, buscando improficuamente por algumas soluções. Na sociedade ocidental, a ciência, comumente, tem se colocado como detentora dos saberes, contudo, para muitas questões primárias e essenciais a busca é constante, posto que continua sem respostas. Sendo criada por seres humanos – que possuem a característica da incompletude –, e sendo reflexo de seus criadores, assim como todas as outras concepções desta natureza, é natural que seja perfectível, portanto, é portadora em seu âmago de incoerências e antagonismos. La ciencia como método de percepción – y no puede reclamar ser outra cosa –, está limitada, al igual que todos lós demás métodos de percepción, por su capacidad para recoger los signos exteriores y visibles de La verdade, sea lo que fuere esto ultimo. (BATESON, 2006, p. 40). Elaborar e efetivar pesquisas a respeito de fatos e dados, materiais e tangíveis, com regras, leis aparentemente inflexíveis e resultados previsíveis, hoje é uma remota possibilidade, posto que diante dos paradigmas contemporâneos se chega à conclusão que o observador influencia o resultado da pesquisa, ou seja, nada é tão hermético e preciso o quanto se crer. E recorrendo novamente a Bateson: "La ciencia indaga, no prueba." [grifo do autor] (2006, p. 40). Nas pesquisas sociais, tratando com a subjetividade humana, que é uma alternativa ricamente diversa, pode se fugir, infinitas vezes, a tudo que já foi anteriormente conjeturado. Talvez mensurar através de métodos científicos estabelecidos, fatos que existem, acontecem e estão plasmados nos domínios do senso comum, não seja suficientemente exequível e plenamente satisfatório. No livro Espíritu y Naturaleza, Gregory Bateson (2006) afirma que toda experiência é subjetiva, nossos cérebros fabricam as imagens que pensamos perceber. No cosmo está em constante movimento e mutação. Nada permanece estático todo o tempo. A ciência, através da física quântica, tem mudado e revolucionado seu próprio campo, levando à ponderação que nenhum conceito, teoria, corrente de pensamento, é definitivo. O que ontem era falso, hoje é verdadeiro. O que hoje é uma verdade indiscutível, ontem era motivo de desdém. "La ciencia a veces mejora 82 las hipótesis y otras veces las refuta, pero probarlas es outra cuestión, y esto tal vez no se produzca jamás salvo en el reino de la tautología totalmente abstracta. (BATESON, 2006, p. 37). Pesquisar no campo social requer comportamentos e práticas diversas, alternativas outras que não somente as adotadas nos laboratórios. [...] é necessário dizer que o objeto de estudo das ciências sociais possui consciência histórica. Noutras palavras, não é apenas o investigador que dá sentido a seu trabalho intelectual, mas os seres humanos, os grupos e as sociedades dão significado e intencionalidade a suas ações e suas construções [também] é preciso ressaltar que nas Ciências Sociais existe uma identidade entre sujeito e objeto. (MINAYO, 2000, p. 13). Na metodologia de pesquisa das representações sociais, tem-se aumentado a produção de trabalhos e literatura, contudo, Sá, (1998). avalia que é um campo que ainda permite – e solicita mesmo – algo como um espírito de aventura na perseguição do conhecimento científico. Neste tipo de pesquisa não há procedimentos cristalizados, portanto, a não observância de determinados aspectos não significa que o pesquisador/a seja descomprometido e/ou irresponsável. O que se exige é uma seriedade autêntica no engajamento do pesquisador em sua própria aventura metodológica. Em Anadón e Machado (2001, p. 39), se toma conhecimento que, até o final dos anos oitentas, a diversidade apresentada nos estudos das representações sociais era considerada salutar, “vista como um processo pacífico e harmonioso, reflexo da maturidade e da fecundidade que decorriam da riqueza inerente ao objeto das representações sociais”. Elaborando sobre as representações sociais, podemos divisar duas correntes de abordagem: a processual e a estrutural. A primeira, de natureza interacionista e privilegiadora dos conteúdos do discurso proferido pelo grupo social, e a segunda tendência prima por uma análise estruturalista e privilegiadora da forma do discurso, em detrimento de seus conteúdos. (ANADÒN e MACHADO, 2001). A perspectiva estrutural tem por finalidade evidenciar “as propriedades e os processos gerais além dos conteúdos particulares. [...] Nesta perspectiva a 83 representação social é considerada um conjunto de elementos ligados por relações.” (ANADÓN e MACHADO, 2001, p. 49-50). Esta tendência, apesar de identificar os elementos da representação através dos aspectos verbais do discurso – espontâneo ou provocado – das pessoas, não é o discurso o que importa, mas o processo cognitivo que está por trás. A abordagem processual, tendência mais adotada neste trabalho, que prioriza o estudo dos processos de produção das representações, consequentemente vai mais fundo na análise da objetivação e da ancoragem38. Ela investiga “condições e relações relevantes no tempo presente, recua ao passado para fazer uma arqueologia da ancoragem e avança para o futuro, trabalhando com o conceito de núcleo ou esquema figurativo como uma grade de leitura da realidade.” (ALVESMAZZOTTI, 2000, p. 67). Anadón e Machado (2001) colocam que nos estudos de pesquisadores brasileiros, assim como nos de Denise Jodelet, membro do Laboratório de Psicologia Social da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e grande representante da tendência processual, há uma predominância, quase que totalitária, da abordagem processual, ou ainda, a análise das representações sociais é feita prioritariamente baseada na análise dos conteúdos, produzida hermeneuticamente pelos discursos dos entrevistados. A pesquisa feita com base na primazia dos conteúdos – abordagem processual – entende que as representações sociais são resultantes da atividade mental procurando colocar em evidência a forma como a realidade é reconstruída pelo grupo e integrada a seu sistema de valores. A teoria das representações sociais é abordada através de várias perspectivas de estudo. O que foi descrito anteriormente jamais será o conjunto de abordagens da teoria em evidência. Para se ter uma vaga ideia do que isto pode representar, 38 Ver definição no capítulo anterior: Representações Sociais e Ecologia, p. 80. 84 Jodelet (1984)39 apud Sá (1998, p. 62-63), esboça seis diferentes métodos de abordagem: Uma primeira perspectiva se relaciona á atividade puramente cognitiva pela qual o sujeito constrói sua representação. [...] Uma segunda perspectiva acentua os aspectos significantes da atividade representativa. [...] Uma terceira corrente trata a representação como forma de discurso e faz decorrer suas características da prática discursiva de sujeitos socialmente situados [...] Na quarta perspectiva, é a prática social do sujeito que é levada em consideração. Para o quinto ponto de vista, o jogo das relações intergrupais determina a dinâmica das representações. [...] Enfim, uma última perspectiva, mais sociologizante, faz do sujeito o portador de determinações sociais e baseia a atividade representativa sobre a reprodução de esquemas de pensamento socialmente estabelecidos. Diante da profusão das distintas maneiras de conceber os fenômenos sociais, provavelmente pode acontecer que determinados estudos e pesquisas não se encaixem – nem outros se enquadrarão – de maneira precisa em uma das perspectivas listadas, pois “observa-se uma grande variedade de abordagens, não havendo uma metodologia ‘canônica’ nem mesmo entre os pesquisadores filiados a uma mesma corrente.” (ALVES-MAZZOTTI, 2000, p. 68). Também se percebe que as visões não se rivalizam, muito menos uma anula a outra, elas geralmente adicionam algo de novo à teoria mater, cujo autor é Moscovici. Aos pesquisadores/a, mormente se estiverem começando a enveredar no campo das representações sociais, Sá (1998, p. 64) aconselha: “escolher uma perspectiva teórica já constituída ou, se nenhuma o satisfaz, montar uma combinação consistente de diferentes perspectivas.”. Muito certamente, diante do exposto, nada impede que o estudioso possa se inspirar em várias fontes, se as tiver à disposição. Independentemente de toda diversidade, o que não se deve esquecer nas pesquisas deste formato são as questões que um estudo deste tipo se propõe a responder, ou ainda, que reflexões se desejam provocar, pois a teoria das representações sociais traz no seu bojo a proposta de compreender como o grupo interfere na elaboração psicológica que constitui a representação e como esta elaboração psicológica interfere no grupo. 39 JODELET, Denise. Représentation sociale: phénomène, concept et théorie. In: MOSCOVICI, Serge. (Org.). Psycologie sociale. Paris, France: PUF, 1984. 85 De igual maneira acontece em relação aos mapas mentais infantis, eles são fruto de uma relação inerente entre os seres humanos e o meio em que vivem. Este raciocínio é reforçado pela teoria sociointeracionista, que tem em Vygotsky um de seus maiores representantes: o meio exerce influência sobre os seres humanos e os seres humanos exercem influência, transformam e modificam o meio, ressaltando que esta influência recíproca acontece desde o momento em que se nasce, ainda no berço. Os mapas mentais são, em verdade, a representação da realidade ao longo do tempo; são as traduções individuais e idiossincráticas resultantes da forma como os indivíduos – sejam eles adultos/as ou crianças – organizam e compreendem o mundo no qual estão inseridos. Mapas mentais são a representação dos espaços geográficos como se acredita que eles sejam, baseados no sentido de pertencimento das pessoas. Fischer (1972, apud Anadón e Machado, 2001, p. 69) define mapa mental: O processo cognitivo pelo qual os indivíduos organizam e compreendem o mundo que os cerca, codificando, estocando, memorizando e decodificando as informações relativas às características de um ambiente. O mapa cognitivo é o produto desse processo: é a imagem mental que preside a maneira através da qual nós construimos nossa representação de um ambiente dado. Sobre o conjunto dos espaços nos quais nós vivemos: escola, lojas, vias, disposições de ruas, se formam dos mapas mentais que nos informam não sobre o espaço tal qual ele é, mas sobre a maneira que nós cremos que ele é. Naturalmente, as representações mudam, posto que “as imagens se modificam com a idade (ou o desenvolvimento pessoal) e pelo processo de aprendizagem (ou a prática). O apelo das imagens é também dinâmico por que se trata de ‘uma representação do mundo em um momento dado’ ”. (ANADÓN e MACHADO, 2001, p. 69). Ao longo da evolução da espécie humana e do desenvolvimento de cada indivíduo, ocorrem, entretanto, duas mudanças fundamentais no uso dos signos. Por um lado, a utilização de marcas externas vai se transformar em processos internos de mediação; este mecanismo é chamado, por Vygotsky, de processo de internalização. Por outro lado, são desenvolvidos sistemas simbólicos, que organizam os signos em estruturas complexas e 40 articuladas. (OLIVEIRA , 1997, p. 34). 40 Marta Kohl de Oliveira é licenciada em Pedagogia pela USP; doutora em Psicologia da Educação pela Universidade de Stanford, EUA e professora da Faculdade de Educação da USP. 86 Para as crianças, o mundo onde elas vivem se constitui um conjunto de fenômenos naturais e sociais indissociáveis, que desperta a curiosidade e o desejo de compreender o que se passa ao redor. Estas mudanças acontecem em grande velocidade e elas tentam apreende-las. Possuem enorme capacidade de adaptação por serem mais receptivas aos estímulos externos em presença de uma quantidade menor de idéias pré-concebidas. A curiosidade e as descobertas a respeito do mundo que as cercam faz com que o processo de cognição, formatação, construção e desconstrução das idéias seja mais rápido. Ainda baseada na pedagogia vygotskiana, Oliveira (1997, p. 35) comenta: Ao longo do processo de desenvolvimento, o indivíduo deixa de necessitar de marcas externas e passa a utilizar signos internos, isto é, representações mentais que substituem os objetos do mundo real. [...] Essa capacidade de lidar com representações que substituem o próprio real é o que possibilita ao homem libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter intenções. [sem grifo no original]. A representação social infantil está numa relação direta com a representação social do adulto/a, pois que se sabe da influência que a segunda exerce sobre a primeira. Além de uma certa quantidade de mecanismos ligados aos fenômenos de comparação social, entre outros fatores, as crianças constroem seus mapas mentais sobre determinados aspectos do meio, a partir das vivências que experenciam e da interação num contexto de diversos aspectos, tais como: conceitos, valores, idéias, objetos e representações sociais, inclusive a partir das manifestações dos adultos/as – que as “educam” e cercam – sobre o mesmo meio. Tentar perscrutar as representações sociais e mapas mentais infantis aconteceu em decorrência de se carregar o alento por uma educação pautada nos princípios norteadores de uma Ecologia humanizadora, pautada no respeito à diversidade, à alteridade, à sacralidade, à Gaia; e finalmente, por acreditar que os resultados deste estudo podem proporcionar novas reflexões, novos olhares, também e até influenciar positivamente educandos/as, educadores/as, enfim, seres humanos, na tentativa de compreender e compreender-se, ter melhor e mais real percepção em relação ao lugar em que vivem: o Semiárido, as Caatingas, ou qualquer lugar do cosmo a que se pertença. 87 4.2 Do Tipo da Pesquisa 4.2.1 Psicologismo/Fenomenologia Segundo o Dicionário Michaelis41: 2 1 fenomenologia: fe.no.me.no.lo.gi.a. sf (fenômeno+logo +ia ) 1 p us Ramo de uma ciência, o qual trata da descrição e classificação de seus fenômenos. 2 Med O mesmo que sintomatologia. 3 Filos Em Hegel, espécie de autobiografia do espírito, que transita do conhecimento sensível ao verdadeiro saber; em Husserl, método filosófico que visa a apreender as essências absolutas das coisas. Objetivamente, com relação à realidade, a Fenomenologia, ou Psicologismo, é a busca do sensível ou do que se vislumbra, que sensibiliza e cria valores e/ou referências através dos fenômenos vividos ou experimentados, dando ênfase ao subjetivismo e às percepções individuais. Emanuelle Coelho42 (2006, não paginado) coloca que: Fenomenologia é, de fato, uma investigação que busca a essência inerente da aparência. [...] Aparência é qualquer coisa de que se tem consciência. Qualquer coisa que apareça à consciência é uma área legítima da investigação filosófica. Além do mais, aparência é uma manifestação da essência daquilo de que é a aparência. Tem como fundamento teórico as ciências cognitivas e entende que o pesquisador – embora, neutralidade não aconteça de modo pleno – deve se manter neutro, buscando a sistematização e a idealização em relação ao fenômeno ou objeto pesquisado. De acordo com a teoria filosófica de Edmund Husserl, é o método de apreensão da essência absoluta das coisas, ou na impossibilidade do absoluto, é o que mais se aproxima disto. A fenomenologia encerra como elemento de estudo, o próprio fenômeno, isto é, as coisas em si mesmas, e não o que é dito sobre elas ou o que se crer que elas são. Desta feita, a investigação fenomenológica tenta acessar a consciência das pessoas através da expressão das suas experiências interiores, investiga a interpretação do mundo através da consciência do sujeito, formulada com base em suas vivências. 41 42 Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 30.Jul.2011. Psicóloga, graduada pela Universidade FUMEC. 88 4.3 Da Natureza 4.3.1 Pesquisa Qualitativa Os construtivistas sociais defendem que, o foco da pesquisa, as categorias teóricas e o planejamento da pesquisa podem ter uma estruturação flexível, sendo seu formato final definido no caminhar da investigação, isto quer dizer que os pesquisadores/as podem criar métodos e técnicas próprios. Feyerabend 43 apud Minayo, 2000, p. 17 observa: “Dada uma regra qualquer, por fundamental e necessária que se afigure para a ciência, sempre haverá circunstâncias em que se torna conveniente não apenas ignorá-la como adotar a regra oposta”. Farr44 citado por Sá (1998, p. 80), afirma que ”a teoria das representações sociais não privilegia nenhum método de pesquisa em especial.”. Isto não traduz que toda e qualquer metodologia pode ser adotada, independentemente de seu quadro teóricoconceitual, esta construção representa que as representações sociais não se vinculam obrigatoriamente a método algum, podendo o pesquisador lançar mão de diversos quadros teóricos específicos de referência. Continuando com Sá (1998, p. 81), ele faz uma apresentação esquemática pertinente aos métodos utilizados pelos vários teóricos das representações sociais, que facilita o entendimento da questão. [...] à perspectiva de Jodelet correspondem os métodos ditos qualitativos; `a perspectiva de Doise, os tratamentos estatísticos correlacionais; à de Abric, o método experimental. Mas, embora essas preferências possam ser originalmente verdadeiras, observa-se hoje uma importante interpenetração entre elas. Jodelet45 1989, apud Anadón e Machado, 2001: O fenômeno cognitivo enquanto objeto de estudo se dá a partir de conteúdos representativos colhidos em diferentes suportes como a linguagem, o discurso, documentos, práticas, dispositivos materiais. Com aproximações de natureza etnográfica, a tendência dos conteúdos opta prioritariamente, do ponto de vista metodológico, pela observação no meio, observações semi-estruturadas, entrevistas, análise de dados da natureza geralmente qualitativa. 43 FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1989. FARR, Robert. Theory and method in the study of social representations. In: BREAKWELL, G. M. & CANTER, D. V. (Orgs.). Empirical approaches to social representations. Oxford, England: Clarendon Press, 1993, p. 15-38. 45 JODELET, Denise. Folies et représentations sociales. Paris, France: PUF, 1989. 44 89 Este pensamento encontra eco em Minayo (2000, p. 23) que o reforça: A diferença entre qualitativo-quantitativo é de natureza. Enquanto cientistas sociais que trabalham com estatística apreendem dos fenômenos apenas a região ”visível, ecológica, morfológica e concreta”, a abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas. Com base nos teóricos acima citados, considerando ter sido uma abordagem que se guiou primordialmente pela subjetividade, ainda mais por ter um viés póscontemporâneo, baseada nos pressupostos da ecologia humana, a configuração foi a de uma pesquisa qualitativa, que em alguns momentos lançou mão de dados quantificados, posto que ambas as maneiras são legítimas e combináveis entre si. 4.4 Dos Métodos 4.4.1 Da Ética A metodologia para esta pesquisa foi adotada em consonância com as determinações da Resolução 196/96 da CONEP/CNS - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde - (BRASIL, 1996) “Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos” Por ser um trabalho cujo grupo participante de maior relevância foi composto por crianças, o projeto de pesquisa foi submetido e aprovado para execução pelo CEPComitê de Ética em Pesquisa da UNEB-Universidade do Estado da Bahia. (Anexo C). A segurança foi garantida às crianças envolvidas, adotando os seguintes procedimentos sugeridos pela resolução: 1. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – Apêndice A – assinado pelos paismães e/ou responsáveis, posto que os participantes eram garotos e garotas; tratamento respeitoso e cuidadoso, levando em consideração que foi um grupo de menor idade e por consequência ilegalmente incapaz e vulnerável, além de total submissão à autonomia e liberdade dos mesmos. A vontade deles foi fator determinante para que participacem do trabalho; 90 2. A metodologia adotada na aquisição de dados para a pesquisa não representou os riscos além dos possíveis no cotidiano escolar, quando do manuseio de lápis e papel; 3. Os trabalhos da pesquisa e seus resultados são permeados de grande relevância para a sociedade onde os indivíduos estão inseridos, considerando que é uma pesquisa de pressupostos sociobiodiversos, e ainda presumindo-se que os efeitos positivos a estas crianças retornarão, sem nenhum ônus para eles ou quaisquer outras pessoas. 4.4.2 Dos Riscos Trabalhos envolvendo crianças geralmente apresentam algum nível de risco, mínimo que seja. Tomando em consideração o comportamento naturalmente buliçoso e curioso da infância, a simples manipulação do material lúdico-pedagógico e instrumental – lápis, giz de cera, massa de modelar, tesoura, etc – pode, sem supervisão adequada, acarretar acidentes por mau uso. Durante a pesquisa, os cuidados pedagógicos rotineiros continuaram sendo utilizados para evitar esses riscos, inclusive e imprescindivelmente, a pesquisadora sempre esteve acompanhada pelos professores responsáveis por cada turma, a coordenação pedagógica local e, em alguns momentos, também pela direção da escola. Os instrumentos que foram utilizados ofereciam periculosidade mínima, a saber: lápis grafite e de colorir, giz de cera e papel. 4.5 Sobre as Ferramentas Utilizadas Os pesquisadores/as das ciências sociais são quase unânimes quanto à entrevista qualitativa, como um dos melhores instrumentos para a coleta de dados, pois por sua natureza ela concede ao pesquisador/a a possibilidade de obter dados mais verdadeiros posto que o entrevistado não se sente coagido. Ora, se sentindo livre e desobrigado, certamente as informações serão mais autênticas. 91 Alves-Mazzoti e Gewandsznajder, (1998) resumem que as pesquisas qualitativas, geralmente, usam uma grande variedade de procedimentos e instrumento de coleta de dados, com destaque para a observação, a entrevista em profundidade e a análise de documentos. Ainda segundo os mesmos autores, (1998, p. 168), “por sua natureza interativa, a entrevista permite tratar de temas complexos que dificilmente poderiam ser investigados adequadamente através de questionários, explorando-os em profundidade.” No campo das representações sociais é semelhante. Abric (1994)46 citado por Anadón e Machado (2001, p. 50-51) apresenta uma síntese dos métodos mais usuais na coleta de dados de representações sociais: os interrogativos e os associativos. "Entre os métodos interrogativos, podemos citar os seguintes: a entrevista aprofundada ou a entrevista guiada [...] uma técnica que é atualmente considerada indispensável aos estudos das representações sociais [...] e o questionário." Entre os métodos associativos estão as gravuras; os desenhos e suportes gráficos; a perspectiva monográfica e a associação livre, cujo emprego possui maior destaque. Anadón e Machado (2001) comentam que as gravuras permitem a associação de ideias e são comumente utilizadas em pesquisas feitas com comunidades que apresentam dificuldades para responder às interrogações clássicas; os desenhos e suportes gráficos proporcionam maior facilidade de expressão a populações específicas, assim como crianças. Outra maneira eficiente e muito utilizada é a associação livre, que consiste no seguinte procedimento: pede-se ao indivíduo que a partir de uma comanda – uma única palavra ou uma série delas – produza todas as palavras, expressões ou adjetivos que lhe venham à mente. Ainda quanto às vantagens do desenho, como manifestação concreta genuína dos mapas mentais infantis, podemos nos apoiar em Hammer (1958) comentado por Campos (2005, p.22) que justifica e lista algumas: 46 ABRIC, Jean-Claude. Pratiques sociales et représentations. Paris: France. PUF, 1994. 92 (a) O Desenho, técnica basicamente não verbal, tem a óbvia vantagem de ter maior aplicabilidade a crianças mais jovens. Vários especialistas [...] têm feito observações nesse sentido. Levy, empregando o desenho como um complemento, na psicanálise de crianças, mostrou-se impressionado com o fato de que as crianças acham muito mais fácil expressar-se através de desenhos do que de palavras. O teste projetivo não verbal é também vantajoso entre (b) os indivíduos sem escolaridade, (c) o mentalmente defeituoso, (d) os estrangeiros, como também os mudos, (e) os muito tímidos e retraídos, crianças ou adultos, (f) pessoas das classes sociais inferiores que, freqüentemente, se sentem inadequadas, com relação à sua capacidade de expressar-se verbalmente, e (g) aqueles de orientação concreta. 4.5.1 O Desenho Infantil Desenhar47 é, de algum modo, colocar numa determinada superfície, de forma tangível, o que se vai pela mente. Laïs de Toledo Krücken Pereira 48 comenta que a premissa de que a criança desenha menos o que vê e mais o que sabe de um objeto é um ponto de concordância entre diferentes concepções teóricas sobre o desenvolvimento do desenho. Trabalhos realizados e registrados sobre a expressão da atividade psicológica infantil através do desenho levam a compreender “que o indivíduo desenha o que sente, em vez de somente o que vê” (CAMPOS, 2005, p. 22). Consideravelmente, o desenho é, na atualidade, uma técnica projetiva de admirável validade e grandemente vantajosa, principalmente quando aplicada às crianças com menos idade, porque elas demonstram maior facilidade em expressar-se através de desenhos do que de palavras. É-nos muito importante saber que a psicologia do desenho infantil, na atualidade, visa objetivos variados e estuda diversos aspectos, tais como dimensionar as fases do desenvolvimento infantil, o caráter e suas expressões. Com relação ao desenho infantil, atualmente, foi abandonado o conceito de que o mesmo representa o produto de uma estética particular, sendo considerado como a expressão do modo como a criança percebe e compreende o mundo. Esta nova posição valoriza todas as relações que se determinam entre a totalidade psíquica da criança emocional e intelectual – 47 DESENHAR, v. tr. dir. Representar por meio de linhas e sombras; dar relevo a; formar; ter a forma de; descrever; [...] representar, tornar perceptível [sem grifo no original], projetar, delinear; intr. traçar desenhos; pr. ressair, acusar-se; aparecer, reproduzir-se na imaginação [sem grifo no original]. (Do lat. designare.) 48 Disponível em: <http://portal.unesco.org/culture/en/files/29712/11376608891lais-krucken-pereira.pdf/lais-kruckenpereira.pdf>. Acesso em: 21.06.2011. 93 no processo de maturação, e seu meio social e cultural, envolvendo também a educação sistemática a que se submeteu [sem grifo no original]. (CAMPOS, 2005, p. 14) A atividade do desenho pode fazer eclodir nas crianças – também nos adultos, sentimentos e vivências que, por alguma razão, a criança não se permite experimentar. Ele funciona como um ativador de várias linhas de associação de ideias, favorecendo assim a simbolização do que a criança pensa a respeito de determinados assuntos e a respeito de si própria, posto que os aspectos físicos da autoimagem e os psicológicos também são projetados. Desenhar é uma atividade primitiva e elementar que remonta os primórdios da humanidade, prova disto são as pinturas rupestres, que nos dão conta, através do desenho, do passado no planeta. Talvez por isto as pessoas sejam tão verdadeiras quando se propõem a colocar suas impressões numa superfície qualquer, através do desenho. Contudo, segundo os pesquisadores/as, os indivíduos se expressam de maneira mais racional em nível motor, intelectualmente mais conscientes de suas expressões verbais. Todavia, no desenho, se perde um pouco este controle sobre a criação e motricidade. Vygotsky comenta a existência de “certo grau de abstração” na atitude da criança que desenha, ao liberar conteúdos da sua memória. Hammer (1958)49 apud Campos (2005, p. 23) comenta o caso de um candidato a treinamento para se tornar psicanalista. [...] foi submetido a um tipo de exame psicológico, e comentou sua fuga a todo tipo de resposta que pudesse comprometê-lo, nos testes [...] Entretanto acrescentou: “Não pude controlar a maneira como saiu o desenho da mulher”. O candidato tentou expressar um sorriso muito doce, na mulher desenhada, mas apagou e desenhou, acabando a figura por exibir uma expressão ameaçadora. Se um adulto tem dificuldade em se defender pré-meditamente nas projeções grafomotoras, mais verdadeiras serão as projeções infantis, posto que a criança não se arma antecipadamente por ter a racionalidade menos ativa, por se orientar ainda, muito mais, por seu inconsciente50. É difícil resistir ao fascínio de uma folha de papel em branco diante de si, lápis ou caneta, muito menos se aliado a este contexto vem 49 HAMMER, Emanuel F. The clinical application of projective drawings. Springfield, Illinois, U.S.A. Charles C. Thomas – Publisher: 1958. 50 O adjetivo inconsciente é por vezes usado para exprimir o conjunto dos conteúdos não presentes no campo efetivo da consciência. Verbete definido por Jean Laplanche, extraídas do livro Vocabulário da Psicanálise: Laplanche e Pontalis, 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 94 uma leve sugestão, nem que seja apenas uma única palavra, para que se risque ou desenhe neste papel. Outro fator que deve ser considerado vantajoso na pesquisa através do Desenho como Técnica Projetiva é o “fato de que o mesmo é, essencialmente, uma técnica livre de influências culturais (Culture-free-technique) para uso antropológico, na investigação de outras culturas, eliminando o problema da linguagem.” (CAMPOS, 2005, p. 27). Os desenhos são formas concretas em nível motor e expressam de um modo primitivo os mapas mentais dos indivíduos. Segundo K. Machover (1949) 51 apud Campos (2005), há maior dificuldade em aplicar defesas estereotipadas nas projeções grafomotoras, consequentemente a verossimilhança será muito maior entre os desenhos e os mapas mentais, do que entre entrevistas e o que se pretende dizer. Geralmente não se costuma falar com precisão a respeito do que se pensa. 4.6 Como se deu a Coleta os Dados Adotou-se a combinação de dois métodos utilizados nas coletas de dados das pesquisas com representações sociais, a saber: o interrogativo, representado pela entrevista guiada; e o associativo, representado pelo desenho e a associação livre. Depois de recolher os TCLEs - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, previamente distribuídos e devidamente assinados pelos pais/mães e/ou responsáveis, numa entrevista breve, com uma pergunta simples, se inquiriu: O que vocês acham que é a Natureza? Faz-se necessário esclarecer que, se optou por uma pergunta simples e direta, sem observações ou provocações outras; como também não se comentou previamente a respeito de qual tema a garotada faria suas ilustrações, e como seria encaminhada a atividade no dia da aplicação do trabalho. 51 MACHOVER, Karen. Projección de la personalidad en el dibujo de la figura humana. Trad. Gutiérrez. Habana, Cuba. J. M. Cultural S.A: 1949.. 95 A compreensão é que se deveria influir o mínimo possível na resposta das crianças, ao que se desejava saber. Foram entregues folhas de papel sulfite, tamanho A3, dobradas ao meio. Na sequência, as crianças participantes foram convidadas, dentro de suas respectivas salas de aulas, que através do desenho, fazendo uso de lápis grafite, canetas hidrográficas, lápis colorido, giz de cera e do papel oferecido a cada uma, materializassem o que elas pensam e entendem que seja a natureza, orientando que, ao terminarem os desenhos, fizessem um pequeno texto em outra página do mesmo papel, lembrando que ele estava dobrado em dois, explicando o que ilustraram, e os porquês. A partir desta provocação, através da associação livre elas representaram graficamente suas compreensões concernentes ao questionamento formulado. Outros dois instrumentos utilizados na coleta de dados: o Diário de Campo e uma máquina fotográfica. O Diário de Campo, além de conter anotações sobre os dados cadastrais de cada instituição de ensino, assim como endereço, quantidade de crianças e outras, foi utilizado como um banco de memórias. As notas foram tomadas sempre nos dias das atividades, para se evitar a perda de dados úteis e preciosos, tais como a condução dos trabalhos, os comentários de algumas crianças, as falas dos professores e coordenadores das escolas que participaram. A máquina fotográfica foi utilizada para registrar imagens das escolas e os momentos de produção dos desenhos. 4.7 Participantes da Pesquisa: o Porquê das Escolhas Participaram do trabalho, crianças que estavam cursando o Ensino Fundamental I 1.ª a 4.ª série -, nas escolas públicas municipais de Paulo Afonso-BA, no ano letivo de 2011. A escolha das quatro escolas em foco teve três justificativas preponderantes: a primeira é o fato de serem escolas municipais que possuem o Ensino Fundamental I, considerando que algumas têm apenas Educação Infantil, ou Fundamental II. NOME DA ESCOLA SÉRIE 96 QUANT. DE PARTICIPANTES MASC. FEM. TOTAL POR ESCOLA VER. JOÃO BOSCO RIBEIRO 1ª 9 11 20 LIONS CLUBE 2ª 12 14 26 VINÍCIUS DE MORAES 3ª 13 10 23 GUIOMAR PEREIRA 4ª 13 12 25 47 47 94 TOTAL GERAL Tabela 1 - Escolas, séries, quantidade e sexo das crianças participantes. Fonte: Pesquisa de campo 2011. Segunda justificativa: são escolas públicas, localizadas na Zona Urbana. O propósito deste motivo foi dar continuidade e ampliar o trabalho de pesquisa anterior, por mim elaborada na especialização em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental (PEREIRA-SILVA, 2007), quando tomei duas escolas públicas municipais de Educação Infantil, para estudo de caso. E por fim, a terceira e mais preponderante justificativa: por estudar num programa público de pós-graduação; por ter formação acadêmica realizada totalmente em universidade pública; por ser militante a favor do ensino público de qualidade e acreditar que isto é possível a partir, primordialmente, das iniciativas particulares e transformações individuais. Parafraseando Cândido52, personagem de Voltaire no livro homônimo, pode-se dizer que, vivemos no melhor dos mundos possíveis, mas cada um cultive seu jardim! Foram escolhidas quatro turmas – uma por escola – de alunos regularmente matriculados no ano em curso, 2011, composta de ambos os sexos, após acordos e discussões com coordenadores pedagógicos e direção de cada escola. Não participaram da pesquisa apenas os estudantes que tiveram a recusa por parte deles próprios. 52 Cândido ou O Otimismo é um romance filosófico de autoria do pensador iluminista, Voltaire. 97 FEM. TOTAL QUANTIDADE MASC. 7 3 8 11 8 13 10 23 9 11 14 25 10 11 12 23 11 3 1 4 12 3 2 5 13 2 0 2 14 1 0 1 IDADE DAS CRIANÇAS TOTAL 94 Tabela 2 - Faixa etária das crianças participantes. Fonte: Pesquisa de campo 2011. Em cada educandário foi escolhida uma turma do Ensino Fundamental I, de séries diferentes, sendo a dinâmica organizada em função da primeira escola. A primeira sugerida pela diretora da escola, pois que estando às vésperas de provas, era a classe que já tinha feito as revisões necessárias, assim se tornaram mais disponíveis. A partir de então, nas instituições seguintes, foi pedido que as coordenadoras pedagógicas escolhessem uma turma das séries subsequentes e faltantes, usando critérios de disponibilidade na dinâmica das escolas. Como dito anteriormente, na especialização (PEREIRA-SILVA, 2007), coletei dados em duas escolas de Educação Infantil. Inicialmente, este mestrado proporcionou a perspectiva de continuar e ampliar a pesquisa na mesma área de concentração, com a probabilidade de corroborar ou negar as constatações do trabalho anterior. Para isto, admiti um universo maior, quatro classes, 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries. A curiosidade foi se aguçando e impulsionou para uma investigação, também no Ensino Fundamental II. Perante um convite para participar de uma banca no III Expressarte, prêmio de incentivo à produção de textos e artes plásticas para estudantes do Ensino Fundamental I e II, promovido pela Secretaria Municipal de Educação de PetrolinaPE, na escolha de desenhos e/ou pinturas, cujo tema foi Nossa Gente, Nossa Terra: Histórias que Encantam, se estabeleceu que os dados utilizados para a averiguação 98 e/ou comparação das representações sociais do Ensino Fundamental II, seriam proporcionados pelos desenhos – mapas mentais – avaliados neste evento. Uma razão decisiva para esta escolha também foi o fato de Petrolina-PE esta inserida no Semiárido, bioma Caatinga. Depois de terminada a coleta de dados nas turmas de Educação Fundamental I, diante de informações fornecidas por Dra. Samyra Crespo (1990), e da necessidade de averiguar e comparar os dados encontrados por ela num trabalho estatístico sobre a evolução da consciência ambiental no Brasil, tornou-se imperativo a inclusão de uma turma de discentes que estivessem cursando o 3º grau. A turma adotada era composta de estudantes da UNEB - Universidade do Estado da Bahia-Campus VIII, em Paulo Afonso-BA, sendo catorze graduandas – não estava presente o único graduando – do curso Licenciatura Plena em Biologia, 7° Período, cuja faixa etária era entre 21 e 40 anos. O critério de escolha foi o fato de ser a classe na qual se efetivou o estágio-docente da pesquisadora. Sobre informações detalhadas quanto aos universos e participantes desta pesquisa, vide Apêndice C. Para manter a segurança acordada no TCLE, e respeito à privacidade; levando em consideração que a maior parte do grupo participante foi composta de indivíduos de menor idade; e ainda em consonância com o tema abordado, os nomes das crianças foram omitidos, e, quando se tornou necessário a citação, foram substituídos por nomes não científicos de florescências ornamentais53. 4.8 Tentando Entender os Mapas Deve-se compreender que todas as informações têm igual importância para o pesquisador/a, deste modo, são capturadas e anotadas da maneira mais fidedigna possível, entretanto ele/a é meramente intérprete de um retrato que o informante tem, ou acredita ter de seu próprio mundo. 53 A mesma metodologia foi adotada com êxito na monografia de especialização desta pesquisadora, Pereira-Silva, 2007. Por ter sido uma metodologia exequível e satisfatória, adoto o mesmo método para esta dissertação. N. da A. 99 De acordo com Alves-Mazzoti e Gewandsznajder (1998, p. 170), a organização e captação destes dados se fazem através de: ...[um] processo continuado em que se procura identificar dimensões, categorias, tendências, padrões, relações, desvendando-lhes o significado. Este é um processo complexo, não linear, que implica um trabalho de redução, organização e interpretação de dados que se inicia já na fase exploratória e acompanha toda a investigação. Por ser uma pesquisa qualitativa, por estar pautada e estruturada nas teorias e conceitos das representações sociais, o método utilizado para avaliar os dados teve predominância da abordagem processual, fundamentada na primazia dos conteúdos, até mesmo porque a apreciação das representações sociais é feita, quase que totalitariamente, baseada na análise dos conteúdos apresentados e produzidos pelo grupo adotado. A análise de conteúdos costuma oscilar entre dois aspectos: a suposta precisão dos números e a tão sempre questionada subjetividade. Contudo, as abordagens qualitativas se tornam cada dia mais adotadas e valorizadas, utilizando-se tanto da indução quanto da intuição para se alcançar níveis mais profundos de compreensão dos fenômenos investigados. Diante da profusão das distintas maneiras de conceber os fenômenos sociais e das variados técnicas de tentar as suas interpretações, provavelmente pode acontecer que determinados estudos e pesquisas não se encaixem – nem outros se enquadrarão – de maneira precisa em uma das perspectivas manifestas e catalogadas, pois, como bem reflete Alves-Mazzotti (2000), que pela quantidade de abordagens raramente haverá um padrão metodológico, nem mesmo entre os pesquisadores/as adeptos de uma mesma corrente filosófica. A análise de conteúdo é um instrumento de investigação que proporciona enorme multiplicidade de formas e é adaptável a uma área muito vasta de aproveitamento, a comunicação. Olabuenaga e Ispizúa, (apud MORAES, 1999), reconhecem a importância do método: "a análise de conteúdo é uma técnica para ler e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos, que analisados adequadamente nos abrem as portas ao conhecimento de aspectos e fenômenos da vida social, de outro modo, inacessíveis." 100 A análise dos dados foi pontuada e conduzida por interpretações, tanto do conteúdo manifesto, como do latente, ou seja, se tentou apreender os sinais evidentes, os ocultos e o que estava escrito nas entrelinhas das ilustrações elaboradas. A natureza dos mapas mentais [...] está intimamente relacionada com as funções e operações da mente de encadear, relacionar, comparar, classificar, etc., ou seja, processar, de uma forma geral, as informações coletadas tanto do universo exterior (objetivas) quanto do interior (subjetivas). (HERMANN E BOVO, 2006, p. 95). Buscou-se e se encontrou muito, como diz Morin (2004), se encontrou até do que não se buscava. Por consequência, na busca deste entendimento se utilizou, majoritariamente, a abordagem de análise de conteúdo, indutiva-construtiva, conceito cuja teoria está subordinada à análise, isto é, resulta como um dos produtos dela. A abordagem dedutiva-verificatória é mais aceitável pela pesquisa tradicional por possibilitar maiores coeficientes de exatidão, rigor e sistematização, muito embora tenha suas limitações. A abordagem indutiva-construtiva toma como ponto de partida os dados, construindo a partir deles as categorias e a partir destas a teoria. "Sua finalidade não é generalizar ou testar hipóteses, mas construir uma compreensão dos fenômenos investigados." (MORAES, 1999. Sem paginação). Contudo, por também ter se levado em consideração e se utilizado como referência e comparação o trabalho da autora desta dissertação, quando da especialização na mesma linha de pesquisa, em algum momento se lançou mão da outra abordagem: a dedutiva-verificatória, onde a teoria antecede a análise e serve de fundamento para a mesma. Todas as informações e subsídios foram estruturados e organizados na tentativa de compreender e apreender as representações sociais e mapas infantis em relação à concepção que meninas e meninos portam sobre natureza, por consequência, Caatinga, Semiárido. Se faz mister compreender que uma análise ocorre de forma recorrente e cíclica, e não de maneira serial e linear. Ainda que se leve em consideração que a interpretação se constitui um elemento imprescindível em toda análise de conteúdo, muito mais quando de natureza qualitativa, averiguar minuciosamente, indagar, investigar, sondar, compilar dados, ler, decodificar – mesmo partindo de 101 pressuposições metodológico-acadêmicas sólidas e bem construídas possivelmente será sempre resultado da ótica particular e única do pesquisador/a. –, CAPÍTULO QUINTO ANALISANDO DADOS Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana. CARL GUSTAV JUNG 103 5.1 Tentando Captar Compreensões Encadear, relacionar, comparar, classificar, ordenar, separar, dicotomizar, rotular, catalogar, inventariar, listar, preceituar, conceituar... Como poder ressignificar estes impulsos que parecem ser invencíveis, tão prementes, seculares, quiçá, imanentes dos seres humanos, que aqui estamos tomando como mapas mentais? Os sujeitos são capazes de reelaborarem e refletirem tão fortes pulsões54? Até que se tenta, algumas raras vezes, fugir das aprisionantes, porém, cômodas sequências, das cadeias que aconchegam e torturam, sair da zona de conforto. Todavia, naturalmente e geralmente, o hábito e o instinto traem, e o que poderia ser uma construção e compreensão menos pragmáticas é nada mais que uma nova ordem classificatória, um novo mapa desenhado com os contornos das nossas interpretações individuais. Em que “tábua”, segundo qual espaço de identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos o hábito de distribuir tantas coisas diferentes e parecidas? Que coerência é essa — que se vê logo não ser nem determinada por um encadeamento a priori e necessário, nem imposta por conteúdos imediatamente sensíveis? Pois não se trata de ligar consequências, mas sim de aproximar e isolar, de analisar, ajustar e encaixar conteúdos concretos; nada mais tateante, nada mais empírico (ao menos na aparência) que a instauração de uma ordem entre as coisas [...] (FOUCAULT, 2000, p.10). Yi-Fu Tuan (1980, p. 17-18), discorrendo sobre o que ele considera Oposições Binárias, anui: "Os seres humanos tendem a segmentar os continuuns da natureza [...]. A mente humana parece estar adaptada para organizar os fenômenos não só em segmentos, como para arranjá-los em pares opostos." Enquanto as pessoas não encontram respostas plausíveis e satisfatórias, inconscientemente, inúmeras vezes conscientes, vão tentando colocar em ordem o que cada universo particular acredita ser desordem, ou caos, tentam separar, nomear, classificar, rotular, sentimentos que não se listam em ordem alfanumérica ou não estão estabelecidos de maneira formal, na tentativa de um suposto domínio sobre o Outro e nós próprios. Paradoxalmente, é buscada a construção do inteiro sem tentar unir as partes, ou até mesmo contrapondo-as. 54 Freud (1916), na obra Pulsão e suas Vicissitudes, define pulsão como sendo um "conceito situado na fronteira entre o psíquico e o somático", como o representante psíquico dos estímulos que se originam no corpo - dentro do organismo - e alcança a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo. 104 Algumas questões e aspectos da pesquisa, seus universos, geralmente têm planejamento e programação, todavia, nem tudo acontece como preveem e desejam os pesquisadores/as, tanto positivamente como de caráter negativo. Neste trabalho uma grata surpresa aconteceu. À revelia de não ter como propósito, nas escolas de Ensino Fundamental I, determinar uma quantidade paritária de crianças para ambos os gêneros, posto que, como foi dito anteriormente, participaram as crianças que demonstraram esta vontade, um fato não programado, mas, desejado, aconteceu: ao término da coleta de dados se constatou que um número igual de meninas e meninos participou da investigação, quarenta e sete crianças de cada gênero, totalizando noventa e quatro estudantes. A paridade espontânea foi desejada para evitar a pecha de uma pesquisa tendenciosa. 5.2 Sobre Meninas, Meninos e Seus Desenhos A partir deste ponto, será relatado e considerado muito do que se encontrou nas averiguações, entremeado com as teorias/percepções dos teóricos que respaldam esta dissertação e costurado com a subjetividade natural a todas/os e quaisquer pesquisadoras/es. As questões de gênero têm, cada dia mais, impulsionado a refletir de maneira profunda e aparadigmática em relação à masculinidade e feminilidade, yin e yang55, ou anima e animus, como definiu o psicólogo Carl Gustav Jung (2005)56. Figura 7 - O lado negro é o Yin e o branco o Yang; o pequeno círculo branco no lado negro significa que o Yin possui o Yang e, o círculo que o lado branco possui significa que Yang possui Yin. Fonte: <http://www.brasilescola.com/filosofia/yin-yang.htm> 55 Baseado na filosofia chinesa, o yin yang é a representação das duas polaridades energéticas: positiva e negativa, e, tomando como princípio a dualidade, o positivo não vive sem o negativo e vice e versa. O Yin representa a escuridão, o princípio passivo, feminino, frio e noturno. Já o Yang representa a luz, o princípio ativo, masculino, quente e claro. Disponível em: <http://www.brasilescola.com/filosofia/yin-yang.htm>. Acesso em: 23.Nov.2011. 56 Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem - os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o inconsciente. A personificação masculina do inconsciente na mulher - o animus - apresenta, tal como a anima no homem, aspectos positivos e negativos. 105 Para Jung, animus e anima são respectivamente o princípio masculino e feminino, cujas humanas e humanos são portadores. A mulher significa a matriz telúrica, o princípio criativo da sensibilidade, receptividade, intuição e contemplação. Jung denominava de anima ao arquétipo da mulher eterna que existe na psique de todos os homens. [...] O masculino simboliza o princípio ativo da força, da razão e da transformação. Para Jung, animus é o arquétipo do homem eterno que habita a psique de todas as mulheres. [...] Cuidar do casal de nossa alma é cultivar a convergência harmoniosa da sensação com a intuição, do pensamento com o sentimento; enfim, da razão com o coração. (CREMA, 1995, p. 137-138). Meninas, majoritariamente, se comportaram de forma mais tranquila, sossegada e responsável. Devolveram os TCLE’s em maior quantidade, posto que algumas crianças, mesmo sendo os termos assinados pelos pais, se esqueceram de levar. Garotas também demoraram um pouco mais para devolverem os desenhos, nas quatro classes. Mesmo que na 4ª série uma quantidade maior de garotos tenha ficado no bloco final, ainda aí, a maioria foi formada de garotas. Mostraram-se mais cuidadosas e preocupadas com a plástica. Até quando os desenhos foram simples, sem muitos elementos, os aperfeiçoaram e se detiveram na pintura e no colorido, se esmeraram nos detalhes. O desenho é uma das mais autênticas expressões do testando, uma vez que capta, em particular, conteúdos inconscientes, sem a sua intervenção. Embora ele possa até intuir que algo do seu interior, do seu Eu, irá torná-lo conhecido, mas não consegue ter o controle sobre o que será exposto. 57 (SILVA, V. G., 2007). Um exemplo deste zelo é o arremate dos desenhos feitos com canetas hidrográficas, ou com um lápis de cor mais forte, com ponta mais fina, dando um acabamento mais primoroso e preciso às ilustrações. O desenho de contorno exige tempo, paciência, dedicação e curiosidade [...] É de execução lenta, mas, importante na aprendizagem. Dependendo da paciência de cada um, é possível conseguir desenhos de grande beleza 58 expressiva. A 4ª série expressou bem a preocupação das meninas com o arremate, o cuidado com detalhes. Enquanto 10 meninas fizeram acabamento, 9 meninos não o fizeram. 57 Os Testes Psicológicos e as suas Práticas, Disponível em: <http://www.algosobre.com.br/ - artigos / psicologia>. Acesso em: 15.Nov.2011. 58 Disponível em: < http://www.webart.com.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=69&Itemid=43>. Acesso em: 21.Nov.2011. 106 Ainda na turma acima, um dos meninos contornou todo o desenho com canetas hidrográficas, entretanto não o preencheu com lápis colorido. (Figura 8). Na 3ª série a tendência foi quase a mesma, um pouco mais exacerbada, ou seja, entre 13, apenas um garoto fez acabamento com caneta hidrográfica e preencheu alguns elementos com lápis de colorir, não deixando de levar em consideração que a figura é uma representação minimalista59. (Figura 9). Um estudante devolveu sua ilustração apenas desenhada com lápis grafite, sem colorir. (Figura 10). Figura 8 - Desenho com contornos, sem preenchimento. Figura 9 - Desenho minimalista. Na 2ª série, nenhum dos 12 meninos fez acabamento nos desenhos, e das 14 garotas, metade o fez. Na 1ª série, semelhante à 3ª, somente 1 menino fez acabamento na ilustração e 5 gurias o fizeram, ou seja, sem remontarmos às causas, analisando o conteúdo das imagens capturadas no papel, isto nos leva a inferir que há, desde os primeiros anos, uma preocupação das meninas com o cuidado, detalhes, capricho, uma tendência a buscar uma estética mais rebuscada, isto aparece nos mapas plasmados em suas ilustrações. (Figura 11) 59 Ilustração constituída de detalhes essenciais, com pouca variação cromática, desprovida de excessos. N. da A. 107 Figura 10 - Desenho com grafite, sem colorir. Figura 11 - Desenho de menina do 4º ano. Remete a um bordado. 108 5.2.1 Sobre os Seres Humanos e Correlatos Uma criança da 2ª série perguntou a outra se ela não iria desenhar uma pessoa. A resposta dada foi: – Não, porque gente não é natureza. Neste caso se tem uma situação similar aos resultados do trabalho de especialização desta autora. Assim como nas ilustrações confeccionadas por crianças, na pesquisa de especialização, Ecologia na Educação Infantil: a Formação da Criança para a Permanência de Gaia. (PEREIRA-SILVA, 2007), a figura humana não está inserida na maioria esmagadora dos desenhos infantis. Dentre 94 crianças, apenas 14 desenharam pessoas. Tabela 3 - Figuras Humanas e Edificações. Fonte: Pesquisa de Campo 2011. Como demonstra a Tabela 360, das 14 crianças que desenharam pessoas, apenas 3 meninas – (Figura 12), o fizeram, o que se tornou, num primeiro momento, uma constatação curiosa. De 47 meninas colaboradoras da pesquisa, apenas 3 meninas da 1ª série desenharam uma figura humana, menos de 3% do total. Nas turmas de 2ª, 3ª e 4ª série, nenhuma garota sequer, ilustrou um ser humano, muito menos esboçou algo que remetesse a tal. Não seria intrigante perceber que as meninas, cujo princípio feminino a maioria traz latente, esquecem ou não entendem que a Natureza tem pessoas? Ou será que, por serem portadoras de atributos tais como dedicação e cuidado entendem tão cedo, inclusive nos primeiros tempos de vida, que a presença humana é uma ameaça ao planeta, por tabela, a si próprias, e assim sendo, já o protegem dos seus predadores naturais e milenares, os homens? Mies e Shiva (1993, p. 117): "Para colocar as mulheres e crianças em primeiro lugar é necessário, acima de tudo, 60 Para ver tabela completa, com todas as categorias, vide Apêndice D. 109 uma inversão da lógica que tem tratado as mulheres como subordinadas por criarem vida, enquanto os homens são superiores por a destruírem." Figura 12 – Pessoas em local fechado. Yi-Fu Tuan (1980), na obra Topofilia, trás alguns apontamentos que ajudam a compreender o fato das meninas não terem colocado pessoas nas suas gravuras sobre o que é Natureza. Os experimentos com jogos livres mostram que quando uma menina desenha um meio ambiente, é comumente, o do interior de uma casa, representado tanto como uma configuração de mobília sem paredes ou um simples recinto construído com blocos. Nas cenas das meninas, as pessoas e os animais, estão quase sempre dentro desse interior ou recinto e são, fundamentalmente, pessoas ou animais em posições estáticas. [grifos do autor]. (TUAN, 1980, p. 62). Uma possibilidade de leitura: para as meninas, em sendo o entendimento de natureza como um espaço amplo e aberto, não desenhar pessoas neste ambiente 110 escancarado, sem limites, que inspira vulnerabilidade, pode se caracterizar como uma tentativa de proteção advinda das reminiscências de quem ficou nas cavernas cuidando da prole. Os nossos humanos universos particulares são ilimitados e "líquidos", portando, por esta razão, extremamente complexos. A cada situação, ações e reações tão diversas quanto pode ser a dimensão do espírito humano! A similaridade é possível, a alteridade é inexorável. Diante da diversidade humana, encontramos neste trabalho de campo, dados que poderão ser agrupados por similitude e repetição, sendo, inúmeras vezes, expressivos muito mais por carregarem em seus cernes uma grande dos seres característica humanos: a dualidade e antagonismo. Quanto aos meninos, 9 deles ou 19% de 47 participantes, Figura 13 – O grande helicóptero. distribuídos entre as quatro classes, desenharam a figura humana, todavia, não desfrutando do ambiente, como num passeio, num parque, fazendo uma trilha, mas, quase que totalmente, as pessoas ilustradas pelos meninos sempre estão em atividades diversas que denotam movimento e sentimento de dominação. Erikson (1965) apud Yi-Fu Tuan (1980, p. 62): As cenas dos meninos, ou são casas com paredes trabalhadas ou fachadas com protuberâncias representando ornamentos ou canhões. Há torres altas nas construções dos meninos, maior número de pessoas e animais estão fora dos recintos ou prédios e há maior número de objetos se movimentando ao longo das ruas e intersecções. Junto com as estruturas altas, os meninos brincam com a ideia de colapso; as ruínas são construções masculinas [grifos do autor]. 111 Um menino desenhou pessoas dançando numa festa junina, outro desenhou pessoas num balão, e um terceiro, da 1ª série, desenhou uma pessoa dentro de um helicóptero, sobrevoando uma área bem arborizada, remetendo a uma floresta, com um rio ao lado, sendo as árvores bem pequenas, uma casa menor que as árvores, e o helicóptero maior que estes desenhos citados, dando a impressão de uma tomada em primeiro plano. A pessoa desenhada é menor que todos os outros elementos, inclusive menor que os peixes e borboletas que compõem a ilustração. (Figura 13). Aos questionamentos possíveis e elaborações: Balão, helicóptero, pessoa gigantesca. Seria uma maneira de ver a natureza de cima, de fora? (Figura 14). Através dos dados podemos deduzir que humana efetivamente, mentais a presença não está, nos das mapas crianças – ilustrações –, e nas poucas incidências, aparecem estáticas, em situação de reclusão e aconchego nas representações das meninas e em movimento e cenas de submissão e domínio nas ilustrações dos meninos. E, Figura 14 – A natureza vista do alto. em não presente, pouquíssimo ou presente, podemos deduzir que isto é resultado de uma construção mediada por adultos, educadores instituídos, ou não? Seus instrumentos, suas mídias? Ou estes desenhos são apenas mapas infantis de uma representação social coletiva. 112 À revelia das muitas variadas e possíveis leituras, análises e compreensões, a pesquisa realizada com crianças na Pré-Escola, bem como a desenvolvida no Ensino Fundamental permitiu inferir que, a figura humana está praticamente ausente do processo de representação da natureza, por conseguinte, dos mapas mentais traduzidos pelas ilustrações. As figuras estão povoadas por símbolos exóticos aos universos ecossistêmicos dos estudantes. Este fato deslocou a pesquisa para a necessidade de verificar este processo de representação no ensino superior, e a partir do resultado concluir que os achados da pesquisadora Samyra Crespo (2003) são efetivamente válidos. Os dados encontrados por Dra. Samyra Crespo (2003), indicam um dos caminhos possíveis para reverter ou minorar, que seja, quadro tão desolador, quando coloca como resultados estatísticos de suas pesquisas na área ambiental, que pessoas com nível superior adquirem conhecimento mais amplo, acurado, e entendimento mais preciso do que seja natureza, e as ilustrações confeccionadas por estudantes do 7º Período de Biologia da UNEB-Campus VIII, em agosto de 2011, mulheres, tende a corroborar estes resultados. A primeira informação que a pesquisa nos deu, já na sua primeira versão, e confirmada pelas demais, ao longo desses dez anos, é que a variável "nível de escolaridade" é realmente a mais importante, funcionando como "preditor", isto é, como determinante no padrão de respostas. Quanto mais alto é o nível de escolaridade, mais consistente é o interesse, o conhecimento e a preocupação com as questões ambientais. [...] A implicação mais direta que deriva desse dado é a que, aumentando a escolaridade da população, mais chances temos de ter, como sociedade, um compromisso maior com as teses do desenvolvimento sustentável. (CRESPO, 2003, p. 65). Os desenhos foram elaborados por 14 mulheres, com idade entre 21 e 40 anos. Das 14 participantes, 11 desenharam figura humana (Figura 15), e entre as 3 que não desenharam, 1 incluiu as pessoas como sendo Natureza, num pequeno texto que construíram para explicar a imagem (Figura 16). Ou seja, 85,7%, a maioria, entende – e/ou se entende – que seres humanos e ambiente estão imbricados, não há separação. A turma de estudantes de Biologia que participou desta pesquisa possuía o perfil detectado no censo de Educação Superior de 2009, divulgado pelo INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Segundo o resumo técnico do censo, que pela primeira vez adotou informações 113 individualizadas dos alunos do ensino superior do país, os novos dados mostram: "A educação superior brasileira, em 2009, é predominantemente formada por pessoas do sexo feminino, com idade de 21 anos para os vínculos de matrícula." (INEP, 2010, p. 18). Fato averiguado e evidenciado pela classe participante. Pedagogia é o terceiro curso que mais cresceu entre 2005 e 2009. Isto implica deduzir que as mulheres acessam e se envolvem cada vez mais com a educação formal superior, e assim sendo, adquirem maior número de informações a respeito das questões socioambientais, e, por conseguinte, também são as maiores propagadoras e multiplicadoras de preceitos e pressupostos necessários a uma melhor integração com o planeta, de princípios ecofemininos. Figura 15 - Natureza com figuras humanas. Figura 16 – Natureza ecossistêmica. 114 5.2.2 Das Edificações Apenas 15,9% das crianças do Fundamental I desenharam uma casa ou outras edificações quaisquer – vide Tabela 3. E neste quesito, as estudantes do 3º grau não se portaram de maneira muito diferente, apenas 21,4% desenharam alguma edificação. Vamos a mais um questionamento: O que leva crianças e adultos a perceberem suas habitações dissociadas do meio? Por que uma representação tão ausente, mínima? “É preciso também considerar que uma significativa parcela dos brasileiros tem uma percepção ‘naturalizada’ do meio ambiente, excluindo, homens, mulheres, cidades e favelas desse conceito.” (ProNEA, 2005, p. 17). Crespo (2003, p. 66-67), fundamentada nos resultados da pesquisa que coordenou, endossa o ProNEA, 2005, afirmando que o repertório cognitivo do brasileiro a respeito de meio ambiente é muito limitado, à revelia de uma pequena reversão nesta tendência. Quando pensam em “meio ambiente”, deixam de fora deste imaginário qualquer coisa que se relacione aos seres humanos e às suas criações. Em 2001, ainda 25% da população consideram que os índios não fazem parte do meio ambiente, nem homens e mulheres (30%). Quando da coleta de dados para a especialização em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, Pereira-Silva (2007, p. 104), a pesquisadora ouviu um pequeno diálogo travado entre crianças que cursavam Alfabetização: "Margarida: Vou desenhar uma casa! Lírio: E a natureza tem casa? Antúrio: Na natureza não tem casa, tem índio!" Estando todas as escolas em zonas urbanas (Figura 17), cercadas de construções, com vias de fácil acesso, ainda deste modo casas ou construções erigidas pelos humanos/as foram pouco lembradas. Outros pontos podem ser trazidos à tona para reflexão, tais como: a não percepção de si próprios enquanto sujeitos inseridos no ambiente, o sentimento de não pertencimento ao meio em que vivem ou sob que ótica veem o que está ao derredor. 115 Figura 17 - Estacionamento da Escola Municipal Guiomar Pereira. Foto: PEREIRA-SILVA, 2011. 5.2.3 Sobre Estrelas, Sol, Lua, Nuvens, Chuva e Rios Tabela 4 - Fenômenos Naturais Fonte: Pesquisa de Campo 2011 Estrela, sol, lua, nuvem, chuva, rio, lago e árvores, dentre outros, foram elementos associados à natureza, sendo o sol o símbolo mais lembrado, perdendo apenas para 116 a árvore. Dentre 94 crianças, 87 desenharam o sol, isto representa 92,6% da maioria. Da turma de Biologia, 71,4% o fizeram. Dos garotos/as, 46,8% desenharam sóis com características antropomórficas, todos sorridentes, quase todos acompanhados de nuvens. Apenas 4 garotos/as desenharam uma lua, e, estranhamente, nenhum/a participante da pesquisa desenhou estrelas. 5 garotos/as desenharam chuva, mas, a imagem estava sempre acompanhada de sol. Vale lembrar aqui um dado significativo da especialização (PEREIRA-SILVA, 2007). Crianças da Escola Municipal João Oliveira de Jesus, colégio situado no entorno do Raso da Catarina, portanto numa região mais quente que a sede, Paulo Afonso-BA, embora tenham desenhado sóis com rostos, as fisionomias eram muito compenetradas. Isto levou a inferir que esta presença tão "sisuda" partiu do pressuposto que a presença do sol na região se faz durante muito tempo, muitas vezes passando longos períodos de estiagem, dificultando o desenvolvimento das atividades agropecuárias, as mais comuns no local. Na localidade, a água não é um recurso abundante, ela chega nestas paragens, geralmente, de duas formas: chuvas e carros pipas. O quadro traduz a ideia que os adultos/as, por sua vez, traduzem em seus mapas mentais – geralmente equivocada e preconceituosa – a respeito da Caatinga e do Semiárido e que, naturalmente, refletem no imaginário de seus filhos/as: o sol é ruim. E a mídia contribui. Numa primeira abordagem sobre como a mídia vem tratando os assuntos de meio ambiente, é conveniente, portanto, começar pela televisão, evocando lembrança de uma fórmula que vem se perpetuando ao longo do tempo graças à boa receptividade do público e pontos preciosos na audiência: imagens e sons da vida selvagem. (TRIGUEIRO, 2003, p. 96). 47 infantes, metade das crianças do Ensino Fundamental I, e 8 mulheres desenharam rio, alguns com cachoeira. Nenhum desenho fez qualquer alusão à poluição das águas, ou de quaisquer outros elementos estranhos e destoantes do ambiente. É compreensível que metade das crianças tenham representado o rio em seus mapas mentais, posto que moram numa cidade banhada pelo Rio São Francisco, um rio imenso que as pessoas costumam traduzir como símbolo de abundância, 117 fartura e perenidade, mesmo o peixe estando longe de seus cotidianos, aparecendo apenas em 14,9% dos desenhos. Um elemento novo, que não apareceu na pesquisa anterior, foi o desenho do arcoíris, 9 infantes o fizeram. Estaria esta imagem associada ás questões de gênero tão discutidas na atualidade? 5.2.4 Sobre Árvores, Flores e Frutos Tabela 5 - Vegetação e Árvores Fonte: Pesquisa de Campo 2011 De acordo com os mapas mentais desenhados pelas crianças, a árvore é o elemento mais significativo para expressar o que se entende por natureza. 94,7% dos participantes desenharam árvores, ou seja, quase todos/as entenderam ou entendem que árvore é natureza, mesmo que as ilustrações remetam à modelos alheios ao cotidiano. Na maior parte das ilustrações, as árvores são de copas frondosas, geralmente coloridas e desenhadas com lápis verdes, fazendo-nos claramente rememorar a vegetação das fotos vistas nos livros que vêm de outras regiões do país, cujos biomas são diversos dos nossos. A Caatinga sempre surge de uma maneira inexpressiva e, quando aparece, é tratada de uma maneira preconceituosa. Numa pesquisa de campo para um dos módulos da especialização (PEREIRA-SILVA, 2007), a maioria dos entrevistados, na feira livre de Paulo Afonso-BA, disse achar a Caatinga feia e sem graça. Adultos pensando e concebendo o bioma sob esta estética, conduzem as crianças a pensarem da mesma forma. Qual a contribuição que a educação formal tem dado, 118 efetivamente, para que nossas crianças se apoderem de seus contextos, ao invés de tomarem outras realidades como suas? Voltemos às pesquisas de Crespo (2003, p. 67), para avivar a memória relacionada a esta questão. Embora cada vez mais habitem a programação da televisão reportagens sobre desastres ambientais que afetam grandes populações humanas, como foi o caso do derramamento de óleo na Baía da Guanabara pela Petrobrás, em janeiro de 2000, e o recente episódio da empresa Cataguazes que deixou sem água várias cidades ao contaminar um importante afluente da bacia do Paraíba do Sul, o imaginário das pessoas é capturado pelos santuários ecológicos, pelos programas do Discovery Channel e do National Geographic. A maior parte dos frutos era espécies tropicais, que a bem da verdade, são espécies comuns ao dia-a-dia dos partícipes. Apesar do fruto ser comum nos supermercados e feiras livres, a árvore da maçã é uma espécie exótica à Caatinga, não existente na região, no entanto é o fruto mais lembrado e desenhado (Figura 18), induzindo-nos a compreender que nossos livros didáticos são descontextualizados, fazendo com que tenhamos uma leitura livresca de árvores com copas espessas e plenas de maças. Ninguém se lembrou de árvores e frutas típicas da Caatinga, tais como, umbuzeiro, mangabeira, juazeiro. Ou esta representação é produto de um modelo de educação que valorou ecossistemas outros que não o Bioma Caatinga? Apesar das diferenças quanto à sensibilidade, informação e disposição para se envolver para se envolver nas soluções dos problemas ambientais identificados [...] um dado foi constante nas três versões da pesquisa e preocupa: predomina uma visão "natural" e "edênica" [grifos da autora] do meio ambiente. Independentemente da classe social, da escolaridade, da cor, do sexo, e da religião, os brasileiros consideram o meio ambiente como sinônimo de fauna e de flora. Um menino disse ter desenhado um pé de uvas, com copa frondosa, diferente de uma videira, pintou-a de azul mais claro e fez os frutos de um azul mais forte, usando caneta hidrográfica. Este desenho também pode reproduzir a temática acima. (Figura 19). Apesar de morar em pleno bioma Caatinga, nenhuma produção – ou quase – faz menção à vegetação mais presente na região. Nos mapas mentais destas crianças não estão presentes espécies naturais do bioma, tais como cactos, umbuzeiros e outras árvores nativas com as quais têm proximidade. Em nenhuma das figuras 119 havia o desenho de um mandacaru, palma ou xique-xique. 76 indivíduos desenharam flores, 38 meninas, 31 meninos e 7 mulheres. . Figura 18 – Macieiras. Figura 19 – Pé de uvas. 120 5.2.5 Fauna: Dos Mamíferos, Ovíparos e Insetos Tabela 6 – Fauna Fonte: Pesquisa de Campo 2011 Da fauna, os preferidos foram: as borboletas – mais ilustradas, pássaros e aves, sendo o urubu, ave da região, muito citado. Uma criança escreveu em seu texto explicativo que o urubu limpa a Natureza. As meninas desenharam o dobro da quantidade de borboletas que os meninos desenharam. Entre os animais domésticos, o gato foi o mais lembrado e entre os exóticos, o leão. Uma informação a título de curiosidade, posto que 39 crianças, 26 das quais eram meninas, desenharam borboletas. A borboleta, em diversas culturas simboliza a alma, ou ainda o princípio feminino, transformação, libertação. Crianças da Caatinga e Semiárido manifestaram nos seus mapas mentais imagens bem distantes para representar o meio onde estão inseridos. Certamente, urubus e borboletas são mais comuns no dia a dia destes meninos e meninas que os leões e ursos! Talvez, para compreender o fato, devamos ter em mente que estas espécies exóticas povoam suas mentes quase que diariamente, através dos programas e noticiários televisivos, se fazendo presentes em seus mapas mentais, ao lado de espécies nativas, muitas vezes mais evidentes que as últimas. 121 Caso bem peculiar foi um menino da 4ª série, que me interpelou afirmando: – Professora! Vou desenhar um menino jogando pedra num enxu 61. Perguntei-lhe, então: Você acha que isto é Natureza? Respondeu-me que sim. E assim desenhou. (Figura 20). A ignorância – falta de conhecimento – dos seres humanos faz com cometam atos inconsequentes, impensados muitas e vezes apenas repetindo um padrão, por não se apropriarem de informações adequadas que lhes deem subsídios. Matar algumas espécies que no senso comum são ruins e nocivas são traços deste desconhecimento dos ecossistemas no qual se está inserido, desconhecimento dos mecanismos complexos da natureza. Por não-conhecimento dos ciclos Figura 20 – Jogando pedra no enxu. ecossistêmicos, por não saber ou compreender o papel de cada elemento nestes sistemas, agredimos, eliminamos, ou tentamos extinguir, o que cremos ser agressores potenciais contra a raça humana, esquecendo ou desconhecendo que somos os predadores do topo na cadeia alimentar. Não apenas o enxu, mas, cobras, aranhas, sapos, ratos, baratas, serpentes, e muitas outras, são espécies sobre as quais, tanto desconhecemos a importância que representam para os ecossistemas quanto os efeitos, muitas vezes desastrosos de suas ausências. Apenas 1 garoto desenhou um sapo. 61 Enxu: en.xu, sm (tupi eixú) 1 Entom Nome comum de uma vespa (Brachygastra lecheguana), que ocorre no Brasil. 2 A casa desse vespídeo. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=enxu>. Acesso em: 13.Out.2011. 122 Todavia, a impressão que se tem a partir dos desenhos é que, à medida que vão passando para as séries seguintes, algumas diferenças vão se acentuando, como se pode ver no decorrer do trabalho. Exemplo: os meninos na 1ª série desenharam borboletas, quase tanto quanto as meninas. Na 2ª série, 7 meninas desenharam borboletas, enquanto apenas 2 meninos fizeram isto. Tabela 7 - Outros Signos - Fonte: Pesquisa de Campo 2011 Na Tabela 9 encontramos alguns signos com simbolismos que não se enquadram nas categorias anteriores. O coração, imagem que conduz naturalmente a associações tais quais: sentimentos, subjetividade, amor; foi desenhado por 9 garotas, 3 garotos e uma mulher. (Figura 21). Numa primeira leitura, associa-se natureza à sensações de bem estar, amorosidade. Embora o planeta, a Terra, não esteja enquadrado nas categorias anteriores, porta todas as categorias. Figura 21 – Corações. Muito provavelmente, todas estas 123 ilustrações possuem um histórico – muitas vezes profundo – para o fato de serem lembradas, sendo provável que as memórias de cada entrevistado/a dariam um trabalho. Fazendo uma conexão com os mapas de crianças do Fundamental II, da cidade de Petrolina, pude perceber que, mesmo não sendo o deflagrador das ilustrações a pergunta: O que é Natureza?, e sim, Nossa Gente, Nossa Terra: Histórias que Encantam, os símbolos encontrados – e isto foi surpreendente – são em linhas gerais, os mesmo que encontramos nas escolas de Paulo Afonso-BA. Tuan (1980) admite que, num mundo tão ricamente simbólico, objetos e fatos assumem significados vários, mudando de acordo com a visão de cada indivíduo. O que é familiar, íntimo para uns é estranho e arbitrário para outros/as. Os significados de muitos símbolos são orientados pela cultura. Podemos dizer que os seres humanos têm uma tendência para estruturar os seus mundos com um número limitado de categorias, que frequentemente incluem substâncias, cores, direções, etc., mas, a ordenação detalhada dos componentes varia muito de cultura para cultura. (TUAN, 1980, p. 26). Tomando como base alguns resultados deste trabalho e da pesquisa anterior, Pereira-Silva (2007), observa-se que as escolas, mesmo tendo feito avanços, em linhas gerais, não têm desenvolvido projetos pedagógicos que contemplem o dia-adia do Semiárido, assim sendo, nem o convívio de maneira cotidiana com a realidade circundante parece deixar seus habitantes mais inteirados do contexto diário que os cercam, notando-se que representações exóticas permeiem suas percepções. Numa educação contextualizada, esta percepção é o que se deveria levar em conta, seria o ponto de partida para a construção de um projeto real e significativo dos currículos escolares. “Cabe, portanto à escola, possibilitar um tipo de conhecimento que permita que os sujeitos possam dialogar e refletir sobre a realidade que os envolve e, assim, intervir de forma mais responsável e comprometida.” (SOUZA, 2005, p. 29). No Semiárido, o acesso a livros didáticos apropriados às crianças e adolescentes ainda é muito limitado, quase não existe, fora o fato de que o material didático disponível não possui a multidisciplinaridade desejada, muito menos proporcionam a 124 ligação/conexão entre as áreas dos ‘saberes’. Desconheço escolas que possuam livros que contextualizem a Caatinga em todos os saberes. Observando, e nem muito detidamente, percebe-se que as cartilhas de Alfabetização adotadas na região do Semiárido estão povoadas de seres ou objetos que não fazem parte da rotina dos meninos/as, que muitos jamais viram ou verão tais criaturas ou coisas ao longo de suas vidas. Como estamos educando nossos garotos/as? Que tipo de educação temos disseminado, como educadores/as que somos? Estamos atentos aos espaços que frequentamos? E o nosso ‘pertencer’? O que leva nossos estudantes a não se perceberem nem ‘pertencerem’ ao ambiente onde vivem? O ProNEA e o Referencial Curricular para Educação Infantil contribuem de fato, e assim sendo deveríamos nos valer deles para a elaboração de propostas curriculares contextualizadas, ou são apenas mais dois manuais nas prateleiras de nossas estantes, sem nenhum valimento? Todo educador e educadora deveria refletir se contribui para uma ação coerente entre o educar e o pensar ecológico. Os mapas mentais das crianças a respeito da natureza e ambiente, nada mais é que um conjunto da vida diária deles e o discurso dos adultos, transformados, reproduzidos e reelaborados, algumas vezes. Os desenhos mostram que a Caatinga e o Semiárido não estão presentes de forma efetiva nas representações sociais dos garotos e garotas que colaboraram com esta investigação. Não existem nos desenhos: uma flor de mandacaru; um juazeiro; um tatu ou um preá, no entanto lembraram do leão, do elefante, da macieira. O meio ambiente é um elemento que deve ser considerado mas, em primeiro lugar, constitui uma fonte de possibilidades a serem exploradas com imaginação e racionalidade. Analogamente, se o desenvolvimento harmonioso deve levar em conta as necessidades da população, deve também incorporar suas riquezas culturais e seus conhecimentos [sem grifo no original]. (UNESCO, 1998, p. 28) Agindo com descaso, educando as crianças com concepções adultas equivocadas e estrábicas, creio que, num futuro não muito distante, restará apenas uma canção romântica que nos exortará a uma reflexão mais profunda de um presente 125 construído por um passado irresponsável e despreocupado com as causas socioecológicas, que implica dizer um passado sem a preparação justa e competente para um mundo sustentável. 5.3 Ilustrando Probabilidades Os desenhos infantis são a reprodução concreta dos mapas mentais das crianças sobre a representação social da natureza, no bioma Caatinga, mapas que, por sua vez, são uma representação geral da compreensão coletiva dos adultos com as quais convivem. Os símbolos se repetem. Se a representação de Natureza, tanto na Pré-Escola quanto no Ensino Fundamental se ancora na representação de plantas e bichos, excluindo-se, quase que majoritariamente a figura humana e; nos mapas representados pelas estudantes da universidade, apesar de já incluírem a figura humana, também se percebeu a pouca frequência de qualquer estrutura que se relacione com os seres humanos e suas criações, deduz-se que urge uma revisão dos processos formativos que possam contribuir para a instauração de uma nova consciência ecológica em todos os níveis de ensino onde a espécie esteja totalmente integrada aos ecossistemas. Grande parcela dos participantes não associa, se percebe e/ou se sente inserida, pertencente ao ambiente, à Natureza. Este dado aponta que a visão dicotômica dos adultos prevalece de alguma maneira, também nas representações infantis? Se prevalecer, isto leva ao entendimento que adultos/as e educadores/as, em quaisquer circunstâncias e níveis, continuam disseminando esta visão, da qual são portadores. Ou será que trazemos latente uma tendência à dissociação? O coração ilustrado por 12 crianças, 9 meninas e 3 meninos, leva à suposição que para alguns/as, a relação seres humanos-natureza se estabelece por um viés extremamente subjetivo, haja vista que este símbolo está carregado de um sentido emocional, um símbolo muito mais psíquico. Também se pode inferir que tenha uma 126 relação direta com as questões de gênero, o traço ecofeminista, posto que na sua grande maioria foi representado pelo sexo feminino. Por que tantas borboletas? (Figuras 8, 9, 11, 13, 18, 22). Outra representação que desperta vivo interessante. 39 crianças, 26 meninas, portanto o dobro dos meninos, e 13 meninos, desenharam uma ou mais borboletas. O termo grego psyche tinha originalmente dois significados. O primeiro deles é ‘alma’ e o segundo era borboleta, que simbolizava espírito imortal. Na mitologia grega a personificação da Figura 22 - Borboletas e arco-íris alma – Psiquê – era geralmente representada por uma figura feminina, mais menina que mulher, com asas de borboleta (Figura 23). As crenças gregas diziam que quando o espírito se desgarrava de um corpo, ele tomava a forma de uma borboleta.62 Portanto, se em várias civilizações a borboleta significa alma, espírito, diante do grande número de representações, o raciocínio leva à seguinte construção: não será esta uma maneira de se autorrepresentar na Natureza, posto que, o corpo físico simboliza algo mais concreto e transgressor? Ou, a alma e a natureza são feitas da mesma essência? 62 Chevalier, Jean, 1906 - Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números) /Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, com a colaboração de: André Barbault...[et al.]; coordenação Carlos Sussekind; tradução Vera da Costa e Silva...[et al.]. - 19º ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 138-139) 127 Em um esquema cosmológico, uma substância imediatamente sugere uma cor, que por sua vez sugere uma direção, o emblema animal daquela direção, e talvez um traço da personalidade humana ou um estado de ânimo. Em um mundo tão ricamente simbólico, os objetos e eventos assumem significados que para um estrangeiro pode parecer arbitrários. Para o nativo, as associações e as analogias estão na natureza das coisas e não necessitam justificação racional. (TUAN, 1980, P. 26). Levando em consideração que os significados de muitos símbolos são expressões da cultura de um grupo; diante da profusão de símbolos exóticos nos mapas mentais das crianças e representações ilustradas de espécies pouco familiares ao bioma Caatinga, o número de interrogações e questionamentos aumentou, ao tempo em que ampliou as inquietações que moveram e deram origem ao objeto da pesquisa. Figura 23 - Hesitation of Psyche. Por Guillaume Seignac Tentando apreender os resultados encontrados de maneira mais ampla, poderia se inferir que as representações sociais – e os mapas mentais corroboram – em relação à natureza, das crianças do Ensino Fundamental I, de 1ª a 4ª série, das escolas 128 públicas municipais de Paulo Afonso-Bahia, são partes de um coletivo, portanto, de semelhante teor dos adultos. E se o conteúdo é semelhante, trazendo alguns traços do "estranho" ao ecossistema e elementos que remetem a outros bem mais distantes, verificação efetuada há 6 anos por PEREIRA-SILVA, 2007, é pertinente deduzir que as práticas docentes, se têm se transformado, é de modo lento e paulatinamente, posto que, se nota alguns sinais de entendimentos mais contextualizados. Ou seja, fazemos um caminho de pequenos passos, porém, estamos fazendo. Ou ainda se pode cogitar que, mesmo que tenham mudado, e continuem mudando as práticas docentes, o quotidiano das crianças fora de suas salas de aulas continua prevalecendo, à revelia dos conteúdos com os quais entram em contato quando na escola. Desta feita, a educação formal institucionalizada provoca mudanças, sim, contudo, em longo prazo e não é capaz de – sozinha – dar conta de todo o processo educativo. A educação ambiental deve ser estabelecida em todos os âmbitos, permear todas as instâncias do conhecimento, em todos os níveis. Mesmo que algumas destas modificações se efetivem e se tornem perceptíveis e percebidas quando em formação superior, em presença de um número maior de informações, determinados tipos de representações coletivas permanecem presentes, implicando dizer que a educação formal é apenas uma das alternativas para se mudar um pouco o que virá, o que se viverá. Entretanto, as preocupações são pertinentes e persistem levando em consideração os resultados das últimas constatações divulgadas pelas organizações científicas. A revista Carta Capital, número 431, Ano XIII, de 14 de fevereiro de 2007, tem a seguinte manchete na capa: Aquecimento Global: A Ciência e a ONU já não têm mais dúvidas. A reportagem do título diz que, por incrível que pareça, o relatório do Painel Intergovernamental das Alterações Climáticas da ONU divulgado em Paris, no mês de fevereiro do mesmo ano – é impressionante –, apontam que o diagnóstico, o prognóstico e terapia recomendada pouco mudaram em relação ao de 2001. Também recordar a COP 15 - 'Acordo de Copenhague' – acordo? –, em 2009, cujo conteúdo é formado por apenas 12 parágrafos, não preenchendo, sequer, 3 páginas e sem nenhum valor legal, corresponde a ter e justificar grande apreensão. 129 De forma breve, as assustadoras perspectivas continuam as mesmas ou até piores, no entanto, nós, enquanto sujeitos fazedores do porvir, mudamos pouco ou quase nada de nossos comportamentos. Algumas pessoas, membros da sociedade civil, que tiveram oportunidade e ainda acreditam numa possível transformação e reversão do painel atual, tentaram ser ouvidos na COP 15, mas, foram afastados e desencorajados pela polícia dinamarquesa,63 com bastões, bombas de gás lacrimogêneo e sprays. Como podemos educar crianças se somos adultos/as mal educados? Muito sabiamente reflete Krishnamurti, (1980, p.100): "O problema, portanto, não é a criança, mas o pai e preceptor: o problema é educar o educador." Ainda não somos adultos/as ou educadores/as suficientemente empoderados de conceitos ecológicos e socioambientais éticos, por conseguinte não temos competência para implementar práticas sustentáveis e mudar padrões caducos e preconceituosos. E eis como, geralmente, caminhamos nós: seres humanos adultos e renitentes a repetir e difundir velhos padrões e equivocadas compreensões, perpetuando enviesadas representações. Não se dá o que não se tem. Alguns garotos fizeram ilustrações bem cuidadas, assim como algumas meninas não se esmeraram muito em seus desenhos, todavia, notadamente, os desenhos das meninas são mais bem acabados e cuidados que a maioria dos meninos. Se tomarmos como referência os números da Tabela 7 - Outros Signos, averiguaremos que meninos também desenharam corações – 3 deles –, mas, foram os que mais desenharam signos que simbolizam 'dominação'. 10 garotos desenharam: avião, helicóptero, trator, balão, barco, navio e outros, enquanto que apenas uma menina desenhou um carro guardado dentro de uma garagem, numa casa. Nas ilustrações das crianças, sobretudo nas reproduções das meninas, foi possível identificar elementos que denotam princípios ecofeministas, assim como: cuidado, zelo, a presença de sentimento. Seria este "saber cuidar" um comportamento ancestral de origem antropológica? Ou um atributo espiritual imanente ao feminino, do anima, princípio feminino latente em todas as pessoas? 63 Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/multimedia/2009/12/091216_copenhagueviolencia_video.shtml>. Acesso em: 20.Fev.2012. 130 A relevância ecológica desta ênfase na "espiritualidade" reside na redescoberta do aspecto sagrado da vida, de acordo com o que a vida na Terra só pode ser preservada se as pessoas começarem de novo a ver todas as formas de vida como sagradas e respeitá-las com tal. (MIES E SHIVA, 1993, p. 29). As pesquisas indicam que o sexo feminino continua à frente da educação – principalmente do Pré-Escolar ao 2º Grau –, também na educação não formal. Embora saindo em desvantagem — eram 10,8 milhões em 1970 contra 17,7 milhões de homens —, o número de estudantes femininas nas universidades aumentou sete vezes nas últimas quatro décadas nos 96 países pesquisados pelo Banco Mundial e atingiu 80,9 milhões em 2008. No mesmo período, a quantidade de homens no ensino superior cresceu apenas quatro vezes, para 77,8 milhões. Além de dominarem os bancos do ensino médio e das universidades, o melhor desempenho das mulheres já 64 acendeu alerta nos países desenvolvidos. (D'ANGELO, 2011) O Censo 2010 diz que cresceu a diferença entre o número de homens e mulheres, ou seja, temos muito mais mulheres no Brasil e menos homens. Sendo as mulheres em número maior, sendo a Pedagogia o terceiro curso de graduação que mais cresceu nos últimos anos, e se esta tendência continuar prevalecendo, será correto pensar que as representações sociais das crianças e os mapas infantis poderão ter maior influência pelos princípios ecofeminista, dos quais a maioria das mulheres são portadoras? É provável. Quanto às orientações do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil e o ProNEA - Programa Nacional de Educação Ambiental, a respeito de uma educação escolar contextualizada, holística, não parecem ser, ainda, pressupostos que orientem efetivamente a Educação Ambiental das escolas municipais participantes da pesquisa de campo, haja vista a invisibilidade de elementos e símbolos do bioma local, a Caatinga, nos mapas infantis. Não somente nos infantis, também nos mapas das mulheres que fizeram parte do trabalho. Entretanto, todas estas construções e conjecturas são, apenas, resultados de um sentimento, de uma dedução não conclusiva, não definitiva. Porque, afinal, como elabora Marques, (2011, p. 5): "A individualidade não é uma pessoa, mas um 64 Ana D'Angelo, 2011. Acesso à educação formal ajuda mulheres a conquistar espaço no mercado de trabalho. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2011/09/19/internas_economia,251378/acesso-a-educacao-formal-ajudamulheres-a-conquistar-espaco-no-mercado-de-trabalho.shtml>. Acesso em: 20.Fev.2012. 131 sistema simbólico. A subjetividade, considerando a dimensão abismal do inconsciente, 'nosso infinito particular'." Assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto "inconsciente" mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão. (JUNG, 2005, p. 20). Em presença de alguns dados encontrados aos quais se conseguiu acessar, as informações levam a elaborar que a consciência ecoambiental ainda é algo superficial, não profunda, não transformadora. A população ainda não se apropriou, não internalizou uma ecologia ampla e real que possa transformar pessoas e coisas, então, acontecendo nestes moldes, não há ações impactantes nos costumes e atitudes coletivos. Em linhas gerais, as ações são isoladas, descoordenadas, desorganizadas, que mesmo sendo louváveis, dificultam um profundo “fazer” ecológico. Uma via possível para a resolução destas questões e transposição destas fendas e abismos é a construção de pontes, inúmeras se necessário, todavia todas elas construídas de um mesmo material: amor, compreensão e respeito à alteridade; erigidas com os mesmos objetivos: agregar, unir e conduzir a humanidade ao engajamento na busca de uma transformação mundial que assegure às gerações porvindouras e atuais, uma condição de vida pautada na igualdade e na justiça, onde todos e todas serão incluídos e inseridos socialmente. O melhor projeto de mudança? A mudança do Eu. CAPÍTULO SEXTO ALGUMAS IMPRESSÕES SOBRE O QUE SE IMPRIMIU Los humanos pareceríamos desear que nuestra lógica fuese absoluta. Actuamos como basados em el supuesto de que es así, y entramos en pánico cuando se esboza el más leve signo de que es así o de que podría no ser así. GREGORY BATESON 133 6.1 Gente Grande, Meninas e Meninos: Do Que Não Está Impresso Uma triste e desoladora constatação: moramos, vivemos, estamos no bioma Caatinga, entretanto, ele não está em nós! Como compreender algo, para mim, tão enigmático? Parafraseando Marques (2011), ouso dizer que a alma é o ecossistema mais complexo que conheço até então! Esta dissertação conduziu a muitas outras perguntas e a algumas reflexões, entre tantas. Uma de muitas é que as fronteiras, os sítios e os limites são determinados pelas individualidades de uma comunidade. Cada membro do grupo representa o Uno que juntos constituem o Diverso, e a tendência natural é que cada Um se sinta pertencer e se faça ser aceito pelo Diverso, assim, todos vivem numa inter-relação, retroalimentada inconscientemente, cúmplice e silenciosamente. A visão dicotômica, separatista, classificadora, está de tal modo incrustada nos arcabouços mentais humanos, que as pessoas chegam ao cúmulo de, inúmeras vezes, matarem o que há de melhor no Outro, quando não chegam ao nível de assassinar o Outro, ainda que isto custe a própria existência. E isto é válido quando se avalia a relação seres humanos-Gaia. Ela é a Outra que acolhe, aconchega, aprovisiona, embora, estes últimos atributos citados não sejam considerados predicados relevantes quando diante de humanos arroubos consumistas e sentimentos de proprietários com eternos poderes de usufruto. Nas tentativas de se fazer aceitar pelo grupo do qual fazem parte e se sentem "pertencer", ainda que isto se dê de maneira transitória, os sujeitos se valem de todos os meios e artifícios, representações, conscientes ou inconscientes, para se sentirem reflexos e virem concretizados seus desejos de completudes. As representações sociais são, comprovadamente, uma das maneiras de compartilhar ideias, sentimentos e a alternativa real de compartilhar os saberes coletivos de um determinado grupo social. 134 O mundo está caminhando para um colapso ambiental e, se nada for feito, os custos da paralisia podem ser 'colossais' para as economias e a humanidade.65 (VIALLI, 2012). Segundo a jornalista, o alerta foi dado pela OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, grupo de cooperação internacional formado por 34 países, sendo na sua maioria, ricos. E é assim que caminha a humanidade, e nós, moradores do Semiárido, vamos juntos, compartilhando esta trilha de destruição global: poucos cooperando com a mudança para um mundo sustentável e muitos contribuindo com a gota diária de aniquilamento da própria espécie. Certamente, a invisibilidade da Caatinga, se assim continuar acontecendo, é uma das vias condutoras ao esgotamento ambiental planetário. Os mapas mentais infantis falam do quanto estamos distantes do meio que nos rodeia. Por conseguinte é certo inferir que, se não temos a sensibilidade de perceber a Caatinga, bioma no qual vivemos, como viremos a nos sensibilizar com realidades tão distantes? Vandana Shiva, (2003)66 diz que as monoculturas da mente fazem a diversidade desaparecer da percepção. A arrogância humana e o pretenso saber, que todos supõem possuir, faz com que se calem ideias que, se vistas humildemente e com sabedoria, seriam o melhor caminho a trilhar, ou, no mínimo, uma nova possibilidade de construir uma história diferente, menos preconceituosa, menos homicida e mais igualitária. Mas, cada um é o que é, e transpor os limites de si próprio é uma tarefa descomunal. Talvez o traço mais marcante da civilização moderna tenha sido a ideia de que o ser humano é tão mais humano quanto mais ele domina a natureza e os outros homens, tão mais homem quanto mais ele consegue estender o seu controle sobre todos os níveis e planos de existência. (UNGER, 1991, p. 54). Por mais que os indivíduos – que não se dividem, indivisos – tentem se tornar receptivos aos conhecimentos de outros sujeitos, e ainda se tornando, a percepção e apreensão dos fatos, sensações e sentimentos, todos, sem exceção, sempre serão embebidos de ótica muito particular, idiossincrática, como se todos/as usassem óculos, sendo o grau das lentes, diferentes, ou no máximo, muito parecidos. Naturalmente, cada criatura verá a mesma coisa de maneira diversa. 65 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/1062540-mundo-caminha-para-colapso-ambiental-alerta-organizacaointernacional.shtml>. Acesso em: 15.Mar.2012. 66 Monoculturas da Mente. Global Editora, 2003. 135 Maneira certa ou errada? Nenhuma das opções. Distinta, diferente. Se não conseguimos compreender o Outro, isto é resultado da não-compreensão de nós próprios, é a ausência de conhecimento do Eu. Partindo deste princípio é lícito entender que, as sociedades podem ser melhores quando suas estruturas coletivas estiverem compostas por individualidades autorrevolucionadas, quando os povos e populações planetárias forem plenamente conhecedores de suas peculiaridades e idiossincrasias, e empoderadas dos saberes que proporcionam o equilíbrio de suas ações. Paradoxal e simultaneamente, o autoconhecimento profundo do sujeito, quanto indivíduo, o possibilitará sentir a alma do Todo, a alma da Mãe-Terra. E desta feita, os mapas mentais infantis e adultos, da Caatinga, muito provavelmente, corresponderão à realidade. REFERÊNCIAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: desenvolvimentos atuais e aplicações à educação. In: CANDAU, Vera Maria. (Org.) 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APÊNDICE APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos Alunos para Pesquisa em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental APÊNDICE B – Roteiro para a Coleta dos Dados APÊNDICE C – Dados dos Universos e Participantes da Pesquisa APÊNDICE D – Tabela Geral com Todas as Categorias da Pesquisa APÊNDICE A TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DOS ALUNOS PARA PESQUISA EM ECOLOGIA HUMANA E GESTÃO SOCIOAMBIENTAL Prezado(a) Senhor(a), Convidamos seu filho(a) para participar de uma pesquisa: "INFÂNCIA NA TERRA: A CAATINGA IMPRESSA NO IMAGINÁRIO INFANTIL". Na pesquisa, estudantes de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental I deverão responder através de um desenho e escrita, a uma pergunta apenas: O QUE É NATUREZA? Nesta pesquisa tentaremos compreender como o Bioma Caatinga tem sido representado por nossas crianças, e de qual maneira tem sido discutido nas propostas pedagógicas nas escolas do Semiárido brasileiro. É também a necessidade de repensar a prática de educadores e educadoras numa perspectiva de uma educação contextualizada. Esta atividade será efetuada durante o horário regular de aulas, em parceria com a professora da turma e em concordância prévia com a direção da escola. A participação de seu filho/a será de grande valor, podendo contribuir para a mudança de novas compreensões sobre o meioambiente e para uma educação institucional mais contextualizada, ou seja, em maior consonância com o que vivenciamos na Caatinga. Asseguramos que durante a atividade suas crianças não correrão nenhum risco além dos apresentados pelo cotidiano escolar, quando da manipulação de lápis para colorir e papel. Seu filho/a não é obrigado a participar do estudo, tendo total liberdade para desistir, bem como pode ser retirado o consentimento a qualquer momento, sem precisar haver justificativa, e, ao sair da pesquisa, não haverá qualquer prejuízo. Sua criança não sairá da escola durante toda a pesquisa, bem como é garantido o livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o estudo e suas conseqüências, enfim, tudo o que se queira saber antes, durante e depois da participação. Como pesquisadoras responsáveis por este estudo, prometemos manter em sigilo todos os dados confidenciais, bem como de indenizá-lo se porventura seu filho/a sofrer algum prejuízo moral e/ou físico por causa da participação. Estando claro para o senhor/a, tendo sido orientado quanto ao teor de todo o aqui mencionado e compreendido a natureza e o objetivo do estudo, peço que autorize a participação de sua criança na referida pesquisa, assinando este documento, estando totalmente ciente de que não há nenhum valor econômico, a receber ou a pagar, pela participação. O seu/a consentimento deve estar de acordo com o consentimento do seu filho/a, isto é, se seu filho/a não concordar em participar, a opinião dele/a será respeitada. Agradecemos, sinceramente, sua colaboração. Prof. Dra. Eliane Maria Souza Nogueira Coord. do PPGEcoH Glaide Pereira da Silva Mestranda Pesquisadora Eu,_____________________________________________,RG________________, aceito que meu filho/a participe das tarefas da pesquisa, "INFÂNCIA NA TERRA: A CAATINGA IMPRESSA NO IMAGINÁRIO INFANTIL". Fui claramente informado que ele/a responderá a uma pergunta através de desenho e escrita. Foi-me garantido que meu filho/a poderá desistir da pesquisa a qualquer momento que desejar, sem que isto leve a quaisquer prejuízos em seu aprendizado na escola, que as informações confidenciais serão mantidas em sigilo. Paulo Afonso,____/____/________ ________________________________________ Pai, Mãe ou responsável legal, se houver APÊNDICE B ROTEIRO PARA A COLETA DOS DADOS 1. Ao chegar às classes participantes, depois de cumprimentar a garotada, recolher os TCLE’s e distribuir as folhas de papel em branco, as crianças foram incentivadas a se expressarem por meio do desenho e da escrita, usando lápis grafite, lápis de colorir, giz de cera e papel. O elemento provocador foi o questionamento abaixo: O que vocês acham que é Natureza? Ou, ainda a mesma pergunta invertendo os elementos da oração, ficando assim: Para vocês, o que é Natureza? 2. Depois da pergunta, explicito para que eles executem as ilustrações, sugerindo o que se segue: Gostaria que vocês me dissessem, através de um desenho, o que é Natureza. Depois de terminado o desenho, cada um vai escrever neste mesmo papel, pode ser ao lado ou atrás do desenho, o que vocês quiseram dizer com o que desenharam e o que significa cada figurinha que fizeram. Também, deverão colocar seus nomes e a idade. APÊNDICE C DADOS DOS UNIVERSOS E PARTICIPANTES DA PESQUISA Nome: Escola Municipal Vereador João Bosco Endereço: Rua dos Navegantes, s/n. Bairro: N. Sra. De Fátima Diretora: Maildes Doriana Lima da Silva Oliveira Coord. Pedagógica: Lucineide Teixeira Lima da Silva Prof. da Turma: Amanda Cardoso da Gama Reis Número de crianças participantes: 20 Turma da pesquisa: 1ª série = 2º ano Nome: Escola de Primeiro Grau Lions Clube Endereço: Av. Apolônio Sales, 598 Bairro: Centro Diretora: Judite Donário Bispo Coord. Pedagógica: Érica Kariny Melo de Mendonça Gomes Prof. da Turma: Luciana Francisca Soares Número de crianças participantes: 26 Turma da pesquisa: 2ª série = 3º ano Nome: Escola Municipal Vinícius de Moraes Endereço: Rua Vinícius de Moraes, s/n. Bairro: Jardim Bahia Diretora: Solange Marcolino Silva Paiva Coord. Pedagógica: Silvânia Monteiro Pinto Alves Prof. da Turma: Saara Freitas Número de crianças participantes: 23 Turma da pesquisa: 3ª série = 4º ano Nome: Escola Municipal Guiomar Pereira Endereço: Av. Moxotó, s/n. Bairro: Oliveira Brito Diretora: Lucrécia de Souza Bartolomeu Coord. Pedagógica: Maria Ângela Carvalho Prof. da Turma: Lusmar Carvalho Pereira Dantas Número de crianças participantes: 25 Turma da pesquisa: 4ª série = 5º ano Nome: Universidade do Estado da Bahia – UNEB – Campus VIII Endereço: Rua do Gangorra, 503 – Bairro: Alves de Souza Diretor: Dorival Pereira Oliveira Coord. Ciências Biológicas: Josaline Chaves da Costa Prof. da Turma: Edilson Alves dos Santos Número de participantes: 14 Turma da pesquisa: 7º Período – Licenciatura em Biologia APÊNDICE D TABELA GERAL COM TODAS AS CATEGORIAS DA PESQUISA ANEXOS ANEXO A – Carta da Ecopedagogia. ANEXO B – Lei nº 9.795 de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. ANEXO C – Termo de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa A CARTA DA TERRA NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO Primeiro Encontro Internacional - São Paulo, 23 a 26 de agosto de 1999. Organização: Instituto Paulo Freire - Apoio: Conselho da Terra e UNESCO-Brasil CARTA DA ECOPEDAGOGIA Em defesa de uma Pedagogia da Terra Minuta de discussão do Movimento pela Ecopedagogia 1. Nossa Mãe Terra é um organismo vivo e em evolução. O que for feito a ela repercutirá em todos os seus filhos. Ela requer de nós uma consciência e uma cidadania planetárias, isto é, o reconhecimento de que somos parte da Terra e de que podemos perecer com a sua destruição ou podemos viver com ela em harmonia, participando do seu devir. 2. A mudança do paradigma economicista é condição necessária para estabelecer um desenvolvimento com justiça e eqüidade. Para ser sustentável, o desenvolvimento precisa ser economicamente factível, ecologicamente apropriado, socialmente justo, includente, culturalmente eqüitativo, respeitoso e sem discriminação. O bem-estar não pode ser só social; deve ser também sócio-cósmico. 3. A sustentabilidade econômica e a preservação do meio ambiente dependem também de uma consciência ecológica e esta da educação. A sustentatibilidade deve ser um princípio interdisciplinar reorientador da educação, do planejamento escolar, dos sistemas de ensino e dos projetos político-pedagógicos da escola. Os objetivos e conteúdos curriculares devem ser significativos para o(a) educando(a) e também para a saúde do planeta. 4. A ecopedagogia, fundada na consciência de que pertencemos a uma única comunidade da vida, desenvolve a solidariedade e a cidadania planetárias. A cidadania planetária supõe o reconhecimento e a prática da planetaridade, isto é, tratar o planeta como um ser vivo e inteligente. A planetaridade deve levar-nos a sentir e viver nossa cotidianidade em conexão com o universo e em relação 149 harmônica consigo, com os outros seres do planeta e com a natureza, considerando seus elementos e dinâmica. Trata-se de uma opção de vida por uma relação saudável e equilibrada com o contexto, consigo mesmo, com os outros, com o ambiente mais próximo e com os demais ambientes. 5. A partir da problemática ambiental vivida cotidianamente pelas pessoas nos grupos e espaços de convivência e na busca humana da felicidade, processa-se a consciência ecológica e opera-se a mudança de mentalidade. A vida cotidiana é o lugar do sentido da pedagogia pois a condição humana passa inexoravelmente por ela. A ecopedagogia implica numa mudança radical de mentalidade em relação à qualidade de vida e ao meio ambiente, que está diretamente ligada ao tipo de convivência que mantemos com nós mesmos, com os outros e com a natureza. 6. A ecopedagogia não se dirige apenas aos educadores, mas a todos os cidadãos do planeta. Ela está ligada ao projeto utópico de mudança nas relações humanas, sociais e ambientais, promovendo a educação sustentável (ecoeducação) e ambiental com base no pensamento crítico e inovador, em seus modos formal, não formal e informal, tendo como propósito a formação de cidadãos com consciência local e planetária que valorizem a autodeterminação dos povos e a soberania das nações. 7. As exigências da sociedade planetária devem ser trabalhadas pedagogicamente a partir da vida cotidiana, da subjetividade, isto é, a partir das necessidades e interesses das desenvolvimento pessoas. de novas Educar para capacidades, a cidadania tais como: planetária sentir, supõe intuir, o vibrar emocionalmente; imaginar, inventar, criar e recriar; relacionar e inter-conectar-se, auto-organizar-se; informar-se, comunicar-se, expressar-se; localizar, processar e utilizar a imensa informação da aldeia global; buscar causas e prever conseqüências; criticar, avaliar, sistematizar e tomar decisões. Essas capacidades devem levar as pessoas a pensar e agir processualmente, em totalidade e transdisciplinarmente. 8. A ecopedagogia tem por finalidade reeducar o olhar das pessoas, isto é, desenvolver a atitude de observar e evitar a presença de agressões ao meio ambiente e aos viventes e o desperdício, a poluição sonora, visual, a poluição da 150 água e do ar etc. para intervir no mundo no sentido de reeducar o habitante do planeta e reverter a cultura do descartável. Experiências cotidianas aparentemente insignificantes, como uma corrente de ar, um sopro de respiração, a água da manhã na face, fundamentam as relações consigo mesmo e com o mundo. A tomada de consciência dessa realidade é profundamente formadora. O meio ambiente forma tanto quanto ele é formado ou deformado. Precisamos de uma ecoformação para recuperarmos a consciência dessas experiências cotidianas. Na ânsia de dominar o mundo, elas correm o risco de desaparecer do nosso campo de consciência, se a relação que nos liga a ele for apenas uma relação de uso. 9. Uma educação para a cidadania planetária tem por finalidade a construção de uma cultura da sustentabilidade, isto é, uma biocultura, uma cultura da vida, da convivência harmônica entre os seres humanos e entre estes e a natureza. A cultura da sustentabilidade deve nos levar a saber selecionar o que é realmente sustentável em nossas vidas, em contato com a vida dos outros. Só assim seremos cúmplices nos processos de promoção da vida e caminharemos com sentido. Caminhar com sentido significa dar sentido ao que fazemos, compartilhar sentidos, impregnar de sentido as práticas da vida cotidiana e compreender o sem sentido de muitas outras práticas que aberta ou solapadamente tratam de impor-se e sobrepor-se a nossas vidas cotidianamente. 10. A ecopedagogia propõe uma nova forma de governabilidade diante da ingovernabilidade do gigantismo dos sistemas de ensino, propondo a descentralização e uma racionalidade baseadas na ação comunicativa, na gestão democrática, na autonomia, na participação, na ética e na diversidade cultural. Entendida dessa forma, a ecopedagogia se apresenta como uma nova pedagogia dos direitos que associa direitos humanos – econômicos, culturais, políticos e ambientais - e direitos planetários, impulsionando o resgate da cultura e da sabedoria popular. Ela desenvolve a capacidade de deslumbramento e de reverência diante da complexidade do mundo e a vinculação amorosa com a Terra. LEI Nº 9.795 - DE 27 DE ABRIL DE 1999 Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: CAPÍTULO I DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL Art. 1.o Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade. Art. 2.o A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal. Art. 3.o Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo: I - ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente; II - às instituições educativas, promover a educação ambiental de maneira integrada aos programas educacionais que desenvolvem; III - aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente - Sisnama, promover ações de educação ambiental integradas aos programas de conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente; IV - aos meios de comunicação de massa, colaborar de maneira ativa e permanente na disseminação de informações e práticas educativas sobre meio ambiente e incorporar a dimensão ambiental em sua programação; V - às empresas, entidades de classe, instituições públicas e privadas, promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores, visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho, bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio ambiente; VI - à sociedade como um todo, manter atenção permanente à formação de valores, atitudes e habilidades que propiciem a atuação individual e coletiva voltada para a prevenção, a identificação e a solução de problemas ambientais. 152 Art. 4.o São princípios básicos da educação ambiental: I - o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo; II - a concepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o sócio-econômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade; III - o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, na perspectiva da inter, multi e transdisciplinaridade; IV - a vinculação entre a ética, a educação, o trabalho e as práticas sociais; V - a garantia de continuidade e permanência do processo educativo; VI - a permanente avaliação crítica do processo educativo; VII - a abordagem articulada das questões ambientais locais, regionais, nacionais e globais; VIII - o reconhecimento e o respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural. Art. 5.o São objetivos fundamentais da educação ambiental: I - o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos; II - a garantia de democratização das informações ambientais; III - o estímulo e o fortalecimento de uma consciência crítica sobre a problemática ambiental e social; IV - o incentivo à participação individual e coletiva, permanente e responsável, na preservação do equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania; V - o estímulo à cooperação entre as diversas regiões do País, em níveis micro e macrorregionais, com vistas à construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade, igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade; VI - o fomento e o fortalecimento da integração com a ciência e a tecnologia; VII - o fortalecimento da cidadania, autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamentos para o futuro da humanidade. 153 CAPÍTULO II DA POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL SEÇÃO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 6.o É instituída a Política Nacional de Educação Ambiental. Art. 7.o A Política Nacional de Educação Ambiental envolve em sua esfera de ação, além dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente - Sisnama, instituições educacionais públicas e privadas dos sistemas de ensino, os órgãos públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e organizações não-governamentais com atuação em educação ambiental. Art. 8.o As atividades vinculadas à Política Nacional de Educação Ambiental devem ser desenvolvidas na educação em geral e na educação escolar, por meio das seguintes linhas de atuação inter-relacionadas: I - capacitação de recursos humanos; II - desenvolvimento de estudos, pesquisas e experimentações; III - produção e divulgação de material educativo; IV - acompanhamento e avaliação. § 1.o Nas atividades vinculadas à Política Nacional de Educação Ambiental serão respeitados os princípios e objetivos fixados por esta Lei. § 2.o A capacitação de recursos humanos voltar-se-á para: I - a incorporação da dimensão ambiental na formação, especialização e atualização dos educadores de todos os níveis e modalidades de ensino; II - a incorporação da dimensão ambiental na formação, especialização e atualização dos profissionais de todas as áreas; III - a preparação de profissionais orientados para as atividades de gestão ambiental; IV - a formação, especialização e atualização de profissionais na área de meio ambiente; V - o atendimento da demanda dos diversos segmentos da sociedade no que diz respeito à problemática ambiental. § 3.o As ações de estudos, pesquisas e experimentações voltar-se-ão para: I - o desenvolvimento de instrumentos e metodologias, visando à incorporação da dimensão ambiental, de forma interdisciplinar, nos diferentes níveis e modalidades de ensino; 154 II - a difusão de conhecimentos, tecnologias e informações sobre a questão ambiental; III - o desenvolvimento de instrumentos e metodologias, visando à participação dos interessados na formulação e execução de pesquisas relacionadas à problemática ambiental; IV - a busca de alternativas curriculares e metodológicas de capacitação na área ambiental; V - o apoio a iniciativas e experiências locais e regionais, incluindo a produção de material educativo; VI - a montagem de uma rede de banco de dados e imagens, para apoio às ações enumeradas nos incisos I a V. SEÇÃO II DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO ENSINO FORMAL Art. 9.o Entende-se por educação ambiental na educação escolar a desenvolvida no âmbito dos currículos das instituições de ensino públicas e privadas, englobando: I - educação básica: a) educação infantil; b) ensino fundamental e c) ensino médio; II - educação superior; III - educação especial; IV - educação profissional; V - educação de jovens e adultos. Art. 10. A educação ambiental será desenvolvida como uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal. § 1.o A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina específica no currículo de ensino. § 2.o Nos cursos de pós-graduação, extensão e nas áreas voltadas ao aspecto metodológico da educação ambiental, quando se fizer necessário, é facultada a criação de disciplina específica. § 3.o Nos cursos de formação e especialização técnico-profissional, em todos os níveis, deve ser incorporado conteúdo que trate da ética ambiental das atividades profissionais a serem desenvolvidas. Art. 11. A dimensão ambiental deve constar dos currículos de formação de professores, em todos os níveis e em todas as disciplinas. 155 Parágrafo único. Os professores em atividade devem receber formação complementar em suas áreas de atuação, com o propósito de atender adequadamente ao cumprimento dos princípios e objetivos da Política Nacional de Educação Ambiental. Art. 12. A autorização e supervisão do funcionamento de instituições de ensino e de seus cursos, nas redes pública e privada, observarão o cumprimento do disposto nos arts. 10 e 11 desta Lei. SEÇÃO III DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL NÃO-FORMAL Art. 13. Entendem-se por educação ambiental não-formal as ações e práticas educativas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais e à sua organização e participação na defesa da qualidade do meio ambiente. Parágrafo único. O Poder Público, em níveis federal, estadual e municipal, incentivará: I - a difusão, por intermédio dos meios de comunicação de massa, em espaços nobres, de programas e campanhas educativas, e de informações acerca de temas relacionados ao meio ambiente; II - a ampla participação da escola, da universidade e de organizações não-governamentais na formulação e execução de programas e atividades vinculadas à educação ambiental nãoformal; III - a participação de empresas públicas e privadas no desenvolvimento de programas de educação ambiental em parceria com a escola, a universidade e as organizações nãogovernamentais; IV - a sensibilização da sociedade para a importância das unidades de conservação; V - a sensibilização ambiental das populações tradicionais ligadas às unidades de conservação; VI - a sensibilização ambiental dos agricultores; VII - o ecoturismo. CAPÍTULO III DA EXECUÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL Art. 14. A coordenação da Política Nacional de Educação Ambiental ficará a cargo de um órgão gestor, na forma definida pela regulamentação desta Lei. Art. 15. São atribuições do órgão gestor: I - definição de diretrizes para implementação em âmbito nacional; 156 II - articulação, coordenação e supervisão de planos, programas e projetos na área de educação ambiental, em âmbito nacional; III - participação na negociação de financiamentos a planos, programas e projetos na área de educação ambiental. Art. 16. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, na esfera de sua competência e nas áreas de sua jurisdição, definirão diretrizes, normas e critérios para a educação ambiental, respeitados os princípios e objetivos da Política Nacional de Educação Ambiental. Art. 17. A eleição de planos e programas, para fins de alocação de recursos públicos vinculados à Política Nacional de Educação Ambiental, deve ser realizada levando-se em conta os seguintes critérios: I - conformidade com os princípios, objetivos e diretrizes da Política Nacional de Educação Ambiental; II - prioridade dos órgãos integrantes do Sisnama e do Sistema Nacional de Educação; III - economicidade, medida pela relação entre a magnitude dos recursos a alocar e o retorno social propiciado pelo plano ou programa proposto. Parágrafo único. Na eleição a que se refere o caput deste artigo, devem ser contemplados, de forma eqüitativa, os planos, programas e projetos das diferentes regiões do País. Art. 18. (VETADO) Art. 19. Os programas de assistência técnica e financeira relativos a meio ambiente e educação, em níveis federal, estadual e municipal, devem alocar recursos às ações de educação ambiental. CAPÍTULO IV DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 20. O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de noventa dias de sua publicação, ouvidos o Conselho Nacional de Meio Ambiente e o Conselho Nacional de Educação. Art. 21. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 27 de abril de 1999; 178º da Independência e 111º da República.