QUARESMA: deixar-se olhar por Deus
“E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará recompensa” (Mt 6,18)
Mais uma vez é Quaresma, e mais uma vez ressoa em nós o forte apelo à conversão.
Quando falamos de conversão, estamos nos referindo a um estilo de vida diferente, a uma mudança
qualitativa de vida. A conversão tem muito a ver com as atitudes diante das coisas, das pessoas e de Deus;
ela tem a ver com o êxodo ou saída de uma maneira de viver na qual se dava importância a determinadas
coisas, para começar a dar importância a outras coisas. Conversão implica reservar-nos espaços e tempos
para dar maior consistência à nossa vida, para perguntar-nos o que há de Evangelho em nossas vidas, para
examinar quê lugar Jesus tem em nossos corações.
A Quaresma é, sobretudo, um tempo para reaprender a olhar; é um tempo para converter nossa visão à
maneira de Jesus. Sabemos muito bem que o olhar de uma pessoa é uma porta aberta para o íntimo do seu
coração. É no olhar maravilhado dos amigos que nos descobrimos compreendidos e amados por eles.
Por isso, Deus é Aquele que olha, mas o seu olhar é Amor e traduz a infinita ternura do seu coração; seu
olhar é cheio de misericórdia e perdão que nos salva; olha-nos com todas as nossas possibilidades e convida-nos a corresponder-lhe. O seu Amor não cessa de criar-nos, suscitando em nós momentos de ressurreição. Sob o Seu olhar existe sempre a possibilidade de renovação, de re-criação, de transformação
Estabelecida essa relação, as palavras tornam-se inúteis, porque compreendemos tudo no olhar de Deus.
“A contemplação cristã é trinitária, é o fogo de dois olhares que se devoram por amor”’. (P.Molinié)
No interior da Trindade as Pessoas divinas olham-se, acolhem-se e entregam-se num amor mútuo.
Rezar é simplesmente participar dessa troca de olhares que se expande numa comunhão de amor.
O olhar de Deus é um olhar inovador, olhar comprometido que faz acontecer o novo, olhar que recria o
ser humano, que abre futuro novo, que suscita comunhão com tudo, que abarca as fronteiras do universo e
acolhe a humanidade inteira. Olhar não contaminado, sem veneno..., olhar sem rancor, sem julgamento.
Olhar inquietante que sonda a verdade... Olhar audacioso que desperta as consciências, sacode as velhas
estruturas, derruba os muros da separação e da violência...
Quaresma é um tempo para deixar-nos olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão e aprendermos
a olhar o outro como Deus olha... Porque um olhar seu, bastará para “converter-nos e crer no Evangelho”.
Podemos considerar a Quaresma como “mística dos olhos abertos”.
No evangelho da liturgia de hoje, Jesus denuncia aqueles que mendigam um olhar sobre si mesmos; querem ser vistos, elogiados, serem o centro das atenções a partir de práticas religiosas puramente exteriores e
que alimentam uma vaidade pessoal. Querem brilhar diante dos outros, com a falsa pretensão de uma
vivência religiosa.
Somos chamados a corresponder ao olhar de Deus através das chamadas “práticas quaresmais”: ora-ção,
jejum e esmola. Por detrás de cada uma destas práticas está o desejo de Deus de ver-nos mais livres: livres
para olhar mais além de nós mesmos, para olhar como Deus olha, graças à oração; livres graças ao jejum,
que ajuda a configurar nossa sensibilidade, que nos impulsiona a sermos críticos com certos exces-sos, com
determinadas coisas que embora sendo supérfluas, exigem demasiada atenção e nos desgastam. Livres
graças à partilha (esmola), para ir deixando de pronunciar a palavra “meu”, para configurar nosso tempo,
nossas coisas, nossos dons, no horizonte das necessidades do outro.
Em primeiro lugar, a proposta por excelência para este tempo, e que não podemos esquecer, é a oração.
Trata-se de abrir momentos de silêncio e escuta, para deixar retumbar dentro de nós as perguntas: “e tu, a
partir de onde olhas? Como olhas? Em quê e onde estão fixos teus olhos?...”
O que a liturgia nos propõe para a Quaresma é que, a partir da intimidade com Deus na oração, sejamos
capazes de olhar a partir de Deus, que fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capaz de nos olhar
com mais bondade, de olhar os outros com mais carinho...
Orar é ter acesso ao nosso “eu profundo” sob o olhar de Deus e desejar ser visto por Ele até as
profundidades mais secretas do nosso ser. A verdadeira oração começará no dia em que descobrirmos esse
olhar de amor, mas é necessário que Deus ilumine os olhos do nosso coração.
Só podemos “ver a face de Deus” deixando-nos iluminar pela luz dos Seus olhos. “Ver a face de Deus”
é ter consciência de ser penetrado pelo Seu olhar e só n’Ele podemos contemplar a luz: “Na vossa Luz é
que vemos a Luz” (Sl 35,l0).
Conheceremos então, a experiência espantosa em que desejar ver a Deus é ser visto por Ele, que perscruta as profundidades e os abismos. Nesse momento nascerá uma relação de intimidade em que olhare-mos
a Deus, “olhos nos olhos”. Quem é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo
diferente a realidade que o cerca. O olhar, então, se expande e se faz contemplativo.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é.
É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que
existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
O olhar verdadeiramente humano não é um olhar de medusa, possessivo, mas um olhar contemplativo,
que vê todas as criaturas e todas as pessoas, admirando-as e amando-as na singularidade do seu mistério.
Um olhar gratuito e desinteressado que expande o ser humano numa atitude acolhedora de tudo que o
rodeia; olhos que possibilitem o trânsito do olhar, revelando a interioridade e dialogando com o exterior.
A liturgia quaresmal nos propõe também o jejum. A novidade não está em reduzir o que comemos, o que
ingerimos quase por intuição mecânica. Mas também o jejum tem a ver com o olhar, tem a ver com o olharse a si mesmo, tem a ver com fixar-se naquilo que nos alimenta. O jejum, pode ser talvez, a prática de
olharmos com mais compaixão. Em outras palavras, afastar-nos de nós aquele olhar possessivo que nos
destroça por dentro, que nos faz dano, que nos impede de sermos nós mesmos.
Com o jejum aprendemos a conhecer e a ordenar nossos diferentes apetites mediante a moderação do apetite
fundamental e vital: a fome. Aprendemos, desta maneira, a regular nossas relações com os outros, com a
realidade exterior e com Deus, relações muitas vezes motivadas pela voracidade. Ao mesmo tempo, o jejum
nos desperta a “fome essencial”: fome de sentido, fome do Reino, fome em favor da vida.
Por fim, a outra prática quaresmal proposta é a esmola: dar do que temos e somos, e não o que nos sobra.
Mas “dar esmola” tem a ver como olhamos àqueles que estão ao nosso lado. Tem a ver com presentear ao
outro um olhar de proximidade, de consolo, de acolhida...
Com o olhar, podemos transformar uma pessoa, destruí-la ou reconstruí-la, aniquilá-la ou fazê-la re-nascer,
restituí-la a si mesma e ao futuro ou afundá-la no seu passado.
É preciso purificar o olhar, cristificá-lo. Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem préconceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é
o movimento da oração dos olhos.
Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a acolhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança.
Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar. Esse é o sentido verdadeiro da esmola.
Texto bíblico:
Mt 6,1-6.16-18
Na oração: - torne o seu coração vulnerável ao olhar do Pai, receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixandose tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
- evangelizar o olhar: aprender a olhar como Jesus Cristo, ultrapassando as aparências.
- como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?
FONTE: CEI-JESUÍTAS - Centro de Espiritualidade Inaciana
Rua Bambina, 115 - Botafogo – RJ – 22251-050
[email protected] / www.ceijesuitas.org.br
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