CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos Os dispositivos da clínica e as redes de atenção à saúde no enlaço de um caso clínico de saúde mental The devices of clinical and health care networks link in a clinical mental health case Juliana Lemos Rabelo Enfermeira do Hospital Galba Veloso. Supervisora de estágio da UNIPAC Contagem. Aluna do curso de Especialização em Saúde Mental da PUC Minas. Endereço para correspondência: Rua São Paulo 1031, apto 309, Centro, Belo Horizonte - MG CEP: 30170-131 E-mail: [email protected] Maria do Rosário Nogueira Rivelli Psiquiatra do Hospital Galba Veloso. Pós-Graduada em Saúde Mental Pública - FNS/ ESMIG. Endereço para correspondência: Av JK Nº 140 - Centro - Betim - MG CEP: 32600-226 E-mail: [email protected] Willy Moreira Batista Simões Enfermeiro do Hospital Galba Veloso. Aluno do curso de especialização em Saúde Mental da PUC Minas Endereço para correspondência: Rua A, número 210, Eldorado, Contagem – MG CEP: 32341-025 E-mail: [email protected] Resumo: O presente estudo tem como desígnio discutir o vínculo, a responsabilização e a noção de transferência ordenada pela psicanálise. Analisar a empregabilidade e a eficácia do Projeto Terapêutico Individual (PTI) nos serviços de saúde mental. Discorrer sobre a importância da articulação das redes de atenção à saúde no acolhimento ao portador de sofrimento mental. Debater sobre o lugar do hospital psiquiátrico na contemporaneidade. Apresentar um caso clínico e o percurso do tratamento a partir das intervenções realizadas pela rede assistencial e a equipe multidisciplinar que acolheu o caso. Palavras-chave: vínculo; responsabilização; transferência; projeto terapêutico individual. Abstract: The present study is intent on discussing the bond, the accountability, idea to transfer ordered by psychoanalysis. To analyze the effectiveness and employability Therapeutic Individual Project in mental health services. Talking about the importance of coordination of health care networks in the host psychiatric patient. Debating the place of the psychiatric hospital in contemporary times. Present a clinical case and the course of treatment interventions from the health care network and the multidisciplinary team which hosted the event. Keywords: bond; accountability; transfer; individual therapeutic project. 1 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos Introdução Este trabalho tem como objetivos ressaltar o papel basilar do vínculo e da responsabilização no tratamento do portador de sofrimento mental, empregando a noção de transferência elaborada pela psicanálise. Assim como refletir sobre a eficácia do projeto terapêutico individual nos serviços de saúde mental. Discutir a importância da articulação da rede de atenção à saúde mental ao portador de sofrimento mental e refletir sobre o lugar do hospital psiquiátrico na contemporaneidade. Visando demonstrar as articulações dessas variadas facetas, apresentaremos um caso clínico e o percurso do tratamento, destacando as intervenções realizadas pela rede assistencial que acolheu o caso. A transferência é considerada a princípio por Freud (1912) como verdadeiro motor do tratamento analítico, mesmo quando se apresenta como resistência. É o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos, no tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, na relação analítica. Para Figueiredo (2009), a transferência se define como um modo particular de vínculo do sujeito seja com o profissional ou com a instituição. É um conceito central para a clínica e deve ser considerado em suas diferentes manifestações como uma estratégia do sujeito que dá suporte e condiciona seu tratamento. O manejo da transferência é a parte vital do tratamento analítico e também na condução do tratamento e construção do projeto terapêutico em saúde mental. O projeto terapêutico individual (PTI) é um recurso que pretende focalizar e direcionar a equipe no tratamento do sujeito. Freqüentemente utilizado no campo da saúde mental pública, o PTI propicia voz ativa e implica o sujeito na construção de laços sociais, inclusão social e ressocialização, sem abandono ou exclusão. O projeto visa garantir o sujeito atendimentos individuais, co- responsabilidade quanto à definição da freqüência aos serviços de saúde e os encaminhamentos necessários a sua especificidade. Carece ter um técnico de referência que possua capacidade técnica e articule o trabalho em equipe, aceitando sugestões e observações pertinentes ao caso. As intervenções propostas pelo técnico de referência e pela equipe ocorrem em consonância com a singularidade do sujeito (MINAS GERAIS, 2007). As redes de atenção à saúde mental devem ser compostas dos mais variados dispositivos encontrados na comunidade. A organização acontece com objetivo de melhoria da integralidade da saúde da população, onde o sujeito é co-responsável e participante de forma ativa no seu processo terapêutico. Ademais, a ênfase no cuidado ocorre na relação entre equipes multiprofissionais, usuários e suas famílias (MINAS GERAIS, 2009). A rede tece e possibilita um acontecimento novo na cultura, que é a inclusão da loucura na cidade e na cidadania. Na sustentação desta idéia e desta prática destaca-se, viva e nitidamente, o desejo 2 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos decidido dos trabalhadores de saúde mental que emprestam seus corpos para endereçarem e referenciarem os possíveis percursos dos portadores de sofrimento mental. Há um desejo do fazer diferente que acompanha a pratica e atenção daqueles que necessitam de tratamento (BELO HORIZONTE, 2008). Assim sendo, o desígnio deste trabalho é discutir e refletir sobre essas ferramentas no atendimento ao portador de sofrimento mental, frente ao caso apresentado, destacando a importância da transferência no tratamento. Construindo um caso Trata-se de Mateus (nome fictício), dezenove anos, solteiro, reside na região metropolitana de Belo Horizonte juntamente com a mãe, e dois irmãos. Estudou até a sexta série do ensino fundamental, abandonou a escola porque tinha dificuldade de se expressar e comunicar com os colegas e professores. Recusava fazer as tarefas propostas pela professora, era sempre nervoso, tímido, arredio e calado. Saia da escola e brigava com os irmãos quando chegava em casa. Nunca trabalhou, fez apenas um biscate de segurança numa festa da sua cidade. Ao relatar o fato, sente-se orgulhoso por tal experiência. Envolveu-se apenas em um namoro de curta duração. Seu pai fazia tratamento psiquiátrico de forma irregular, não mantinha adesão a nenhuma terapêutica. Além disso, era etilista, tabagista e cardíaco, vindo a falecer de Doença de Chagas há aproximadamente oito anos. Mateus sente-se culpado pela morte do pai, pois os dois sempre entravam em atrito, e o desfecho se dava com recíprocas agressões físicas e verbais. A mãe de Mateus afirma que o marido era agressivo, bebia, batia nela e nos filhos. O irmão mais velho, atualmente faz acompanhamento psiquiátrico, toma regularmente antidepressivo, trabalha formalmente e vive estável. A mãe nega que tem transtornos psíquicos, porém afirma que há casos de depressão grave em sua família. O padrasto de Mateus é psicótico, faz tratamento e encontra-se estável há alguns anos. Mateus faz uso de etílicos desde os quatorze anos, é tabagista, nega o uso de drogas ilícitas. Mesmo consciente das graves conseqüências sociais, familiares, econômicas e orgânicas que álcool pode provocar, o paciente não consegue deixar a bebida. Relata que se sente aliviado e desinibido quando faz uso de álcool. Contudo, afirma que sente uma profunda tristeza e culpabilidade após ingerir a bebida. Em certas ocasiões apresentou episódio de tricotilomania e atualmente só anda com uma faca na mão, “para se proteger”, segundo ele mesmo diz. Afirma ter nervosismo, insônia, vergonha, timidez e medo das pessoas. Em menos de um ano apresentou várias tentativas de 3 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos auto-extermínio, quatro passagens em internações psiquiátricas, e tentativas frustradas de adesão ao tratamento proposto pelo Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), da cidade vizinha. Mateus começou o tratamento psiquiátrico neste serviço há aproximadamente 01 ano. Percurso terapêutico: um ensaio para o enlaço do tratamento Em sua primeira passagem pelo hospital psiquiátrico aos dezoito anos de idade, Mateus apresentava quadro de impregnação neuroléptica, auto agressividade, nervosismo e relato de alucinações visuais. Foi avaliado pelo plantão, medicado conforme o quadro apresentado e liberado na mesma data para tratamento ambulatorial. Após cinco meses, Mateus retorna ao mesmo hospital com encaminhamento da policlínica de sua cidade, com relato de três tentativas de auto-extermínio nos últimos 20 dias, sendo a última precedida de enforcamento e ingestão de grande quantidade de medicamentos. Ingeriu os remédios prescritos pelo CAPS AD, juntamente com comprimidos analgésicos e vermífugos para cães, os quais estavam em sua casa. Na policlínica recebeu os cuidados médicos de urgência e posteriormente foi encaminhado para o hospital psiquiátrico. No acolhimento apresentava-se emagrecido, agitado, consciência clara, agressivo, inquieto e hostil ao contato. Foi medicado conforme o quadro de agitação psicomotora. Segundo relato da mãe, fazia dois dias que Mateus se recusava a tomar banho, chorava muito e reclamava da falta do pai falecido há sete anos. Na abordagem, o paciente diz “eu vim para o hospital porque fiquei nervoso com meu irmão porque ele trancou minha bicicleta, aí peguei uma telha e joguei nele, ele pegou e me bateu na cabeça com a telha”. Permaneceu por dois dias em observação no hospital e saiu re-encaminhado para o CAPS AD. De acordo com o psiquiatra que o atendeu, Mateus encontrava-se em condições de alta, pois estava lúcido, orientado no tempo e espaço, cooperativo, sem sintomas produtivos ou qualquer sinal que indicasse um quadro psicótico. Queixava apenas de timidez e uso abusivo de álcool. Apesar dessa observação, o paciente obteve uma hipótese diagnóstica de depressão bipolar e psicose não especificada- a esclarecer. Passados três meses após a alta, Mateus retorna ao hospital psiquiátrico, trazido por sua mãe, com relato de alterações de humor e comportamento. No acolhimento o psiquiatra descreve: tranqüilo, cooperativo, algo entristecido, discreto hálito etílico, alerta, consciência clara, pensamento organizado, idéias de menor valia, senso-percepção sem alteração, discreta lipotimia. A mãe relata que Mateus ficou agitado e agressivo, ameaçou os familiares. Ao ser indagado, paciente diz: ”a bebida me dá animo e facilita o contato social, além disso, eu bebo 4 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos porque eu matei meu pai” . Durante a estadia no hospital, foram realizadas investigações de doenças clínicas, inclusive avaliação endocrinológica devido a suspeita de atraso de desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, porém, não foi detectada nenhuma alteração. Mateus ficou em observação três dias no leito crise do hospital, não chegando a ser internado na ala. É re-encaminhado ao CAPS AD com novas impressões diagnósticas: síndrome de dependência alcoólica; fobias sociais; transtorno de personalidade paranóica; transtorno do humor afetivo não especificado; transtorno depressivo recorrente, episódio atual leve. Alkimim (2008) ressalta que “a pulverização dos sintomas e o esfacelamento das categorias diagnósticas tradicionais da psiquiatria clássica, produzem tal multiplicação e universalização dos critérios diagnósticos, fazendo deles uma banalização”. Diante de um quadro de sofrimento mental com difícil manejo da adesão ao tratamento e diferentes hipóteses diagnósticas, torna-se evidente a necessidade de uma articulação maior entre as redes assistenciais e a equipe que o acompanha. Perante tal situação, a médica psiquiatra que atende na policlínica da cidade de Mateus e no hospital psiquiátrico como plantonista, resolve intervir e decide por acompanhar o caso de forma mais articulada. Propõe, então, atendê-lo na policlínica uma vez por semana, pois o CAPS AD que Mateus freqüentava não era na sua cidade. Assim, a psiquiatra criou um vínculo terapêutico com Mateus, e o mesmo com a profissional e a policlínica. Articula-se uma rede assistencial onde Mateus passa a circular na Policlínica, no Programa de Saúde da Família (PSF) da sua cidade, além do CAPS AD do município vizinho. No entanto, passados 46 dias, Mateus novamente apresenta tentativa de autoextermínio na qual ingeriu aproximadamente 30 comprimidos de sulfato ferroso que estavam em uma caixa de benzodiazepínicos. Foi à policlínica, onde foram realizados todos os procedimentos médicos de urgência. Após a tentativa de auto-extermínio, a psiquiatra da policlínica, o psicólogo do CAPS AD e a equipe do PSF, discutem o caso e propõem a internação no hospital psiquiátrico com o objetivo de preservar a integridade do paciente. A psiquiatra faz um contato prévio com o médico que acompanharia Mateus durante sua internação. Agora inclui-se o hospital psiquiátrico na rede assistencial e não mais só no atendimento a crise, visto a complexidade do caso e a dificuldade na adesão ao tratamento, propondo um acompanhamento mais sistematizado, reforçando seu vinculo aos serviços. As redes de atenção à saúde mental são compostas por diferentes ações e serviços. No entanto, para articular como rede, é necessária a sua ordenação a partir de um Projeto de Saúde Mental. Esse projeto abrange uma construção coletiva envolvendo como parceiros o poder público, trabalhadores, usuários, os centros de convivência, os grupos de produção, as 5 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos moradias assistidas, respeitando as especificidades de cada município. O projeto não se restringe apenas na criação e substituição de novos serviços, ele é pautado na vinculação do paciente a determinados serviços, conforme sua singularidade. No caso de Mateus, não havia no seu município de referencia um dispositivo de maior proteção, sendo necessário lançar mão do recurso fora da comunidade onde ele vivia, necessitando, assim, a inclusão do hospital psiquiátrico (MINAS GERAIS, 2007). Chegando ao hospital psiquiátrico, Mateus é atendido e acolhido pela médica que o acompanhava na policlínica e estava como plantonista no hospital. Ao acolhê-lo, descreve: “Acompanho Mateus na policlínica de sua cidade há 06 meses, trata-se de paciente com atos obsessivos, não sai de casa senão na companhia da mãe, cisma que vai morrer, ou que tem coisas andando ou puxando sua coberta a noite. Tem medo do escuro mesmo dormindo com a luz acesa. Sente-se vergonhoso, por isto abandonou a escola, diz-se bastante tímido. Está calmo, lúcido, com medo da internação hospitalar. No momento não observo atividade delirante alucinatória. Oriento o paciente e a família sobre o processo de internação e o perfil do médico que irá acompanhá-lo durante a estadia no hospital”. Mateus agora ficou internado por 15 dias, teve alta tranquilo, com humor estabilizado. Paciente e sua mãe foram orientados pelo médico que acompanhou o caso sobre a importância de continuidade do tratamento em sua cidade, e a gravidade da sua doença. Novamente saiu com variadas hipóteses diagnósticas: transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool; transtorno de personalidade com instabilidade emocional; mania com sintomas psicóticos; outros transtornos depressivos recorrentes. O papel do hospital psiquiátrico no caso Mateus Antes de trabalharmos a relação do hospital no caso Mateus, faremos uma breve passagem pelo papel do hospital psiquiátrico no mundo contemporâneo. De acordo com as novas legislações da reforma psiquiátrica brasileira, o hospital psiquiátrico deixa de ser o foco de tratamento dos portadores de sofrimento psíquico. As novas formas de lidar com a loucura incluem a substituição do hospital psiquiátrico pelas redes de atenção à saúde e a inclusão de ações e alternativas de atendimento na comunidade. Entretanto, é evidente a insuficiência de serviços de saúde mental em quantidade e qualidade, além da desarticulação da rede de serviços já existentes. Tal situação traz inúmeras conseqüências aos portadores de sofrimento mental e com isso, o paciente tem dificuldades em criar vínculos com os serviços e com os profissionais da rede de atenção. 6 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos Mateus, por exemplo, estabeleceu seu vínculo com a psiquiatra na policlínica de sua cidade. Não necessariamente um serviço para acolher o portador de sofrimento mental careça ser um serviço de saúde mental. A postura ética dos profissionais que conduzem o caso e a disponibilidade para investir na acolhida são essenciais para qualquer PTI. Atualmente o hospital psiquiátrico tem como papel fundamental acolher e tratar a clientela portadora de transtorno mental em situação de crise, respeitando as diretrizes da reforma psiquiátrica. Possibilitando o enlace e a continuidade de tratamento na rede de atenção à saúde mental, constituindo-se em um serviço humanizado e de qualidade técnica, integrado na rede de atenção à saúde mental. Além disso, deve acolher casos de interdição judiciária e propor o tempo mínimo de permanência para o atendimento a crise e estabilização do sofrimento psíquico. Em relação a Mateus, o hospital foi fundamental para acolhê-lo durante a crise, preservando a sua integridade física, devido às tentativas de auto-extermínio que vinham acontecendo. Mesmo sendo realizado um trabalho sistemático entre a Policlínica, o CAPS AD e o PSF, foi necessária a inclusão do hospital psiquiátrico na rede de atenção à saúde que acolhia Mateus. Ademais, através da construção do PTI, enlaçado pelo estabelecimento da transferência do paciente com a médica da policlínica, com o técnico de referência do CAPS AD e o enfermeiro do hospital psiquiátrico, foi possível mostrar a Mateus novas estratégias e formas de lidar com o sofrimento psíquico. Apesar de estar no hospital psiquiátrico, a equipe que acolheu Mateus focou a construção do caso respeitando a sua singularidade. O respeito à singularidade do sujeito deve ser primordial nas ações em saúde mental, uma vez que a historia do individuo é única, assim como o seu jeito de ser, suas questões subjetivas, familiares e sociais, suas dificuldades e seus projetos. As hipóteses diagnósticas podem ser as mesmas, porém as pessoas são únicas e como tais, devem ser respeitadas e tratadas em sua diferença (MINAS GERAIS, 2007). A internação, o Projeto Terapêutico Individual, o vínculo e a reinserção na rede de atenção à saúde: o papel da enfermagem Durante a internação, o Projeto Terapêutico Individual (PTI), foi de responsabilidade da enfermagem do hospital psiquiátrico. Esse projeto é divido por leitos e realizado pelos profissionais de nível superior da equipe (psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e médicos). Cada profissional tem três leitos pré-definidos na internação, para realização do PTI. O projeto terapêutico indica para a equipe a direção que se pretende dar ao tratamento, além de ter como princípio proporcionar ao paciente a retomada 7 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos de voz e do poder de decisão sobre as questões que lhe concernem. Além disso, o profissional responsável pelo PTI torna-se técnico da referencia do paciente, possibilitando a ele uma escuta qualificada, a criação de um vinculo e acolhida à família do portador de sofrimento mental (MINAS GERAIS, 2007). “É na família que afloram os determinantes do processo saúde-doença, acrescidos dos fatores sociais, das lutas pela sobrevivência e da produção e reprodução da força de trabalho” (ARAÚJO, 2002, p.85). Schmith e Lima (2004) reforçam que o vínculo, muito além de responsabilização, vem falar de uma relação mais personalizada, mais concreta entre trabalhador e usuário, na qual os mesmos possam se conhecer, inclusive nominalmente. Além disso, o vínculo contempla a participação ativa do usuário na organização do serviço e no tratamento. Temos no conceito de transferência desenvolvido pela psicanálise o alicerce para a relação com o sujeito e o tratamento, sendo este considerado por Isolan (2005) como: “o conjunto de expectativas, crenças e respostas emocionais inconscientes que um paciente traz para a relação terapêutica, baseadas nas experiências persistentes que teve durante sua vida com outras figuras importantes do passado”. Freud (1912), ao interrogar o que é a transferência, diz: “O que são as transferências? São reedições, reproduções de moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico”. (Freud – A Dinâmica da Transferência- 1912) Nos primeiros dias de internação, Mateus permanecia sempre isolado, mais restrito ao leito, com medo dos outros pacientes, não era sociável e se negava a participar de atividades proposta pela equipe multidisciplinar. Apresentava algumas dificuldades em expressar o que sentia e o que o angustiava. Inicialmente a maioria das informações que norteavam o tratamento era fornecida pela mãe que visitava o filho todos os dias, ora no período da manhã, ora no período da tarde. Às vezes o visitava em ambos os horários, quando acompanhado do padrasto de Mateus. Diante do comportamento arredio e a dificuldade de interação da equipe com o paciente, perante as diversas hipóteses diagnosticas apresentadas durante a evolução do seu quadro, tornou-se um desafio planejar o projeto terapêutico para Mateus. Iniciamos colhendo as informações com a mãe do paciente e realizando contato nos serviços onde Mateus já havia passado. Realizamos contato com o psicólogo e técnico de 8 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos referência de Mateus no CAPS AD, fomos informados que o paciente é faltoso na permanência dia e quando comparece é com a mãe e apresenta-se arredio, isolado, pouco sociável, comportamento que se repetiu na internação. O psicólogo afirma que Mateus é um paciente de difícil manejo e não tem adesão ao tratamento ambulatorial proposto pelo CAPS AD. Vale ressaltar que este serviço não está localizado na cidade onde Mateus reside, o que acreditamos ser um ponto relevante quando se pensa em vínculo e adesão. Dessa forma, lançamos mão da vocação da enfermagem psiquiátrica, a qual é um processo interpessoal que visa promover e manter uma mudança no padrão de comportamento no paciente. Ela contribui para o seu funcionamento integrado podendo ser dirigida ao individuo, à família e à comunidade. (OLIVEIRA, 2005). O enfermeiro psiquiátrico realiza a ação pautada no entendimento de que o papel da enfermagem é o de agente terapêutico, e o que sustenta essa prática é o relacionamento terapêutico estabelecido com o paciente a partir da compreensão do significado do seu comportamento. É uma ação caracterizada como espontânea, mas guiada eticamente pela não indiferença, pela capacidade técnica e pelo vínculo. (GAIL, 2001). Para sustentar essa prática, recorremos também à noção de transferência que nos orientou no vínculo com o paciente. Segundo Viganò (2002) alguns pacientes criavam uma transferência com a estrutura do hospital, pois a vida social podia ser perigosa, persecutória e o muro da instituição fazia esta defesa. O autor defende que na atualidade a enfermagem é um dos agentes de transformação da instituição e que a transferência com os enfermeiros ocorre como se fosse um muro vivo para o paciente. A convivência o dia todo com o portador de sofrimento mental, criando ocasiões para que o sujeito se expresse, pode funcionar como o ponto de referência para o paciente, facilitando assim o processo de transferência. A partir do convívio diário com Mateus no hospital psiquiátrico elaboramos os aspectos clínicos a serem trabalhados durante a hospitalização. Isso facilitaria para nortear a equipe multidisciplinar sobre os cuidados a serem prestados para o paciente durante sua internação. Principiamos demonstrando interesse e apoio a Mateus, através de uma escuta diferenciada, respeitando seus limites e sua singularidade. Neste momento percebemos a transferência do paciente com o enfermeiro responsável por seu PTI, ressaltando a importância desse ponto para o tratamento de Mateus. Devido a aproximação e transferência estabelecida com seu técnico de referencia, Mateus confessa que não gosta de fazer uso de etílicos, sendo assim uma maneira indesejada de ser sociável e poder conversar com as pessoas. Nos atendimentos, Mateus sente-se mais a vontade em expressar seus sentimentos e faz alguns comentários importantes “Fui uma criança retraída, não conseguia estabelecer 9 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos vínculos na escola, eu ficava isolado e tinha dificuldade de me expressar com a minha professora”. Como notamos, Mateus tinha desde criança dificuldades nos relacionamentos, comportamento esse evidenciado pela vulnerabilidade familiar. Em seu ambiente familiar sempre ocorreram brigas, seu pai era violento com a esposa e filhos, dormia com uma faca debaixo do travesseiro, conforme relatos de sua mãe. Mateus comenta: “Depois que meu pai faleceu entrei em depressão profunda. Eu brigava muito com ele, ele era uma pessoa muito brava, cobrava muito de mim, aí a gente brigava de dar pauladas, socos e pontapés”. Diante dessa escuta, introduzimos Mateus em atividades que desenvolvessem sua segurança e confiança, com vista à recursos de reabilitação social, frente às informações fornecidas por ele acerca de seus desejos e aptidões, tais como vontade em se tornar segurança, gostar de música sertaneja, desejo de estabelecer vínculos de amizade. Assim há melhora do bem estar subjetivo e objetivo e a reintegração na comunidade, ajudando na percepção dos sucessos obtidos, demonstrando confiança no seu potencial, encorajando-o a avaliar seu próprio comportamento, promovendo sua independência gradativa. Mateus relata também sobre sua relação com bebida, “Quando bebo viro outra pessoa, fico nervoso, agressivo e tento me matar. As vezes fico em casa ouvindo musicas sertanejas antigas, fico lembrando do meu pai, aí tenho vontade de morrer”. Trabalhamos com Mateus sobre os malefícios do uso abusivo do álcool no organismo e os prejuízos pessoais, familiares, socioeconômicos e, principalmente a perda de sua liberdade e a vivência de rejeição pelas pessoas que lhes são significativas. Mateus mostra-se reflexivo e disposto a mudar seus hábitos e sua postura em relação a bebida. Durante a internação ressaltamos também a manutenção da integridade de Mateus, protegendo-o devido a idéia de auto-extermínio. Seu leito permaneceu sempre próximo ao posto de enfermagem, procedimento este utilizado para aumentar a vigilância quando temos pacientes com risco de auto-extemínio, ponto este reforçado pelo discurso de Mateus durante a internação: “Quando tentei auto extermínio essa ultima vez foi sem noção mesmo, tanto que chamei minha mãe e disse que tava passando mal com os remédios”. Alguns dias antes da alta hospitalar, Mateus se mostrava mais comunicativo, sociável com os outros pacientes, participou de atividades propostas pela equipe multidisciplinar, estava com humor estável, preocupado com a aparência não usava roupas do hospital, despertou o desejo de voltar a estudar e confessou que seu sonho era ser policial militar. Além do plano terapêutico, do trabalho com a mãe do paciente, entramos em contato com o técnico de referência do paciente no CAPS AD, para que Mateus pudesse sair da internação com acolhimento agendado naquele serviço. Conversamos com a médica que o atendia na 10 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos policlínica, discutimos o caso e acordamos que Mateus continuaria a ser acompanhado por ela uma vez por semana no período da tarde. Nesse momento de transição do paciente convidamos a médica para um atendimento ainda no hospital, junto à mãe e o técnico de referência, reforçando sua transferência e seu vinculo ao tratamento ambulatorial e implicando sua família no projeto terapêutico. Mateus compareceu a consulta no CAPS AD, freqüentando a permanência dia por algum tempo, acompanhado por sua mãe. Além disso, está indo semanalmente a policlínica, sendo atendido pela médica psiquiátrica, como enlaço do tratamento ambulatorial. Independente das diversas impressões diagnósticas de Mateus, percebemos a falta de um enlace no tratamento do paciente que sempre batia à porta dos serviços em crise. Nosso papel mais que acolhedor, foi o de atender a crise e reforçar o vinculo de Mateus a algum serviço direcionando seu tratamento, criando- se assim uma rede assistencial mais efetiva e comprometida com o caso. Segundo a psiquiatra que o acompanha na policlínica, atualmente Mateus está menos inibido, se trajando de forma mais adequada, auto-cuidado preservado, apresenta mais autonomia na sua vida, fala de planos de trabalhar com música ou serviços de segurança. Após intervenções realizadas pela equipe, Mateus modifica seu comportamento, agora mais compromissado com as responsabilidades da vida. Atualmente não tem feito uso de etílicos. Considerações Finais O caso de Mateus evidencia a necessidade de refletir acerca da rede em saúde mental, o papel e o lugar ocupado por seus dispositivos e pelos profissionais no acolhimento ao paciente portador de sofrimento mental. O termo rede segundo Viganò (1999), disserta sobre a idéia de que ``o sujeito possa ir de um lado a outro e funciona como um conjunto de trilhas que permite as pessoas chegarem a pontos preestabelecidos a partir de seus sintomas.`` A proposta de atuação em rede pressupõe um trabalho baseado em relações horizontais (SILVA, 2005), que deverá ser consubstanciado nas interlocuções realizadas por seus atores, com uma nova lógica, que inclua capacitação profissional, envolvimento e utilização dos diversos dispositivos disponíveis em uma comunidade, permitindo ao sujeito a posição de operador dos seus desejos, orientando sua lógica de tratamento. Temos ainda a referência proposta por Garcia (2002), que entende a rede para além do circuito Saúde Mental em seu sentido estrito psiquiátrico. Com uma escuta diferenciada buscamos inserir Mateus no circuito social utilizando um serviço de saúde, no território onde 11 CliniCAPS, Vol 5, nº 13 (2011) – Artigos vive, com o qual se formou um vinculo com o paciente, utilizando da transferência estabelecida com o profissional de referência para articulação da rede assistencial. A partir dos atendimentos com Mateus, foi possível vivenciar a relação transferencial e sua importância enquanto operador da clinica, norteando e direcionando todo o Projeto Terapêutico desenvolvido com o sujeito em questão. Assim este trabalho buscou demonstrar a importância dos dispositivos da clinica e a implicação da rede de atenção à saúde na condução do caso clínico em saúde mental. Além disso, foi possível vivenciar a imperiosa noção da transferência no tratamento analítico e seus resultados no enlace do projeto terapêutico individual. Referências Bibliográfica ALKIMIM, W.D. 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