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No escritório, situado num prédio antigo do distrito
Chongyang, em Pequim, o ventilador zunia alto, como um
velho irritado com a própria inutilidade. Mei e o Sr. Shao
sentavam-se em lados opostos de uma mesa. Ambos transpiravam copiosamente. Lá fora, o sol escaldava o ar até
transformá-lo num bloco sólido de calor.
O Sr. Shao secou a testa com um lenço. Recusara-se a tirar o paletó do terno.
— Dinheiro não é problema — ele pigarreou. — Mas
preciso que você comece já.
— Estou trabalhando em outros casos no momento.
— Quer que eu pague mais, não é isso? Um adiantamento, talvez? Posso lhe dar mil iuanes agora mesmo —
propôs o Sr. Shao, levando a mão ao bolso. — As falsificações
aparecem mais rápido do que sou capaz de produzir os originais e são vendidas pela metade do meu preço. Levei dez
anos para construir um nome, dez anos de sangue e suor.
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Mas não quero que você recorra a seus velhos amigos no Ministério, ouviu bem? Quero a polícia fora disso.
— O senhor não está fazendo nada ilegal, está? — Mei
perguntava-se por que o homem tanto insistia em lhe pagar
um adiantamento. Aquilo não era comum, especialmente
no caso de um comerciante tão sagaz quanto o Sr. Shao.
— Por favor, Srta. Wang. O que é legal ou ilegal nos dias
do hoje? A senhorita sabe o que dizem por aí: “O Partido tem
estratégias, e o povo, contra-estratégias.”
O Sr. Shao encarou Mei com seus olhos amendoados.
— A medicina chinesa é como mágica — disse. — As regulamentações existem para os produtos que não funcionam. Os meus curam. É por isso que as pessoas compram.
Ele deu uma breve risada, mas isso não aliviou a tensão.
Mei cogitava se diante dela estava um comerciante inteligente ou um charlatão.
— Não gosto da polícia — continuou o Sr. Shao. — Não
considere uma ofensa, Srta. Wang. Sei que a senhorita era
um deles. Quando comecei, vendia ervas nas ruas. A polícia
andava sempre no meu encalço, confiscando minha mercadoria, me arrastando para a delegacia como se eu fosse um
criminoso. O camarada Deng Xiaoping disse que os Ge Ti Hu,
os comerciantes independentes, contribuíam para a construção do socialismo. Mas e a polícia? A polícia fingiu que
não ouviu. Ovos podres, todos eles. Hoje a situação está melhor. Meu negócio cresceu, as pessoas me respeitam. Mas,
se quer realmente saber, a polícia é a mesma. Quando a gen8
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te precisa de proteção, não pode contar com ela. Pedi que
investigassem as falsificações. E o que disseram? Que não
fazem esse tipo de serviço. No entanto, sempre que há mudança nas regras, um arrocho ou uma inspeção, eles avançam no meu pescoço feito um bando de cães famintos.
— Seja como for, vamos ter de andar na linha — disse
Mei, a voz menos convincente que as próprias palavras.
Detetives particulares haviam sido proibidos na China.
Mei, como todos os colegas de profissão, havia recorrido à
contra-estratégia de registrar seu escritório como uma
agência de consultoria de informação.
— Naturalmente — concordou o Sr. Shao, abrindo um
sorriso tão largo quanto um oceano.
Tão logo ele saiu, Mei colocou-se diante do ventilador. Aos
poucos foi se refrescando com o vento fraco que atravessava
a blusa de seda.
A porta foi aberta. O assistente de Mei, Gupin, entrou no
escritório com o aspecto de uma lagosta cozida. Sem dizer
palavra, dirigiu-se à mesa da ante-sala e bebeu todo o chá
gelado de uma jarra deixada ali no início da manhã. Retirou
a mochila militar dos ombros e largou-a no chão.
— Esse que acabou de sair é o Sr. Shao, o rei do soro de
crescimento capilar? — Gupin levantou os olhos, recuperando o fôlego. Tinha um sotaque discreto, porém perceptível, que denunciava sua origem rural.
Mei fez que sim com a cabeça.
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— Você vai pegar o caso dele?
— Disse a ele que sim, mas agora estou em dúvida. Há
algo de estranho nesse homem.
— Ele usa peruca. — Gupin se aproximou com um pequeno pacote embrulhado em folhas de jornal. — Recebi 5
mil iuanes em dinheiro vivo do Sr. Su — disse, sorrindo. O
rosto, ainda vermelho em razão do esforço realizado, brilhava de orgulho.
Mei recebeu o pacote e apertou-o de leve; estava firme.
Abriu espaço para Gupin diante do ventilador.
— Ele criou algum obstáculo? — perguntou. Gupin agora estava ao lado dela, o braço desnudo quase a roçá-la. Mei
podia sentir o cheiro de suor que ele exalava.
— No início, sim. Mas ele não me dá medo, nem me enrola com seus truques. Conheço esse tipo de pilantra, não
nasci ontem. As pessoas ficam preocupadas quando vêem
um imigrante como eu naquele tipo de lugar. — A palavra
“pilantra” ficava ainda mais contundente com o sotaque de
Gupin.
Mei sorriu. Em ocasiões como essa felicitava-se pela
contratação do assistente, uma decisão acertada que, curiosamente, podia ser creditada à irmã.
Quando Mei abriu o escritório, Lu, sua irmã mais nova, se
opôs à idéia.
— O que você entende de negócios? Olha só pra você:
não tem amigos, não gosta de política, não tem nenhuma
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Guanxi, nenhuma rede de contatos com que possa contar.
Como isso pode dar certo? Ao contrário do que você pensa,
irmãzinha querida, tocar um negócio não é nada fácil. Sei
disso porque sou casada com um homem de negócios muito
bem-sucedido.
Mei revirou os olhos. Estava cansada demais para continuar discutindo. Desde que pedira demissão do Ministério
de Segurança Pública, todos se julgavam no direito de repreendê-la com alguma lição de moral.
— Bem, suponho que você já esteja chegando a seu limite — Lu suspirou, afinal. — Se não consegue continuar no
Ministério, o que mais pode fazer? Trabalhar por conta própria, claro. Mas não posso ficar de braços cruzados enquanto você se joga num rio de águas turbulentas sem saber
nadar. Deixe pelo menos que eu encontre alguém para lhe
ensinar o bê-á-bá dos negócios.
No dia seguinte, o Sr. Hua telefonou convidando Mei
para um encontro no escritório dele. Lá ela se acomodou
num sofá de couro escuro e, tomando o café servido pela linda secretária, pôs-se a ouvir o que o Sr. Hua tinha a dizer a
respeito das Guanxi, sobre os muitos procedimentos que
podiam ser evitados e os poucos que não podiam, a criatividade na organização e na contabilidade e, principalmente,
sobre a importância de se manter olhos e ouvidos bem
abertos.
— Você precisa estar atenta às mudanças no vento e na
política — ele disse. — Atenta às pessoas que podem apu11
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nhalá-la pelas costas. Se me permite um conselho — Mei já
havia constatado que essa era uma das expressões prediletas
do empresário —, confie apenas nos amigos, em mais ninguém. Se quiser progredir, é fundamental que tenha uma
boa rede de contatos, especialmente nas altas rodas. — O Sr.
Hua pegou café pela quinta vez. — E as secretárias? —
perguntou.
— O que tem as secretárias?
— Já pensou no tipo de secretária que pretende contratar?
Mei respondeu que não tinha intenção de contratar uma
secretária, pelo menos enquanto não tivesse clientes.
O Sr. Hua balançou a cabeça em sinal de desaprovação.
— Pode-se contratar alguém por uma ninharia — disse.
— Muitos dos imigrantes das províncias estão dispostos a
trabalhar por quase nada. O custo de se ter alguém para
atender o telefone ou realizar pequenos serviços é mínimo,
e os benefícios são consideráveis. Seu escritório parecerá
estranho se não tiver uma secretária. Ninguém gosta de fechar negócios num ambiente estranho. Olhe só ao seu redor
e diga o que está vendo.
Mei passou os olhos pela sala ampla e ricamente mobiliada.
— O senhor tem um belo escritório — disse.
— Exatamente. O que tenho aqui é o que as pessoas chamam de uma “sociedade fantasma”. Convido empresas internacionais para participar de joint ventures. Como você
deve saber, todos os investidores estrangeiros precisam de
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sócios chineses. Então eles vêm falar comigo e encontram
este belo cenário, num dos melhores endereços da cidade.
Mas não se dão conta de que não tenho nenhuma fábrica,
nenhuma folha de pagamentos sob minha responsabilidade. Acham que sou alguém importante, dono de algo real.
Mas só o que faço é correr atrás de fornecedores tão logo recebo o dinheiro dos sócios estrangeiros. Se consigo fechar
um negócio por ano, ótimo. Se fecho dois, posso ficar o restante do ano sem trabalhar.
“Sabe, fazer dinheiro é fácil. Difícil é conseguir que lhe
paguem à vista. É por isso que gosto de trabalhar com estrangeiros. Com os chineses é muito mais difícil. Se me permite um conselho, quando for contratar alguém, pense nos
seus recebimentos, escolha uma secretária que tenha firmeza, que seja capaz de intimidar os devedores.
Aquilo fez sentido para Mei, que colocou um anúncio à
procura de uma secretária para seu novo negócio. Entre todos os candidatos, Gupin era o único homem. Embora não
tivesse considerado a possibilidade de contratar um secretário, Mei decidiu entrevistá-lo.
Gupin viera de uma cidade rural na província de Henan
e ganhava seu sustento trabalhando nas construções de
Pequim.
— Fui um dos melhores alunos da escola de ensino médio do condado — ele contou a Mei com seu forte sotaque de
Henan. — Mas tive de voltar para o vilarejo em que nasci,
porque era lá que eu estava registrado. Queria trabalhar
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numa das cidades do condado, mas o prefeito do vilarejo não
permitiu. Disse que nosso povoado precisava de um “homem dos livros”.
Mei demorou um tempo para se acostumar ao sotaque
do rapaz e compreender o que ele estava falando.
— Mamãe queria que eu me casasse. Mas eu, não. Não
queria terminar feito meu irmão. Todos os dias ele se levanta de madrugada e trabalha no campo até o sol se pôr, mas
nunca tem dinheiro suficiente pra sustentar a mulher e o filho. Com papai era a mesma situação. Ele morreu muitos
anos atrás, de tuberculose. Todo mundo diz que as grandes
cidades são minas de ouro. Então resolvi vir pra Pequim.
Quem sabe meu futuro não está aqui?
Mei observava o candidato. Ele era jovem, acabara de
completar 21 anos e tinha ombros largos. Exibia músculos firmes sob a camisa. Tinha um sorriso tímido, porém
honesto.
Infelizmente viu-se obrigada a dizer que ele não estava
apto para a posição oferecida. Ele não conhecia Pequim, e o
sotaque de Henan poderia afugentar as pessoas.
— Quando você abrir a boca, as pessoas vão fazer uma
série de deduções a seu respeito, e do meu negócio também.
Algumas pensarão até que estou dirigindo uma farsa. Um
absurdo, eu sei. Mas as pessoas são assim. O mesmo aconteceria comigo se eu fosse para Xangai. Provavelmente seria
trapaceada pelos motoristas de táxi, receberia toda sorte de
informações erradas.
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Mas Gupin era persistente.
— Me dê uma chance — suplicou. — Aprendo rápido e
não tenho medo de trabalhar. Posso aprender tudo sobre
Pequim. Me dê três meses e prometo que vou conhecer todas as ruas desta cidade. Também vou perder o sotaque. Eu
consigo, pode acreditar em mim.
Por fim, Mei decidiu dar ao rapaz uma oportunidade.
Lembrou-se do que havia dito o Sr. Hua e concluiu que Gupin
seria, senão um bom secretário, pelo menos um cobrador
mais eficaz do que qualquer outra pessoa que ela havia entrevistado até então. Além disso, era, de longe, o mais barato.
— Vou lhe dar um ano — disse. — Você nem faz idéia de
como Pequim é grande.
Mais de um ano depois, Gupin havia se revelado tudo
aquilo que dissera ser: trabalhador, esperto, leal. Passara
boa parte de seu tempo livre andando de bicicleta pelas
hutongs* e pelas ruas de Pequim e agora conhecia certas partes da cidade bem melhor que a própria Mei. Tornara-se
para ela uma extensão de seus próprios olhos e ouvidos.
— Bom trabalho — cumprimentou Mei. — O Sr. Su não é
homem de abrir a mão com facilidade. Podemos dar o dia
por encerrado.
Eles recolheram seus pertences e conferiram todas as
trancas da porta. No corredor escuro estava mais fresco do
que na sala.
*Hutongs são ruelas ou becos, geralmente associados a Pequim, na China. São formados
por linhas de siheyuan, residências tradicionais. (N. do R.)
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— Espero que o fim de semana não seja tão quente —
disse Gupin enquanto eles deixavam o prédio. A mochila
militar sacudia em suas costas. — Vai fazer algo especial?
— Um piquenique no Palácio de Verão.
— Tão longe, só para um piquenique?
— É a reunião dos meus colegas de universidade.
Do lado de fora a luz do sol estava turva, e o ar, espesso
feito uma calda. Os dois se despediram e tomaram seus
respectivos rumos: Gupin, para o álamo ainda jovem em que
havia amarrado sua bicicleta Flying Pigeon;* Mei, para o cupê
Mitsubishi estacionado sob a copa de um velho carvalho.
*Flying Pigeon é a marca de bicicleta mais famosa na China. Em português, significa
“Pombo Voador”, e desde a década de 1950 é chamada de “bicicleta do povo”, pois na
época representava o sonho de consumo de toda família chinesa. (N. do R.)
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