n. 281, 12 de fevereiro de 2013. Ano VII.
política brasileira por um motorista de taxi na cidade do rio de janeiro
“Tenho 77 anos, já fui do sindicato dos taxistas, cabo eleitoral e conheço a história do Brasil desde Getúlio Vargas. Pode
perguntar o que quiser”. Assim se apresenta o motorista de taxi, depois de puxar conversa falando de violência, crack,
favelados expulsos das comunidades e dizer que Lula inaugurou a piscina de lama no país. O povo brasileiro, segundo ele,
não estava nem está preparado para a democracia. Acusa o ex-presidente de se automutilar para ser líder sindical, de
matador de prefeito, de controlar a Dilma, de ser mau pai e mau esposo como deixou claro Collor naquele histórico debate
eleitoral, de ter dissolvido os ministérios das forças armadas e formado o Ministério da Defesa, comandado por um civil...
Enfim, diz ele, o Brasil somente não virou comunista porque temos os militares, a igreja católica e a Rede Globo. Este Brasil
de violência e miséria, ele pontifica, só tem correção com a volta dos militares revolucionários de 64. Aí sim, os bandidos
seriam mortos e jogados em vala comum, a corrupção sanada e, finalmente, professores e médicos seriam bem
remunerados. O discurso fascista circula livremente a pé, no transporte público ou de taxi.
participação democrática por uma intelectual num café na cidade do rio de janeiro
No café de um espaço de exposição de arte, uma senhora procura convencer a colega de mesa da importância dos projetos
de arte-educação levados adiante por parcerias da sociedade civil com o Estado. Fala das maravilhas da participação
monitorada como maneira pela qual a universidade e os universitários podem se aproximar da população pobre e como esta,
por meio de programas similares, deve responder favoravelmente. Ela convence a outra a entrar no projeto que coordena,
ressaltando as maravilhas da democracia, a inclusão, a oferta de alternativas para conter a violência, a miséria, o abandono,
a impunidade e formar uma consciência crítica. É preciso programas como estes, ela pontifica, para formar bons cidadãos
participativos e combater a violência e o tráfico, conter a corrupção, dar educação à polícia e aos futuros policiais. É assim
que deve ser, segundo ela, para que melhorias sejam definitivamente alcançadas.
política e participação: balancinho
Os dois discursos se tocam mais do que indelevelmente. Para a simpatizante e para o antipatizante com o momento atual, o
combate à violência, ao tráfico, à corrupção, à miséria, seja pela democracia ou pela restauração ditatorial, devem ter como
alvo o fim das impunidades As palavras mudam de lugar e o pronunciamento é mais ou menos atualizado. Porém, ambos
querem um Brasil desenvolvido, sem violência, corrupções, impunidades. Em suma, querem os pobres educados, com força
ou arte, para obedecer qualquer autoridade. O motorista de taxi quer que tenha mais dinheiro neste país rico para programas
sociais; a educadora quer que, com participação, os pobres aprendam a ser governados e a se governarem para o próprio
bem. Querem polícias armadas e efetivas. Quando os dois discursos se tocam, o regime político passa a ser irrelevante.
Importa que o Estado e os governos estejam comprometidos com os de baixo e que estes aceitem serem governados.
Diante de qualquer crise, pode vingar um ou outro regime. Já foi assim na antessala do golpe de 64. A sociedade civil
organizada apoiou o Estado de exceção governado por civis-militares.
filantropia certificada
Na rodada do chapéu da filantropia de 2013, Bill Gates conclama os bilionários estadunidenses e dos países de “renda
média”, como o Brasil, a fazerem doações a países “muito mais pobres” do mundo. Na carta anual da Bill & Melinda Gates
Foundation, ele fala da importância de se doar “ainda em vida” e de se ter ferramentas eficazes para medir o impacto de
suas benesses. Destaca, por exemplo, o programa “Objetivos do Milênio”, da ONU, por possuir números claros e metas
concretas, e avalia que “as vidas dos mais pobres melhoraram com mais rapidez nos últimos 15 anos do que jamais ocorreu
antes”. Em uma era de certificação e sustentabilidade, filantropos querem ter garantias de que suas doações serão bem
investidas no gerenciamento da fome e da miséria. Como todo negócio, tem que render e aparecer.
dispositivo-blitz
O governo paulista aproveitou o carnaval para reformar as blitzes da Lei Seca. A partir de agora elas se chamarão Operação
Direção Segura e contarão com uma equipe formada por agentes de trânsito, policiais militares, peritos de criminalística,
delegados e escrivães. A ideia é que as pessoas flagradas com álcool no organismo possam ser enquadradas num só lugar,
sem necessidade de deslocamento para uma delegacia. Em breve, cada blitz terá, também, computadores para identificar
multas e atrasos nos impostos e inspeções veiculares, para que o motorista pague na hora o que deve ou tenha o carro
apreendido. O novo programa – que já anuncia possíveis “aperfeiçoamentos” – começa junto com a nova Lei Seca nacional
que considera uma infração grave, com possibilidade de ação penal, qualquer ingestão de álcool por motoristas e que
transforma cada uma dessas barreiras policiais num dispositivo de controle, rastreamento e punição.
educar e punir
A Operação Direção Segura não fica por aí. Nesse carnaval, o governo implantou um programa-piloto para identificar o uso
de maconha e cocaína. Os policiais da blitz poderão coletar saliva de pessoas suspeitas de terem consumido essas drogas,
seguindo o padrão do teste do bafômetro. O controle sobre a droga legal associa-se ao de drogas ilegais seguindo a
discricionariedade dos polícias que podem “interpretar sinais aparentes”, como um andar cambaleante ou os olhos dessa ou
daquela cor. Além disso, cadeirantes que ficaram assim por conta de acidentes de trânsito realizam trabalho de
conscientização em bares. A sociedade aplaude o rigor da lei e da fiscalização, considerando que a tolerância zero contra as
drogas é necessária para se educar pela dor.
a vida e os imbecis
A “Lei Seca” brasileira evoca o nome da infame lei que nos EUA dos anos 1920 procurou banir o álcool e que terminou por
fortalecer máfias, agigantar a repressão estatal, aumentar as mortes por consumo de álcool adulterado e impedir que
práticas livres se desenvolvessem na relação com essa droga. A Lei Seca de lá acabou em 1933 e seu modelo se espalhou
para muitas outras drogas. A “Lei Seca” daqui faz de imbecis que se embebedam e dirigem a generalização necessária para
que se opere qualquer lei, padronizando e universalizando em nome do “bem comum”. Enquanto fiscalizações abundam e
se rotinizam, marcas de cerveja patrocinam o carnaval, inundam as propagandas impressas e televisivas, estampam
alegorias das escolas de samba e acompanham a garotada que deambula de cara cheia atrás de blocos e trios. Nenhuma
lei abole a imbecilidade, mas propicia novos ou ampliados meios de esquadrinhar, acochar, amedrontar, enquadrar. No
entanto, lei alguma impede, também, que experiências livres resistam aos castigos e controles, permanecendo vivas sob, ao
lado ou nas brechas das punições.
fuja, agora
Três jovens fugiram de uma das unidades de internação da Fundação Casa na última semana. Enquanto isso, uma de suas
carcereiras tituladas alardeava, pedagogicamente, a programação que o cárcere de jovens idealizou para os dias de
carnaval: um retiro espiritual momesco no interior do estado, com “cânticos em ritmo de marchinha”. O trio que escapou, não
aguardou, nem se guardou para o quando o carnaval chegar, ou passar.
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