“Narrar” dentro de narrativas – textos escolares em análise autora: Rosa Maria Hessel Silveira O presente estudo parte de algumas considerações sobre a onipresença da narrativa em diversas culturas e a relação da mesma com a instituição escolar, para se debruçar sobre textos produzidos por alunos da 4a. série do Ensino Fundamental do estado do Rio Grande do Sul por ocasião da Avaliação Externa das escolas da rede pública, em novembro de 1997. A proposta temática apresentada aos/às alunos/às sugeria a continuação de uma narrativa que iniciava da seguinte forma Foi num domingo muito ensolarado que tudo aconteceu. A turma toda, acompanhada da professora, saiu para visitar. Não nos interessamos pelos elementos propriamente estruturais da narrativas das crianças, nem por sua “qualidade” ou “veracidade”, mas voltamos nosso olhar para as alusões que, dentro das narrativas e relatos das crianças, foram feitas ao próprio ato de narrar a “saída” ou ao “passeio”. Tal análise – centrada em sessenta textos intencionalmente escolhidos, oriundos de dezenove municípios gaúchos - busca pistas para entender os discursos circulantes nessa espécie de autonarrações, inspirando-se, principalmente, nas análises das autonarrativas feitas por Larrosa (1995, 1996) e, secundariamente, em algumas contribuições de Labov (1975) . Em duas seções intituladas – Narrando o passeio numa moldura escolar e Contando o passeio, fora da escola – examinamos duas espécies de referência a narrativas do passeio: aquela que remete ao trabalho escolar, à redação feita para prestar contas da visita (eventualmente desenhos), e aquela que aponta para um relato oral do passeio para a família e para os amigos. Enquanto a primeira referência vem fortemente tingida por um sentido de obrigação, uma relação com o saber escolar e uma dimensão de avaliação, implícita ou não, a segunda aponta para uma ação cuja “avaliação” é de cunho social (impressionar, persuadir ouvintes a fazer o mesmo passeio, fomentar a vontade de fazê-lo). De certa maneira, no segundo caso, freqüentemente as referências a “contar o passeio” constituíam um dispositivo narrativo de avaliação dos próprios fatos narrados (cf. “avaliação” de Labov). Observa-se que tanto a menção ao “contar” familiar quanto a menção à “redação” são mecanismos aprendidos em gramáticas específicas, entendendo-se que tais “gramáticas” ou sistemas semióticos fornecem às crianças ferramentas para narrarem os eventos, independentemente de eles terem sido ou não “reais”. Sem pretender esgotar a heterogeneidade discursiva dos textos, este trabalho pretende contribuir para a constituição de um novo “olhar” para os textos escolares, que fuja à dicotomia entre “redação escolar” e “texto criativo”, entendendo que todo e qualquer texto é constituído por discursos circulantes, que oferecem regras do que é ou não dizível em tal ou qual situação, que fornecem vocabulários e mecanismos narrativos e mapeiam posições de sujeito a serem ocupadas pelo enunciador. Palavras-chave: narrativas – Estudos Culturais – textos escolares 2 “Narrar” dentro de narrativas – textos escolares em análise Rosa Maria Hessel Silveira Narrar – e uso aqui a palavra no seu sentido mais tradicional, de “desenvolver uma história, relatar uma seqüência de ações tematicamente interligadas” - é uma das atividades mais presentes, ainda que de formas diferenciadas, nas diversas culturas e épocas. Dessa forma, parece-nos impensável uma mulher ou um homem sem sua(s) história(s), sem aquilo a que se convencionou chamar de “biografia” (sempre uma seleção, um enquadramento), sem alguma(s) história(s) que o/a contem, sem os relatos cotidianos a ele/ela ligados. As narrativas nos cercam – nas notícias, nas fofocas, nas anedotas, nas telenovelas, nos contos, nas crônicas, nos quadrinhos – e não constitui nenhuma novidade sublinhar o quanto elas nos constituem, o quanto elas nos explicam o mundo (sem necessariamente “generalizar em palavras”, como pretende a ciência), nos contam como “são as pessoas”, as “relações de causa e efeito”, como determinados eventos trazem específicas conseqüências, como é “vencer”, como é “amar”, o que é “viver”, o que é “ser normal” ou, ao menos, como se “parece normal”. Em texto que está se tornando um clássico entre estudiosos da educação no Brasil – “Tecnologias do Eu e Educação”, Larrosa (1994, p.37) esquadrinha “as práticas pedagógicas que constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo: essa relação na qual se estabelece, se regula e se modifica a experiência que a pessoa tem de si mesma, a experiência de si”, nelas localizando algumas formas narrativas de que freqüentemente a escola tem se valido para produzir um determinado “autoconhecimento”, um específico “conhecimento de si”, geralmente tido não como específico, mas como “verdadeiro”, “universal”, “profundo”, etc. É interessante verificar o quanto algumas mudanças, nas últimas décadas, nos paradigmas das “verdades pedagógicas” que presidem o planejamento e as práticas escolares – no que diz respeito, por exemplo, às estratégias de ensino de 3 redação, à hodierna “produção textual” - levaram à substituição dos temas generalizantes, “abstratos”, tidos como descolados da “experiência pessoal do aluno” (da aluna nem se falava...), pela ênfase ao “relato pessoal”, à pretensa “manifestação das experiências significativas e únicas de cada aluno” (em primeiro lugar, colocando como dado inquestionável o pressuposto de que ao aluno sempre interessa contar à/ao professor e aos/às colegas o que lhe é “pessoal”). Como relembra Varela (1995, p. 52), nessas novas pedagogias, “toda ação educativa deve procurar que o aluno se expresse, se manifeste, encontre seu estilo próprio, redescubra uma suposta “natureza natural” original e livre de coações”; nesse jogo, segundo a autora, cabem ao mestre “novos dispositivos de controles sutis”, depositário que é da chave dos códigos que dão sentido e direção a tais “expressões livres”. Sem que nosso intuito aqui seja aprofundar tal exame, não nos escapa o registro dos paradoxos e conflitos resultantes de uma pedagogia da “expressão subjetiva, individual, própria” confrontada com os velhos e renovados dispositivos de controle e normalização da educação institucional. De forma muito concreta, fica evidente que a “expressão de uma experiência pessoal” através de um texto escrito, por exemplo, só é legitimada como tal, como bem sucedida, se for possível enquadrá-la em códigos de avaliação mais gerais, se ela for “legível” dentro dos quadros de exame que a entendam – no mínimo – como “correta”, “coesa”, “coerente”, etc. Não deixa de nos chamar a atenção a antinomia entre a atual fúria avaliativa universal (efetivada através dos exames nacionais ou estaduais padronizados em todos os níveis de ensino) e um discurso pedagógico (emanado das mesmas fontes!) que se diz aberto às diferenças e preocupado com o que rotula como diversidade cultural. Voltando às narrativas – que são o ponto central de nossa reflexão neste breve estudo – a demanda de sua produção (e de sua leitura) já tem larga história nos bancos escolares, malgrado as transformações acima aludidas. Se atualmente as histórias decididamente exemplares – em que o conselho e a moral eram explicitados ao final – já não abundam nos livros didáticos, como em outras décadas acontecia, freqüentam-nos as crônicas do cotidiano, que, levando ao riso imediato, 4 à compaixão, à reflexão... também falam de personagens, de situações, de enredos e desfechos “plausíveis”. Não se furta, pois a escola à narrativa, assim como a ela não nos furtamos (e nem o queremos) no dia-a-dia. Os textos: o objeto do nosso olhar Neste estudo, voltamo-nos especificamente a um determinado tipo de texto, quais sejam redações produzidas por alunos de 4a. série do Ensino Fundamental de todo o território do Estado do Rio Grande do Sul, que fazem parte da chamada Avaliação Externa das Escolas da rede pública, aplicada em novembro de 1997 e integrante da prova de Português da referida Avaliação. A proposta a ser desenvolvida pelos/as alunos/as era a seguinte: Copie o trecho abaixo na sua folha de rascunho e continue a história como você quiser. Lembre-se de deixar espaço para, depois de terminar, pôr um título na história que você inventou. Não se esqueça de passar a limpo sua redação. Foi num domingo muito ensolarado que tudo aconteceu. A turma toda, acompanhada da professora, saiu para visitar A partir do acesso a um significativo conjunto de tais textos 1, retirados do conjunto de todas as escolas do sistema estadual de ensino e algumas do sistema municipal, um leitor que empreenda uma leitura, mesmo desordenada de algumas dezenas deles, pinçados de diversas origens geográficas, poderá rastrear regularidades textuais e diversidades não desprezíveis. Não estamos nos referindo, aqui, à variabilidade de textos mais ou menos “criativos”, mais ou menos “bem sucedidos” no atendimento a tarefa, mais ou menos “bem pontuados”, mas sim às regularidades que podemos creditar a uma certa (?) homogeneidade da instituição escolar – evidentemente, a situação de produção de tais textos marcava-os fortemente com o sinete institucional – e, mais, a práticas culturais e valores que atravessam evidentemente todos (ou quase) os grupos sociais destes alunos – nos quais também nos incluímos. Algumas observações mais. A proposta de redação remetia, de forma bastante incisiva, a nosso ver, à narrativa de um episódio acontecido na vida 5 escolar da criança, apesar da observação escrita – anterior ao trecho a ser continuado – de que o/a aluno/a deveria colocar um título na história que “inventou”. Não nos deteremos aqui em conjeturas sobre a veracidade ou não dos episódios narrados; poderíamos nos perguntar, nesse sentido, se todas as numerosas crianças que narraram uma visita a Zoológico efetivamente a fizeram, mas essa não é a pergunta que nos interessa, além de a julgarmos – no limite, ou nem tanto irrespondível... Interessam-nos, de maneira geral, os discursos que circulam nesses textos – como os do prêmio ao bom comportamento e da punição ao mau, da valorização de uma “natureza” que está sempre “lá”, no lugar visitado, e nunca nos lugares onde as crianças – mesmo as da zona rural - moram, o discurso da fabulação de monstros, lobos, caveiras, perigos que emergem do escuro, da antropomorfização dos animais, etc, etc. – e a forma como eles se encadeiam e se entrelaçam, correspondendo a diferentes ordens de discurso ou economias narrativas. Interessam-nos, assim, alguns dos códigos em que eles se inserem. Aludindo à narrativa, dentro de outra narrativa Como era previsível, a maioria ou a quase totalidade dos textos consistiu ou de relatos – entendidos como a simples apresentação de eventos alinhados conforme uma unidade temporal e/ou de atores – ou de narrativas propriamente ditas, em que as ações encadeadas apresentavam um “nó narrativo”- um acontecimento problemático a ser resolvido. 2 Entretanto, é preciso esclarecer que não examinaremos aqui elementos propriamente narrativos de um conjunto de textos, nem representações de professora, de criança, nem as “regras” da instituição escolar, etc, mas nos deteremos especificamente na referência encontrada em numerosos textos ao próprio ato de narrar a “saída”, o “passeio”, procurando nestas referências pistas para entender as formas e os sentidos dessa 1 A avaliação das redações – efetivamente, uma amostragem de cerca de onze mil redações em que estiveram representadas todas as escolas estaduais e as municipais que foram envolvidas no processo – esteve a cargo da UFRGS, conforme convênio específico. 2 Com extrema freqüência, o nó do enredo consistia na perda de um aluno do grupo e várias ações se desenrolavam para solucionar tal “impasse”; um ônibus que se estraga, um temporal, o “mau comportamento” dos alunos também constituíram acontecimentos que perturbavam o desenrolar das ações e criavam a chamada “tensão dramática” (cf. ADAM; REVAZ) 6 espécie de “autonarrações” 3, a partir de entendimento semelhante ao de Larrosa (1995, p.72-73), para o qual, a autonarração não é o lugar onde a subjetividade está depositada, o lugar onde o sujeito guarda e expressa o sentido mais ou menos transparente ou oculto de si mesmo, mas o mecanismo onde o sujeito se constitui nas próprias regras desse discurso que lhe dá uma identidade e lhe impõe uma direção, na própria operação em que o submete a um princípio de totalização e unificação. Creio que enriquece nosso exame outra análise, também bastante conhecida, realizada por Labov, de narrativas orais obtidas com pré-adolescentes, adolescentes e adultos negros. A partir do exame de tais narrativas, inseridas num projeto de análise sociolingüística, Labov propõe a existência – nelas – de elementos recorrentes, dos quais nos interessam o que ele chamou de coda, que seria “uma das muitas maneiras abertas ao narrador para assinalar que a narrativa está terminada” (Labov, 1972, p.365) e a avaliação 4. Quanto à coda, explorando os diferentes tipos encontrados nas narrativas, Labov observa que ela pode conter observações gerais ou mostrar os efeitos dos eventos no narrador, freqüentemente fechando a seqüência de ações “complicadoras” e indicando que nenhum dos eventos seguintes é importante para a narrativa. Embora a diferença entre a modalidade oral e escrita torne desnecessária a função finalizadora de narração na coda do texto escrito, com alguma freqüência vamos encontrar, nos textos analisados, uma coda que consiste justamente na menção à narração do passeio a outrem, preenchendo outras das suas funções 5 . Quanto à avaliação, Labov entende que ela abrangeria os meios pelos quais o narrador indica a razão de ser da narrativa, de forma a impedir, por exemplo, uma pergunta do interlocutor do tipo “E daí?”. O autor observa que os variados dispositivos de avaliação das ações 3 Larrosa (1996) entende como autonarrações ou histórias pessoais aquelas em que, simultaneamente, “cada uno de nosotros es, a la vez, el autor, el narrador y el carácter principal” (p.426); no caso das narrativas que examinamos, os alunos eram simultaneamente “autores” e “narradores” e, eventualmente, personagens principais; mais comum é o caso de que toda a turma (em conjunto) e a professora pudessem ser assim caracterizados. Por isso, falamos em “espécie de autonarrações”. 4 Traduções minhas. 7 podem estar distribuídos por toda a seqüência da narrativa e não apenas ao seu final, como é o caso da coda. Ora: ao olharmos os textos das crianças, podemos entender a freqüente alusão ao “contar o passeio para a mãe” ou “fazer uma redação sobre” tanto como uma espécie de avaliação dos episódios narrados quanto como uma coda finalizadora. 6 Do ponto de vista de uma análise que busque rastrear modelos e verdades do narrador, poder-se-ia concluir que as avaliações os explicitariam por vezes, ou, em outros casos, os explicariam, orientando o leitor para uma determinada leitura interpretativa das ações narradas. A experiência que temos, com alguma freqüência, de não saber como interpretar um determinado relato feito por pessoa não íntima nossa, pode provir da falta de uma avaliação ou coda explicativa, deixando-nos à mercê de nossa “intuição” para entender o porquê de aquela narrativa estar sendo feita naquele momento, naquele lugar e naquela circunstância. Narrando o passeio numa moldura escolar A turma toda, acompanhada da professora, saiu para visitar o museu. (...) Eles vieram de muito longe de uma escola bem longe só pra conhecer o museu (...) Depois de tanto passeio eles foram para a escola, chegaram lá, a professora deixou eles descansarem e mandou eles fazerem uma redação sobre aquilo que eles viram lá. E assim acaba minha história. 7 (aluna de Canguçu) 8 5 Lanço mão desses conceitos descritivos labovianos como dispositivos para nos ajudarem a “enxergar melhor” os textos que analisaremos, sem atribuir-lhes qualquer valor universalizante e atemporal, qualquer potência descritiva perene. 6 Labov (1975) arrola várias estratégias de inserção de avaliações na narração de açòes, como a atribuição de uma nota avaliativa a si próprio no momento da ação (Ex.: aí pensei: o que vou fazer?), a introdução de uma terceira pessoa que avalia as ações para o narrador (Ex.: ia passando um cara na rua, viu aquilo e comentou: Que vergonha, cara, com essa idade!) De forma geral, a maioria dos dispositivos avaliativos têm o efeito de suspender a ação da narrativa, pois, cf. Labov (1975, p. 374) “interromper a ação chama a atenção para a parte da narrativa e indica ao ouvinte que ela tem alguma conexão com o ponto avaliativo”. 7 Na transcrição das redações, efetuamos apenas correções ortográficas e ajustes indispensáveis na pontuação, de forma a prevenir eventuais ilegibilidades. 8 Optei por indicar ao final de cada trecho a procedência geográfica do/a aluno/a que redigiu o texto e, quando possível, se era menino ou menina. 8 Abro essa seção com uma citação exemplar, cujas variantes povoam grande número de textos infantis, freqüentemente à guisa de coda finalizadora. Relatar o passeio, a visita, inscrevendo-o/a nas narrativas mestras escolares constitui uma referência distribuída em textos de diversas escolas e locais 9, sinalizando para o conveniente enquadramento do “passeio” numa gramática de atividades escolares – espécie de selo legitimador – e, mais: para um enquadramento através da escrita, espécie de ícone da escola ocidental moderna. Observe-se que a legitimação escolar do passeio através do seu relato escrito, da “redação”, se faz aqui duplamente: pelo fato de fazer parte da Avaliação escrita das escolas estaduais e pela alusão a já tê-lo feito anteriormente, num passado imediatamente posterior à visita. “Fazer um trabalho sobre o passeio”, “fazer” ou “escrever” uma redação ou uma história, “relatar”, “contar” o que se viu ou “como que era”, “fazer como tema”, “relembrar o que viu” são expressões freqüentes nos textos, em que também se menciona a maestrina de tal ação: a professora. Quando chegamos a escola, a professora mandou nós fazermos uma redação bem bonita e nós fizemos ela bem bonita. (aluno/a de Flores da Cunha) A associação entre a redação escrita e a aprendizagem, o “conteúdo escolar”, às vezes se evidencia; é o caso de outro/a aluno/a de Flores da Cunha, que, tomando como tema da saída da escola, a visita a uma exposição de outra escola, finaliza seu texto com a coda: “Depois do passeio viemos a escola a desenhar as plantas aquáticas, aéreas, e animais”. E a menção ao “desenho” constitui outra variante – menos visitada – de uma narrativa do passeio atrelada à escola: “No dia seguinte em sala de aula todos queriam contar as novidades do passeio e fizeram lindos desenhos para mostrar o que viram” escreve um/a aluno/a, 9 Não preside esse estudo qualquer preocupação com a chamada representatividade das amostragens clássicas da pesquisa quantitativa; entretanto, como dado informativo, julgo importante registrar que estiveram sob exame um conjunto de sessenta redações, escolhidas intencionalmente dentro de cerca de trezentos textos; essas sessenta redações provinham de dezenove municípios diferentes e todas elas continham menções a relatos dos passeios, na escola ou fora dela. 9 enquanto outro, cuja turma visitou o “perau do Senhor Fiorindo Ferro”, em Casca, narra a demanda da professora neste sentido: “A professora pediu que nós desenhássemos o que havíamos mais gostado no perau, eu desenhei o rio com nós dentro, o perau com um monte de árvores...”. Outra marca recorrente nessa alusão às narrativas para a escola consiste na dimensão avaliativa do trabalho feito, a redação, ora através de referência à própria hierarquização das mesmas, ora através de uma dimensão avaliativa bastante corrente no quadro de referências pedagógico (ou ao menos em alguns deles) – a extensão do trabalho. Vejamos: E no dia seguinte a professora mandou escrever uma redação do que os alunos viram lá, quase todos os alunos escreveram redações iguais, de todas as redações a minha foi uma das melhores (Alvorada) No dia seguinte a história de Juquinha foi a mais interessante pois ele prestou tanta atenção e se interessou tanto que descreveu o aeroporto inteirinho apesar de ser a primeira vez que tinha ido nesse lugar.(Porto Alegre) Quando chegamos a escola, a professora mandou nós fazermos uma redação bem bonita e nós fizemos ela bem bonita (Flores da Cunha) E a nossa professora gostou das redações que fizemos sobre o zoológico (Porto Alegre) Depois ao voltar eles tomaram banho e foram de volta para a escola, ao chegar fizeram uma enorme redação(Portão) Quando eles chegaram na sala de aula a professora mandou que os alunos fizessem uma redação sobre o zoológico, eles fizeram 4 folhas sobre o Zoológico (Alvorada) Passear e relatar parece, pois, ser um binômio freqüente na gramática escolar, como se o ato de relatar (de preferência por escrito) legitimasse – no contexto institucional – uma atividade que, em princípio, fugiria à sua “missão”... Em caso extremo do que acabamos de dizer, encontramos um texto em que o passeio é narrado como a colocação “em ato” de um script escolar prévio, como um roteiro de redação que se cumpre: Foi num domingo muito ensolarado que tudo aconteceu. A turma toda, acompanhada da professora, saiu para visitar o Zoológico e para descrever uma redação sobre os animais. Todo mundo começou a fazer a redação, um deles que se chamava Ismael Cavagalli descreveu sobre as cobras. Ele contou que as cobras eram perigosas para a vida do homem porque elas mordiam e soltavam um veneno, e aquele veneno matava as pessoas. 10 As cascavéis era uma das cobras que guspiam veneno nos olhos dos bichos e das pessoas que incomodavam elas. Também descreveu sobre quase todos os animais do zoológico. O cavalo corria bastante, era um animal forte. O leão comia carne fresca de animal, corria atrás de pessoas para pega-las e comê-las. O javali, com suas garras afiadas e poderosas. O porco espinho pegava os animais e plantava espinhos nos focinhos. Assim que eu descrevi sobre todos os animais nós voltemos para a escola e eu ganhei nessa redação 100 sobre 100. (Aluno de Flores da Cunha) 10 Enfim, se narrar é constituir, é dizer o que vale e o que não vale, é entrar numa ordem de discurso e simultaneamente contribuir para sua constituição, a narrativa escolar do passeio é o filtro e o matizador desse passeio ou, ao menos, um dos possíveis. A narrativa confere à visita uma forma, uma substância, um sentido. A gramática escolar fornece modelos para avaliar o passeio e para entende-lo, diz o que é “aproveitar a visita”, diz o que é “se comportar bem”, explica o que o torna válido e bem sucedido, estabelece o que são as “coisas bonitas” que os alunos viram. Ela fornece os adjetivos – “bonita”, “linda” são, sem dúvida, os epítetos positivos deste código – e ensina os/as alunos/as a como avaliar uma visita dessas: ... no dia seguinte ir para a escola para aprender e relembrar todo o nosso passeio por onde fomos neste domingo que era tão bonito, ensolarado, legal e distante. (aluno/a de Marau) Eu fui pensando, que passeio mais bonito, queria ir todos os dias e chegamos na escola e tinha que fazer uma leitura em um livrinho sobre o nosso passeio (aluno/a de Gramado) Quando eles iam voltando para a escola, eles passaram pelo chopei e a professora chegou com eles lá, eles olharam muitas coisas bonitas. (...) Chegando na escola, eles contaram para os amigos deles. Eles disseram que nunca viram tantas coisas bonitas como hoje. (aluno/a de Canela) Contando o passeio, fora da escola 10 O texto permite verificarmos o deslocamento de um personagem que, inicialmente distinto do narrador, com ele se confunde posteriormente, assim como um notável vai-e-vem entre um tempo narrado (“saiu”, “começou”, “descreveu”...) e um tempo de continuidade descritiva dos “conhecimentos escolares”: “o leão comia carne fresca””, “o cavalo... era um cavalo forte”. A coda finalizadora atribui sentido e valor tanto ao fato narrado (visitar o Zoológico e concomitantemente descrever o que via) quanto ao produto dessas ações – a redação. 11 Mas a narração do passeio não é referida apenas no enquadramento escolar, como trabalho, redação, desenho. Também se “conta” a saída da turma com a professora, fora da escola. Como observa Larrosa (1996), as narrativas se constroem na confluência de muitas narrativas e, do nosso lugar de leitora, parece-nos que a alusão a “contar o passeio fora da escola” pode provir de outra gramática narrativa, que não a da narrativa escolar. Os textos nos dizem que “em casa eles contaram para seus pais o grande passeio que eles fizeram”, “fui para casa e contei toda a viagem para meus amigos”, “depois voltaram para casa muito felizes, contaram para seus pais que foi um passeio muito bonito”, “as crianças contaram tudo aos seus pais”, “fomos para casa, fomos brincar, pular, contemos tudo para a mãe”, “chegando em casa as meninas e os meninos contaram as novidades”, “foram para casa contando as aventuras para seus pais”, “quando já eram cinco horas eles foram todos para casa e ficaram contando para os pais como foi”, “o aluno Zezinho contou a sua mãe: eu adorei o parque”, etc, etc. De imediato, a reiteração de uso de “contar”, com sua semântica popular nos salta aos olhos, numa referência a prática não marcada (apenas) pela cultura da escola (relembre-se a universalidade [ou quase] do labor narrativo cotidiano). Freqüentemente colocadas como codas, ao final dos textos, tais frases parecem constituir avaliações outras dos passeios: eles mereceram a “dizibilidade” para a família e os amigos. Por outro lado, se há traços em comum entre o “narrar na escola” (via trabalho, redação, relatório...) e o “contar fora da escola”, inscritos na matriz maior de “narrar para constituir”, há também diferenças atribuídas a essas ações. “Contar” não é, evidentemente, avaliado nos parâmetros escolares; o parâmetro do sucesso desse “contar” vem das conseqüências, digamos, sociais do discurso: “Os meus amigos ficaram de boca aberta quando eu contei minha viagem a eles”, “A mãe gostou e foi no parque com o meu irmão e comigo”, “as outras turmas que não foram visitar o zoológico... ficaram querendo ir visitar o zoológico também”.. Exemplar é a passagem de um/a menino/a de Pelotas: “Chegando em casa eu contei tudo para minha mãe e a minha mãe gostou muito do passeio e disse: - Se tiver outros passeios que tiver, você vai ir em todos”. Efetivamente, o que ele/a diz é 12 que o passeio contado é como se fosse o passeio real, ou melhor, é o passeio real, “gostável” ! Estamos frente a outras políticas de narração. Reflexões últimas Se, conforme Larrosa (1996, p. 463-4), a interpretação (e a auto-interpretação) está ligada ao conjunto de sistemas semióticos disponíveis e não a qualquer entidade não-lingüística, ou, se se quiser, está ligada à disponibilidade de um vocabulário e de alguns modos de discurso, podemos ler os textos entendendo que, em primeiro lugar, um evento verossímil uma saída da turma com a professora – é eleito numa instância escolar (a aplicação da Avaliação Externa indubitavelmente o era) como dizível e se solicita o seu “dito”, o que, então, é feito primordialmente segundo o “vocabulário” escolar, segundo uma semiótica específica. E é nesse código que se insere a narração do passeio e a alusão a uma narração anterior do mesmo, ora sob a forma (com ô fechado) escolar, ora no delineamento da conversa familiar ou entre pares. Efetivamente, as alusões são aí diferentes: a família e o lugar dos amigos como o espaço de “contar” (conta-se para alguém gostar) e a escola como o espaço de fazer trabalho, redações, que serão avaliadas ou agradarão à professora (querida, bondosa, linda ou brava...) E tanto a menção ao “contar” familiar quanto a menção à “redação” são mecanismos aprendidos em gramáticas específicas, nas quais possivelmente elas funcionem como “avaliações” da trama. Tais observações, porém, não podem ser vistas como conclusões fechadas, classificatórias, infensas às instabilidades e deslizamentos dos discursos nos textos. As redações das crianças são feixes heterogêneos do que dizer e do como dizê-lo; diferentes formas de subjetivação ali emergem, mas não como expressões de uma “intimidade que se revela”, de uma “verdade que se desnuda”. Seus textos nos contam muito sobre as molduras culturais, sobre as gramáticas do dizível, sobre as diferentes ordens de discurso em que elas – também de forma heterogênea – entendem que se enquadrava a “redação da Avaliação Externa”. Tal heterogeneidade – mais ou menos presente nas diferentes redações – está à espera de nossa leitura, também ela heterogeneamente constituída, num encontro 13 que possivelmente provoque sorrisos quando nos defrontamos com textos como o do/da menino/a de Pelotas: A turma toda, acompanhada da professora, saiu para visitar o museu. Lá tinha muitos bichos empalhados, a maioria deles tinham um cheiro ruim. (....)As cobras davam o maior medo, elas pareciam que iam dar o bote na gente. Mas todos gostaram mesmo foi das borboletas. Era legal os leões, os passarinhos, eles eram muito bonitos. Andamos, andamos e quando entramos na sala cheia de couro de cobra e um jacaré empalhado me deu o maior medo. Mais tarde a gente já tinha visto um monte de bichos, quando eu olhei pra minha frente, vi um pavão coisa mais linda. Eu achei graça foi de um ratinho que ficava pra lá e pra cá. Depois mais tarde voltamos para o colégio, e a professora deu um tema sobre o museu. É um saco ficar se lembrando de tudo que a gente viu. Eu fiquei quase toda a madrugada fazendo o tema, no outro dia a professora me deu parabéns e disse que a minha história foi a melhor da aula. Referências Bibliográficas ADAM, Jean-Michel; REVAZ, Françoise. A análise da narrativa. Lisboa: Gradiva, 1997. LABOV, William. The transformation of experience in narrative syntax. In: ___. Language in the inner city – studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.) O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 1995. ___. La experiencia de la lectura – Estudios sobre Literatura y Formación. Barcelona: Laertes, 1996. VARELA, Julia. Categorias espaço-temporais e socialização escolar. In: COSTA, Marisa Vorraber. Escola Básica na Virada do Século. Porto Alegre: FACED/UFRGS, 1995.